Thursday, July 31, 2008


Em Roma, as Parcas (equivalentes às Moiras na mitologia grega) eram três deusas: Nona (Cloto), Décima (Láquesis) e Morta (Átropos).

Cloto: em grego, significa "fiar"; segurava o fuso e tecia o fio da vida. Atuava como deusa dos nascimentos e partos.

Láquesis: em grego, "sortear"; puxava e enrolava o fio tecido. Sorteava o quinhão de atribuições que se ganhava em vida.

Átropos: "afastar"; cortava o fio da vida. Determinava o fim da vida.

Interessante notar que em Roma usava-se a estrutura de calendário solar para os anos, e lunar para os atuais meses. A gravidez humana é de nove luas, não nove meses; portanto, Nona tece o fio da vida no útero materno, até a nona lua; Décima representa o nascimento efetivo, o corte do cordão umbilical, o início da vida terrena, o individuo definido, a décima lua. Morta é a outra extremidade, o fim da vida terrena, que pode ocorrer a qualquer momento.

Também designadas fates, vem daí o termo fatalidade.

http://pt.wikipedia.org

Tuesday, July 29, 2008

Profusão de Paródias - Tempo

É um inkice semelhante a Irôko, orixá originário de Íwerè, região que fica ao leste de Oyó na Nigéria. Foi associado ao vodun daomeano Loko dos negros de dinastia Jeje e é conhecido na Angola como Maianga ou Maiongá. Para alguns iniciados, representa o próprio tempo. Que não pára de passar e se modifica inesperadamente.

Faz sua morada na ficus religiosa e nas mangueiras, mas não é considerado um inkice-árvore e sim uma divindade que é cultuada ao pé de uma árvore sagrada.

Na nação Congo-Angola, Tempo é o senhor responsável por obrigação de muito fundamento.

Tempo usa búzios, prefere vestir tonalidade azul e verde, dança segurando na mão direita uma ferramenta parecida com uma grelha, na outra, segura um objeto cortante, como um punhal.

No seu assentamento, representado por uma grelha e um pássaro, ambos de ferro, é imprescindível que se coloque, ao pé de uma árvore, uma bandeira de morim branca, trocada em toda festa anual para o orixá.

Seus filhos são inteligentes, líderes responsáveis, temperamentais.

Quando o tempo dança é um dos inkices mais garbosos, ágil, senhor de seus passos e decisão.

Elemento> terra / Come > bode, galos, conquéns, pipoca e farofa de carne de galo / Bebe> meladinha / Seu dia > quarta-feira / Seu símbolo > a grelha / Sua cor > verde / Sua morada > tempo

Profusão de Paródias - Tempo Descontínuo

Em A Intuição do Instante, Bachelard* faz uma cuidadosa exploração do tempo, de sua duração e da percepção que temos dele, examinando para isso as idéias de Bergson e Roupnel e as teorias de Einstein. Para o autor, o tempo não tem outra realidade senão a do instante.

Contrariamente à percepção comum, a experiência do tempo não é aquela de uma duração contínua e objetiva que transcorreria independente de nós. O tempo não passa de uma seqüência descontínua de instantes sempre novos, sem relação uns com os outros: ele é fundamentalmente descontínuo.

O passado, o futuro e a duração são apenas ilusões, construções formais sem realidade objetiva. Os hábitos e o progresso, longe de se dissolverem na descontinuidade dos instantes, dão-lhes uma nova dimensão.

O progresso é parte integrante do hábito - a cada novo instante o gesto, renovando-se, se aperfeiçoa. Para o autor, o tempo não tem outra realidade senão a do instante. Em A Intuição do Instante o autor desenvolve a idéia do historiador francês Gaston Roupnel (1872-1946) em um de seus mais importantes estudos, Siloë, que propõe o olhar sobre a história numa perspectiva de tempo descontinuada. Para Roupnel, a verdadeira realidade do tempo é o instante.

Esta proposta opõe-se explicitamente à teoria do filósofo Henri Bergson (1859-1941), que trata do tempo como contínuo e um todo em si mesmo. Para Bergson o que existe é apenas o passado, mais contraído ou mais distendido, já para Bachelard o tempo é composto por uma sucessão de instantes descontínuos. Escrito de caráter universal um dos mérito deste livro é retomar a discussão sobre o conceito de tempo e ligá-lo à criação do conhecimento:

"O conhecimento é por excelência uma obra temporal. É ai que se situa o diferencial do conhecimento, o fluxo newtoniano que nos permite perceber como o espírito surge da ignorância, a inflexão do gênio humano na curva descrita pelo progresso da vida. A coragem intelectual consiste em manter vivo e ativo este instante do conhecimento nascente,em fazer dele a fonte inexaurível de nossa intuição e em desenhar, com a historia subjetiva de nossos erros e equívocos o modelo objetivo de uma vida melhor e mais clara."

* Filósofo e epistemólogo francês, Gaston Bachelard (1884-1962) foi professor de física, química e filosofia, antes de assumir, na Sorbonne, a direção do Institut d'Histoire des Sciences et des Techniques.


Aldo de Albuquerque Barreto

Profusão de Paródias - Tempo Contínuo

O homem, colocado em face da realidade, procura dominá-la. Domina-a partindo-a, dividindo-a, seccionando-a. O meio de que o homem se serve para o domínio da natureza é a inteligência, que opera por meio de quantificação ou de espacialização. O conhecimento da ciência é quase que conhecimento quantificado, numérico. Bergson, no fundo, aceita a tese de Augusto Comte de que o ideal das ciências é a matemática. Uma ciência é tanto mais exata quanto mais se avizinha do ideal das matemáticas, abrangendo o real em fórmulas e equações. O conhecimento do físico, do químico ou do astrônomo atinge perfeição extraordinária, porque é suscetível de expressar-se numericamente, em súmulas quantitativas, que partem o movimento e o representam como algo abstrato, cindindo o real em uma sucessão de visões fragmentárias, cuja redução infinitesimal se harmoniza com as exigências do "cálculo", essencial ao saber positivo. O homem quantifica, em suma, a natureza, para dominá-la, constituindo um sistema convencional de índices quantitativos.

O tempo, por exemplo, que dividimos em minutos e horas, anos e séculos, em si mesmo não possui essas divisões. Somos nós que as inventamos, para adaptá-lo à nossa existência. O homem modela o mundo segundo sua imagem, fragmentando o real graças à inteligência. Esta, que é uma faculdade de fabricar instrumentos destinados a fazer outros instrumentos (des outils à faire des outils) não pode representar a realidade tal como essencialmente é.

Observa Bergson, que esse conhecimento fica, de certa maneira, na superfície das coisas. É um conhecimento instrumental, que tem significado e sentido tão-somente porque satisfaz a fins de ordem prática.

Sentimos, no entanto, a necessidade de achegarmo-nos ao ser, sem o intermédio dessas fórmulas numéricas fragmentárias e quantitativas; de entrar em contato direto e imediato com o "real", o não suscetível de ser partido e quantificado. O real, diz Bergson, é fluido, contínuo e inteiriço. Somos nós que o partimos e fragmentamos. A realidade é "duração pura" sem hiatos e intermitências. Como será possível ao homem atingir aquilo que é em si uno e concreto, todo e contínuo, autêntico, não deturpado? O instrumento de penetração do homem no mundo da durée pure seria a intuição.

A intuição é o processo próprio do filósofo ou do homem enquanto filosofa. A intuição é um modo de conhecer que tem algo do instinto e da emoção, ou, como diz Bergson, é "uma espécie de simpatia espiritual". O conhecimento intuitivo opera-se diretamente, como uma sondagem no real para coincidir com aquilo que ele tem de concreto, de único, e, por conseguinte, de inefável. Pense-se na atitude espiritual diante dos problemas estéticos, do senso artístico. Compreensão estética não é quantificação numérica, mas é, ao contrário, uma identificação com o próprio objeto contemplado, de maneira que a poesia seria uma forma fundamental, inicial, de compreensão do ser.

Miguel Reale - Bergson, Ponto de Partida


Monday, July 28, 2008

Confusões de Prosódia


És um sênhor tão bonito
Quanto a cara do meu filho
Tempo tempo tempo tempo
Vou te zer um pedido
Tempo tempo tempo tempo

Compotor de destinos
Tambor de todos os ritmos
Tempo tempo tempo tempo
Entro num ácordo contigo
Tempo tempo tempo tempo

Por serís tão inventivo
E paceres contínuo
Tempo tempo tempo tempo
És um dos deusís mais lindos
Tempo tempo tempo tempo

Que sejás ainda mais vivo
No som do meu estribilho
Tempo tempo tempo tempo
Ouve bem o que te digo
Tempo tempo tempo tempo

Peço-tí-o prazer legítimo
E o momento preciso
Tempo tempo tempo tempo
Quando o tempo for propício
Tempo tempo tempo tempo

De modu que o meu espírito
Ganhe um brilho definido
Tempo tempo tempo tempo
E eu espalhe benefícios
Tempo tempo tempo tempo

O que uremos pra isso
Fica guárdado em sigilo
Tempo tempo tempo tempo
Apenás contigo e migo
Tempo tempo tempo tempo

E quando eu tiver saído
Para fora do teu círculo
Tempo tempo tempo tempo
Não serei nem ras sido
Tempo tempo tempo tempo

Aindássim acredito
Ser possível reunirmo-nos
Tempo tempo tempo tempo
Num outru nível de vínculo
Tempo tempo tempo tempo

Portantu peçú-te aquilo
E te oreço elogios
Tempo tempo tempo tempo
Nas rimás do meu estilo
Tempo tempo tempo tempo

Caetano Veloso - Oração ao Tempo

Sunday, July 27, 2008

Formalizar a arte significa tornar a experiência estética comunicável: objetivá-la, torná-la real, torná-la pública, em vez de mantê-la num âmbito privado ou solipsista, como acontece com grande parte da experiência estética. Para comunicar a experiência estética é preciso submetê-la a convenções - ou "formas", se preferirem - do mesmo modo como se faz com a linguagem para que seja compreendida por mais de uma pessoa.

Convenções impõem resistências, obstáculos e restrições ao fluxo da comunicação, ao mesmo tempo em que a tornam possível e a conduzem.

[...] a qualidade na arte parece, de certa perspectiva bastante real, ser diretamente proporcional à densidade ou ao peso da decisão que foi tomada em sua realização. E boa parte dessa densidade é gerada pela pressão da resistência imposta pelas convenções de um determinado meio de comunicação. Essa pressão também pode guiar, evocar e inspirar; pode ser uma força facilitadora, bem como de resistência; e pode guiar, facilitar, evocar e inspirar precisamente em virtude de sua resistência. A métrica na poesia e o ritmo na música, os movimentos no balé, as necessidades de ordenar a progressão no teatro, na ficção em prosa e em verso e no cinema investem a criação de poder na mesma medida em que a constrangem, e justamente porque a constrangem.

É evidente que as convenções da arte, de qualquer arte, não são imutáveis. Nascem e morrem, desaparecem e se transformam de modo a não poderem mais ser reconhecidas; viram-se do avesso. E há diferentes tradições históricas e geográficas de convenção. Mas, onde quer que exista uma arte formalizada, convenções como essas não desaparecem, por mais que se transformem ou se desloquem. Isso vale tanto para a arte "menor" e para a arte popular e tribal, pré-urbana, quanto para a arte urbana elevada.

[...] Foi o tédio, foi a vacuidade de grande parte da arte supostamente avançada da última década ou mais que tornou evidente - ao menos para mim - quanto a consciência da decisão é essencial para satisfazer a experiência da arte formal. Pois a vacuidade da arte "avançada" em nossa época está mais próxima da arte ou da experiência estética "em estado bruto", não-formalizada, cuja vacuidade deriva precisamente da falta de convenções suficientes e da carência de decisões tomadas ou recebidas sob pressão das convenções.

[...] A arte inferior, ruim, não é necessariamente entediante nem vazia. O que é relativamente novo na má qualidade da atual arte "avançada" é o fato de ser tão entediante e vazia. Isso se deve à ausência generalizada de decisões que se pudessem sentir como "intencionais", intuídas e pressionadas, e não apenas tomadas por omissão. É justamente isso: muitas decisões tomadas na arte que se supõe mais nova foram tomadas por omissão, tornaram-se automáticas e, por esse mesmo motivo, arbitrárias.

[...] Não se pode dizer que a arte superior não possa surgir dessa maneira. A arte superior pode surgir de qualquer maneira concebível ou inconcebível; não há legislação nem prescrição, tampouco proscrição, quando se trata de arte. [...] Trata-se aqui, no entanto, de falar sobre a arte que já surgiu da maneira esboçada acima (A arte que já existe é a única de que se pode falar). Essa arte é quase inteiramente como acabo de dizer: desinteressante e ruim. E presumo que se possa explicar essa qualidade, ao menos esquematicamente. Essa arte tem sido demasiadamente livre de pressões estéticas pertinentes. [...] As decisões tomadas por elas são excessivamente tangenciais ao contexto estético, por mais que sejam governadas por outros conceitos. [...]

A pressão estética só pode provir de duas direções. Existe a pressão do que o artista quer dizer, fazer, expressar. Em oposição a isso existe a pressão das convenções de seu meio. A convenção não é "forma", e sim uma condição limitadora e impositiva que funciona com vistas à comunicação da experiência estética.

[...] as convenções da arte não são permanentes nem imutáveis. Mas, como mostra o registro, não importa quão frágeis possam se tornar, elas não se extinguem por decreto, desejo e vontade. Ao menos não frutiferamente, proficuamente, efetivamente, não com vistas ao interesse da boa arte. Convenções extinguem-se e perecem, mas não simplesmente porque alguém resolveu que deveria ser assim. [...] Desapareceram (porque impediam) certos artistas de dizer as novidades que tinham a dizer - ou, então, que os impediam de descobrir que tinham coisas novas a dizer.

[...] Uma tradição artística permanece viva enquanto mantém uma inovação relativamente constante. Todos sabemos disso. O que precisaríamos saber melhor é que existe algum elemento de inovação ou originalidade em toda boa arte, para não dizer superior. Toda boa arte, ainda que modesta ou furtivamente, inova. Inova porque qualquer criador da melhor arte, além de sua competência, possui algo a dizer que ninguém mais disse ou poderia dizer. A cada época, determinadas convenções ou aspectos de convenções precisam ser alterados para acomodar a peculiaridade do melhor artista, por menor que ela seja.

No passado, talvez se reconhecesse mais facilmente - mesmo se apenas implicitamente - que, a fim de romper com uma convenção era necessário dominá-la ou, se não isso, pelo menos entender ou apreciar sua razão de ser.

[...] a história não mostra nenhum caso de inovação significativa em que o artista inovador não conhecesse e dominasse a convenção ou as convenções que modificava ou abandonava. O que significa dizer que submetia sua arte à pressão dessas convenções, enquanto as modificava ou rechaçava. Que não precisava sair em busca de novas convenções para substituir as que deixava de lado; suas novas concepções emergiriam das antigas simplesmente por meio de seu embate com as antigas. E estas, não importa quão abruptamente descartadas, de algum modo permaneceriam lá, como fantasmas, e como fantasmas governariam.

[...] Mesmo uma rápida revisão do passado da arte mostra que as convenções artísticas quase nunca foram - ou talvez jamais tenham sido - depostas ou reformuladas facilmente, nem pelos maiores gênios da inovação. Uma revisão mais demorada do passado da arte, ou pelo menos do passado recente, mostra, contudo, que as convenções foram e podem ser modificadas ou abandonadas prematuramente. Inovações prematuras afligem uma parcela da melhor arte do século XIX e uma parcela da quase melhor arte do século XX.

[...] É difícil estimar quão relutantes artistas como Kandinsky, Kupka e Malevitch foram como inovadores, mas, como evidencia a sua arte, os três foram inovadores prematuros e erráticos, devido a essa prematuridade. Isso, às expensas da qualidade. Os três, ao mesmo tempo em que dispensavam determinadas convenções, aferravam-se a outras, cuja reformulação era mais fundamental para o que estavam tentando trazer à tona. [...] Algo semelhante aconteceu com Gauguin e com Walt Withman também (este manteve determinadas convenções de retórica e dicção que freqüentemente destituíram sua poesia da necessária tensão). Kandinsky é quase o caso exemplar. [...] A questão é que Kandinsky saltou etapas para ingressar numa planaridade muito literal, por assim dizer, sem ter enfrentado, ou trabalhado a sua maneira, as convenções da ilusão espacial que descartava tão abruptamente.

[...] Depois de 1912, Duchamp nos fornece um tipo diferente de modelo de inovação prematura.

[...] Não posso deixar de pensar e afirmar que foi por frustração que Duchamp se tornou tão revolucionário depois de 1912; e que foi por não ter esperança de ser novo e avançado em sua própria arte que ele veio a se posicionar contra a arte formal em geral. [...] Na verdade, ele tentou fazer de uma experiência estética descompromissada, "em estado bruto" - em geral uma experiência estética inferior - uma obra institucionalmente viável (passível de ser exposta em galerias e museus, discutida pela imprensa e por pessoas interessadas em arte). Sua arte "em estado bruto", entretanto, veio a ser menos do que bruta, na medida em que possuía orientação e convenções próprias; porém essas não eram estéticas, e sim as convenções não-estéticas da conveniência social, do decoro. A questão passou a ser violá-las. Assim, um urinol foi mostrado numa galeria de arte; os membros inferiores abertos e despidos, e a vulva sem pêlos da efígie de uma jovem reclinada foram oferecidos à visão através de um olho-mágico num museu bastante sério. A tarefa estava cumprida. Mas havia ainda uma outra questão: desafiar e negar o juízo estético, o gosto, as satisfações da arte enquanto arte. Isso permaneceu a questão principal para Duchamp. E permanece a questão principal para a subtradição que ele fundou. Com a necessidade ou inevitabilidade do juízo estético posta de lado, a produção da arte e das decisões estéticas, fosse pelo artista ou pelo espectador, estava livre de uma pressão verdadeira. Era possível criar, agir, gesticular, conversar numa espécie de vácuo - sendo o vácuo propriamente dito mais "interessante" ou, ao menos, mais valorizado do que qualquer coisa que acontecesse nele. O ponto principal da associação com a arte era ficar intrigado, confuso, receber algo sobre o que falar, e assim por diante.

Ainda assim, Duchamp e sua subtradição demonstraram, como nada antes deles, quanto a arte pode ser onipresente, demonstraram todas as coisas que ela pode ser, sem deixar de ser arte. E quanto essa arte, ou seja, a experiência estética, na verdade, tem um status não-excepcional e sem mérito. Por essa demonstração, devemos ser-lhe gratos. Mas isso não torna a demonstração nem um pouco menos entediante. É o que acontece com as demonstrações: uma vez que demonstram o que vieram demonstrar, tornam-se repetitivas, como se mostrassem mais uma vez desde o começo como dois mais dois são quatro. Não é isso que ocorre com a arte mais substancial, seja boa ou ruim: esse gênero de arte que se precisa vivenciar repetidas vezes a fim de continuar a conhecê-la.

Para voltar às convenções e, com elas, às decisões, diria que compreender uma convenção, digeri-la e assimilá-la - de maneira suficiente para se poder modificá-la, expandi-la, diminuí-la ou descartá-la em função do interesse da arte - significa apreciar as obras em que a convenção frutifica e desaprovar aquelas em que ela esteriliza. [...] Uma convenção é esterilizante quando o artista ou o espectador deixam-se controlar por ela nos lugares errados. É preciso ter gosto, bem como inspiração, para tirar a convenção do caminho; a inspiração apenas (de que o observador também necessita) comumente não basta.

Uma das ironias que perseguem visivelmente a arte de vanguarda hoje em dia está na persistência de convenções "mais antigas", que o gosto não consegue perceber - digo o gosto dos praticantes de uma arte aparentemente de vanguarda. A persistência dessas convenções mais antigas, mais antigas porque persistem sem reformulação, revela-se no convencionalismo da sensibilidade. [...] A convencionalidade se mostra em todas as muitas brechas do aparato da inovação. Convenções não detectadas e, portanto, não enfrentadas, permanecem as dominantes. Dominam igualmente o artista e o espectador por permitirem e induzirem decisões estéticas rotineiras, previstas e previsíveis, decisões não pressionadas. Esse é o gênero de decisões que os artistas denominados acadêmicos no sentido pejorativo sempre tomaram.

[...] o resultado comum para todos os artistas pseudo-inovadores em nossa época tem sido que, enquanto descartam as convenções óbvias, são capturados pelas não-óbvias. Ou antes, ao conseguirem situar-se numa posição que parece excluir toda convenção que se possa conceber, caem na arte "crua", não formalizada, freqüentemente aleatória. Aqui, onde deveria ser irrelevante, se é que deveria, a sensibilidade ainda assim retorna sorrateiramente - e tem sido sempre uma sensibilidade convencional, a despeito de toda aparência contrária. Tudo que aconteceu foi que as decisões estéticas tornaram-se inacreditavelmente sem peso, e os resultados estéticos, como nunca antes, vazios. E, enquanto isso, as convenções persistem, insignificantes como as que governam as decisões de espalhar pétalas de flores numa bacia com água.

E, contudo, mais uma vez algo foi demonstrado, algo que merecia demonstração. A arte, como Duchamp mostrou melhor do que ninguém, pode ser uma categoria muito ampla mesmo na experiência estética formalizada. Isso foi sempre verdadeiro, mas precisava ser demonstrado para que pudesse ser percebido como tal. A disciplina estética recebeu uma nova luz. Nesse sentido, não importa que a arte que projetou essa nova luz fosse possivelmente a pior e certamente a mais enfadonha arte formalizada que já se viu na experiência registrada.

Clement Greenberg - Estética Doméstica - Convenção e Inovação

Saturday, July 26, 2008

Outras Promessas

26/07/2008 - 03h20

Lei seca poupa a hospitais de São Paulo R$ 4,5 milhões em um mês

Os 30 hospitais públicos estaduais da Grande São Paulo economizaram R$ 4,5 milhões nos primeiros 30 dias de vigência da Lei Seca, de acordo com cálculos feitos pela Secretaria de Estado da Saúde a pedido da Folha (a reportagem está disponível apenas para assinantes do jornal e do UOL).

A economia se deve à redução do número de vítimas de acidentes de trânsito provocados por motoristas alcoolizados. A quantidade de pacientes, 30 dias depois do início da lei, caiu pela metade.

Segundo a Secretaria, se fosse mantida a redução de vítimas de trânsito, os mais de R$ 50 milhões que seriam economizados ao longo de um ano possibilitariam a construção de um hospital de médio porte, com 200 leitos.

Mortes

Um balanço divulgado pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo aponta redução de 63% no número de mortes por acidentes de trânsito após a vigência da chamada lei seca. O levantamento teve como base registros feitos em três unidades do IML (Instituto Médico Legal) instalados nas regiões sul, leste e centro - que atende também as regiões norte e oeste - da cidade de São Paulo.

O comparativo que aponta redução foi feito levando-se em consideração as médias obtidas a partir das operações realizadas em semanas do mês de junho (de 5 a 8, 12 e 15 e de 19 a 22), com as três seguintes (dias 26 a 29 de junho, e de 3 a 6 de julho e de 10 a 14 de julho).

Para efeito de análise, foram coletados os dados relativos de quinta-feira a domingo, justamente quando a operação Direção Segura é realizada pela PM.

A análise do total das mortes aponta que a média de cada semana passou de 11,7 mortos - se analisadas as três semanas de junho - para 4,3 nas posteriores.

"Não pegou"

Apesar de bem-sucedida em São Paulo, a lei seca ainda não pegou nas cinco capitais brasileiras campeãs nas taxas de mortalidade no trânsito: Porto Velho (RO), Macapá (AP), Palmas (TO), Cuiabá (MT) e Campo Grande (MS). Em duas dessas cidades, não há bafômetros. Nas outras, as blitze, quando ocorrem, são tímidas.

As cinco registraram, em 2006, de 26 a 29 mortos no trânsito a cada 100 mil habitantes, segundo o Ministério da Saúde. São índices próximos aos das cidades africanas, que em 2004 tiveram média de 28,3 mortos - considerada alarmante pela Organização Mundial da Saúde.

da Folha Online

Promessa de Felicidade

Pega um, pega geral...

Polícia do Rio matou 47% mais que em 2006, diz ISP

Rio - Entre janeiro e maio deste ano, a polícia fluminense matou 649 pessoas em supostos confrontos - os chamados autos de resistência -, segundo divulgou hoje o Instituto de Segurança Pública (ISP), da Secretaria de Segurança do Estado. Esse número é 47,16% maior que o número de mortos nos cinco primeiros meses de 2006, último ano do governo Rosinha Garotinho (PMDB). Em 2007, primeiro ano do governo Sérgio Cabral (PMDB), foram 586 mortos - 10,75% de aumento esse ano em comparação ao mesmo período. De abril para maio, o crescimento foi de 144 para 147, ou 2,98%.

"Esse aumento é o resultado direto da política que estimula o assassinato. Quando os responsáveis pela política de segurança dizem que o número de mortes é um estresse necessário, as forças policiais se sentem à vontade para cometer abusos. É uma carta branca que eles têm para atirar primeiro e perguntar depois", diz o cientista social Geraldo Tadeu Monteiro, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e presidente do Instituto Brasileiro de Pesquisa Social (IBPS).

Entre os crimes que registraram maior aumento porcentual, quando comparados ao mesmo período do ano anterior, estão extorsão (com mais 28,9%, ou 158 casos), latrocínio (20,8%, ou 15 vítimas) e roubo a transeunte ( 18,5%, ou 4.321 casos). Já entre os delitos que tiveram maior redução porcentual estão roubo a residência (com menos 19,1%, ou 132 casos), roubo de veículo (18,2%, ou 2.638 casos), estupro (9,5%, ou 57 vítimas), homicídio doloso (menos 9,25%, ou 219 vítimas).

O levantamento do ISP mostrou ainda a queda da chamada atividade policial. Houve menos apreensões de drogas nos primeiros cinco meses deste ano, em relação ao mesmo período de 2007 (menos 6,2%, ou 272 registros), menos apreensões de adolescentes infratores (6,3%, ou 51 registros), e menos armas apreendidas (11%, ou 531 registros). Houve aumento dos cumprimentos de mandados de prisão (10,3%, ou 422 mandados) e de prisões em flagrante (0,9%, ou 58 registros).



25/07/2008 - 19h50

Friday, July 25, 2008


Ainda em Moscou

28/06/2008 2:24 pm

Notícia e foto enviadas por Caetano, na passagem de sua turnê por Moscou:

“Da minha janela vejo um monumento gigantesco a alguém numa caravela. Está encravado no Rio Moscvá. Pergunto quem é. Me dizem que é Pedro, o Grande. Pergunto: mas Pedro, o Grande foi navegador? Não. Isso foi uma encomenda feita por um governo latino-americano a um escultor russo para homenagear os 500 anos da descoberta de Cristóvão Colombo. Como a escultura não foi aprovada, o prefeito de Moscou, que é amigo do escultor, a comprou, a ergeu no rio e declarou oficialmente que se tratava de Pedro, o Grande. Este mundo é um pandeiro.”

http://www.obraemprogresso.com.br/sobre/

Wednesday, July 23, 2008

Pilha poeirenta em precário equilíbrio da semana:

Oração ao Tempo - Caetano Veloso

Blog de Obra em Progresso - idem

Teogonia - Hesíodo (trad. Jaa Torrano)

Musicando a Semiótica - Luiz Tatit

inguinoranssa.wordpress.com

Organon - Aristóteles

Memórias da Casa dos Mortos - Dostoiévski

Tarás Bulba - Gógol

Estética Doméstica - Clement Greenberg

Macbeth - Shakespeare (trad. Manuel Bandeira)

Dossiê Drummond - Geneton Moraes Neto

Tuesday, July 22, 2008

Perder emprego é mais traumático do que viuvez, diz estudo

da BBC Brasil

Perder o emprego é mais traumático do que ficar viúvo ou divorciado, segundo um estudo divulgado na Alemanha.

O estudo que, durante 20 anos, analisou o nível de satisfação de centenas de alemães, concluiu que acontecimentos importantes na vida de uma pessoa, como ter filhos ou casar-se podem trazer um grau maior de felicidade, mas apenas temporariamente, de acordo com a pesquisa realizada na Alemanha.

O nível básico de felicidade de uma pessoa comum essencialmente permanece o mesmo durante toda a vida adulta, concluíram os pesquisadores em artigo na publicação especializada Economic Journal.

Mesmo depois de acontecimentos traumáticos e que causam grande infelicidade, as pessoas se recuperam.

Economistas da Grã-Bretanha, Estados Unidos e França, examinaram um processo psicológico chamado "adaptação" - a forma como os seres humanos ajustam seu humor a novas circunstâncias - boas ou más.

Desemprego

Voluntários alemães com idades entre 18 e 60 responderam a questionários no começo do estudo e depois, regularmente, durante duas décadas, que pediam que eles dessem uma medida para a sua própria felicidade.

No questionário também se pedia que eles mencionassem fatos importantes que ocorriam em suas vidas.

Os pesquisadores constataram que apenas a perda de um emprego causou uma redução mais duradoura do estado de espírito dos entrevistados, cinco anos depois da ocorrência.

O desemprego deprime mais os homens do que as mulheres, mas em outras ocorrências, de maneira geral, a reação entre os sexos é muito semelhante.

No caso de outros eventos traumáticos, tais como viuvez e divórcio, o estado de espírito foi abalado, mas depois houve uma recuperação.

Em eventos positivos, tais como casamento e paternidade, o impacto sobre as pessoas foi passageiro.

Os pesquisadores calcularam que a felicidade aumenta por ocasião do nascimento de um filho e fica nesse patamar durante dois anos antes de o estado de espírito do pai ou mãe voltar ao normal.

Yannis Georgellis, da Universidade de Brunel, na Inglaterra, que participou da elaboração do estudo, disse que suas conclusões sugerem que o velho ditado de que "o tempo cura tudo" pode ser verdadeiro em muitos casos.

Segundo ele, o seu estudo reforça a tese de outros trabalhos que dizem que as pessoas se recuperam de acontecimentos negativos muito depressa. "Há alguma literatura sobre pessoas que se tornaram paraplégicas que, quando entrevistadas poucos anos depois, tinham níveis de felicidade similares aos de pessoas que não foram afetadas desta maneira.".

"Da mesma forma, há estudos de pessoas que ganharam na loteria que não são mais felizes no longo prazo", acrescentou.

www.verdestrigos.org

Monday, July 21, 2008

Quando ouvi o Choro nº 10, do Villa Lobos, gravado no exterior, tinha os pássaros, a floresta, tinha tudo que era o Brasil. Não era polca, nem um tango, era um negócio do Brasil.

Tom Jobim - Tons Sobre Tom



Sunday, July 20, 2008


- 'nem a Nara nasceu no apartamento da Nara'.
( Carlos Lyra, sobre o nascimento da Bossa Nova )

"Não há indústria do mal"

O conflito de interesses quanto ao conceito de sanidade mental não se restringe à relação de alguns médicos com a indústria farmacêutica.
Para Valentim Gentil Filho, chefe do departamento de psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP, esse é apenas o viés mais comentado do problema.
"O assunto é complexo, eticamente importante e sujeito a um monte de vieses. Há muitos conflitos de interesse; além da indústria farmacêutica, há os interesses políticos, ideológicos, financeiros, de ONGs, de linhas de psicoterapia. Isso em geral não é dito", afirma o professor.
Para Gentil Filho, quando um psicoterapeuta critica o uso de medicamentos, é preciso notar que "também há uma briga de mercado corporativa entre profissionais de saúde".

Folha - Como avalia as críticas ao DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), segundo as quais ele tem má influência sobre os médicos do mundo inteiro, incluindo novos distúrbios para comportamentos comuns?

Gentil Filho - O DSM é só uma classificação estatística, serve apenas para dimensionar os problemas que aparecem. É para fins quantitativos, e deve ser usado para catalogar; não é um livro-texto.
Infelizmente, em muitos países, inclusive no Brasil, às vezes há confusão, as pessoas o utilizam como manual de ensino.
O DSM evolui com os conhecimentos, com novas definições. O DSM 4 é um avanço em relação ao DSM 3. O mau uso do DSM 3 pode ter gerado distorções - talvez isso seja corrigido na nova versão que está sendo desenvolvida.
O comentário de que o DSM 3 e o DSM 4 levaram à ampliação do diagnóstico psiquiátrico e que isso levou a um exagero de prescrição de medicamentos é uma afirmação freqüente, mas difícil de debater ou comprovar. Pois, nos últimos 28 anos (o DSM 3 é de 1980), houve disseminação de informações por meios eletrônicos, além da ampliação do conhecimento sobre disponibilidade de recursos terapêuticos, o que contribuiu para um aumento da demanda - as pessoas que sofrem querem ajuda. E os profissionais de saúde tendem a tentar atender essa demanda.

Folha - Em Timidez, Christopher Lane afirma que a elaboração do DSM foi influenciada pela indústria farmacêutica, legitimando uma "cultura da droga". Há essa cultura no meio da saúde mental hoje em dia?

Gentil Filho - Há uma cultura da droga na sociedade em geral. As pessoas abusam de substâncias desde o tempo do Noé. A indústria farmacêutica não é uma entidade filantrópica nem universitária - vai atrás de seus potenciais usuários.
O difícil é pensar que a medicina é enganada pela indústria farmacêutica, que somos influenciados só por um vendedor ou um congresso. A sociedade procura ajuda; isso sempre existiu, buscou-se a cura nas religiões, em outros procedimentos. Mas quantas pessoas estão sendo medicadas indevidamente por causa da propaganda, quanta psicoterapia é prescrita indevidamente... Isso é muito difícil de saber.

Folha - Que exageros já encontrou?

Gentil Filho - Lembro do caso do transtorno de pânico. Alguns diziam que estávamos simplesmente rediagnosticando uma coisa já descrita em 1895 por Freud, sempre abordada como um problema comum de ansiedade e angústia, que a abordagem deveria ser mais relativa à filosofia ou à psicoterapia. Hoje o transtorno de pânico tem um diagnóstico robusto, uma base bem demonstrada.

Folha - E quanto à timidez?

Gentil Filho - Há traços de personalidade que existem há séculos e podem ser influenciáveis por medicação. Se não fosse assim, as pessoas tímidas não beberiam antes de entrar em cena em festivais de MPB, por exemplo.
É possível usar medicamentos para interferir na resposta temperamental. O temperamento depende de regulagem biológica, também. O caráter é muito influenciado pela cultura, mas o temperamento é biologicamente modelado. O fato de haver medicamentos capazes de diminuir a reação não quer dizer que todos devam ser medicados.
Mas, se uma pessoa tem uma timidez patológica, que método deve ser usado? Ou as pessoas devem se autoflagelar antes da ajuda médica?
Se uma pessoa tem timidez patológica, será que deixar de atender a demanda não é omissão de socorro?

Folha - Há estatísticas para classificar a timidez?

Gentil Filho - Timidez não é diagnóstico psiquiátrico. O fato de haver um medicamento ou método psicoterápico que ajuda a resolver a timidez não a transforma em síndrome.
Se ela o será um dia, isso dependerá de convenções. Há uma cultura numa das ilhas do Pacífico em que as pessoas não tratam uma certa doença de pele, porque acham que fica bonito.

Folha - Então, para o sr., a pessoa pode usar drogas para ter uma qualidade de vida melhor...

Gentil Filho - O que me incomoda é dizerem que a indústria farmacêutica é uma "indústria do mal". Existem recursos para lidar com problemas - álcool, tabaco, chocolate etc.
Como médico, é preciso ter alguma base científica. Os médicos tendem a ser éticos e dizer: "Vale a pena fazer tal mudança de vida" ou "vale a pena tomar medicamento". Esses autores que lutam contra o demônio da indústria farmacêutica não são donos da verdade.

Folha - O sr. falou em evitar o "autoflagelo". Adam Phillips trata como erro a idéia de que é possível ser feliz o tempo todo. O sr. concorda?

Gentil Filho - Está errada a colocação. Medicamento não faz ninguém feliz. Diminuir o sofrimento não é trazer felicidade. A felicidade aparece e desaparece de acordo com circunstâncias, é medida em momentos; há felicidade em meio à dor.

Da Redação - Folha de São Paulo - Caderno +Mais!

Saturday, July 19, 2008

MACBETH. Se não houvesse mais que praticá-lo,
Seria bem fazê-lo sem delonga.
Se o golpe detivesse em suas redes
Todas as conseqüências, e lograsse
Triunfar com a morte dele; se o assassínio
Fosse aqui tudo e o fim de tudo - aqui,
Nestas praias do tempo, eu arriscara
Minha vida futura. Nestes casos
Há aqui, porém, sentença, de maneira
Que as sanguinárias instruções se voltam
Contra o próprio inventor; e o conteúdo
Da nossa copa envenenada leva-a
A justiça imparcial aos nossos lábios.

[...]

MACBETH. Não, não posso!
De pensar no que fiz fico aterrado:
Não ousarei voltar a ver aquilo.

LADY MACBETH. Homem fraco! Dá-me os punhais.
Aqueles
Que estão mortos ou dormem são pinturas
Apenas. As crianças é que temem
Ver o diabo pintado. Se ele sangra
Ainda, besuntarei de sangue as faces
Dos homens: é preciso que sobre eles
Recaia a culpa.

(Sai. Batem à porta)

MACBETH. Quem será que bate?
O que há comigo, que qualquer ruído
Me sobressalta assim? Que mãos são estas?
Oh, elas horrorizam-me! me arrancam
Os olhos! Lavaria o grande oceano
De Netuno esta mão ensangüentada?
Não! esta minha mão é que faria
Vermelho o verde mar de pólo a pólo!

(Volta Lady Macbeth)

LADY MACBETH. As minhas mãos estão da cor
das tuas.
Mas me envergonho de guardar
tão branco
O coração.

William Shakespeare - Macbeth - Tradução de Manuel Bandeira.

Olhas os astros, astro meu: ah, se eu fosse o céu, para te admirar com muitos olhos.

Platão - Epigrama 669 da Antologia Grega - por Antonio Cicero

Friday, July 18, 2008

Hoje sei que minha aparência de mendigo não se devia à pobreza nem porque eu quisesse parecer poeta, mas ao fato de todas as minhas energias estarem concentradas a fundo na obsessão de aprender a escrever. Assim que vislumbrei o bom caminho abandonei o Arranha-céu e me mudei para o aprazível bairro de Prado, no outro extremo urbano e social, a duas quadras da casa de Meira Delmar e a cinco do hotel histórico onde os filhos dos ricos dançavam com suas amantes virgens depois da missa dos domingos. Ou, conforme disse Gérman: comecei a melhorar para pior.

Gabriel García Márquez - Viver Para Contar

Ambição no Deserto
Albert Cossery - Conrad Editora - 2008
(por Arthur Dantas)

O egípcio Albert Cossery é o famoso romancista da preguiça, encarando esta como atividade filosófica. Talvez por isso, em mais de 70 anos de atividade literária, tenha publicado apenas oito livros, ao ritmo de uma frase por dia, como gosta de ressaltar. O livro publicado recentemente no Brasil (a terceira obra de Cossery publicada pela Conrad), uma obra de meados dos anos 1980, é seu único romance a não retratar o Egito um tanto imaginário do autor, já que Cossery vive em um mesmo quarto de hotel em Paris desde 1945.

A trama deste romance é simples: em Dofa, emirado fictício, uma série de atentados a bomba desperta reações variadas na população. Para Ben Kadem, o primeiro-ministro, as explosões significam uma oportunidade de conseguir chamar a atenção do mundo para seu país, ignorado por não ter uma gota de petróleo em seu subsolo. Samantar, um bon vivant típico dos livros de Cossery, considera os ataques uma aberração, em um lugar assolado pela miséria, e passa a investigá-los, mudando seu dia-a-dia marcado por prazeres carnais e por jogar conversa fora. Capítulo vai, capítulo vem, os diálogos morosos são sempre marcados por baforadas em cigarros de haxixe. O estilo de Cossery é acessível e despojado, marcado por frases belas e sucintas.

Não há vírgula ou frase sobressalente, apenas o essencial. E o essencial para Cossery é ponderar sobre os benefícios de uma conduta devotada aos prazeres da vida, convidando-nos ao despojamento e ao riso como forma de subverter os valores de uma sociedade que pede somente o sucesso, a vitória, a opulência. Nada disso teria interesse se Cossery não fosse um contador de histórias tão engenhoso e vigoroso, criando histórias que beiram o ridículo, de tão tolas em sua superfície.

EM TEMPO:

O escritor egípcio Albert Cossery morreu no último dia 22 de junho, segundo a agência de notícias France Press. O corpo de Cossery, que tinha 94 anos, foi encontrado no seu quarto no hotel Lousiana (Paris), onde viveu por quase 60 anos.

Saiba mais aqui.

[...] A palavra é "filisteísmo". Sua origem, um pouco mais antiga que seu emprego específico, não possui grande importância; ela foi utilizada a princípio, no jargão universitário alemão, para distinguir burgueses de togados; a associação bíblica já indicava, porém, um inimigo numericamente superior e em cujas mãos se pode cair. Quando foi usado pela primeira vez como termo [...] designava uma mentalidade que julgava todas as coisas em termos de utilidade imediata e de "valores" materiais, e que, por conseguinte, não tinha consideração alguma por objetos e ocupações inúteis tais como os implícitos na cultura e na arte.

[...] o status objetivo do mundo cultural, na medida em que contém coisas tangíveis - livros e pinturas, estátuas, edifícios e música - compreende e testemunha todo o passado registrado de países, nações e, por fim, da humanidade. Como tais, o único critério não-social e autêntico para o julgamento desses objetos especificamente culturais é sua permanência relativa e mesmo sua eventual imortalidade. Somente o que durará através dos séculos pode se pretender em última instância um objeto cultural. O ponto crucial da questão é que tão logo as obras imortais do passado se tornam objeto de refinamento social e individual e do status correspondente, perdem sua qualidade mais importante e elementar, qual seja, a de apoderar-se do leitor ou espectador, comovendo-o durante os séculos.

[..] O que irritava no filisteu educado não era que lesse os clássicos, mas que ele o fizesse movido pelo desejo dissimulado de auto-aprimoramento, continuando completamente alheio ao fato de que Shakespeare ou Platão pudessem ter a dizer-lhes coisas mais importantes do que a maneira de se educar; o lamentável era que ele escapasse para uma região de "pura poesia" para manter a realidade fora de sua vida - coisas "prosaicas" como uma crise das batatas, por exemplo - ou para contemplá-la através de um véu de "doçura e luz".

Hannah Arendt - Entre o Passado e o Futuro - A Crise na Cultura: Sua Importância Social e Política

Monday, July 14, 2008

A compreensão de uma fala viva, de um enunciado vivo é sempre acompanhada de uma atitude responsiva ativa (conquanto o grau dessa atividade seja muito variável); toda compreensão é prenhe de resposta e, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz: o ouvinte torna-se o locutor.

[...] a unidade real da comunicação verbal: o enunciado. A fala só existe, na realidade, na forma concreta dos enunciados de um indivíduo: do sujeito de um discurso-fala. O discurso se molda sempre à forma do enunciado que pertence a um sujeito falante e não pode existir fora dessa forma. Quaisquer que sejam o volume, o conteúdo, a composição, os enunciados sempre possuem, como unidades da comunicação verbal, características estruturais que lhe são comuns, e acima de tudo, fronteiras claramente delimitadas. É neste problema das fronteiras, cujo princípio é essencial, que convém deter-se com vagar.

[...] As fronteiras (do) enunciado determinam-se pela alternância dos sujeitos falantes. Os enunciados não são indiferentes uns aos outros nem são auto-suficientes; conhecem-se uns aos outros, refletem-se mutuamente. São precisamente esses reflexos recíprocos que lhes determinam o caráter.

[...] As pessoas não trocam orações, assim como não trocam palavras (numa acepção rigorosamente lingüística), ou combinações de palavras, trocam enunciados constituídos de unidades da língua - palavras, combinações de palavras, orações; mesmo assim, nada impede que o enunciado seja constituído de uma única oração, ou de uma única palavra, por assim dizer, de uma única unidade da fala (o que acontece sobretudo na réplica do diálogo), mas não é isso que converterá uma unidade da língua numa unidade da comunicação verbal.

[...] A oração que se torna enunciado completo adquire novas qualidades e particularidades que não pertencem à oração, mas ao enunciado, que não expressam a natureza da oração mas do enunciado e que, achando-se associadas à oração, completam-na até torná-la um enunciado completo.

[...] A oração passa então à categoria de enunciado completo, implica uma atitude responsiva: pode-se concordar com ele ou discordar dele, pode-se executar, julgar etc.

[...] Um enunciado concreto é um elo na cadeia da comunicação verbal de uma dada esfera.

Mikhail Bakhtin - Estética da Criação Verbal - Os Gêneros do Discurso

Sunday, July 13, 2008

Quando se analisa uma oração isolada, tirada de seu contexto, encobrem-se os indícios que revelariam seu caráter de dirigir-se a alguém, a influência da resposta pressuposta, a ressonância dialógica que remete aos enunciados anteriores do outro, as marcas atenuadas da alternância dos sujeitos falantes que sulcaram o enunciado por dentro. Tudo isso, sendo alheio à natureza da oração como unidade da língua, perde-se e apaga-se. Esses fenômenos se relacionam com o todo do enunciado e deixam de existir desde que esse todo é perdido de vista. [...] Uma análise estilística que queira englobar todos os aspectos do estilo deve obrigatoriamente analisar o todo do enunciado e, obrigatoriamente, analisá-lo dentro da cadeia da comunicação verbal de que o enunciado é apenas um elo inalienável.

Mikhail Bakhtin - Estética da Criação Verbal - Os Gêneros do Discurso

Saturday, July 12, 2008

Friday, July 11, 2008

O Tom tem toda a influência sobre o meu trabalho e ao mesmo tempo nenhuma. Toda, porque a impressão do que era música bonita, que alguém deveria tentar fazer, tudo me veio das canções dele. Então, se alguma coisa tenta ser bonita, no que eu faço, tem como paradigma a obra do Tom. Agora, se eu quiser reconhecer na minha música alguma influência efetiva do Tom, reconheço que eu acharia uma pretensão ser influenciado por ele, de fato. O que eu faço é mais uma brincadeira de deslocamento. É diferente. Por exemplo, eu canto Eu Sei que Vou te Amar de um jeito que se desloca de um lado para outro. Fica interessante, para as pessoas que já ouviram muitas canções sentimentais, ouvir daquele jeito e pensar no que a minha geração ouviu. Você pode se lembrar do Stevie Wonder. Você pensa mil coisas, mas não é a música mais bonita do Tom, nem cantada da maneira mais adequada. É outra coisa. A minha composição também é assim. É interessante por outras razões. Por uma razão enviesada, que não é propriamente musical. Eu acho. Mas que tem interesse real. Não estou desfazendo a possível, eu não diria utilidade, nem mesmo qualidade. A possível justificativa da existência do meu trabalho. Estou dizendo que, se ela existe, está num plano diferente daquilo que faz com que a obra do Tom seja a melhor de todas. Quero dizer, a melhor das de todos nós.

Uma pessoa que fez Chega de Saudade não precisa nunca mais me dar nada. E na verdade nós nunca daremos o bastante a ele. Nunca teremos dado o bastante.

Caetano Veloso - Tons Sobre Tom - Márcia Cezimbra, Tessy Calado e Tárik de Souza

Thursday, July 10, 2008

Numquam se plus agere quam nihil cum ageret, numquam minus solum esse quam cum solus esset.
("Nunca hacía más que cuando nada hacía, y nunca se hallaba menos solo que cuando estaba solo") - CATÓN

Epígrafe à La Vida del Espíritu; Hannah Arendt - Tradução: Carmen Corral. Paidós Básica.

Um enunciado concreto é um elo na cadeia da comunicação verbal de uma dada esfera. As fronteiras desse enunciado determinam-se pela alternância dos sujeitos falantes. Os enunciados não são indiferentes uns aos outros nem são auto-suficientes; conhecem-se uns aos outros, refletem-se mutuamente. São precisamente esses reflexos recíprocos que lhes determinam o caráter.

O enunciado está repleto dos ecos e lembranças de outros enunciados, aos quais está vinculado no interior de uma esfera comum da comunicação verbal. O enunciado deve ser considerado acima de tudo como uma resposta a enunciados anteriores dentro de uma dada esfera (a palavra "resposta" é empregada aqui no sentido lato): refuta-os, confirma-os, completa-os, baseia-se neles, supõe-nos conhecidos e, de um modo ou de outro, conta com eles. Não se pode esquecer que o enunciado ocupa uma posição definida numa dada esfera da comunicação verbal relativa a um dado problema, a uma dada questão, etc. Não podemos determinar nossa posição sem correlacioná-la com outras posições.

É por esta razão que o enunciado é repleto de reações-respostas a outros enunciados numa dada esfera da comunicação verbal. Essas reações assumem formas variáveis: podemos introduzir diretamente o enunciado alheio no contexto do nosso próprio enunciado, podemos introduzir-lhe apenas palavras isoladas ou orações que então figuram nele a título de representantes de enunciados completos. Nesses casos, o enunciado completo ou a palavra, tomados isoladamente, podem conservar sua alteridade na expressão, ou então ser modificados (se imbuírem de ironia, de indignação, de admiração, etc.); também é possível, num grau variável, parafrasear o enunciado do outro depois de repensá-lo, ou simplesmentes referir-se a ele como a opiniões bem conhecidas de um parceiro discursivo; é possível pressupô-lo explicitamente; nossa reação-resposta também pode refeletir-se unicamente na expressão de nossa própria fala - na seleção dos recursos linguísticos e de entonações, determinados não pelo objeto de nosso discurso e sim pelo enunciado do outro acerca do mesmo objeto. Este é um caso típico e importante: com muita freqüência, a expressividade do nosso enunciado é determinada - às vezes nem tanto - não só pelo teor do objeto do nosso enunciado, mas também pelos enunciados do outro sobre o mesmo tema aos quais respondemos, com os quais polemizamos; são estes últimos que determinam igualmente a insistência sobre certos pontos, a reiteração, a escolha de expressões mais contundentes (ou, pelo contrário, menos contundentes), o tom provocante (ou, pelo contrário,mais conciliatório), etc. A expressividade de um enunciado nunca pode ser compreendida e explicada até o fim se se levar em conta somente o teor do onjeto do sentido. A expressividade de um enunciado é sempre, em menor ou maior grau, uma resposta, em outras palavras: manifesta não só sua própria relação com o objeto do enunciado, mas também a relação do locutor com os enunciados do outro.

As formas de reações-respostas que preenchem o enunciado são sumamente variadas e, até agora, nunca forma estudadas. Essas formas se diferenciam nitidamente segundo as particularidades das esferas da atividade e da vida cotidiana do homem nas quais se efetua a comunicação verbal. Por mais monológico que seja um enunciado (uma obra científica ou filosófica, por exemplo), por mais que se concentre no seu objeto, ele não pode deixar de ser também, em certo grau, uma resposta ao que já foi dito sobre o mesmo objeto, sobre o mesmo problema, ainda que esse caráter de resposta não receba uma expressão externa bem perceptível. A resposta transparecerá nas tonalidades do sentido, da expressividade, do estilo, nos mais ínfimos matizes da composição. As tonalidades dialógicas preenchem um enunciado e devemos levá-las em conta se quisermos compreender até o fim o estilo de um enunciado. Pois nosso próprio pensamento - nos âmbitos da filosofia, das ciências, das artes - nasce e forma-se em interação e em luta com o pensamento alheio, o que não pode deixar de refletir nas formas de expressão verbal do nosso pensamento.

Mikhail Bakhtin - Estética da Criação Verbal - Os Gêneros do Discurso

Tuesday, July 08, 2008

Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão sempre relacionadas com a utilização da língua. Não é de surpreender que o caráter e os modos dessa utilização sejam tão variados como as próprias esferas da atividade humana, o que não contradiz a unidade nacional de uma língua. A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana. O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua - recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais - mas, também, e sobretudo, por sua construção composicional. Estes três elementos (conteúdo temático, estilo e construção composicional) fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação. Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso.

Mikhail Bakhtin - Estética da Criação Verbal - Os Gêneros do Discurso - Problemática e Definição

Sunday, July 06, 2008

II

[...] Ora, toda Forma é também um Valor: por isso, entre a língua e o estilo, há lugar para outra realidade formal: a escritura. Em toda e qualquer forma literária, existe a escolha geral de um tom, de um etos, por assim dizer, e é precisamente nisso que o escritor se individualiza claramente porque é nisso que ele se engaja. Língua e estilo são dados antecedentes a toda problemática da linguagem, língua e estilo constituem o produto natural do Tempo e da pessoa biológica; mas a identidade formal do escritor só se estabelece realmente fora da instalação das normas da gramática e das constantes do estilo, no ponto em que o contínuo escrito, reunido e encerrado de início numa natureza linguística perfeitamente inocente, vai tornar-se enfim um signo total, a escolha de um comportamento humano, a afirmação de um certo Bem, engajando assim o escritor na evidência e na comunicação de uma felicidade ou de um mal-estar, e ligando a forma ao mesmo tempo normal e singular de sua fala à ampla História de outrem. Língua e estilo são forças cegas; a escritura é um ato de solidariedade histórica. Língua e estilo são objetos; a escritura é uma função: é a relação entre a criação e a sociedade, é a linguagem literária transformada por sua destinação social, é a forma apreendida na sua intenção humana e ligada assim às grandes crises da História.

[...] Colocada no âmago da problemática literária, que só começa com ela, a escritura portanto é, essencialmente, a moral da forma, a escolha da área social no seio da qual o escritor decide situar a Natureza de sua linguagem. Mas esta área social não é a de um consumo efetivo. Para o escritor, não se trata de escolher o grupo social para que escreve: ele sabe perfeitamente que, a menos que se conte com uma Revolução, será sempre a mesma sociedade. Sua escolha é uma escolha de consciência, não de eficácia. Sua escritura constitui uma maneira de pensar a Literatura, não de difundi-la. Ou melhor ainda: o escritor não pode modificar em nada os dados objetivos do consumo literário (tais dados puramente históricos lhe escapam, mesmo que ele tenha consciência deles) e é por isso que transporta propositadamente a exigência de uma linguagem livre para as fontes desta linguagem e não para o termo de seu consumo. Desse modo, a escritura é uma realidade ambígua: de um lado, nasce incontestavelmente de uma confrontação do escritor com a sociedade; de outro lado, por uma espécie de transferência mágica, ela remete o escritor, dessa finalidade social, para as fontes instrumentais de sua criação. Por não poder fornecer-lhe uma linguagem livremente consumida, a História lhe propõe a exigência de uma linguagem livremente produzida.

Assim, a escolha e, depois, a responsabilidade de uma escritura, designam uma Liberdade, mas tal Liberdade não tem os mesmos limites conforme os diferentes momentos da História. Não é dado ao escritor escolher sua escritura numa espécie de arsenal intemporal das formas literárias. É sob a pressão da História e da Tradição que se estabelecem as escrituras possíveis de um determinado escritor: existe uma História da Escritura; mas essa História é dupla: no exato momento em que a História geral propõe - ou impõe - uma nova problemática da linguagem literária, a escritura continua ainda cheia da lembrança de seus usos anteriores, porque a linguagem nunca é inocente: as palavras têm uma memória segunda que se prolonga misteriosamente em meio às significações novas. A escritura é precisamente esse compromisso entre uma liberdade no gesto da escolha, mas já não o é mais na sua duração. Hoje, posso sem dúvida escolher para mim esta ou aquela escritura, e nesse gesto afirmar minha liberdade, pretender um frescor ou uma tradição; já não posso mais desenvolvê-la numa duração sem tornar-me pouco a pouco prisioneiro das palavras de outrem e até de minhas próprias palavras. Uma remanência obstinada, vinda de todas as escrituras precedentes e do passado mesmo da minha própria escritura, cobre a voz presente de minhas palavras. Todo vestígio escrito precipita-se como um elemento químico a princípio transparente, inocente e neutro, no qual a simples duração faz aparecer, aos poucos, todo um passado em suspensão, toda uma criptografia cada vez mais densa.

Como Liberdade, a escritura é, portanto, apenas um momento. Mas este momento é um dos mais explícitos da História, já que a História é sempre e antes de tudo uma escolha e os limites dessa escolha. Porque deriva de um gesto significativo do escritor, a escritura aflora a História, muito mais sensivelmente do que qualquer outro corte da literatura. A unidade da escritura clássica, homogênea durante séculos, a pluralidade das escrituras modernas, multiplicadas desde há cem anos até o próprio limite do fato literário - essa espécie de explosão da escritura francesa corresponde em verdade a uma grande crise da História total, visível de maneira muito mais confusa na História literária propriamente dita. O que separa o "pensamento" de um Balzac e o de um Flaubert, é uma variação de escola; o que opõe a escritura de ambos, é uma ruptura essencial, no momento exato em em que duas estruturas econômicas formam uma charneira*, acarretando, na sua articulação, modificações decisivas de mentalidade e consciência.

Roland Barthes - O Grau Zero da Escritura

* Charneira

Acepções
substantivo feminino
1 dispositivo de rotação constituído de duas pequenas peças articuladas de metal, madeira etc. unidas por um eixo comum que possibilita fechar, abrir, sobrepor, baixar, levantar duas partes de um objeto
1.1 m.q. dobradiça ('utensílio')
2 Derivação: sentido figurado.
pessoa ou coisa que serve de ponto de união ou de apoio entre dois ou mais elementos que se encontram
Ex.: Portugal é a c. entre África e Europa

Saturday, July 05, 2008

O Que É a Escritura?

Sabe-se que a língua é um corpo de prescrições e de hábitos, comum a todos os escritores de uma época. [...] Ela encerra toda a criação literária, assim como o céu, o chão e a junção de ambos desenham para o homem um habitat familiar.
[...] O escritor não extrai nada dela, a rigor: para ele, a língua constitui antes uma linha cuja transgressão designará talvez uma sobrenatureza da linguagem; ela é a a área de uma ação, a definição e espera de um possível. Não é o lugar de um engajamento social, mas somente um reflexo sem escolha, a propriedade indivisa dos homens e não dos escritores; ela permanece fora do ritual das Letras; é um objeto social por definição, não por eleição.

[...] A língua, portanto, está aquém da Literatura. O estilo está quase além: imagens, um fluxo verbal, um léxico nascem do corpo e do passado do escritor e tornam-se pouco a pouco os próprios automatismos de sua arte. Assim, sob o nome de estilo, forma-se uma linguagem autárquica que só mergulha na mitologia pessoal e secreta do autor [...] onde se instalam de uma vez por todas os grandes temas verbais de sua existência. Seja qual for seu refinamento, o estilo tem sempre algo de bruto: é uma forma sem destinação, o produto de um impulso, não de uma intenção, é como que uma dimensão vertical e solitária do pensamento. Suas referências estão ao nível de uma biologia ou de um passado, não de uma História: ele é a "coisa" do escritor, seu esplendor e sua prisão, sua solidão.

[...] O horizonte da língua e a verticalidade do estilo desenham, portanto, para o escritor, uma natureza, pois ele não escolhe nenhum dos dois. A língua funciona como uma negatividade, o limite inicial do possível, o estilo é como uma Necessidade que vincula o humor do escritor à sua linguagem. Naquela, ele encontra a familiaridade da História; neste, a de seu próprio passado. Nos dois casos, trata-se realmente de uma natureza, vale dizer, de um gestuário familiar, em que a energia é apenas de ordem operatória, dedicando-se aqui a enumerar, lá a transformar, mas nunca a julgar ou a significar uma escolha.

Roland Barthes - O Grau Zero da Escritura