Sunday, August 30, 2009


A vida é sonho (24 - 02 - 2007)

Bráulio Tavares

A trilogia Matrix dos irmãos Warchovsky, no cinema, e a trilogia Neuromancer de William Gibson, na literatura, são narrativas futuristas sobre um mundo socialmente fraturado e de alta tecnologia. Apontam na direção de um futuro em que a realidade de carne e osso dos nossos corpos biológicos servirá apenas como infra-estrutura para uma realidade virtual, onde poderemos projetar nossa mente e criar ali todo um novo universo de ambientes, criaturas e interações. Viveremos plugados em alguma coisa, e através desse plug compartilharemos mentalmente uma realidade a que nossos corpos não terão acesso.

Elas me lembram um conceito criado por Brian Aldiss para descrever certas narrativas de ficção científica: o Barroco Cinemascope (“widescreen baroque”). Curiosamente essa concepção vem ao encontro de uma das mais notórias idéias do teatro barroco espanhol, aquela que Calderón de la Barca expressou melhor que todos em sua peça A Vida é Sonho, quando diz:

“(...) estamos / em mundo tão singular / que o viver é só sonhar / e a vida ao fim nos imponha / que o homem que vive, sonha / o que é, até despertar”.

Os poetas barrocos viviam numa época de fervorosa religiosidade, e procuravam exprimir das maneiras mais variadas esse contraste entre um mundo material cuja existência seus corpos não podiam deixar de reconhecer, e um mundo espiritual que lhes obcecava a mente por completo. O conflito entre a matéria e o espírito, duas realidades irrecusáveis, foi um dos temas mais obsessivos desses poetas.

O que Calderón dizia de seu mundo pode ser estendido à Matrix, o mundo ilusório criado pelas supermáquinas do futuro:

“Sonha o rico sua riqueza / que trabalhos lhe oferece; / sonha o pobre que padece / sua miséria e pobreza; / sonha o que o triunfo preza, / sonha o que luta e pretende, / sonha o que agrava e ofende / e no mundo, em conclusão, / todos sonham o que são, / no entanto ninguém entende”.

No mundo da Matrix, os seres humanos vivem acorrentados no interior de casulos, dormindo um sono hipnótico, tendo sua energia sugada por máquinas incompreensíveis enquanto sua mente sonha sonhos artificiais em que imaginam estar em grandes cidades, andando de carro, trabalhando em escritórios, amando, casando, vivendo, divertindo-se.

No primeiro filme dos Warchovsky, essa vida aparentemente banal e satisfatória é rompida quando um indivíduo (no caso o personagem Neo, de Keanu Reeves) aceita tomar uma pílula que servirá para estilhaçar a ilusão em que vive. A sua primeira sensação é de sair do mundo real e penetrar num pesadelo fantástico em que o mundo não é nada do que parecia. Ele poderia dizer, como o personagem de Calderón:

“Eu sonho que estou aqui / de correntes carregado / e sonhei que em outro estado / mais lisonjeiro me vi”.

Se fazemos a equação “a vida é sonho”, dizemos em conseqüência que “o sonho é vida”; rompida a primeira ilusão, nunca mais saberemos distinguir de que lado nos achamos.

Saturday, August 29, 2009



Uma curiosidade que achei legal.

A partitura do songbook do Almir Chediak de Desafinado está em Fá.
Na frase "se- vo-cê- in-sis-te -em- clas-si-fi-car" o "em" é um dó sustenido e o "...fi..." é um ré bemol.

Para quem não entende que há aqui uma bonita ironia, explico.
Claro que falo do trecho editado, tirado do contexto da música!

O dó sustenido e o ré bemol são o mesmo som, o que muda é sua classificação
segundo o contexto em que aparecem. No piano é a nota preta entre o dó e o ré.

Eu voto que foi consciente ou no mínimo whiskonsciente do Tom!

Friday, August 28, 2009


Bola dividida
FERNANDO GABEIRA

Alguma coisa se mexe na política de drogas da América Latina. O México descriminou o porte de drogas para consumo pessoal. E o México é a grande preocupação dos EUA no momento. Os cartéis deixaram de exportar apenas droga para exportar também o crime organizado.

Logo em seguida, a Argentina descriminou o uso de maconha. A Suprema Corte exortou o governo a combater o tráfico de drogas e, simultaneamente, fazer campanhas que enfraqueçam o consumo.

Os observadores americanos já tinham detectado alguma coisa. Três ex-presidentes, Fernando Henrique, César Gaviria, Ernesto Zedillo, expressaram uma posição por mudanças na política de drogas. A posição deles é ampla, mas o que ficou foi a defesa da descriminação da maconha.

Imagino a dificuldade de processar a última visita de Lula à Bolívia. Dois presidentes usando colar de folha de coca. Não creio que Lula tenha avaliado todo esse contexto, ou que, na verdade, dê alguma importância a esse contexto.

Por influência de Chávez, discutem-se muito as bases americanas na Colômbia. Não se trata apenas de deter as Farc, mas o tráfico que as mantém vivas.

Uma conferência interamericana sobre política de drogas seria mais produtiva do que todo esse carnaval sobre tropa americana. Mas o passado na América Latina é desses que sobrevivem sentados na cadeira do presente.

O debate sobre drogas sempre se baseou na ideia de legalizá-las ou não. Nesse nível de abstração, as pessoas sentem-se como se fossem donas da verdade.

Se o eixo se deslocasse, os defensores das duas teses teriam que se desdobrar para explicar como realizá-las. A repressão é um fracasso. Os defensores da legalização apenas a defendem. Há um longo caminho. Obama tem energia para mais uma bola dividida?

Wednesday, August 26, 2009

Sunday, August 23, 2009


Um Prelúdio

Amadureci aos poucos,
cresci muito devagar
como os álamos e os loucos
e acabei indo morar

na Casa dos Homens Ocos,
um charco pardo ao luar
entre o tempo morto, os roucos
rugidos do vento e o mar.

Lá se vive sem querer;
lá ouvi uma elegia;
dou-a aqui tal qual ouvi-a

ao cair do entardecer
sobre a charneca vazia,
os pântanos que há no ser.

Bruno Tolentino - A Balada do Cárcere - 1996

(...) Não há lugar para melancólicos e sonhadores entre os carros e os caminhões da Via Dutra. Nem entre as solicitações simultâneas do celular, do controle remoto, do mouse e das câmeras digitais - pois já se entendeu que são essas maquinetas que nos solicitam, que nos exigem que nos mantenhamos sempre ligados nelas, e não o contrário.

Escrevo propositalmente: melancólicos e sonhadores, em vez de melancólicos ou sonhadores. Meu propósito, ao associar melancolia e devaneio, é estabelecer uma continuidade entre as antigas manifestações da melancolia e essa forma de mal-estar que hoje denominamos depressões. As ruminações auto-agressivas que caracterizam a melancolia freudiana não têm a ver com a predisposição à meditação e ao devaneio dos melancólicos da Antiguidade. Penso que os herdeiros contemporâneos do lugar do sintoma social ocupado pelas melancolias até Freud (ou até Walter Benjamin) sejam os depressivos.

Desde que a melancolia freudiana passou a designar o ponto de vista psicanalítico sobre o que a psiquiatria entende por psicose maníaco-depressiva, o lugar da antiga melancolia passou a ser ocupado pelo que chamamos de depressão. Instalados em um tempo que lhes parece vazio, sob sua aparente imobilidade, os depressivos estão mais próximos de encontrar a temporalidade distendida da contemplação e do devaneio do que os neuróticos mais bem adaptados às condições que a vida social lhes impõe. O tempo vazio do depressivo recusa a urgência da vida contemporânea e remete a um outro modo de viver o tempo, que a modernidade recalcou ou, pelo menos, reprimiu.

Maria Rita Kehl - Os tempos do Outro - Tempo da consciência e tempo da memória - O Tempo e o cão: a atualidade das depressões.

1. Em janeiro de 1971, o ex-deputado Rubens Paiva foi preso e desapareceu. Os comandantes militares da ocasião contaram que ele estava sendo transportado por dois soldados da PE num Volkswagen quando o carro foi fechado numa estrada do Alto da Boa Vista. Seguiu-se um tiroteio, o prisioneiro saiu do Volks e embarcou num automóvel dos sequestradores.

Tudo bem: faltava explicar como Paiva, com mais de 1,80 m, pesando em torno de cem quilos, sentado no banco de trás, saiu pela porta esquerda do Fusca, atravessando uma linha de tiro. Passaram-se 17 anos e o repórter Fritz Utzeri, com base na versão oficial, desmoralizou a farsa. Uma pequena mentira estragou a grande patranha.

2. Outro caso, que aborreceu o generalíssimo Josef Stálin: em 1936 ele mandou sua polícia prender velhos bolcheviques, acusando-os de terem planejado um assassinato. Deu tudo certo, os presos confessaram, os juízes julgaram e o pelotão de fuzilamento liquidou o caso. Numa das confissões, um preso contou que participara do planejamento do atentado, em 1934, numa reunião no hotel Bristol de Copenhague. O Bristol fora demolido em 1917. Como escreveu Stálin: "Por que diabos vocês meteram o hotel nisso? Deviam ter dito que foi na estação ferroviária. Ela ainda está lá".

Tanto os generais brasileiros de 1971 como o comissariado de 1936 acreditavam ter poder suficiente para desprezar detalhes. Num regime democrático, com imprensa livre (desde que fique longe dos áudios do Sarneystão), os pequenos truques produzem grandes desastres.

Elio Gaspari - Folha de São Paulo

Friday, August 21, 2009

Entre as múltiplas virtudes de Chuang-Tsê estava a habilidade para desenhar. O rei pediu-lhe que desenhasse um caranguejo. Chuang-Tsê disse que para fazê-lo precisaria de cinco anos e uma casa com doze empregados. Passados cinco anos, não havia sequer começado o desenho. "Preciso de outros cinco anos", disse Chuang-Tsê. O rei concordou. Ao completar-se o décimo ano, Chuang-Tsê pegou o pincel e num instante, com um único gesto, desenhou um caranguejo, o mais perfeito caranguejo que já se viu.

Contado por Italo Calvino em Rapidez - Seis Propostas Para o Próximo Milênio


1. Um homem sabe que é um homem.
2. Os homens se reconhecem entre eles por serem homens.
3. Eu afirmo que sou um homem, por temor de que os homens me convençam de que não sou um homem.

Resumido por Jacques Lacan em El Tiempo Lógico.

Maria Rita Kehl - O Tempo e o cão.

Vozes d'ÁFrica
Castro Alves

Deus! Ó Deus, onde estás que não respondes?!
Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes,
Embuçado nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito
Que embalde, desde então corre o infinito...
Onde estás, Senhor Deus?!...

Qual Prometeu, tu me amarraste um dia
Do deserto na rubra penédia,
- Infinito galé!...
Por abutre - me deste o sol ardente!
E a terra de Suez - foi a corrente
Que me ligaste ao pé...

O cavalo estafado do Beduíno
Sob a vergasta tomba ressupino,
E morre no areal.
Minha garupa sangra, a dor poreja,
Quando o chicote do "simoun" dardeja
O teu braço eternal.

Minhas irmãs são belas, são ditosas...
Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas
Dos "haréns" do Sultão,
Ou no dorso dos brancos elefantes
Embala-se coberta de brilhantes,
Nas plagas do Indostão

Por tenda - em os cimos do Himalaia...
O Ganges amoroso beija a praia
Coberta de corais...
A brisa de Misora o céu inflama;
E ela dorme nos templos do deus Brama,
- Pagodes colossais...

A Europa é sempre Europa, a gloriosa!...
A mulher deslumbrante e caprichosa,
Rainha e cortesã.
Artista - corta o mármor de Carrara;
Poetiza - tange os hinos de Ferrara,
No glorioso afã!...

Sempre a láurea lhe cabe no litigio...
Ora uma "c'roa", ora o "barrete frigio"
Enflora a cerviz
O Universo após ela - doido amante
Segue cativo o passo delirante
Da grande meretriz

Mas eu, Senhor!... Eu triste, abandonada,
Em meios dos desertos esgarrada,
Perdida marcho em vão!
Se choro... bebe o pranto a areia ardente!
Talvez... p'ra que meu pranto ó Deus clemente
Não descubras no chão!...

E nem tenho uma sombra na floresta...
Para cobrir-me nem um templo resta
No solo abrasador...
Quando subo às piramides do Egito,
Embalde aos quatro céus chorando grito:
"Abriga-me, Senhor!..."

Como o profeta em cinza a fronte envolve,
Velo a cabeça no areal, que volve
O siroco feroz...
Quando eu passo no Saara amortalhada...
Ai! Dizem: Lá vai África embuçada
No seu branco albornoz..."

Nem vêem que o deserto é meu sudário,
Que o silencio campeia solitario
Por sobre o peito meu.
Lá no solo, onde o cardo apenas medra,
Boceja a Esfinge colossal de pedra
Fitando o morno céu.

De Tebas nas colunas derrocadas
As cegonhas espiam debruçadas
O horizonte sem fim...
Onde branqueja a caravana errante
E o camelo monótono, arquejante,
Que desce de Efraim...

Não basta inda de dor, ó Deus terrivel?!...
É, pois, teu peito eterno, inexaurivel
De vingança e rancor?
E o que é que fiz, Senhor? que torvo crime
Eu cometi jamais, que assim me oprime
Teu gládio vingador!

Foi depois do "diluvio"... Um viandante,
Negro, sombrio, pálido, arquejante,
Descia do Ararat...
E eu disse ao peregrino fulminado:
"Cam!... serás meu esposo bem-amado...
- Serei tua Eloá..."

Desde este dia o vento da desgraça
Por meus cabelos, ululando, passa
O anátema cruel.
As tribos erram no areal nas vagas,
E o "Nomada" faminto corta as placas
No rápido corcel.

Vi a ciencia deserta do Egito...
Vi meu povo seguir - Judeu maldito -
Trilho de perdição.
Depois vi minha prole desgraçada,
Pelas garras da Europa arrebatada,
- Amestrado falcão!...

Cristo! embalde morreste sobre um monte...
Teu sangue não lavou da minha fronte
A mancha original.
Ainda hoje são, por fado adverso,
Meus filhos - alimária do universo,
Eu - pasto universal...

Hoje, em meu sangue a América se nutre:
- Condor, que transformara-se em abutre,
Ave da escravidão.
Ela juntou-se às mais... irmã traidora!
Qual de José os vis irmãos, outrora,
Venderam seu irmão!

Basta, Senhor! De teu potente braço
Role através dos astros e do espaço
Perdão p'ra os crimes meus!
Há dois mil anos... eu soluço um grito...
Escuta o brado meu lá do infinito...
Meu Deus! Senhor, meu Deus!...

Thursday, August 20, 2009


O Dia Deu em Chuvoso

O dia deu em chuvoso.
A manhã, contudo, esteve bastante azul.
O dia deu em chuvoso.
Desde manhã eu estava um pouco triste.

Antecipação! Tristeza? Coisa nenhuma?
Não sei: já ao acordar estava triste.
O dia deu em chuvoso.

Bem sei, a penumbra da chuva é elegante.
Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante.
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
Dêem-me o céu azul e o sol visível.
Névoa, chuvas, escuros — isso tenho eu em mim.

Hoje quero só sossego.
Até amaria o lar, desde que o não tivesse.
Chego a ter sono de vontade de ter sossego.
Não exageremos!
Tenho efetivamente sono, sem explicação.
O dia deu em chuvoso.

Carinhos? Afetos? São memórias...
É preciso ser-se criança para os ter...
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
O dia deu em chuvoso.

Boca bonita da filha do caseiro,
Polpa de fruta de um coração por comer...
Quando foi isso? Não sei...
No azul da manhã...

O dia deu em chuvoso.

Álvaro de Campos - Poemas

Wednesday, August 19, 2009



Trocando em Miúdos
Chico Buarque & Francis Hime

Eu vou lhe deixar a medida do Bonfim
Não me valeu
Mas fico com o disco do Pixinguinha, sim!
O resto é seu

Trocando em miúdos, pode guardar
As sobras de tudo que chamam lar
As sombras de tudo que fomos nós
As marcas de amor nos nossos lençóis
As nossas melhores lembranças

Aquela esperança de tudo se ajeitar
Pode esquecer
Aquela aliança, você pode empenhar
Ou derreter

Mas devo dizer que não vou lhe dar
O enorme prazer de me ver chorar
Nem vou lhe cobrar pelo seu estrago
Meu peito tão dilacerado

Aliás
Aceite uma ajuda do seu futuro amor
Pro aluguel
Devolva o Neruda que você me tomou
E nunca leu

Eu bato o portão sem fazer alarde
Eu levo a carteira de identidade
Uma saideira, muita saudade
E a leve impressão de que já vou tarde.

Sunday, August 16, 2009

Marcha forçada para o Oriente

Manolo Florentino

Escravidão negra residual continuou a se disseminar pelo Oriente Médio no século 20, com cativos levados do nordeste da África; prática ainda resiste

Tudo começou em 1928, quando da visita ao emir da então chamada Transjordânia [atual Jordânia]. Uma bem armada guarda de homens negros, em nada assemelhados a beduínos, vigiava a residência em Amã. Como Joseph Kessel indagasse a que tribo pertenciam esses soldados, ouviu do príncipe: "São meus escravos, vindos do outro lado do mar".

O fato não despertou maior interesse até que, 15 meses depois, vagando pelo deserto sírio, Kessel foi ter à tenda de outro potentado islâmico. A um canto, via-se uma dezena de negros armados até os dentes, de quem o intérprete que o acompanhava informou tratar-se de escravos, "sobre os quais o dono tem direito de vida e morte". Soube igualmente que qualquer chefe, pequeno ou grande, tinha escravos, destinados a serviços domésticos ou à proteção dos seus senhores, todos eles provenientes do litoral africano do mar Vermelho.

De regresso à Europa, leu o que pôde sobre o assunto.

Aprendeu que, embora residual, a escravidão negra disseminava-se pelo Oriente Médio, sendo o Sudão e a Abissínia [atual Etiópia] as suas principais fontes. Apresados no interior, os africanos eram embarcados em pontos secretos da costa e desembarcados também sigilosamente no litoral asiático, de onde eram levados para diversos mercados. Desvendar "in loco" os mecanismos do tráfico desses infelizes tornou-se a sua obsessão - queria documentar a captura, atravessar o mar Vermelho com os escravos e segui-los até a revenda final nos mercados islâmicos.

Aventura jornalística

O jornal parisiense Le Matin resolveu bancar o projeto. Afinal, aos 30 anos de idade, Joseph Kessel gozava de grande prestígio. Nascido na Argentina em 1898, vivera nos Urais [montes que separam a Europa da Ásia] entre 1905 e 1908 e logo se instalou na França. Flertara com o teatro, mas acabou por se engajar no Exército em fins de 1916. Artilheiro e aviador, recebera a Cruz de Guerra.

Com o término do conflito mundial, voltou-se para o jornalismo e para a literatura, sempre focado em trajetórias limites e em contextos excepcionais: a Revolução Russa, o submundo urbano, os desamparados. Em 1928, publicou Belle de Jour [Bela da Tarde] pela [editora francesa] Gallimard, livro no qual se basearia Luis Buñuel para realizar, 40 anos depois, um dos seus melhores filmes.

Quis o destino que travasse contato em Paris com Henry de Monfreid (1879-1974), misantropo que havia décadas vivia no Chifre da África [no nordeste do continente], contrabandeando armas, pérolas e haxixe.

Monfreid o acolheu em sua casa na Abissínia, e a amizade entre ambos converteu-se em verdadeiro salvo-conduto para Kessel. Por meio dele, conheceu um velho muçulmano enriquecido com o tráfico, o qual lhe apresentou Said (nome fictício), traficante ainda na ativa.

Na província de Harare, a 500 quilômetros de Adis Abeba [capital etíope], descobriu que o cativeiro encontrava-se entranhado na gente, que negros escravizados de todas as idades provinham da fronteira com o Sudão, que a fome e o medo os unia. Vê-los devorar um boi cru, rápidos como abutres, o fascinou. Entrevistou-os e ouviu sempre a mesma triste história: recordações de florestas, raptos em massa ou isolados, caminhadas intermináveis e, por fim, o cativeiro.

Comboio de escravos

Said, o mercador de escravos, confidenciou-lhe que duas caravanas anuais de 15 escravos para a Arábia bastavam-lhe para se manter-se não perecessem no caminho. Pagava os impostos das aldeias miseráveis para, em troca, obtê-los. Outro meio era dispor de caçadores corajosos.

Joseph Kessel teve a oportunidade de observar um dos comboieiros de Said em ação.

Seu nome era Sélim, especialista no rapto de crianças. Viu-o arrastar-se pela relva como um felino para, sem ruídos, capturar uma pequena pastora, enrolá-la em uma manta e com ela regressar à aldeia. Said perguntou-lhe se estava satisfeito com o espetáculo. Kessel anuiu, oferecendo-se para comprar a menina e libertá-la. Fecharam o negócio por 30 libras. Pouco depois, a pastorinha regressava às origens, pelas mãos dos mesmos que a haviam transformado em um pequeno embrulho.

Arriscando a própria vida, acompanhou o pequeno rebanho humano de Said - sete mulheres e quatro homens - rumo ao litoral. Com eles atravessou o mar Vermelho e atracou no Iêmen. Disseram-lhe que os escravos haviam sido remetidos em caravana para Meca [na Arábia Saudita], onde seriam vendidos em leilões. Seguiu a pista, e foi esta a sua última grande descoberta: os africanos desembarcavam no litoral arábico segundo todas as regras prescritas para os peregrinos, mas nunca regressavam.

A reportagem de Kessel foi publicada em 20 capítulos pelo Le Matin, cujas vendas aumentaram em 150 mil exemplares. Em 1933, seus artigos transformaram-se no livro Marchés d'Esclaves [Marchas de Escravos], editado pela Éditions de France. Quanto ao autor, continuou sucumbindo ao seu destino: lutou na Guerra Civil Espanhola [1936-39], aderiu à Resistência francesa durante a Segunda Guerra Mundial - obtendo mais uma Cruz de Guerra -, militou pela criação do Estado de Israel [1948], sempre a escrever.

Joseph Kessel morreu há 30 anos, na condição de membro da Academia Francesa. O cativeiro que descreveu ainda viceja, sobretudo em países muçulmanos. Quando menos por isso, seu relato continua a ser uma fonte ímpar para os estudiosos da escravidão no mundo contemporâneo.


Manolo Florentino é professor de História na Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autor de Tráfico, Cativeiro e Liberdade (ed. Civilização Brasileira) e escreve regularmente na seção Autores, do +mais!.

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Agricultura Familiar e o Mundo que Vem Por Aí

GUILHERME CASSEL & LAUDEMIR MULLER

Seção TENDÊNCIAS/DEBATES - Folha de São Paulo

Há um reconhecimento internacional não só de que estamos no rumo certo. Hoje, o Brasil é referência em desenvolvimento rural

Um dos desdobramentos mais encorajadores da crise alimentar e financeira é ter impulsionado a comunidade internacional para uma mudança de paradigma sobre o desenvolvimento agrário e a segurança alimentar.

O neoliberalismo, que impôs o sucateamento do Estado e dos projetos de desenvolvimento nacional, fracassou. Em apenas um ano, sob a pressão da inflação alimentar e da perda de emprego e renda, mais de 200 milhões de pessoas desprotegidas ingressaram no exército da pobreza mundial, de acordo com a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO).

Ao mesmo tempo, o aumento dos preços não beneficiou os agricultores familiares, que produzem a grande maioria dos alimentos consumidos e exportados no mundo todo.

A novidade é que a crise está gerando uma inflexão e lapidando uma nova agenda internacional. Os países desenvolvidos estão ameaçados pela combinação de desemprego, migrações e fundamentalismos.

Por isso, parece que estão compreendendo que é preciso recolocar o Estado no centro da vida econômica e social e, mais do que isso, que sua própria segurança está relacionada ao direito dos países em desenvolvimento de terem estratégias nacionais de desenvolvimento. Estratégias de desenvolvimento sustentável que erradiquem pela raiz o flagelo da fome e da pobreza e gerem emprego e renda no meio rural.

Até a antiga retórica da ajuda alimentar - na maioria das vezes, uma forma de escoamento dos excedentes de produção do complexo agroalimentar - foi substituída pela ajuda internacional na estruturação da produção local da agricultura familiar como forma de prover alimentos.

As declarações do G8 e do G5 materializam essa mudança histórica: direitos a estratégias nacionais agrícolas e de segurança alimentar; políticas públicas para a agricultura familiar; suporte às mulheres agricultoras; e disciplina internacional dos investimentos estrangeiros para compra de terras. Esses são os elementos que dão a tônica dessa inflexão.

Essas novas diretrizes refletem, em grande parte, o que é o programa do nosso governo: políticas públicas para a agricultura familiar e um conjunto de ações específicas para o aumento da produção de alimentos e a estabilização dos preços.

Fazemos isso desde 2003. Em 2008, tivemos uma reação rápida à "crise dos preços dos alimentos" com a implementação do programa Mais Alimentos, que, no primeiro ano, propiciou aumento de 7,8 milhões de toneladas na produção de leite, mandioca, milho, feijão, café, arroz e trigo.

Hoje, a modernização da agricultura familiar em curso é responsável por 75% do total da produção nacional de tratores da linha Mais Alimentos (até 78 cv).

Em meio à crise econômica mundial, a agricultura familiar produziu mais alimentos e, com isso, contribuiu para o controle da inflação e a garantia de empregos e renda no campo e nas cidades.

Além disso, criamos o Fundo da Agricultura Familiar do Mercosul, que apoiará os países da região na implementação de políticas nacionais e regionais de fortalecimento da agricultura familiar e de aumento da produção de alimentos. Tudo com a participação direta da sociedade civil e das organizações sociais e sindicais.

Há um reconhecimento internacional não só de que estamos no rumo certo. Hoje, o Brasil é referência em desenvolvimento rural nas discussões a respeito do novo mundo que vem aí.

Essa nova agenda está alicerçada em três elementos centrais: novo olhar sobre o papel do Estado como articulador do desenvolvimento por meio de políticas públicas nacionais; maior equilíbrio de poder entre os países desenvolvidos e os países emergentes; e espaço central da agricultura de base familiar como produtora de alimentos e de estabilidade econômica e social.

Essa é a agenda nova, a agenda de futuro. Essa é a agenda que começamos a construir em 2003 e que agora mostra os seus resultados: mais produção de alimentos, mais empregos, mais estabilidade econômica e maior capacidade do Brasil de participar de forma decisiva na nova governança global.

GUILHERME CASSEL , 52, engenheiro civil, é o ministro do Desenvolvimento Agrário.
LAUDEMIR MULLER , 34, é economista e mestre em desenvolvimento rural.

Friday, August 14, 2009


Maria Rita Kehl explica o post Lacan explica

(...) É possível que, no atual estágio do capitalismo, a condição de desamparo do sujeito moderno ante o descentramento e a multiplicação das formações imaginárias que, dessa forma, impossibilitam uma representação estável e socialmente compartilhada do Outro esteja em vias de superação. Se essa hipótese se confirma, a (re)unificação dos enunciados do Outro vem sendo operada, pelo menos em parte, pela ação onipresente da indústria do espetáculo e pela repetição coerente de suas mensagens, que aparentemente se diversificam para repetir sempre o mesmo mandato. A multiplicidade de discursos, de saberes e de valores que caracterizaram a modernidade vem dando lugar a uma nova forma de discurso único, fundado sobre razões de mercado, muito mais eficaz do que a dominação da Igreja na Idade Média - já que a norma contemporânea se impõe pela sedução, não pela interdição.

Os mandatos que caracterizam o "discurso do Outro" na vida contemporânea advêm de formações do imaginário produzidas e difundidas pela indústria das chamadas comunicações ou, como parece mais apropriado nomeá-las a partir das teses de Debord, indústria do espetáculo. O avanço das técnicas de sondagem das "motivações inconscientes" do chamado público consumidor joga um papel decisivo nesse quadro, o que torna possível afirmar que uma série de enunciados que dizem respeito às representações recalcadas deixaram de ser inconscientes. Eles participam da constituição da realidade social através de seus principais arautos: as mensagens publicitárias emitidas não apenas pelos outdoors, o rádio e a televisão, mas também pela internet, pelos aparelhos de celular, ou embutidos na forma de merchandising na teledramaturgia e no cinema, assim como em algumas notícias dos telejornais.

Vale ressaltar que, em Guy Debord, a idéia de "sociedade do espetáculo" não se reduz à mera constatação de que somos permanentemente assediados por uma abundante oferta de imagens. O conceito de espetáculo, em Debord, não se resume a "um conjunto de imagens, mas [é] uma relação social entre indivídous, mediada por imagens". Isso equivale a dizer que, na sociedade do espetáculo, as imagens, em sua forma mercadoria, é que organizam prioritariamente as condições do laço social. Que o inconsciente recalcado, parte necessária dessa relação social, seja incluído entre os termos dessa mediação por imagens, é apenas uma consequência do desenvolvimento da técnica. As imagens, por sua própria condição, se oferecem como resposta ao enigma do inconsciente pela via da produção de sentido, que é a mesma via da produção de identificações. Dessa forma, o movimento errático do desejo cede lugar ao gozo promovido pelo encontro com a imagem que encobre a falta do sujeito.

(...) Não se trata de ir tão longe a ponto de supor o apagamento da dimensão singular das formações do inconsciente; mas sim que a consistência com que o imaginário social responde às representações recalcadas do desejo favorece a co-validação social do fantasma [aquela "dimensão singular"], o que implica a possibilidade de as respostas fantasmáticas ao enigma do desejo do Outro já não precisarem forçosamente ser tomadas a cargo dos sujeitos, em sua singularidade. A face imaginária do Outro, na vida contemporânea, vem sendo atualizada continuamente nos termos da indústria espetacular através de seu setor de ponta, a publicidade. Por ela, a demanda do Outro vem coincidir com os mais primitivos mandatos do supereu, prometendo atender aos anseios recalcados ao longo da travessia edípica: anseios de abrir mão da via do desejo em troca de uma oferta - imaginária - de gozo. Poucos resistem à aparente segurança dessa troca: os otários e os sábios talvez, além dos depressivos que a recusam sem saber, necessariamente, o que fazem. A angústia, por sua vez, é o preço inevitável a ser pago por essa perspectiva imaginária de supressão da falta.

Maria Rita Kehl - O Tempo e o cão: a atualidade das depressões

Lacan explica

Xuxa: "Sou loira, sou povo e sou vencedora"

Xuxa Meneghel foi homenageada na noite desta quinta-feira (13) com um Kikito especial do 37º Festival Internacional de Cinema de Gramado ( !!! ), no Rio Grande do Sul. Gaúcha de Santa Rosa, Xuxa recebeu a honraria das mãos da atriz mirim Ana Júlia Veiga, de apenas quatro anos, e por pouco não foi às lágrimas.

Em seu discurso de agradecimento, a apresentadora elogiou os organizadores do Festival por superarem "preconceitos" e finalizou com uma frase de impacto: "Sou loira, sou povo e sou vencedora".

Assim que Xuxa pisou no tapete vermelho do Palácio dos Festivais, vestindo sobretudo preto e ostentando um crucifixo cravejado com diamantes, uma multidão foi ao delírio. Ao som de "Xuxa, eu te amo" e acompanhada pelo namorado, Luciano Szafir, ela distribuiu sorrisos para os fãs e fotógrafos. A apresentadora foi recebida pelo prefeito do município de Gramado, Nestor Tissot.

Aproximadamente 20 minutos depois, já dentro do Palácio dos Festivais, Xuxa foi chamada ao palco pelos mestres de cerimônia da sessão, Zé Victor Castiel e Renata Boldrini. Antes disso, porém, ela inaugurou uma placa com a seguinte frase: "A Xuxa, atriz e apresentadora, responsável por algumas das maiores obras do cinema brasileiro ( !?!#*!! ), os nossos agradecimentos".

"Sou povo, sou suburbana. Nunca imaginei que eu pudesse chegar aqui. Fico muito feliz que os preconceitos tenham sido superados e por nunca ter pedido a simplicidade do meu coração", disse a loira, após receber o Kikito.

Xuxa Meneghel tem no currículo 15 trabalhos no cinema, tendo desempenhado as funções de atriz e produtora. Sua estreia aconteceu em 1983, com uma participação no filme O Trapalhão e a Arca de Noé.

Thursday, August 13, 2009


[...] o instante em que o paciente diz e não sabe o que diz.

É o momento do balbucio, ali onde o paciente gagueja, o instante em que ele hesita e sua fala se subtrai. Dizem que os psicanalistas lacanianos se interessam pela linguagem, e eles são erroneamente assemelhados aos linguistas. Erroneamente, porque os psicanalistas não são linguistas. Os psicanalistas certamente se interessam pela linguagem, mas se interessam unicamente no limite em que a linguagem tropeça. Ficamos atentos aos momentos em que a linguagem se equivoca e a fala derrapa. Tomemos um sonho, por exemplo: atribuímos maior importância à maneira como o sonho é contado do que ao sonho em si; e não apenas à maneira como é contado, mas, principalmente, ao ponto exato do relato em que o paciente duvida e diz: "Não sei... não me lembro mais... talvez... provavelmente..." É a esse ponto que chamamos experiência, a face perceptível da experiência: um balbucio, uma dúvida, uma palavra que nos escapa.

J. -D. Nasio - 5 Lições sobre a Teoria de Jacques Lacan - tradução: Vera Ribeiro

Tuesday, August 11, 2009

http://www.flickr.com/photos/lilivc

Monday, August 10, 2009

Redes de Compartilhamento?

Para viciado em droga, descobrir o traficante de crack é impossível

Nove da manhã é a hora do "blocão" (pedra grande), explica César, 36, "nóia" assumido. Apesar do desatino geral na calçada da rua Helvétia, em Campos Elíseos (região central), onde mais de cem usuários de crack estão sentados, César parece tranquilo. "Acabei de dar uma paulada, mas você não diz. Dificilmente me altero." Ele conta que o blocão logo é dividido em muitos pedaços e repassado.

"Às vezes eu mesmo chego com a pedra grande, que eu consegui por R$ 10; divido em 18 "biricos", vendo cada um por R$ 2 e já tenho o dinheiro de mais três pedras", calcula.

Como se a cadeia até o traficante fosse um labirinto interminável, e indecifrável, ele diz que no crack é impossível descobrir o traficante. "Ninguém sabe quem é, exatamente, o cara. As coisas vão chegando."

Viciado há dois anos, César diz que experimentou o crack com um primo e que não sentiu a sensação forte que muitos dizem levar ao vício imediato. "A gente voltou a fumar na mesma semana, mas como quem toma uma cerveja no bar", lembra ele, que tem um filho de 12 anos, a quem não vê há um ano. Desempregado, ele diz que é "motorista autônomo".


Apesar da balbúrdia na calçada da Helvétia, César diz que as biqueiras (pontos de "nóias") seguem uma disciplina estipulada à distância pela facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital). Segundo ele, agressões físicas e roubo (entre eles) não são tolerados. "Os caras vão ter de conversar com um grandão."

A etiqueta do "nóia" manda que, à passagem de mulheres com crianças no colo, diga-se: "Olha o ar do anjo", para que todos recolham seus cachimbos. Cesar passou quatro meses num Centro de Detenção Provisória, por "pequenos delitos". "Sou contra roubar na rua. Pego só de quem tem muito", diz.

Para participar da chamada "ciranda dos nóia", ou o trânsito do "vapor" (o que repassa), não é preciso estar em alguma biqueira. A reportagem perguntou a um rapaz que caminhava na rua Vieira de Carvalho, bem longe do centro da cracolândia, se ele tinha visto usuários por ali. Foi o suficiente para que o jovem se pendurasse na janela do carro e oferecesse uma pedra. "Fala aí, mano, vai querer quanto?"

Exilados da Cracolândia Vagam Pelo Centro


Usuários de crack que deixaram a área após ação do Estado se espalham em grupos para outros pontos na região central

Consumidores de drogas agora perambulam pelo Minhocão e região da praça da República, Arouche e largo de Santa Cecília


O aviso em letras brancas no asfalto do Minhocão é para motoristas: "Devagar Curva Perigosa". Mas à partir das 21h30, quando o acesso ao viaduto é restrito a pedestres, aqueles dizeres, no trecho que passa acima de Santa Cecília, parecem dirigir-se aos usuários de crack.
"Eles se tornaram andarilhos, não existe mais uma "base". Caminham completamente desnorteados por todos os lugares, em grupos enormes, da Barra Funda à Radial Leste", diz o segurança Chico de Assis, contratado por comerciantes e moradores da rua Sebastião Pereira, que fica em uma área ao redor do viaduto, para afugentar viciados. "Não dá para o cara sair do prédio de manhã, ou abrir o bar, o banco, com aquela gente amontoada ali na porta."
Além de subir o elevado pelo acesso que desce para Santa Cecília (região central) e também pelo que desemboca na rua Helvétia (idem), os usuários, ou "nóias", agora caminham a esmo pela vizinhança da praça da República, dos largos do Arouche e de Santa Cecília, e em vários pontos da avenida São João -todos bem distantes da "original" cracolândia, cujo perímetro abrange as redondezas da praça Júlio Prestes (até a avenida Ipiranga); ruas Eduardo Prado e Conselheiro Nébias.
Uma das consequências dos deslocamentos é o aumento do lixo que normalmente os craqueiros reviram atrás de algo vendável (para a compra de mais pedras) e que serve também para camuflar a droga, quando a polícia aparece. O lixo revirado é encontrado em mais calçadas, uma vez que eles caminham por mais lugares.
A Subprefeitura da Sé, responsável pela coleta, afirma que a quantidade de lixo (se estiver ensacado ou espalhado) é a mesma - e que, portanto, não é possível medir diferenças.
O movimento itinerante dos craqueiros coincide com o início da Ação Integrada Centro Legal, deflagrada no dia 22 de julho pela prefeitura, governo do Estado, Judiciário e Ministério Público. A intenção da iniciativa, de acordo com as assessorias, é "recuperar o centro da capital paulista, e não somente a região da Luz".
"O sentido da ação não é policial. Não é para ficar imaginando que a gente vai prender alguém, não temos nem base legal para isso", diz a assessoria da Secretaria de Segurança.
O deslocamento dos "nóias" acontece sobretudo à noite. A polícia aparece, o grupo caminha enrolado em cobertores em direção às quadras vizinhas. A polícia vai embora. Ressurge. Mais uma caminhada.
"A migração era esperada desde o início da ação. São 126 agentes comunitários de saúde da prefeitura, sendo que 40 desses trabalham em horário diferenciado, até 22h", informa a assessoria da prefeitura.
Nas cerca de quatro horas que circulou no centro, a reportagem não viu nenhum agente próximo aos usuários.
Não há confrontos entre PMs e "nóias" - apesar dos olhares desesperados e do andar miúdo, maníaco, os usuários parecem mais fracos do que propriamente agressivos.
Na rua Helvétia, uma das poucas "bases" remanescentes, onde dezenas de usuários ocupam as calçadas, uma mulher de jeans, top branco, pulseiras tilintantes e bolsa grande grita "Em Brasília tá cheio!", com a voz convulsionada (depois se entende que ela se refere à traição de alguém que, no seu caso, prometeu a ela uma pedra).
Na quinta-feira passada, um grupo de mais de cem usuários se aglomerava na porta do prédio dos Correios que fica na esquina da avenida São João com rua Aurora. O carro da polícia chegou. Todos caminharam, sem pressa, para a vizinha rua Joaquim Gustavo, que vai da Aurora à praça da República.
De repente, a maior parte do grupo ficou em pé, como quando um técnico de futebol reúne o time: é o que acontece sempre que o "vapor" chega com um "blocão" (pedra maior) e repassa pedaços - ou "biricos".
É só chegar. Todos parecem se conhecer, mas a socialização acaba com o efeito da pedra. Dependendo do "nóia", o trago pode ser chamado de "pedrada", "paulada" ou "pega".
No alto do Minhocão, usuários que já fumaram tudo o que dispunham procuram no chão algum "birico" perdido. Um deles se abaixa e olha bem de perto o asfalto, no movimento de quem perdeu a aliança no ralo.
Ele fica assim durante quase meia hora. Outros "nóias" vão chegando, mas, no desespero da falta, não dão importância ao colega. Em sua imprudência, sem medo de curvas perigosas, permanecem trafegando alucinadamente pela via elevada.

Paulo Sampaio, da reportagem local & Marlene Bergamo, repórter-fotográfico

Um Convidado Soviético

Em 1958 , em plena Guerra Fria, o filósofo e historiador das ideias Isaiah Berlin, um dos principais pensadores liberais do século 20 e crítico implacável do totalitarismo soviético, recebeu em sua casa o compositor Dmitri Chostakóvitch, que, apesar de sua difícil relação com o regime comunista, era apresentado como um símbolo das conquistas artísticas da URSS.

Tanto o compositor russo quanto o francês Francis Poulenc haviam sido convidados pela Universidade de Oxford, onde Berlin lecionava, para receberem o título honorário de doutores em música, daí a viagem.

Na carta a seguir, escrita a um amigo quando a visita já havia terminado, Berlin descreve o seu convidado de fato como um símbolo soviético, mas não no sentido que Stálin desejaria. "É terrível ver um homem dotado de gênio vitimado por um regime, esmagado por ele até aceitar seu destino como se fosse algo normal", afirma Berlin.


[...] Jantamos e então fomos à sala de estar dos Trevor-Roper [o historiador Hugh Trevor-Roper e sua mulher estavam encarregados de hospedar Francis Poulenc].

Ali, C. imediatamente se dirigiu ao canto mais próximo e sentou-se, contraído como um porco-espinho, ocasionalmente dando um sorriso fraco quando eu fazia algum chiste especialmente ousado.

Sua sonata para violoncelo foi tocada por um jovem e muito belo violoncelista do Ceilão [atual Sri Lanka]; ele ouviu com calma, me disse que o violoncelista era bom e o pianista, muito ruim (o que era absolutamente verdade), e se queixou com o violoncelista, dizendo que este errara em dois trechos. [...]

Em seguida, canções de Poulenc foram cantadas pela senhorita Margaret Ritchie [nome artístico da soprano Mabel Willard Ritchie, 1902-69], absurdamente, à maneira inglesa vitoriana ridícula. Chostakóvitch se contorceu um pouco, mas Poulenc, muito educado, muito mundano, a parabenizou e fez caretas para os outros pelas costas dela.

Depois disso, foi tocado um movimento da sonata de Poulenc para violoncelo, para aplacá-lo, e então houve um silêncio, e eu disse a C. que todos ficariam muito felizes se ele também tocasse um pouco.

Sem pronunciar palavra, foi ao piano e tocou um prelúdio e fuga - um dos 24 que compôs, como Bach - com tamanha magnificência, profundidade e paixão, e a própria obra era tão maravilhosa, tão séria, original e inesquecível, que tudo de Poulenc saiu voando pela janela e não pôde ser recapturado.

Poulenc chegou a tocar alguma coisa de "Les Biches" ["As Corças", balé de 1924] e mais alguma coisa, mas a sua música não pôde mais ser ouvida - lamentavelmente, a decadência do mundo ocidental se tornara demasiado aparente. [...]

Caderno +mais!

Sunday, August 09, 2009

A montagem depressiva, assim, tem como premissa a onipresença do gozo do Outro, que sonega ao sujeito o tempo necessário à substituição metafórica ou metonímica do objeto ausente.

Jurandir Freire Costa - resenha a O Tempo e o cão, de Maria Rita Kehl.

Entrevista: Maria Rita Kehl.

Livro O Tempo e o cão: a atualidade das depressões

1) Primeiro, uma questão de método. Me refiro à sua maneira eclética de mesclar conceitos psicanalíticos (em especial de Lacan) com idéias da filosofia, principalmente dos frankfurtianos, a partir de Benjamin. Como chegou a essa síntese fértil para abordar um tema específico como o das depressões?

Esta primeira pergunta me é particularmente interessante. Na verdade o que faço não é nada novo. O próprio pensamento de Lacan, muitíssimo mais abrangente que o meu, dialoga constantemente com pensadores de outras áreas, tanto os contemporâneos dele quanto os clássicos. Os frankfurtianos, por sua vez, incluem a psicanálise como uma das ferramentas da teoria crítica – entre eles, penso que quem melhor compreendeu Freud foi Walter Benjamin. Hoje quem faz isso com mais ousadia, a meu ver, é o Savoj Zizek; no Brasil, posso citar rapidamente Paulo Arantes e Vladimir Safatle, entre outros, de modo que me considero muito bem acompanhada.

2) O título do livro, O Tempo e o cão, refere-se diretamente a uma experiência, que imagino um tanto traumática, de atropelar um cachorro na estrada. Gostaria que explicasse como elaborou esse incidente no sentido de uma percepção das relações entre a depressão e a temporalidade.

Foi um acidente de pequena importância até mesmo para o cão, que consegui não matar por sorte. Por pouco, a velocidade normal do tráfego na via Dutra, entre caminhões e ônibus, me obrigaria a passar por cima dele. Se em vez de um cão fosse uma criança seria impensável não frear, mas teria provocado um acidente de proporções tremendas. Qual a novidade disso? Sabemos que a velocidade regular de nossa vida cotidiana é brutal; estamos habituados a ela. Mas o incidente na estrada me fez pensar nos efeitos subjetivos da aceleração da vida contemporânea. Na época andava lendo Benjamin, para quem a atividade contínua de “aparar os choques” da vida moderna (repare que ele escrevia sobre Paris no final do XIX) é incompatível com a dimensão da experiência e está entre as causas do que ele chama de melancolia. Comecei a pensar no livro por aí.

3) São interessantes as suas objeções sobre o uso intensivo dos medicamentos no tratamento psiquiátrico das depressões. A doutrina da “eficácia contemporânea” passa necessariamente pela medicalização desse sintoma?

Eu não condeno em bloco o uso dos antidepressivos. Sei que muitas pessoas dependem de medicação até para sair de casa e chegar ao analista. Os antidepressivos podem salvar vidas. Minha crítica refere-se ao uso indiscriminado de medicamento como tentativa de apagamento do sujeito do inconsciente, segundo a lógica de que o valor da vida se mede pela eficiência. Os efeitos dessa aliança sobre o modo como as pessoas tentam suprimir as próprias crises normais da existência com medicamentos, a meu ver, incluem-se entre as causas do aumento das depressões no século XXI.

4) De que maneira isso também pode ser interpretado como uma conivência entre a psiquiatria e o interesse econômico dos laboratórios?

Este é um fato objetivo. A pressão dos laboratórios sobre os psiquiatras, a presença maciça das grandes marcas de medicamentos a financiar congressos de psiquiatria, o prestígio dos medicamentos de última geração, em relação aos quais os psiquiatras temem ficar desatualizados e perder clientela, etc. A psiquiatria hoje está tão atrelada às descobertas da indústria farmacêutica que, de acordo com alguns críticos da área, a produção de um pensamento teórico sobre as doenças mentais reduziu-se a zero. Virou uma “psiquiatria veterinária”, na expressão do psicanalista André Green. Mas há importantes exceções a este estado de coisas; não são poucos os psiquiatras que indicam que a medicação deva ser acompanhada de alguma forma de terapia da palavra.

5) De qualquer forma, o que parece contar mesmo é a “aceleração do tempo” contemporâneo. Ponho entre aspas porque o tempo não acelera e sim a nossa percepção dele. Você associa esse fenômeno às novas tecnologias, ao chamado “turbocapitalismo”? Estes fenômenos predispõem à depressão?

Você tem toda a razão, não é o tempo que acelera, somos nós. Aliás, o que é o tempo? A leitura de Henry Bergson me foi de grande valia para pensar nessa questão. A impressão que se tem, desde a revolução industrial, é que o tempo em sua dimensão cronológica vem se acelerando de uma forma exasperante. Quanto mais tentamos aproveitar o tempo, quanto mais dispomos das horas e dos dias segundo a convicção de que “tempo é dinheiro”, mais sofremos do sentimento de desperdiçar a vida. Você já reparou que depois de uma semana muito corrida, com a agenda repleta de compromissos, tem-se a impressão de que o tempo voou e nada aconteceu? O que me preocupa é que na tentativa de fazer render o tempo desde o começo da vida, hoje, os pais de classe média e alta começam a educar seus filhos segundo o mesmo princípio da agenda cheia. Algumas dessas crianças cheias de compromissos tornam-se insatisfeitas, dependentes de estimulação externa, incapazes de devanear e inventar brincadeiras quando estão desocupadas.

6) Achei interessante (e alarmante) a questão das mães ansiosas, que não conseguem dar aos filhos o seu devido tempo e mantêm uma expectativa alta em seu desempenho. Em que medida isso afeta a criança e a predispõe à depressão? A posição (enfraquecida) dos pais também chama a atenção. De que maneira a família nuclear parece se desagregar atualmente por força das exigências sociais crescentes?

Essa pergunta são duas, certo? A ansiedade materna, bem antes de se manifestar como expectativa pelo desempenho da criança, tem a ver com a pressa em mantê-la sempre satisfeita. Mas a melhor forma de amar uma criança não é impedir que ela conheça a falta: a falta é constitutiva do aparelho psíquico. Ela não pode faltar! A criança começa a virar gente (sujeito) ao inventar recursos simbólicos para lidar com o vazio e a insatisfação. Ora, a sociedade em que vivemos é regida por essa espécie de imperativo kantiano às avessas: goze. Que dizer da obrigatoriedade do gozo? Ela só não é mais danosa porque é impossível de cumprir. Aqui entra sua segunda questão: os chamados pais enfraquecidos são exatamente os que vivem em dívida com a satisfação de seus filhos. Difícil encontrar algum ideal tão inquestionável quanto o prazer. Mesmo os pais que não desconhecem a função de colocar limites aos excessos de suas crianças, não encontram outros ideais para transmitir a elas.

7) De certa forma, a modernidade pode ser vista como uma patologia do tempo, que atingiu um ponto insuportável de aceleração. Acredita que esse fator pode produzir outros sintomas psíquicos além da depressão?

Certamente sim: as drogadições, por exemplo, não seriam sintomas da urgência em gozar que comanda a vida contemporânea? E a violência banalizada nas grandes cidades, não seria um sinal do encolhimento da capacidade de negociar conflitos em função dessa mesma urgência?

8) Você acredita que um estudo psicanalítico desse tipo funciona também como uma crítica ao capitalismo contemporâneo, ao consumismo, à reificação crescente, etc?

Espero que sim, ainda que as críticas jamais tenham tido o poder de derrubar o capitalismo. O que o derrubará, algum dia, serão as condições materiais concretas produzidas por suas próprias contradições. Nossa: agora falei como uma cartilha. Mas penso que a produção do pensamento crítico é um importante dispositivo contra o conformismo, o sentimento fatalista de que está “tudo dominado”, de que o capitalismo conseguiu anular todas as visões de mundo diferentes dele. A crítica é um “veneno antimelancolia”, no sentido benjaminiano da “indolência do coração” que caracteriza a atitude fatalista.

9) Já detectou em sua clínica alguma repercussão da atual crise econômica mundial? Acha que ela contribuirá para produzir mais depressivos ou ao contrário, pode produzir uma conscientização crítica do modelo atual?

No meu consultório, casualmente, não. Pode ser questão de tempo. Quanto à crise atual provocar ainda mais depressões, respondo que sim, no que concerne ao desemprego, ao desamparo, à desesperança dos que são chutados para fora do sistema produtivo como seres supérfluos. E por outro lado, não: o abalo do pensamento único que correspondia ao triunfo da concentração do capital financeiro poderá ter interessantes efeitos antidepressivos. Somos novamente convocados a pensar, fazer projetos coletivos, resgatar esperanças em outra ordem mais justa que esta que causou o desastre. O singular, o modesto, o pequeno, poderão retomar seu trabalho nas brechas do grandioso, do monumental, do “dinheiro que apenas se olha” (Débord). Os movimentos sociais poderão se revitalizar; as pessoas poderão reinventar a ação política e deixar de se sentir supérfluas. Quem sabe o fatalismo melancólico deixe de dominar a subjetividade?

10) Você acha que a proliferação de manuais de auto-ajuda, de receitas de felicidade, tem algo a ver com a “felicidade obrigatória” que essa sociedade do desempenho nos prescreve?

Concordo com você. Mas respeito aqueles que, na falta de outros recursos, buscam nesses livros caminhos para sair da depressão. Ocorre que o ideal de felicidade, que no século XVIII nos libertou do conformismo religioso, hoje se tornou opressivo. Virou uma sub-ideologia da sociedade de consumo. Ora, a felicidade não é uma mercadoria que se possua. Não é uma conquista do ego; ela não para quieta, não nos garante nada. As pessoas sentem-se culpadas por não possuir a tal felicidade, o que os torna ainda mais infelizes. Prefiro, com Oswald de Andrade, deixar de lado a felicidade e apostar na prova dos nove da alegria.

11) Por fim, como você vê a possibilidade de diminuir o sofrimento do depressivo, sem alterar as condições sociais que com ele se relacionam?

Você me permite esclarecer um ponto importante. A idéia de que a depressão seja um sintoma social não significa que os depressivos devam ser tratados como casos sociológicos. Os depressivos devem ser escutados, como todos os que buscam a psicanálise, um a um. Assim, em sua singularidade irredutível, deve ser conduzida a análise dos depressivos – que passa, necessariamente, pela reversão da forma como cada um deles se deixou alienar (como todo sujeito, aliás) pelas formações hegemônicas do imaginário social.

Obrigada pelas excelentes perguntas.

http://www.mariaritakehl.psc.br/

Friday, August 07, 2009

Lacan
Vladimir Safatle

Introdução

"Bastam dez anos para que o que escrevo se torne claro a todos." Com essas palavras, Jacques Lacan (1901-81) encerrava em 1971 uma rara entrevista dada à televisão francesa. Mais de 35 anos se passaram e não podemos dizer que sua premonição tenha se realizado, embora ela contenha algo de verdadeiro. Pois mesmo que Lacan ainda seja um autor cujo estilo elíptico desconcerta e afasta, é certo que sua importância intelectual foi paulatinamente sendo reconhecida.

Não se trata apenas de insistir aqui na relevância de suas posições no debate sobre a clínica psicanalítica nas últimas décadas. Trata-se de sublinhar como Lacan também se tornou um interlocutor privilegiado em reflexões contemporâneas sobre filosofia, teoria literária, crítica de arte, política e teoria social. Neste sentido, ele talvez tenha sido o único psicanalista, juntamente com Sigmund Freud (1856-1939), capaz de transformar sua obra em passagem obrigatória para aqueles cujas preocupações não se restringem apenas à clínica, mas dizem respeito a um campo amplo de produções socioculturais vinculadas aos modos de auto compreensão do presente com suas expectativas e impasses.

No entanto, isto só foi possível porque sua noção de clínica sempre guardou uma série de peculiaridades, mesmo conservando os dois princípios fundamentais para a constituição da práxis analítica desde Freud, a saber, ser radicalmente desmedicalizada e reduzir o campo de intervenção à dimensão da relação psicanalista-paciente. Começar lembrando alguns pressupostos da clínica lacaniana talvez seja uma boa estratégia para introduzir o sentido de sua experiência intelectual, assim como explicar as causas de sua ampla recepção. Uma estratégia ainda mais relevante se levarmos em conta que vivemos em uma época que assiste sucessivas tentativas de desqualificação pura e simples da racionalidade da clínica psicanalítica.

A partir dos anos 80 e principalmente depois da década de 1990, parecia consensual a noção de que a psicanálise entrara em "crise". Ultrapassada pelo avanço de novas gerações de antidepressivos, ansiolíticos, neurolépticos e afins, a psicanálise foi vista por muitos como uma prática terapêutica longa, cara, com resultados duvidosos e sem fundamentação epistemológica clara. Muitas vezes, psicanalistas foram descritos como irresponsáveis por não compreenderem, por exemplo, que patologias como ansiedade e depressão seriam resultados de distúrbios orgânicos e nada teriam a ver com noções "fluidas" como "posição subjetiva frente ao desejo".

Por sua vez, a insistência em continuar operando com grandes estruturas nosográficas (relativas à descrição ou explicação das doenças), como histeria, neurose, perversão ou melancolia, parecia resultado de um autismo conceitual que impedia a psicanálise de compreender os avanços do DSM III na catalogação científica das ditas afecções mentais com suas "síndromes" e "transtornos" relacionados a órgãos ou funções mentais específicos.

Nesse contexto, a noção de cura de afecções e patologias mentais parecia enfim encontrar um solo seguro. O desenvolvimento das ciências cognitivas, em especial das neurociências, teria permitido certa redução materialista capaz de demonstrar como todo estado mental (crenças, desejos, sentimentos etc.) seria apenas uma maneira "metafórica" de descrever estados cerebrais (configurações neuronais) cuja realidade é física. Com isso, estavam abertas as portas para que a própria noção de doença mental pudesse ser tratada como distúrbio fisiologicamente localizável, ou seja, como aquilo que se submete diretamente à medicalização.

A clínica, por ter sua racionalidade submetida a uma fisiologia elaborada, poderia, a partir de então, aparecer como o setor aplicado de uma farmacologia. Lacan, desde sua tese de doutorado em psiquiatria, de 1932, insistia na inadequação de perspectivas fundadas nessas reduções materialistas dos fenômenos mentais. É a consciência dessa inadequação que o levará a assumir a carreira de psicanalista.

Tal consciência o levará também a tentar reconstruir os padrões fundamentais de racionalidade das práticas clínicas, através da defesa de um conceito de sujeito não redutível a qualquer forma de materialismo neuronal. Ou seja, quando Lacan decide-se pela psicanálise, logo após a defesa de sua tese em psiquiatria, ele já tem um problema armado que, a partir de então, guiará sua experiência intelectual. Um problema que guarda estranha atualidade, se levarmos em conta os desenvolvimentos posteriores da psiquiatria em direção a uma reconstituição de suas práticas a partir da farmacologia.

É verdade que a clínica e a teoria lacanianas serão radicalmente modificadas ao longo dos anos. Mas nada entenderemos do sentido dessas modificações se não tivermos uma noção clara do processo de desenvolvimento do pensamento lacaniano desde seu início. Assim, vale a pena descrever esses primeiros passos, a fim de identificar a razão pela qual suas reflexões clínicas se transformaram em referência maior para as estratégias de autocompreensão do presente. Tais considerações servem ainda como resposta à questão sobre como começar a ler sua obra. Por mais estranho que possa parecer, devemos começar a ler Lacan pelo começo.

Nada melhor do que seguir o desenvolvimento cronológico de sua experiência intelectual a fim de determinar o processo de formação de seus conceitos e problemas. Embora sua obra vá modificando paulatinamente o campo de interlocuções, as estratégias de problematização e o estilo de sua escrita, é inegável o esforço lacaniano em integrar desenvolvimentos recentes de seu pensamento a elaborações mais antigas. Esse é um ponto importante, porque a recorrência de certas questões é o que dá unidade a uma verdadeira experiência intelectual. Nesse sentido, devemos sempre nos perguntar: quais são as questões fundamentais que animam a trajetória lacaniana? Uma delas, sem dúvida, é a crítica à aplicação de um materialismo reducionista às clínicas dos fatos mentais.

Lacan
Autor: Vladimir Safatle
Editora: Publifolha
Páginas: 96
Quanto: R$ 18,90
Onde comprar: nas principais livrarias, pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Publifolha

Thursday, August 06, 2009

Comigo me desavim

Comigo me desavim,
Sou posto em todo perigo;
Não posso viver comigo
Nem posso fugir de mim.

Com dor, da gente fugia,
Antes que esta assim crescesse:
Agora já fugiria
De mim, se de mim pudesse.
Que meio espero ou que fim
Do vão trabalho que sigo,
Pois que trago a mim comigo
Tamanho imigo de mim?

Francisco Sá de Miranda (1481-1558)

Wednesday, August 05, 2009

Vida Loka II




Vida Loka

Seekin' The Cause by Miguel Piñero

he was dead
he never lived
he died
he died
he died seekin' the cause
because he said he never saw the cause
but he heard the cause
heard the cryin' of hungry ghetto children
heard the warnin' from malcolm
heard the tractors pave new routes to new prisons
he died seekin' the cause
seekin' a cause
he was already dead
he never really lived...
uptown... downtown... crosstown
his body was found all over town
seekin' the cause
thinkin' the cause was 75 dollars & gator shoes
thinkin' the cause was sellin' the white lady to black children
thinkin' the cause is to be found in gypsy rose or j. b.
and singin' du-wops in the park after some cheeba-cheeba
he died...
he died seekin' the cause
and the cause was dyin' seekin' him
and the cause was dyin' seekin' him
and the cause was dyin' seekin' him
he wanted a color t. v.
wanted a silk on silk suit
he wanted the cause to come up like the mets & take the world series
he wanted... he wanted... he wanted...
he wanted to want more wants
but he never gave he never gave
he never gave his love to his children
he never gave his heart to his people
& never did
he ever give his soul to his people
he never gave his soul to his people because
he was busy seekin' a cause
busy
busy perfectin' his voice to harmonize the national anthem
with spiro t agnew
busy perfectin' his jive talk so that his flunkiness wouldn't show
busy perfectin' his viva-la-policia speech...
downtown... uptown... midtown... crosstown
his body was found all over town






found in the potter fields of an o. d.
found in the bowery with the d. d. t.'s
his legs were left in vietnam
his arms were found in sing sing
his scalp was on nixon's belt
his blood painted the streets of the ghetto
his eyes were still lookin' for jesus to come down on some cloud
& make everything ok
when jesus died in attica
his brains plastered all around the frames of the pentagon
his voice still yellin' stars & stripes 4 ever riddled with the police bullets
his taxes bought
he died seekin' the cause
died seekin' a cause
he died yesterday
he's dyin' today
he's dead tomorrow
he died seekin' the cause
& the cause
was in front of him
& the cause was in his speech
& the cause was in his skin
& the cause was in his blood
but he died seekin' the cause
seekin' a cause
he died deaf, dumb & blind
he died & never found his cause
because, you see, he never
never knew
that he was the cause.

http://yamenat.blogspot.com/2007_08_01_archive.html

Tarot

O que decide, durante o atravessamento do complexo de Édipo, a saída pela depressão (crônica) para alguns sujeitos neuróticos? O que foi que o pequeno sujeito deixou de levar a cabo, em sua constituição, para ter se tornado, antes de um histérico ou de um obssessivo, um depressivo?

Entendo que a posição do depressivo decorre de uma escolha, no sentido freudiano de "escolha das neuroses", que se dá no momento em que o pai imaginário se apresenta como rival da criança, no segundo tempo do atravessamento do complexo de Édipo. A escolha precoce do futuro depressivo seria a de se retirar do campo da rivalidade fálica: em vez de disputar o falo com o pai (e perder para ele...), o depressivo defende-se mal da castração - a qual, nesse ponto da constituição do sujeito, já terá ocorrido, a partir do momento em que o discurso da mãe indica à criança o lugar que o pai ocupa diante do desejo dela. Ocorre que o futuro depressivo se detém a meio caminho do percurso em que os histéricos e obssessivos definem sua posição fantasmática: ao invés de enfrentar a rivalidade fálica, na tentativa de reverter os efeitos da perda que já ocorreu, os depressivos "escolhem" permanecer na condição de castrados. Isso não significa que tenham simbolizado a castração. Tampouco se trata das versões imaginárias da castração entendida como privação ou frustração, e sim de abster-se da reivindicação fálica, colocando-se sob o abrigo da castração infantil. Isso não significa que não existam paixões de rivalidade nos depressivos. Se eles recuam, é porque não admitem o risco da derrota nem a possibilidade de um segundo lugar. Ao colocar-se ante a exigência de "tudo ou nada", acabam por instalar-se do lado do nada.

O depressivo não enfrenta o pai. Sua estratégia é oferecer-se como objeto inofensivo, ou indefeso, à proteção da mãe. O gozo dessa posição protegida custa ao sujeito o preço da impotência, do abatimento e da inapetência para os desafios que a vida virá lhe apresentar. Além disso, existe um engodo nesse ato de oferecer-se como indefeso e dependente da proteção do Outro: ao apresentar-se como alheio aos enfrentamentos com o falo, o depressivo não desenvolve recursos para se proteger da ameaça de ser tomado como objeto passivo da satisfação de uma mãe que se compraz com o exercício de sua potência diante da criança fragilizada. Esse lugar, de objeto passivo dos cuidados maternos, não equivale ao lugar do pai como aquele que faz a lei para o desejo da mãe no plano erótico; o depressivo, insisto, é um sujeito castrado.

Maria Rita Kehl - Depressão, temporalidade, sintoma social - O Tempo e o cão: a atualidade das depressões

Tuesday, August 04, 2009

Monday, August 03, 2009

7169063 Hannah Arendt Trabalho Obra Acao



Tradução de Adriano Correia
Revisão de Theresa Calvet de Magalhães

Resumo: Em meados da década de 1960, quando a relevância do pensamento para a moralidade se convertia em uma das preocupações centrais de Hannah Arendt, ela retoma, no texto aqui traduzido, sua inusitada distinção entre as atividades fundamentais do trabalho, da obra e da ação. Partindo da questão “em que consiste uma vida ativa?”, ela revisita e repõe suas análises de A Condição Humana, ocupando-se novamente com as implicações das inversões hierárquicas entre estas atividades para a vida, para o mundo e, principalmente, para a pluralidade humana. No mesmo sentido, ela examina os princípios que orientam as atividades do animal laborans, do homo faber e do homem de ação, assim como seu significado para a afirmação da liberdade humana e da dignidade da política. Para Hannah Arendt, este é o ponto de partida para pensar sobre o que estamos fazendo.

Sunday, August 02, 2009

O Ciúme
Caetano Veloso

Dorme o sol à flor do Chico, meio-dia
Tudo esbarra embriagado de seu lume
Dorme ponte, Pernambuco, Rio, Bahia
vigia um ponto negro: o meu ciúme

O ciúme lançou sua flecha preta
E se viu ferido justo na garganta
Quem nem alegre, nem triste, nem poeta
Entre Petrolina e Juazeiro canta

Velho Chico, vens de Minas
De onde o oculto do mistério se escondeu
Sei que o levas todo em ti
Não me ensinas
E eu sou só eu só eu só eu

Juazeiro, nem te lembras dessa tarde
Petrolina, nem chegaste a perceber
Mas na voz que canta tudo ainda arde
Tudo é perda, tudo quer buscar, cadê?

Tanta gente canta
Tanta gente cala
Tantas almas esticadas no curtume
Sobre toda estrada, sobre toda sala
Paira monstruosa
A sombra do ciúme

http://www.caetanoveloso.com.br/index.php

Saturday, August 01, 2009