Thursday, December 31, 2009

"O terrorista que atua sozinho é a nova ameaça"
El País

Fernando Peinado (em Madri)


Lorenzo Vidino, professor especializado em terrorismo e islamismo político na Universidade Harvard (EUA), visitou recentemente Madri para participar de um seminário sobre terrorismo organizado pela Fundação Ortega y Gasset e a Embaixada dos EUA, e aceitou dar esta entrevista por telefone, sobre as perguntas levantadas pelo atentado frustrado na sexta-feira no voo de Detroit.

El País: Que lição as agências de inteligência podem tirar dessa última tentativa terrorista?

Lorenzo Vidino: A estratégia dos jihadistas evoluiu para um novo tipo de terrorismo muito mais difícil de perseguir e interceptar, como demonstra não só esse último caso, mas também o do soldado da base militar norte-americana de Fort Hood, que matou 13 companheiros, e soube-se que havia tido relação com um imame radical. Também houve outros precedentes na Itália ou nos EUA. É o que se denominou ataque de um lobo solitário. Os membros das células são muito mais independentes hoje. Em alguns casos são preparados no manejo de explosivos pela internet, eles mesmos escolhem os alvos e atuam de modo individual. É mais difícil detectar em um aeroporto um único terrorista do que um grupo de 20. Essa nova estratégia foi a reação dos terroristas aos melhores controles de inteligência, e questionam se a estrutura clássica da Al Qaeda ficou obsoleta.

El País: O que os serviços de inteligência podem fazer contra um lobo solitário?

Vidino: É muito mais complexo. É mais difícil descobrir seus propósitos, porque deixa menos rastros. O FBI recorre à estratégia do agente provocador. Uma vez localizado um simpatizante do jihadismo nos bate-papos ou fóruns da internet, um agente se faz passar por um membro da Al Qaeda e o empurra a atuar. Nos últimos meses foram presos dessa forma dois indivíduos que pretendiam atentar contra edifícios federais em Illinois e no Texas. É um método muito polêmico e de legalidade duvidosa na Europa. Além disso, é uma questão de até onde estamos dispostos a reduzir a liberdade de expressão.

El País: O terrorista de Detroit não tinha o perfil de excluído social. Há quem acredite agora que o esforço de integração não serve para conter o jihadismo.

Vidino: Não é verdade. É algo mais complexo. A integração das comunidades muçulmanas é uma peça do quebra-cabeça, mas não uma solução milagrosa. É menos provável que pessoas melhor integradas economicamente e que se sentem parte da sociedade aceitem as mensagens dos radicais.

El País: O Iêmen é o cenário da nova guerra de Obama?

Vidino: Não teria sentido lançar uma nova invasão. Essas redes têm a seu alcance outros santuários alternativos, como a Somália ou o Magreb. Em curto prazo, o mais realista a que podemos aspirar é fortalecer a autoridade desses governos para que realizem operações policiais com êxito.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/elpais/2009/12/31/ult581u3736.jhtm

Wednesday, December 30, 2009

http://www.overmundo.com.br/perfis/eduardo-ferreira

Vitória (ES) foi palco do primeiro Festival de Música Livre promovido pelo movimento Música Para Baixar (MPB) no último mês de 2009. Integrado ao IIº Fórum Nacional de Mídia Livre, abriu a série de festivais livres de música que propõe realizar pelas diversas regiões do país a partir de agora.

Sob o signo da(e) VITÓRIA – onde o espírito é santo e forte.

MPB realizou um festival muito interessante com a cara dos muitos sons brasis que pipocam em todos os cantos desse quase continente: som de todo lado, pra tudo que é lado, eletrônico, cancioneiro, rockenrrol, experimental, sons macalés, enfim, jardas e jards, se alargando pelo tempo espaço, cronológico, geográfico, ritmado pelos diversos corações que bombam esperança de transformar o estado das coisas e cantar cantar cantar. A música pede passagem e entra sem pedir licença.

Uma programação eclética múltipla e aberta como veias pulsantes deu o tom nessa f(r)esta que abre para visões de futuros promissores na cena cultural brasileira. Cheguei a imaginar e comentar com alguns amigos que somos o resto ou o que restou na cena musical atual, para fazer a festa, de quem não tem medo de mostrar a cara, a cara do Brasil que temos e que queremos com toda essa multiplicidade orgânica. Som de traveco, som de homo, som de mulher, som de homem, som de viralata, som trepax, som de serraria, som do sol, futuro e gargantas afinadas, bongs instrumentais, aqui e agora. Frutos do grande ócio vivo e criativo.

Sob uma velha lona estrelada ao modo dos velhos circos os neo nômades estão provocando a nova (des)ordem. Furiosos como pássaros ruidosos na manhã tropical. Em busca dos descentros perdidos. Ligados aos movimentos sociais essa turma está formando uma baita rede de artistas, produtores culturais e de comunicação, livres, que, juntos, criam suas próprias formas de interagir com a sociedade. Ligados aos movimentos de apropriação tecnológica do software livre, dos ativistas das rádios comunitárias, dos midialivristas, de músicos de todos os tons, a idéia é continuar fazendo eventos musicais fora de gênero, ou para todos os gêneros, festivos e reflexivos, flexíveis, abertos como braços, disponíveis para o abraço.

Não há tempo para vacilar, tudo urge e surge como possibilidade de avançar sobre os espaços vazios onde a política tradicional está perecendo pela falta de conexão com os movimentos que a sociedade vem modulando. É animador e é preciso animação para que a política se conecte com as novas emergências. Sou crítico desses eventos e fóruns e conferências que reproduzem formatos antiquados na forma e formulação dos debates. É preciso mexer nas estruturas estanques que se modelam a partir dos velhos parlamentos. É preciso pulverizar esses centros de decisões que manipulam grotescamente em nome de uma maioria mínima, infeliz e burocrática demais. Nossos pares ainda mantêm resquícios tradicionais nos modelos de debates, engessando todo mundo na idéia de organização, de disciplina, de “questões de ordem”, por que não “questões de desordem” (??) , creio que não dá para reformar o que está podre. Fico aqui, tentando imaginar outras formas de debater, mais quentes, mais viscerais, em espaços livres.

Salve salve os vitoriosos puxadores desse evento, salve Fabrício Noronha, salve Vitorlop, salve Malini! Viva o povo brasileiro. Abaixo a hipocrisia, abaixo a política como balcão de negócios ou balcão de negócios norteando a política.

Tá na hora de saltar os trilhos, mudar de estação e levar a música no coração. (diz assim uma certa canção).

Salve a morte do pop star para o (re)nascimento do common star ou do (e)star comum.

Sensacional o seminário a morte do pop star invenção e morte. Vida severina, somos os zés falantes. Mané não, que a gente não é otário. Tá mais pra útero, nervoso para nascer.

Com participação de vários tipos representativos do Brasil contemporâneo, como Pedro Alexandre Sanches, Edson Natale, Gustavo Anitelli, Pablo Capilé & outros companheiros, mediados pelo grande Irajá Menezes, os debates foram bastante acalorados e elucidativos de um momento histórico ímpar e extremamente dinâmico na formulação de vias múltiplas para um novo cenário na música brasileira. Apesar do formato anacrônico.

Emblemático e polêmico o tema do seminário do 1º Festival livre do MPB - “a morte do pop star”, foi uma bela forma de provocação, um convite à reflexão sobre o momento que vivemos de legitimação de outras vias, muito mais livres, e por isso mesmo repletas de possibilidades novas de construir sua própria história de sucesso. Pensei comigo, antes, na velha lógica, a construção ou a invenção de um pop star significava a morte de milhares de candidatos ao estrelato, hoje, cada pop star morto representa a possibilidade de nascimento de milhares de outros stars, sem guerras estelares, convivendo constelacionalmente, nuvens de artistas populares, de grandeza para grandeza nas diferentes escalas cósmicas.

Yes, nós temos tecnologia, bananas pra vocês. Somos livres para fazer nosso próprio negócio e vocês não tem nada com isso.

O Música Para Baixar é um movimento que pretende refletir e agir duramente na vanguarda dos processos de produção, distribuição e autonomia na forma de licenciamento, bem como de forma(s) transparente(s) de arrecadação e distribuição daquilo que é de direito de autores e intérpretes. Para esses novos modelos de negócios e domínios, é fundamental a liberdade de compartilhar os mais diversos conteúdos criativos, no caso aqui, a música. A internet, incontrolável, como uma rede aberta é o foco das discussões nesse momento. Como legalizar as relações entre autor e direito sobre a obra, como contemplar autores, como arrecadar e distribuir, como criar mecanismos de controle, como regular esse desterritório?

São muitas as questões e formulações e são muitos também os casos de artistas ou produtores que já encontraram maneiras originais de faturar, ou de como monetizar seu trabalho, sua obra. Interessante observar que os caras que hoje estão com medo de perder, têm medo de perder o que nunca tiveram, pois quem sempre ganhou com a velha lógica do mercado concentrador foram as gravadoras e editoras, o autor sempre levou a menor fatia. Hoje a relação é inversa, a maior fatia pode e deve ficar com os autores, ou estruturas coletivas, que estão se formando em torno dessas novas maneiras de produção e compartilhamento de suas criações. Os ventos mudaram de rumo e isso é animador.

Não há limites para os nós.

Temas novos permeiam a movimentação dos integrantes do movimento Música Para Baixar que estão ocupando espaços regionais importantes para efetivar a idéia do descentro – da produção efetiva de vários centros, cada centro no seu lugar, deslocando eixos e hegemonias, produzindo outras territorialidades ou nós das muitas redes que se proliferam e transversalizam de forma constante. Depois da conectividade acionada não há como retornar.

Claro que isso tem deixado muita gente desconfiada e assustada, mas acredite, esse desconforto que a novidade carrega é saudável e muito promissor. É nos momentos de tensão que nossa criatividade se manifesta de forma mais visceral e vibrante, é quando os humanos mais potencializam sua CRIA-tividade. O momento é bastante fértil e isso é muito bom. Afinal só uns poucos estavam satisfeitos, agora não, a escala é muito maior, muito mais gente criando e consumindo, você tem que se virar e achar seu jeito, não tem volta, nem modelos prontos e acabados. Corte cole recorte copie troque doe receba. Doe sem dó.






Menina bonita é um céu azul
É um colírio, é um mar de rosas

Tuesday, December 29, 2009

Ókei, claro, se todas as pistolas têm silenciador, num ficcionista do porte do Fonseca, é claro que isso quer dizer alguma coisa! No mínimo o silêncio com que a violência é praticada (sim, o silêncio da ditadura nos anos de chumbo, o silêncio que ressoa do submundo, o silêncio). Fonseca é um estilista. Os personagens que são ao mesmo tempo narrador é um achado; permite a inverossimilhança do Especialista citar Horácio no original. Permite a ironia distanciada de usar citação "carne-de-vaca". Permite, mais, o ir e vir de uma consciência aguda da situação em que se encontra. Atenção de ninja, parecem ter todos os assassinos de Rubem Fonseca. Oniscientes de tão despertos, de tão atentos. Mas não resolve. Tem um maneirismo esvaziado neste enésimo matador de aluguel. Todos são assim. Há 40 anos!
a

Aí, anda daqui, zanza pracolá, enquanto adentro sites afora, esbarro num trecho do livro novo do Rubem Fonseca, O Seminarista:

“Sou conhecido como o Especialista, contratado para serviços específicos. O Despachante diz quem é o freguês, me dá as coordenadas e eu faço o serviço. Antes de entrar no que interessa – Kirsten, Ziff, D.S., Sangue de Boi – eu vou contar como foram alguns dos meus serviços.
O último foi na véspera do Natal. O Despachante deu-me um endereço e disse onde encontrar o freguês, que estava dando uma festa para um monte de gente. Bastava chegar com um embrulho de papel colorido que eu entrava na casa. O Despachante era um cara magro e alto, muito branco, louro, e estava sempre de terno preto, camisa branca, gravata e óculos escuros. Ele me pagava bem.
‘O freguês está vestido de Papai Noel e tem uma berruga no rosto ao lado direito do nariz’.
Sempre odiei, desde criança, esses papais-noéis fazendo Ô! Ô! Ô! Sei que o ódio é um surto de insanidade, como disse Horácio, Ira furor brevis est, mas ninguém está livre dele. Vesti uma roupa alinhada, peguei uma caixa vazia e fiz um enorme embrulho de presente. Coloquei sob a camisa a minha Beretta com silenciador e toquei a campainha da casa do freguês.
Por sorte minha quem abriu a porta foi o Papai Noel. ‘Entra, entra’, ele disse, ‘feliz Natal!’
‘Faz Ô! Ô! Ô! pra mim’, pedi, enquanto constatava a berruga ao lado do nariz.
‘Ô! Ô! Ô!’, ele fez. Dei um tiro na sua cabeça. Sempre dou um tiro na cabeça. Com esses coletes novos à prova de bala, aquela técnica de atirar no terceiro botão da camisa para furar o coração pode não funcionar.”

É um belo texto! Coeso, denso de camadas sobrepostas. Ninguém tem nome, só função. A frieza burocrática, com que o assassino conduz a tarefa. A estranheza grotesca, bizarra, dos detalhes: roupa de Papai Noel, berruga, o papel de presente, a Beretta com silenciador, tudo nivelado na planura da atitude de prestador de serviço; a vítima é o "freguês". A reflexão auto-crítica inspirada pela frase em latim, o humor de ‘Faz Ô! Ô! Ô! pra mim’... o ódio que circula nas veias da situação, guardado em lugares remotos, saboreado frio, ao mesmo tempo destemperado e sem tempero, a rede que conecta os personagens, quer por suas ligações hierárquicas de contratante e contratado, seja por suas causas e efeitos sociológicas num cenário dividido entre pobres e ricos, inseridos e desajustados... um belo texto. Mas o mesmo de 40 anos atrás!!! Todos estes recursos aparecem ao longo da obra de Rubem Fonseca. Muitas vezes. Muito parecido. A sensação de maneirismo, presente desde sempre, desta vez me pareceu insuportável.

Abri lentamente a porta do banheiro com o cano do silenciador.
Meu cliente estava deitado na banheira, com água até o pescoço. Me viu quando entrei, e deu um suspiro. Eu devia atirar logo, mas não atirei.
Vai perder o carreto, ele disse, com sotaque de português. Começou a tirar um dos braços de dentro da água.
Devagar, eu disse, apontando a pistola para a cabeça dele.
Ele me mostrou o pulso, sangue escorrendo. A água não estava muito vermelha. Uma gilete brilhava no chão de azulejo. Sentei no banco ao lado da banheira.
Me mostra o outro braço, pedi.
Também tinha o pulso cortado.

A Confraria dos Espadas - 1998

Seu Maurício, o senhor quer se levantar, por favor?
Ele se levantou. Desamarrei os braços dele.
Muito obrigado, ele disse. Vê-se que o senhor é um homem educado, instruído. Os senhores podem ir embora, que não daremos queixa à polícia. Ele disse isso olhando para os outros, que estavam quietos apavorados no chão, e fazendo um gesto com as mãos abertas, como quem diz, calma minha gente, já levei este bunda suja no papo.

Inocêncio, você já acabou de comer? Me traz uma perna de peru dessas aí. Em cima de uma mesa tinha comida que dava para alimentar um presídio inteiro. Comi a perna de peru. Apanhei a carabina doze e carreguei os dois canos.
Seu Maurício, quer fazer o favor de chegar perto da parede? Ele se encostou na parede. Encostado não, não, uns dois metros de distância. Mais um pouquinho para cá. Aí. Muito obrigado.
Atirei bem no meio do peito dele, esvaziando os dois canos, aquele tremendo trovão. O impacto jogou o cara com força contra a parede. Ele foi escorregando lentamente e ficou sentado no chão. No peito dele tinha um buraco que dava para colocar um panetone.

Feliz Ano Novo - 1975

Me irritam esses sujeitos de Mercedes. A buzina do carro também me aporrinha. Ontem de noite eu fui ver o cara que tinha uma Magnum com silenciador para vender na Cruzada, e quando atravessava a rua um sujeito que tinha ido jogar tênis num daqueles clubes bacanas que tem por ali tocou a buzina. Eu vinha distraído pois estava pensando na Magnum, quando a buzina tocou. Vi que o carro vinha devagar e fiquei parado na frente.
Como é?, ele gritou.
Era de noite e não tinha ninguém perto. Ele estava vestido de branco. Saquei o 38 e atirei no pára-brisa, mais para estrunchar o vidro do que para pegar o sujeito. Ele arrancou com o carro, para me pegar ou fugir, ou as duas coisas. Pulei pro lado, o carro passou, os pneus sibilando no asfalto. Parou logo adiante. Fui até lá. O sujeito estava deitado com a cabeça para trás, a cara e o peito cobertos por milhares de pequeninos estilhaços de vidro. Sangrava muito de um ferimento feio no pescoço e a roupa branca dele já estava toda vermelha.
Girou a cabeça que estava encostada no banco, olhos muito arregalados, pretos, e o branco em volta era azulado leitoso, como uma jabuticaba por dentro. E porque o branco dos olhos dele era azulado eu disse — você vai morrer, ô cara, quer que eu te dê o tiro de misericórdia?

Não, não, ele disse com esforço, por favor.
Vi da janela de um edifício um sujeito me observando. Se escondeu quando olhei. Devia ter ligado para a polícia.
Saí andando calmamente, voltei para a Cruzada. Tinha sido muito bom estraçalhar o pára-brisa do Mercedes. Devia ter dado um tiro na capota e um tiro em cada porta, o lanterneiro ia ter que rebolar.

O Cobrador - 1979


a

O Ovo de Galinha
João Cabral de Melo Neto

O ovo de galinha

I

Ao olho mostra a integridade
de uma coisa num bloco, um ovo.
Numa só matéria, unitária,
maciçamente ovo, num todo.

Sem possuir um dentro e um fora,
tal como as pedras, sem miolo:
é só miolo: o dentro e o fora
integralmente no contorno.

No entanto, se ao olho se mostra
unânime em si mesmo, um ovo,
a mão que o sopesa descobre
que nele há algo suspeitoso:

que seu peso não é o das pedras,
inanimado, frio, goro;
que o seu é um peso morno, túmido,
um peso que é vivo e não morto.

II

O ovo revela o acabamento
a toda mão que o acaricia,
daquelas coisas torneadas
num trabalho de toda a vida.

E que se encontra também noutras
que entretanto mão não fabrica:
nos corais, nos seixos rolados
e em tantas coisas esculpidas

cujas formas simples são obra
de mil inacabáveis lixas
usadas por mãos escultoras
escondidas na água, na brisa.

No entretanto, o ovo, e apesar
de pura forma concluída,
não se situa no final:
está no ponto de partida.

III

A presença de qualquer ovo,
até se a mão não lhe faz nada,
possui o dom de provocar
certa reserva em qualquer sala.

O que é difícil de entender
se se pensa na forma clara
que tem um ovo, e na franqueza
de sua parede caiada.

A reserva que um ovo inspira
é de espécie bastante rara:
é a que se sente ante um revólver
e não se sente ante uma bala.

É a que se sente ante essas coisas
que conservando outras guardadas
ameaçam mais com disparar
do que com a coisa que disparam.

IV

Na manipulação de um ovo
um ritual sempre se observa:
há um jeito recolhido e meio
religioso em quem o leva.

Se pode pretender que o jeito
de quem qualquer ovo carrega
vem da atenção normal de quem
conduz uma coisa repleta.

O ovo porém está fechado
em sua arquitetura hermética
e quem o carrega, sabendo-o,
prossegue na atitude regra:

procede ainda da maneira
entre medrosa e circunspeta,
quase beata, de quem tem
nas mãos a chama de uma vela.

De: MELO NETO, João Cabral de. "Serial (1959-1961)". In: Obra completa. Nova Aguilar. 1995. p.302-304.
A

Do Recife ao Rio, por terra, em 1942

A primeira visita de Cabral ao Rio de Janeiro, ainda como turista, se dá no Carnaval de 1940. A viagem definitiva só é feita dois anos depois. [...] A guerra impede a viagem de navio, pois os alemães estão torpedeando as embarcações brasileiras. A viagem se torna, então, uma aventura. A primeira grande aventura. No Recife, o poeta toma um trem até Maceió. Na capital alagoana pega um ônibus até Penedo, ainda em Alagoas, de onde pega uma barca que desce o São Francisco até Sergipe. Em Aracaju, Cabral vai de trem rumo a Salvador. Na capital baiana, a viagem se complica. O ônibus para Minas sai de Jequié, no sul da Bahia, e não da capital. Tem frequência semanal e há uma partida marcada para o dia seguinte. Cabral está atrasado e resolve procurar o poeta e amigo Odorico Tavares, diretor dos Diários Associados, em busca de socorro. Para sua sorte, Odorico é amigo do prefeito de Jequié e consegue, por meio dele, um pequeno e impressionante favor: que o ônibus adie sua partida para Minas por 24 horas só para esperar por Cabral. O poeta atravessa o Recôncavo Baiano de barca e pega um trem até Jequié. A viagem de ônibus até Montes Claros, em Minas, leva três dias. Em Montes Claros ele toma um trem até Belo Horizonte, onde, por fim, um outro trem o espera para o trajeto final até o Rio de Janeiro. A viagem entre o Recife e o Rio, feita hoje de avião em cerca de três horas, leva, ao todo, 13 dias. Nada o impediria de completá-la.

José Castello - João Cabral de Melo Neto: O Homem Sem Alma

Monday, December 28, 2009

Ela vem chegando
Ela vem chegando
E feliz vou esperando
E feliz vou esperando
A espera é difícil
A espera é difícil
Mas eu espero sonhando
Mas eu espero sonhando

Saiu a melhor biografia de Hannah Arendt

ELIO GASPARI

Nunca o episódio de sua cobertura do julgamento de Adolf Eichmann foi tão bem contado. O tédio lhe fez mal

ESTÁ NA PRAÇA um grande livro com a vida de uma mulher fenomenal num século de tragédias. É "Nos Passos de Hannah Arendt", de Laure Adler. Formada na elite da academia alemã dos anos 20, Arendt tornou-se uma refugiada judia em 1933, viveu na França, fugiu para Lisboa e foi para os Estados Unidos em 1941. Tinha 35 anos. Lia os clássicos enquanto vivia numa dieta de grão de bico e repolho. Em Nova York, tornou-se uma das maiores pensadoras do século 20. Era judia e anti-sionista, encantava um pedaço da esquerda e expunha o totalitarismo soviético. Sua obra é uma busca de explicações para as malvadezas humanas. (No Brasil, onde seus livros circulavam livremente, era freguesa da censura à imprensa dos anos 70.)

Adler, que trabalhou com o presidente francês François Mitterrand, mostra a alma de uma geração. A generosidade de Raymond Aron e a militância nazista, escrachada e oportunista, do filósofo Martin Heidegger (paixão de Arendt). O livro modula suavemente discussões filosóficas. A excelente tradução de Tatiana Salem Levy e Marcelo Jacques assegura uma leitura sem obstáculos.

Hannah Arendt mudou o curso de sua vida em 1961, quando propôs à revista "New Yorker" que a mandasse a Jerusalém para cobrir o julgamento de Adolf Eichmann, o supervisor das deportações do Holocausto. Ele fora seqüestrado por agentes israelenses em Buenos Aires. Numa série de cinco artigos que viraram livro (com algumas alterações), ela criou uma expressão universal: "a banalidade do mal". Arendt evitou a armadilha que explicava tudo a partir da construção de um monstro: "Era difícil não desconfiar que fosse um palhaço". Além disso, foi fundo na condenação das lideranças de sua comunidade na Europa: "Para um judeu, o papel desempenhado pelos líderes judeus na destruição de seu próprio povo é, sem dúvida alguma, o capítulo mais sombrio de toda uma história de sombras".

Nunca esse pedaço da vida de Hannah Arendt foi tão bem contado. A narrativa de Adler mostra que ela foi influenciada pelo tédio que ronda os repórteres em longas coberturas. Aborreceu-se com a cidade, não teve paciência com as testemunhas, irritou-se com a gramática do promotor e largou o tribunal no meio do julgamento.

O debate provocado por "Eichmann em Jerusalém" dividiu a intelectualidade de esquerda de Nova York e apressou a migração de parte dela para a direita. Criticaram-na por ter pegado leve no réu e pesado nas vítimas.

Adler foi além dos papéis de Arendt e, em seis páginas, mexe num caso que dará tristeza ao professor Celso Lafer, aluno e devoto da pensadora. No livro, Arendt louva uma obra monumental, publicada em 1961 pelo professor Raul Hilberg, da Universidade do Vermont. Chama-se "A Destruição dos Judeus da Europa" e discute o comportamento das lideranças judaicas européias. O livro havia sido rejeitado pela Universidade Princeton e pelo Instituto Yad Vashem. Adler entrevistou Hilberg. Ele avisara: "O que vou lhe dizer de Hannah não é agradável. Você quer realmente saber?"

O professor mostrou-lhe uma carta. Em 1960, Hannah Arendt desaconselhara a publicação do trabalho pela editora de Princeton. Sustentara que era obra inútil, sobre um assunto esgotado. Hilberg já se referira ao lance em 1994, mas discutiu melhor o assunto na conversa com Adler. Arendt rejeitara o livro em 1960 e, depois que ele foi publicado, usou-o (11 citações na versão ampliada de "Eichmann em Jerusalém"), fazendo de conta que nada acontecera.

Um episódio ilustra o racionalidade e o esnobismo de Hannah Arendt. Em março de 1962, ela sofreu um acidente de trânsito no Central Park. Retiraram-na de um táxi com a cabeça ferida, seis costelas e um pulso quebrados. Enquanto esperava a ambulância, mexeu-se e concluiu que não estava paralítica. Em seguida, recitou poemas em grego e lembrou os números dos telefones de alguns amigos. O sistema continuava rodando. Fechou os olhos e aguardou o socorro em paz.

Folha de São Paulo, domingo, 15 de abril de 2007

Falimento e Ruína

Quatro tercetos de gosto duvidoso a mostrar o que vem a ser a ventura desta vida

Nossas roupas comuns dependuradas
Na janela qual bandeiras agitadas
Pareciam um estranho festival

Festa dos nossos trapos coloridos
A mostrar que nos morros mal vestidos
É sempre feriado nacional

A porta do barraco era sem trinco
Mas a lua furando nosso zinco
Salpicava de estrelas nosso chão

Tu pisavas nos astros distraída
Sem saber que a ventura desta vida
É a cabrocha, o luar e o violão.

Silvio Caldas & Orestes Barbosa - Chão de Estrelas
a

Sunday, December 27, 2009

Luiza
Tom Jobim (english lyrics by Paul Sonnenberg)


There now
Her shoulder's bare now
A yellow moon so round and so immense
Is sailing through the air now
We stop and stare now
Across the midnight blue it gently flashes
As the silence passes
There comes a voice
Full of the starlight
Oh, but it's just that little song I wrote
To help forget Luiza
To you I'm just another fool in love
So full of passion
So much to learn, learn about love
Awaken love
I know that there beneath your snowy silence there beats a heart



Come here, Luiza
Give me your hand
For your desire's the same as my desire
Come free my soul Luiza
Bring me your kisses
Bring me your lips now
Ah, those crazy roses
Bathed in rays of sun
Your hair so golden
And as a diamond breaks light into seven colors dazzling brightly
You reveal in me the seven thousand loves held in my heart so tightly
Just for you, Luiza
Luiza

http://www.youtube.com/user/sonnenberg


Olha Maria
Chico Buarque / Antônio Carlos Jobim / Vinícius de Moraes

Olha, Maria
Eu bem te queria
Fazer uma presa
Da minha poesia
Mas, hoje, Maria
Pra minha surpresa
(Pra minha tristeza)
Precisas partir...

Parte, Maria
Que estás tão bonita
Que estás tão aflita
Pra me abandonar
Sinto, Maria
Que estás de visita
Teu corpo se agita
Querendo dançar

Parte, Maria
Que estás toda nua
Que a lua te chama
Que estás tão mulher
Arde, Maria
Na chama da lua
Maria cigana
Maria maré



Parte cantando
Maria fugindo
Contra a ventania
Brincando, dormindo
Num colo de serra
Num campo vazio
Num leito de rio
Nos braços do mar

Vai, alegria
Que a vida, Maria
Não passa de um dia
Não vou te prender
Corre, Maria
Que a vida não espera
É uma primavera
Não podes perder

Anda, Maria
Pois eu só teria
A minha agonia
Pra te oferecer
a

Saturday, December 26, 2009

Fidelidade e traição entre cães e seres humanos

Aproximação que começou há 15 mil anos foi motivada por orfandade de filhotes, acolhidos por fêmeas humanas.


por Nelson Aprobato Filho

Tudo começou há 15 mil anos, no Paleolítico Superior, com a primeira divisão de trabalho entre os sexos da espécie humana. Os homens caçavam e garantiam a segurança do grupo.

As mulheres, com vida mais sedentária, coletavam alimentos e cuidavam dos filhos. Foi neste contexto que se iniciaram as relações entre humanos e canídeos. Pesquisas na área de zooarqueologia e antropologia sugerem que foram as mulheres que forjaram a aproximação entre as duas espécies, e as responsáveis pelo primeiro impulso de domesticação e convivência harmoniosa entre humanos e os ancestrais dos cães domésticos de hoje, os lobos selvagens.

Baseada em consistente bibliografia, a pesquisadora Mary Elizabeth Thurston, no livro The Lost History of the Canine Race, uma elegante síntese sobre o tema, aponta que os primeiros contatos se deram de forma prosaica, mas admirável: a adoção. Matilhas de lobos sempre ameaçaram populações humanas. E os homens, determinados a se defender de ataques, eliminavam os animais adultos que rondavam os entornos de suas habitações.

Ao abater os adultos, no entanto, inúmeros filhotes ficavam órfãos, entregues a um meio hostil, com chances mínimas de sobrevivência. Atraídos principalmente pelos odores produzidos pelas atividades humanas, os filhotes acabavam se aproximando. E as mulheres, em vez de simplesmente darem a eles restos de alimentos, amamentavam-nos com o mesmo leite dispensado aos filhos. Essa aproximação fez com que filhotes se integrassem ao grupo, na qualidade de recém-chegados e se ambientassem ao convívio humano. A pesquisadora aponta que evidências dessa teoria foram encontradas a partir do século 19, entre povos indígenas em várias partes do mundo. Elas comprovariam a maneira como cães e humanos se aproximaram para consolidar uma relação que, agora, faz desse animal o melhor amigo do homem.


A mulher e seu cão (em imagem termográfica): em todas as culturas humanas, há um padrão de relacionamento com os cães

Quando iniciei a elaboração deste artigo deparei-me com um livro que, a meu ver, é uma sugestiva leitura para todos aqueles que trabalham ou apenas se interessam por animais.

Trata-se de Cool cats, Top dogs, and Other Beastly Expressions, escrito pela especialista em dicionários Christine Ammer. São mais de 1.200 palavras, provérbios e expressões da língua inglesa relacionadas a animais, ou melhor, criadas através dos tempos a partir das relações entre humanos e outras espécies animais que os cercam.

O que torna o livro ainda mais fascinante é perceber, com a ajuda dele, que muitas das palavras, provérbios e expressões em inglês têm correspondência, por exemplo, em português. Trata-se, obviamente, de um processo de universalização de ideias, conceitos e, principalmente, comportamentos humanos. A contribuição mais importante da autora, nesse caso, é a dimensão histórica, ou etimológica, que procurou dar a cada item incluído no livro. Neste sentido, vale destacar aqui a frase com a que Christine Ammer intitula o capítulo específico sobre o universo sociocultural criado em torno do cão. Provocativamente, ela chamou o capítulo de “A dog’s life”, “uma vida de cachorro”, ou “uma vida de cão” expressão conhecida e largamente utilizada no Brasil e em muitas outras partes do mundo.

Nelson Aprobato Filho é doutor em história pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo com a tese O couro e o aço. Sob a mira do moderno: a “aventura” dos animais pelos “jardins” da Pauliceia, final do século XIX / início do XX, defendida em 2007. Autor do livro Kaleidosfone – As novas camadas sonoras da cidade de São Paulo, fins do século XIX – início do XX publicado pela Edusp/ Fapesp em 2008, trabalho originalmente defendido como dissertação de mestrado. Atualmente é teaching assistant e program assistant do Department of Romance Languages and Literatures da Harvard University, EUA.

Leia íntegra em Scientific American Brasil - UOL

http://www2.uol.com.br/sciam/reportagens/fidelidade_e_traicao_entre_caes_e_seres_humanos.html

Friday, December 25, 2009

da série Daquilo que os homens são capazes de fazer com as próprias mãos quando se encontram privados de companhia. III



Thursday, December 24, 2009

Sempiterno
Danilo Moraes e Ricardo Teté

O céu da primavera trouxe uma promessa
Quando amanheceu o dia
O sol saía todo cuidadoso e sem pressa
Pra nos guardar secretos os dois

Você com seu travesseirinho de macela
Me convidando pra dividir
A noite inteira a gente lá na beira da lagoa
A se surpreender

Tão claro que quis achar
A palavra que pra nós
Valesse de talismã, benção, tradução
E acho que achei
Sempiterno é o nome que apesar de meio incomum
Sintetiza a nossa união
E eu já te amava muito antes do Big Bang
E depois, mais

O céu da primavera segue com a promessa
De que vem mais um longo verão
O sol saindo sempre vigoroso mas, sem pressa
Pra nos guardar quentinhos os dois

Você com seu travesseirinho de macela
Um tico ciumenta dele
A noite inteira a gente agarradinho, de banda
É sempre tão bom
a

Wednesday, December 23, 2009

da série Daquilo que os homens são capazes de fazer com as próprias mãos quando se encontram privados de companhia. II




Auguste Rodin - Os Portões do Inferno
A



da série Daquilo que os homens são capazes de fazer com as próprias mãos quando se encontram privados de companhia.

http://www.youtube.com/results?search_query=manualist+&search_type=&aq=f

Sunday, December 20, 2009

Em Cabral, o apego ao racional tem dimensões irracionais. A razão, para ele, mais que um método, é uma obsessão. Essa compulsão ao concreto transparece em toda a sua poesia. O poeta escreve como um náufrago que não pode se soltar de sua tábua de salvação e que nela concentra toda esperança de sentido. Em meio a um oceano bravio, ele se apega àquele pedaço de materialidade em que parece estar concentrada toda a rigidez do mundo.

José Castello - Prólogo - João Cabral de Melo Neto: O Homem Sem Alma

.......... "tribulação e trevas, desmaio e angústia, e obscuridade", aqui termino a história de Leniza. Não a abandonei, mas, como romancista, perdi-a. Fico, porém, quantas vezes, pensando nessa pobre alma tão fraca e miserável quanto a minha. Tremo: que será dela, no inevitável balanço da vida, se não descer do céu uma luz que ilumine o outro lado das suas vaidades?

Marques Rebelo - A Estrela Sobe - Rio de Janeiro, 1939

Saturday, December 19, 2009

Biblioteca do falimento. Hamlet, o Quixote, Raskólnikov, Riobaldo. O Borges que nega, por despeito e crueldade a existência do Aleph logo após tê-lo, assombrado, visto. E o príncipe dos falíveis, Dante desterrado, que vê que havia, nel mezzo del cammin, nada menos que o Inferno.

No Canto II, dia findo, às portas do primeiro círculo, surge-lhe a dúvida:

1 Lo giorno se n'andava, e l'aere bruno
toglieva li animai che sono in terra
da le fatiche loro; e io, sol uno

4 m'apparecchiava a sostener la guerra
sí del cammino e sí de la pietate,
che ritrarrà la mente che non erra.

Arrepende-se.

37 E qual è quei che disvuol ciò che volle
e per novi pensier cangia proposta,
sí che dal cominciar tutto si tolle,

40 tal mi fec' ïo 'n quella oscura costa,
perché, pensando, consumai la 'mpresa
che fu nel cominciar cotanto tosta.

Vírgilio, aí, relata o encontro que teve com Beatriz, no Limbo, e o pedido que ela lhe fez.

58 "O anima cortese mantoana,
di cui la fama ancor nel mondo dura,
e durerà quanto 'l mondo lontana,

61 l'amico mio, e non de la ventura,
ne la diserta piaggia è impedito
sí nel cammin, che volt' è per paura;

67 Or movi, e con la tua parola ornata
e con ciò c'ha mestieri al suo campare
l'aiuta, sí ch'i' ne sia consolata.

70 I' son Beatrice che ti faccio andare;
vegno del loco ove tornar disio;
amor mi mosse, che mi fa parlare.

73 Quando sarò dinanzi al segnor mio,
di te mi loderò sovente a lui".
[ Tacette allora, e poi comincia' io: ]

E pergunta Virgílio:

121 Dunque: che è? perché, perché restai?
perché tanta viltá nel core allette?
perché ardire e franchezza non hai?

Ao que Dante, agora resoluto, responde:

127 Quali fioretti dal notturno gelo
chinati e chiusi, poi che 'l sol li 'mbianca
si drizzan tutti aperti in loro stelo,

130 tal mi fec'io di mia virtude stanca,
e tanto buono ardire al cor mi corse,
ch'i' cominciai come persona franca:

133 "Oh pietosa colei che mi soccorse!
e te cortese ch'ubidisti tosto
a le vere parole che ti porse!

136 Tu m'hai con disiderio il cor disposto
sí al venir con le parole tue,
ch'i' son tornato nel primo proposto.

139 Or va, ch'un sol volere è d'ambedue:
tu duca, tu segnore, e tu maestro".
Cosí li dissi; e poi che mosso fue,

142 intrai per lo cammino alto e silvestro.

Inspirado pelo objeto de sua paixão, Dante aceita Virgílio como guia, senhor e mestre: representante da Razão, condição da Virtude.



Gustave Doré


Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.

Guimarães Rosa - A Terceira Margem do Rio - Primeiras Estórias

Choro Bandido
Edu Lobo & Chico Buarque


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- Newton Carneiro, violão e Luis Afonso Montanha, clarone -

Mesmo que os cantores sejam falsos como eu serão bonitas, não importa, são bonitas as canções / Mesmo miseráveis os poetas os seus versos serão bons

Mesmo porque as notas eram surdas quando um deus sonso e ladrão / Fez das tripas a primeira lira que animou todos os sons

E daí nasceram as baladas e os arroubos de bandidos como eu cantando assim: Você nasceu pra mim, você nasceu pra mim

Mesmo que você feche os ouvidos e as janelas do vestido minha musa vai cair em tentação / Mesmo porque estou falando grego com sua imaginação

Mesmo que você fuja de mim por labirintos e alçapões / Saiba que os poetas como os cegos podem ver na escuridão

E eis que, menos sábios do que antes os seus lábios ofegantes hão de se entregar assim: Me leve até o fim, me leve até o fim

Mesmo que os romances sejam falsos como o nosso são bonitas, não importa são bonitas as canções / Mesmo sendo errados os amantes seus amores serão bons
a

A Filistéia grita! Quando Caetano Veloso preenche com tantos penduricalhos a infinitiva canção de Tom e Newton (trejeitos, salamaleques, tamborins, tambores, melismas do violoncelo, alternâncias de texturas e densidades dos instrumentos provocando "ondas de ruído"), resta aproveitar sua voz linda (sim, a voz de Caetano é - definitivamente - linda) e pensar na personagem falível que o samba decanta: tolo coração cansado de sofrer que, em vão, tentou raciocinar nas coisas do amor tentará ainda que, depois, chorar seja imprescindível.



Quando um coração que está cansado de sofrer / Encontra um coração também cansado de sofrer / É tempo de se pensar / Que o amor pode, de repente, chegar / Quando existe alguém, que tem saudade de alguém / E esse outro alguém não entender / Deixe esse novo amor chegar / Mesmo que depois / Seja imprescindível chorar / Que tolo fui eu / Que, em vão, tentei raciocinar / Nas coisas do amor / Que ninguém sabe explicar / Vem, nós dois vamos tentar / Só um novo amor pode a saudade apagar

Tom Jobim & Newton Mendonça

Wednesday, December 16, 2009

A sublimação não é o caminho para a felicidade. Mas o encontro da sublimação com a paixão amorosa foi definido por Benjamin Péret como alternativa feliz para o beco sem saída que parece ser a paixão em seu estado narcísico. O amor sublime é o encontro da pulsão sexual do amor apaixonado, de toda a demanda de fusão com o outro que a sexualidade apaixonada contém, com os benefícios mais elevados da sublimação. Péret, em seu ensaio sobre o amor sublime, faz uma rápida história das formas que a relação amorosa foi tomando desde a Idade Média e conclui que a sublimação dentro da relação amorosa (não a sublimação da relação amorosa) só é possível nas civilizações em que o homem e a mulher se encontram em uma posição de igualdade social e intelectual. Em civilizações assim - como a nossa - é possível que o encontro entre o homem e a mulher ultrapasse as demandas iniciais da paixão, as demandas de fusão total do amor narcísico, do amor/morte, sem que a única saída seja reprimir e/ou negar a paixão no leito estreito do amor burguês, do amor de conveniência. É possível que os apaixonados ultrapassem suas fantasias narcísicas apaixonadas e se encontrem num outro plano além da sexualidade (mas não em detrimento dela), que é o plano da sublimação. O amor sublime é a possibilidade da troca (também) no plano simbólico. A possibilidade da poesia no encontro amoroso - não a poesia produzida pela frustração da paixão, mas a poesia  da paixão. A transformação dos desejos que não podem se concretizar na paixão amorosa no desejo de uma outra coisa que a poesia (no sentido lato, não apenas no sentido da produção de poemas) pode realizar.

Para Péret o amor sublime seria a contrapartida do amor romântico, da paixão grandiosa mas impossível, do amor que não encontra nem limites nem possibilidades concretas e por isso leva à morte - na melhor das hipóteses, a morte do outro em mim. O amor sublime não abre mão da paixão, mas sabe transformar o impossível da paixão em possibilidade de troca simbólica. É quando o outro fala comigo, é quando dois universos simbólicos se tocam, se interpenetram, frutificam, se potencializam, é nesse caso que a paixão pode se tornar aliada do amor.

O amor por sua vez perde suas tonalidades cristãs que exige o rebaixamento do erotismo em nome da santidade da união, que exige a fidelidade e a obediência mútua, que propõe o conformismo e a responsabilidade como motivo mais sublime da união - o amor sublime recusa isto tudo,  é amor de escolha e, portanto, uma aliança a favor, e não contra, o vôo livre de cada um pela vida. O amor sublime dá asas ao erotismo. Péret: "o desejo, longe de perder de vista a carne que lhe deu à luz, tende em definitivo a erotizar o universo!".

Maria Rita Kehl -  A Psicanálise e o Domíno das Paixões - Os Sentidos da Paixão; Funarte 1988

Tuesday, December 15, 2009

[...] as fantasias do início de uma relação apaixonada não concedem existência própria ao outro, que se torna um depósito das fantasias mais arcaicas, um representante da possibilidade da restauração do narcisismo ferido, um outro eu mesmo que deseja as mesmas coisas que eu e me resgata para sempre da condição da falta em que me encontro (que é a própria condição humana) para me elevar à condição dos deuses: a recuperação da onipotência.

Mas passado este momento de felicidade plena (que também pode ser de intensa angústia, já que eu já "sei", por experiência, que o outro me escapará), a paixão amorosa tem que reviver a decepção infantil do recém-nascido que perde a condição de único no desejo da mãe: o outro volta a se mover. Ganha corpo, existência concreta para além das minhas fantasias apaixonadas. O outro não pode estar sempre; o outro não pode dar tudo; e, o que é pior: eu não posso lhe dar tudo. A realidade se instala mais uma vez entre os dois-que-tentavam-ser-um e revela o que estava sendo negado: a falta; mais uma vez e sempre, a falta.

Dessa decepção revivida na paixão amorosa - uma reedição das primeiras frustrações infantis - o outro pode ganhar vida própria, independência, existência para além do meu desejo onipotente. Ou seja, dessa decepção revivida pode nascer o amor.

Ou não: [...] o mundo da desolação pela perda ou afastamento do ser amado que vive sua independência em relação a mim - o ser amado "absoluto" de quem o apaixonado passa a depender de maneira tão completa que sua falta faz do mundo um verdadeiro deserto -, este mundo pode ganhar vida, e o apaixonado pode descobrir que também tem condições de se mover dentro dele, se ele conseguir suportar a desilusão fundamental de não formar um todo indissociável com o objeto do seu amor. Do contrário ele pode preferir a morte a viver num deserto. A sua morte, ou a morte do outro. A morte pode ser a outra face do princípio do prazer, quando ele não consegue se associar ao princípio de realidade. O domínio absoluto do princípio do prazer não propicia satisfações ao desejo a não ser na fantasia; fora da fantasia o mundo é um deserto onde o desejo não consegue encontrar seus objetos.

Maria Rita Kehl - A Psicnálise e o Domínio das Paixões - Os Sentidos da Paixão - Funarte 1988

Jornalismo de Investigação

Procurada pela reportagem, a Coqueiro não conseguiu localizar ninguém da empresa para comentar a mudança no desenho de Alexandre Wollner para suas latas de sardinha.

Monday, December 14, 2009

Nem aquecimento global em Copenhague, nem as tropas do Nobel da Paz no Afeganistão; nem o Arruda e nem os alagamentos que duram cinco dias. A discussão do momento acaba de se apresentar. Mudou a embalagem do Queijinho e do Presuntinho Piraquê! Apertem os cintos; o diretor de redação sumiu!

o1. Design aposentado

Embalagens clássicas de produtos saem de cena e geram debate sobre memória afetiva e patrimônio do design no país.

Diante da prateleira de um supermercado, Daniela Name levou um susto. "Foi horrível", lembra a curadora, que correu para casa e postou em seu blog que a Piraquê estava aposentando as embalagens dos biscoitos Queijinho e Presuntinho, desenhadas pela artista Lygia Pape nos anos 60. "São mudanças criminosas, assassinas", diz ela. "É muito sério."

No lugar dos arranjos em vertente construtiva dos pequenos biscoitos, projeto de Pape, está agora uma disposição mais convencional, com uma grande tarja com o nome do produto quebrando o desenho. "Nem por hipnose alguém me convenceria de que essa coisa horrorosa é mais eficiente", esbravejou Name, na web.

É uma reação parecida com a do designer Alexandre Wollner, que viu sua embalagem clássica das sardinhas Coqueiro dar lugar a um design brilhante e modernoso, que rompe com os traços minimalistas de seu desenho, pondo no lugar uma linguagem mais figurativa.

"É uma esculhambação total da Coqueiro", diz Wollner. "Não pode trocar um desenho por uma coisa mais bonitinha."

Bonitinhas ou assassinas, marcas mudam. E geram um debate entre artistas e designers sobre o que é patrimônio visual e como lidar com o que já foi ícone do design brasileiro em meio às mudanças que seguem o ritmo do mercado.

Se por um lado saem de cena os últimos exemplos dessa corrente modernista, por outro empresas retomam logomarcas ornamentadas do passado.

o2. Novo desenho põe em xeque "potência afetiva" 

Designers falam em patrimônio visual e ideia de design como expressão do tempo. Momento atual permite convivência da sintaxe modernista com projetos vintage, de retomada de marcas do século passado.

Mesmo sem saber que Lygia Pape estava por trás dos biscoitos flutuantes nas embalagens da Piraquê, várias gerações se acostumaram a ver nos mercados a serialização geométrica dos pacotes. Do mesmo jeito que a lata de sardinhas Coqueiro, desenhada em 1958, ficou mais de 40 anos em circulação.

É tempo suficiente para criar, mais do que uma identidade corporativa, uma memória afetiva desse desenho. "O que está em jogo não é tradição, e sim afeto", postou Daniela Name em seu blog, saindo em defesa das embalagens que marcaram sua infância. "Essa é a base da história e da longevidade de um produto de design."

Tanto que gente como o publicitário paulistano Eduardo Foresti guarda em casa as embalagens mais emblemáticas que encontrou pela vida, dos biscoitos Piraquê aos cosméticos Granado. "As pessoas se irritam quando muda algo com o qual existe uma relação sentimental", diz Foresti. "Um exemplo é a bala Chita, que era um macaquinho. As pessoas se ressentem dessas mudanças."

Quando a Varig decidiu substituir o desenho de um homenzinho voando pela rosa dos ventos na cauda de seus aviões, em 1962, pilotos se recusaram a voar sem o Ícaro, e a empresa foi obrigada a repintar o desenho no bico das aeronaves.

Mas pessoas também crescem, o tempo passa e marcas precisam lutar para manter o frescor. "Todas as empresas precisam se manter na concorrência, que é fortíssima", analisa o designer André Stolarski.

"O problema não é a mudança, mas como ela é feita, porque se o novo projeto perde uma característica que é distintiva em termos de mercado ou patrimônio visual, está perdendo feio, perde a potência afetiva."

Stolarski vê um retrocesso nos novos pacotes da Piraquê e da Coqueiro, mas elogia, por exemplo, as mudanças da Pepsi, que reformou há pouco sua logomarca e simplificou embalagens e identidade visual.

"Não faço parte do time que fica lamentando essas coisas", diz Chico Homem de Melo, professor de design e autor de livros-referência sobre o assunto no país. "Essa é uma visão de raiz racionalista, que vem da Bauhaus, o design que se colocava como eterno."

Longe de eterno, Homem de Melo chama o design de "expressão de seu tempo". "Essa é uma história de mudanças, não de permanências", frisa. E lembra que parte da polêmica em torno da aposentadoria de desenhos concretistas de Pape e Wollner está ancorada num momento histórico que passou.

"Esses artistas construtivos achavam que a arte industrial era a saída", diz Homem de Melo. "Então ir para o design não era sair para outra coisa, era mostrar para onde vamos."

Nessa linha, Willys de Castro, Hércules Barsotti, Waldemar Cordeiro, no Brasil, e nomes como El Lissitsky e Kurt Schwitters, no exterior, também fizeram incursões no campo do design, sujeitos à mesma passagem do tempo.

"É o curso das coisas, é natural que ideias novas tomem o lugar das antigas", diz o artista Rafael Lain, da dupla Detanico & Lain, conhecida por sua atuação também no design. "Um design feito há 50 anos responde a questões de 50 anos atrás, que não são pertinentes hoje."

E esse hoje é um terreno aberto. Convivem no design contemporâneo a sintaxe modernista de Pape, Wollner e Aloisio Magalhães e as formas ornamentadas, rococó, dizem alguns, do revival promovido por empresas como a Fiat, que voltou a usar a mesma tipografia de 1901 em sua logomarca.

"Tem um tom de humanidade, calor, que o design modernista não tem", diz Homem de Melo. "Estamos vivendo um revival, ou talvez seja só voltar a alguma coisa lá atrás e reinscrever isso na modernidade."

o3. Piraquê diz que tentou evitar um "samba do crioulo doido"

Quando decidiram mexer nas embalagens, diretores da Piraquê já esperavam uma reação polêmica "por parte das pessoas mais tradicionais".

Mas foram adiante com a ideia, instruindo os designers que atualizaram o projeto de Lygia Pape, dos anos 60, a "fazer a alteração mais sutil possível", nas palavras do diretor da empresa, Alexandre Colombo.

"A gente não matou o trabalho que a Lygia Pape fez", resume. "Tentamos preservar ao máximo o que ela criou, mas fazer ao mesmo tempo com que as embalagens se falassem."

Colombo diz que, como Pape fez só algumas das embalagens e novos produtos foram lançados com projetos de outros designers, os biscoitos não tinham uma unidade visual na gôndola do supermercado.

"Tinha produtos clássicos e outros mais novos com formatos diferentes", diz Colombo. "Era o samba do crioulo doido."

Outras marcas

Procurada pela reportagem, a Coqueiro não conseguiu localizar ninguém da empresa para comentar a mudança no desenho de Alexandre Wollner para suas latas de sardinha.
A Pepsi não retornou pedidos de entrevista da reportagem, e a Varig, sob administração da Gol, também não pôde localizar um responsável. (Silas Martí)



a obra em questão

Folha Ilustrada


Sunday, December 13, 2009

O ser humano é o ser para o qual o mundo, tal como está, não basta. Isto decorre do fato de que ele nasce prematurado e, portanto, incompleto e, em consequência, incompatível com o meio-em-torno que o rodeia. O ser humano, ao nascer, em virtude da prematuração, sofre um corte para cujo preenchimento ele não tem equipamentos. O animal, ao nascer, traz consigo uma trama de instintos capazes de costurá-lo ao meio que o rodeia. Ele não vive a experiência de aguda insuficiência biológico-ontológica na qual o nascimento precipita o ser humano. O animal tem ganchos de abordagem aptos a costurá-lo à realidade. Tendo vindo de casa - do útero - ele continua em casa, já que o Cosmo é a sua casa. Ele marcha para o real e se conecta a ele, sem precisar simbolizá-lo. Ao animal, não lhe falta nada. A leitura que faz do mundo corresponde, simetricamente, à estrutura de suas necessidades. O mundo é a concha que o envolve e na qual ele se perde, extático. O animal faz, desde o nascimento, uma experiência de pertinência cósmica que o torna parte do real, íntimo do coração da matéria, filho dileto - e inocente de Deus.

[...] Por não ter nascido - ou partejado - pelo Cosmo, por não ter dado o salto da natureza para a cultura, por não carregar em seu centro a liberdade - essa fraqueza no coração do ser, como a define Merleau-Ponty -, o animal não precisa dar testemunho da sua passagem no mundo, não precisa falar porque é falado pelo acontecer cósmico, é parte do real, do oceano incomensurável, em movimento, que abarca as constelações mais remotas, e a erva mais modesta - e mais próxima. O animal digere o Cosmo, que o atravessa todo, sem precisar imaginarizá-lo - ou simbolizá-lo.

Hélio Pellegrino - Édipo e a Paixão - Os Sentidos da Paixão / Funarte 1998

Friday, December 11, 2009

And so...



this is Xmas
a

Wednesday, December 09, 2009

Terça-feira, Dezembro 08, 2009

deixa as mágoas para trás, ó, rapaz

Então eu estava lendo Samba, o Dono do Corpo (Mauad, 1998), de Muniz Sodré, e bati de frente com o seguinte depoimento de Donga, um dos inventores deste exu denominado samba:

"Em 1916, começamos a apertar o cerco em torno da Odeon, para que gravasse um samba. Mas a ocasião só iria surgir no ano seguinte. Foi quando consegui gravar o famoso Pelo Telefone.

["Que ocasião foi essa?", pergunta Muniz Sodré.]

A da campanha contra o jogo, lançada pelo jornalista Irineu Marinho em A Noite. Era chefe da polícia o dr. Aureliano Leal, e se jogava livremente em toda a cidade. Os repórteres Orestes Barbosa, Eustáquio Alves e Costa Soares ficaram encarregados da campanha.

Um dia, em plena tarde, eles fingiram ser jogadores e banqueiros, diante de umas roletas de papelão que Irineu Marinho colocara perto da redação, no Largo da Carioca. Batida uma fotografia, o jornal fez escândalo: jogava-se em plena rua, sem que a polícia tomasse providências. O episódio foi muito comentado. Isto dá samba, pensei eu. Escolhido um motivo melódico folclórico dos muitos existentes, dei-lhe um desenvolvimento adequado e pedi ao repórter Mauro de Almeida que fizesse a letra. E o samba foi gravado por Baiano:

O chefe da polícia/ pelo telefone/ mandou avisar/ que com alegria não se questione/ para se brincar

Estes eram os primeiros versos, que também se cantavam assim:

Que na carioca/ tem uma roleta/ para se jogar".

De primeira, o amontoado de referências me causou aquele espanto. O pai do "doutor" Roberto Marinho patrocinou a campanha moralista contra a jogatina? Um dos repórteres encarregados de fazer o estardalhaço era Orestes Barbosa, futuro compositor (em 1937) da maravilhosa seresta Chão de Estrelas? Assim como os encarregados de atiçar a faxina moral, era repórter o incumbido de criar os versos pioneiros em tempo de crônica de costumes? E na encruzilhada de tudo, botando o ovo do samba, estava Donga, o carioca negro, pobre, suburbano, marginalizado etc.? Ora, ora.

De segunda, me revoam a cabeça as semelhanças mil, o novelo repetitivo da história. Imagino uns Marinho ou uns Frias de hoje criando escândalo sensacionalmoralista por sobre a contravenção, o baile de subúrbio, os camelôs na jogatina de CDs piratas de tecnobrega nas ruas velhas de Belém. Ou o pagode mauricinho (Chão de Estrelas) servindo de semente para que adiante brote a raiz antiga do funk carioca (Pelo Telefone) - ou é o contrário?, ou coisa que o valha.

Acima de tudo, lembro que "no meu tempo" (e/ou lugar) os valores e papéis sociais andaram dramaticamente estanques, isolados e apartados uns de outros - uns foram fazer jornais, outros cantaram, outros compuseram, outros criaram poemas, outros se dedicaram a escrever sobre canções ou poemas ou políticas ou contravenções. Quem foi fazer arte foi fazer arte, quem foi ser faxineira foi ser faxineira, quem foi gerenciar jornal foi gerenciar jornal, quem não fugiu mais com o circo não fugiu mais com o circo.

O que as memórias de Donga me fazem lembrar é que nem sempre as coisas andaram assim tão estanques. E aí eu me encontro no presente, e refresco memória bem mais recente. No Fórum de Mídia Livre de Vitória, Espírito Santo, de onde acabei de chegar, difícil era distinguir quem era jornalista de quem era músico de quem era militante político de quem era produtor de banda de quem era artista circense de quem era etc.

Acima de tudo, na minha cabeça, a turma sensacional de jovens jornalistas que me recepcionou com imensa gentileza em Vitória (alô, Vitor, velho frequentador deste barraco eletrônico!) se associa profundamente à gente hoje extinta de Donga. Vitor trabalha no caderno de cultura do grande jornal capixaba, faz curadoria para o festival de música do Fórum e em rápidas horas vagas acompanha ao cavaquinho o histórico Jards Macalé ("você tá morando aqui?", me perguntou o Macalé), numa versão pós-capixaba de Vapor Barato. Tatiana é outra que trabalha no jornal, e é apresentadora de um programa de sucesso na Globo local, e também tem uma banda. Fabrício, além de curador do festival, é o líder performático da banda O Sol na Garganta do Futuro, a mesma que bolou no palco o encontro de gerações com Donga, quero dizer, com Macalé.

(E o festival de música aconteceu, chão salpicado de estrelas, debaixo de uma lona de circo, esse lugar mítico por excelência onde o domador é o pipoqueiro é o trapezista é o palhaço é a mulher barbada é a fazedeira de churros e algodão-doce e cachorro-quente é o bilheteiro é o etc.)

E eu nem vou falar do André Paste, por agora, que senão isto aqui vira um livro.

Mas minha pergunta derradeira é a seguinte: alguém precisa ser nostálgico num Brasil que oferece cenas como as que tenho visto ultimamente, em lugares tão-longe-tão-perto quanto Belém ou Vitória? Não precisa, nem é possível, muito menos desejável. O presente está bombando nas nossas fuças, só não viu quem não quis. Dá-lhe que dá, Espírito Santo (também conhecido como exu)!


Tuesday, December 08, 2009

Fala de Ericson Pires no segundo dia do seminário A Morte do Popstar, que ocorreu em 05 de dezembro de 2009, no Auditório do Cemuni IV, Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo, em Vitória, durante o Festival de Música Livre.

Vou propor um axioma básico para pensar a questão. A ideia de popstar é uma ideia de construção hegemônica, institucionalizada na cultura de massa. Então, sempre para mim, a figura do popstar está ligada a hegemonia ou a uma disputa por isso. Vou tentar propor para vocês quatro mortes. Uma está na primeira metade do século 20, a outra no fiinal dos anos 70, que são a morte do Trotski e a morte do John Lennon. E duas esse ano: o Lévi-Strauss e o Michael Jackson. Se a gente analisar o assassinato do Trotski, a gente vai perceber que é uma disputa política em torno de uma hegemonia da personificação do poder. Stalin jamais permitiria um coadjuvante de tamanho peso como Trotski. E o ato da morte do Trostski é performático. Ele foi morto no México de Diego Rivera, um México revolucionário, e foi morto com uma picareta, de uma maneira bastante atroz...

Fã vem de fanático. O agente stalinista que assassina o Trotski é o mesmo fanático que matou o John Lennon.

Toda a circunstância da morte do Lennon tem a ver com o cara que leu o O Apanhador no Campo de Centeio. Uma coisa curiosa é que ele achava que era o John Lennon. Isso é, tão fanático sobre o personagem do John Lennon que aquilo se tornou uma obsessão.

São dois assassinatos políticos no sentido do afeto, no sentido de afetar a produção cultural.

O Lévi-Strauss encerra o ciclo do homem branco macho-alfa europeu. É o grande saber do europeu branco, o macho-alfa. Hoje o cara que melhor escreve em francês é um que nasceu na Guiana Francesa, o cara que ganha o prêmio de literatura inglesa nasceu em Trinidad e Tobago...

O Michael Jackson, esse transgênero, ele cruza... O Michael Jackson significa o fim da possibilidade única de ídolo desse projeto consumista, hegemônico. Para mim, ele encerra também um ciclo do popstar. Se de um lado morre o saber do Lévi-Strauss, branco, europeu, por outro lado morre a figura do popstar. É um cara que fala para o planeta inteiro.

De qualquer jeito, a gente tem um configuração interessante. Dá pano pra manga.

Thursday, December 03, 2009

Música para ouvir, música para pensar

Carolina Ruas

Foto: Sergio Huoliver
Que o fim do ano em Vitória é sempre marcado pelos mais interessantes eventos, isso todo mundo já sabe. O que ninguém esperava, porém, é que este ano aconteceriam três imperdíveis ao mesmo tempo. Além do tradicional Vitória Cine Vídeo, na mesma semana acontecem, tudo na Ufes, o Fórum de Mídia Livre e, em paralelo, o indispensável Festival Música Livre & Seminário A Morte do Pop-Star, que, entre esta quinta-feira (3) e domingo (5), traz a discussão das novas formas de difusão no campo musical, o papel do artista, a Internet e os direitos autorais. Na esteira dos debates também chega uma série de atrações musicais que une o tradicional ao mais moderno do mundo da música. E quem faz a ponte entre esses dois universos é, senhoras e senhores, Jards Macalé, um cânone da subversão como cantor, compositor, ator, poeta, arranjador, entre outros títulos, da cultura brasileira.

Nem moderno nem tradicional são as palavras adequadas quando se trata deste carioca que fez e desfez no mundo da música desde a década de 60. Jards Macalé se apresenta em Vitória na noite desta quinta-feira, primeiro dia do festival, ao lado do Sol na Garganta do Futuro. “Eu gosto muito de Vitória. Fui preso aí e a prisão me trouxe muitos prazeres”, ele diz ao telefone, sentado confortavelmente em seu apartamento no Jardim Botânico, Rio de Janeiro.

O tom desafetado vem muito naturalmente, uma deixa para Macalé começar a contar uma de suas histórias em que, depois de um show que debochava da Declaração Universal dos Direitos Humanos, encarou a ditadura das gravadoras. “Foi em 1974 que fizemos esse show que denunciava todo esse negócio de direitos autorais, que todo mundo assinava os contratos sem nem saber das coisas. Fiquei nove anos preso. Quem foi me soltar foi o Médici!”, conta às gargalhadas.

Subversivo e debochado, Macalé arrumou todas as confusões possíveis com as gravadoras e com a censura na década de 70. Junto a outros artistas famosos, como Tom Jobim e Chico Buarque, acabou articulando uma sociedade musical brasileira para pensar e questionar a política das gravadoras, dos contratos e de direitos autorais que em nada defendiam os direitos do artista sobre sua obra. “Por isso fiquei muitos anos sem gravar nada, não fui nada obediente, briguei muito com a gravadora e não quiseram gravar mais comigo. Sabotagem mesmo.”, afirma.

Apesar de ter ficado um tempo parado, esse embate foi uma importante semente para a discussão contemporânea do papel do artista e do livre compartilhamento de música via Internet, principal enfoque do festival e do seminário. Por isso, não só artistas de peso como Macalé, mas os demais que se apresentam em Vitória estão de alguma forma envolvidos no debate. “A idéia é pegar pesado mesmo! Pegar a galera do Mídia Livre, do MPB, quem tinha condições e vontade de vir a Vitória”, conta Fabrício Noronha, um dos organizadores do evento. Em tempo: o MPB a que Fabrício se refere não é Música Popular Brasileira, e sim o Música Para Baixar, movimento que vem articulando músicos de todo o Brasil, anônimos ou consagrados, para debater a necessidade de se criar uma nova racionalidade para o negócio da música. Isso, claro, passa por uma profunda reorganização do padrão estabelecido pelo mercado fonográfico tradicional.

Fabrício, também vocalista da banda Sol na Garganta do Futuro, conta que, sem grandes recursos, o festival foi construído todo em cima dos ideais dos grupos acerca da distribuição de música pela Internet. “A gente foi acionando as pessoas, tudo construído por Internet com gente que já está envolvida e outros que têm bagagem, mas não estão envolvidos diretamente. E a gente, então, aproveitou para trazer para o movimento”, explica ele.

Jards Macalé é um desses que, com imensa bagagem nos enfrentamentos com as gravadoras, está chegando para o movimento na Internet agora, mas com a certeza de que é fruto da luta iniciada há mais de 30 anos. “Sempre teve briga, porque os interesses não são comuns. E está mais forte porque a gente plantou isso lá atrás”, garante ele.

Em tempos em que um artista só precisa de uma plataforma na Internet para divulgar seu trabalho, Macalé duvida da sobrevivência do modelo tradicional das gravadoras. Para ele a Internet é uma grande ferramenta de comunicação que deve mesmo ser explorada, principalmente para difundir música. “A Internet transformou tudo. E tem que mudar essa relação! Praticamente acabou o mercado de disco e eles (as gravadoras) precisam se adaptar ao mercado, mudar o comportamento. E com a Internet como eles vão amarrar isso tudo?”, questiona.

Quem o escuta falando assim entende por que Macalé se tornou ícone para a sua geração e para as gerações posteriores que encontraram nos downloads não-oficiais a irreverência e a genialidade musical do artista. Se isso o incomoda enquanto artista? “Muito pelo contrário: acho bom que me escutem mesmo. Eu vivo de shows ao vivo. Não espero direitos autorais e acho isso uma vergonha. Hoje só tenho uma obra minha mesmo, os outros estão tudo nas mãos das gravadoras”, conta.

O grande encontro


De geração em geração, Macalé foi deixando sua marca por onde passou. Suas músicas que ganharam fama nas vozes de Gal Costa, Maria Bethânia e Nara Leão e outros consagrados, também estão presentes nas vozes de gente como O Rappa e Adriana Calcanhotto. Para Fabrício, vocalista do Sol na Garganta do Futuro (foto ao lado), a música de Jards Macalé é uma referência muito forte para o grupo. “A gente já vem tocando as músicas dele há um tempo; o Sol tem oito anos e o Macalé ‘surge’ como efervescência da cultura brasileira nas pesquisas do grupo”, explica.

Na quinta-feira, a banda que provoca uma orgia entre poesia, música, cinema e performance em cima do palco se encontra musicalmente pela primeira vez com Macalé. Fabrício comenta que existem muitas coisas que o grupo identifica na música de Macalé. “A gente está conectado por várias coisas; a atmosfera que ele cria, a poesia como aliada; a própria construção das músicas se assemelha muito com o que a gente faz”.

Quanto ao show, Fabrício diz que ainda está para ser decidido o “desenho”, que será traçado quando os músicos se encontrarem para ensaiar, pensar repertório, et cetera. Para Macalé, alguns dias antes do show o repertório ainda é “um mistério que ninguém desvenda!”, é o que diz entre mais gargalhadas.

Nesses momentos, não surpreende que um artista de espírito tão desprendido quanto o dele tenha sido reconhecido justamente pela improvisação e pela capacidade de transformar cada apresentação sua em exemplar único. “Fico pensando que cada um faz a diferença como pode. Não sei fazer exatamente igual. Não sou quieto, quando criança minha mãe mandava e mesmo assim eu não ficava”, lembra ele.

De fato, a cada acorde, a cada apresentação, Macalé refaz toda a música, não importa se dele ou não. E o próprio admite que não consegue. “Já me disseram que o meu violão é surrealista! Tem sempre algum detalhe, na interpretação, no violão... mas acho mais que meu violão é cubista!”.

Surrealista ou cubista, não importa, Macalé continua sendo um provocador do mundo da música que, se não hesita em subverter a arte, também não hesita em ter momentos de “vazio” criativo e admite que agora está “num momento de seca”. Depois de fazer muitos shows pelo mundo afora, Macalé diz que quer fazer coisas novas, mas que não sai correndo para fazer as coisas acontecerem. “Ainda não sei o que fazer. Mas como sempre me diz uma amiga ‘Quando te dá aquele vazio, não se preocupe: viva o vazio’”, diz.

E para Macalé, fazer algo novo não significa muita coisa. “O novo é muito relativo. Me sinto novo”, conta. E a improvisação e o “surrealismo/cubismo” da sua arte, também vêm acompanhados de uma inconstância na criação. “Sou muito indisciplinado. E criação é uma espécie de febre. Posso passar vários dias fazendo uma coisa e vários tempos sem fazer nada. Criar é uma coisa que vem. Uma palavra pode detonar um poema”, reflete.

Em tempos em que ser artista, ou melhor, dar visibilidade a sua obra, é algo muito mais acessível graças à presença das novas tecnologias, Macalé vê grandes possibilidades para o mundo da arte. “O mundo está em aberto, hoje em dia temos um país de artistas, o que é saudável. Ao mesmo tempo, isso não aparece na televisão nem no rádio – não sei quantos interesses aparecem aí. Mas arte é o sintoma da criatividade. E estamos mudando a relação com essas coisas todas”, explica ele.

O Festival de Música Livre, além de promover o encontro entre a música e a poesia, a tradição e a modernidade, é na capacidade de entender o papel do artista na discussão desse novo ambiente da cultura musical que o debate se completa nas vozes de artistas dos mais variados estilos e idades. Fabrício do Sol na Garganta do Futuro completa: “é um olhar sobre a cultura em geral, que ultrapassa a música, estando presente em todas as artes, que estão se contaminando pelo novo modelo de negócio, pelas novas formas de difundir a cultura”.


FESTIVAL MÚSICA LIVRE & Seminário A MORTE DO POP-STAR


PROGRAMAÇÃO SEMINÁRIO

Sexta-feira (4)

15h às 18h | Mesa: A Invenção do Pop-Star | Auditório do Cemuni V (Ufes)

Mediador: Irajá Menezes (SP)
Convidados: Miguel Jost (PUC/RJ), Edson Natali (Itaú Cultural/SP), Mónica Vermes (Ufes/ES) e Pablo Capilé (Espaço Cubo/MT)

Sábado (5)

15h às 18h | Mesa: A Morte do Pop-Star | Auditório do Cemuni V, Ufes

Mediador: Irajá Menezes (SP)
Convidados: Ericson Pires (UERJ/RJ), Pedro Alexandre Sanches (CartaCapital/Rolling Stone/SP), Gustavo Anitelli (Teatro Mágico/MPB/SP) e Eduardo Ferreira (MPB/OsViralata/MT)


PROGRAMAÇÃO DE SHOWS


Quinta-feira (3) | 21h | Tenda de Circo, Estacionamento do Centro de Artes (Ufes)

Jards Macalé
Graveola e o Lixo Polifônico (MG)
Vitrola de 3 (ES)
Sol na Garganta do Futuro (ES)
Ricardo Palm (SP)
Anne Oz (ES)
K.O (ES)
Kung Fuko (ES)

Sexta-feira (4) | 22h | Tenda de Circo, Estacionamento do Centro de Artes (Ufes)

Macaco Bong (MT)
Richard Serraria (RS)
Os Viralata (MT)
Fê Paschoal (ES)
Ócio (ES)
F.U.E.L (ES)
SkolBitch (ES)
Tati Wuo (ES)
Rike Sick (ES)

Sábado (5) | 22h | Tenda de Circo, Estacionamento do Centro de Artes (Ufes)

Tono (RJ)
Os Outros (RJ)
Qinho (RJ)
SoultoGroove (ES)
Trepax (ES)
André Paste (ES)
Jean Mafra (SC)
Angela Jackson (ES)
Manniquin (ES)
Semáforo (ES)
Soft Mobile Porn (ES)

Serviço

O Festival Música Livre & Seminário A Morte do Pop-Star acontece desta quinta-feira (3) ao próximo domingo (5) na Ufes. Av. Fernando Ferrari, 514, campus de Goiabeiras, Vitória. Entrada franca.