Sunday, November 27, 2011


FERREIRA GULLAR

Um novo realismo

Quem, como eu, admite que a vida é inventada e que a arte é um dos instrumentos dessa invenção terá do fenômeno artístico, obrigatoriamente, uma visão especial.

Não é só através da arte que o homem se inventa e inventa o mundo em que vive: a ciência, a filosofia, a religião também participam dessa invenção, sendo que cada uma delas o faz de maneira diferente, razão por que, creio, foram inventadas.

Se a filosofia inventasse a vida do mesmo modo que a ciência ou a religião o faz, não haveria por que a filosofia existir.

A conclusão inevitável é que todas elas são necessárias, ainda que cada uma a seu modo e sem a mesma importância para as diferentes pessoas. E o curioso - para não dizer maravilhoso - é que, de uma maneira ou de outra, a maioria das pessoas, senão todas, usufrui, ainda que desigualmente, de cada uma delas.

A arte é exemplo disso. Não importa se esta ou aquela pessoa nunca viu a Capela Sistina, porque, no dia em que a vir, se renderá à sua beleza. Isso vale igualmente para a ciência, a religião ou a filosofia, que atuam sobre nossa vida, quer o percebamos ou não.

É que somos seres culturais, e não apenas porque nos apoiamos em valores éticos, estéticos, religiosos, filosóficos, científicos -mas porque eles são constitutivos dessa galáxia inventada que é o mundo humano.

Como numa galáxia cósmica, a diversidade da matéria e as relações de espaço e tempo, de presente, passado e futuro, fazem com que, de algum modo, tudo ali seja atual, já que qualquer um de nós pode encontrar numa frase de Sócrates, num verso de Fernando Pessoa, numa imagem pintada por Rembrandt, a verdade ou a inspiração que nos reconciliará com a vida.

Isso não significa que devamos pensar como Sócrates ou pintar como Rembrandt e, sim, que a invenção do novo não implica a negação do que já foi feito, mas a sua superação dialética.

Todo artista sabe que a arte não nasceu com ele e que um dos sentidos essenciais de sua obra é incorporar-se a essa galáxia cultural que constitui a nossa própria existência.

Não entenda isso como uma proposta de conformismo, que seria contrária à minha própria tese de que o homem se inventa e inventa o seu mundo, já que seria impossível inventá-lo se apenas repetissem o que já existe.

Por isso mesmo, é perfeitamente natural que alguns artistas de hoje busquem expressar-se sem se valer das linguagens artísticas e, sim, antes, repelindo-as, para inventar um modo jamais utilizado por artistas do passado.

Como já observei, entre esses há os que simplesmente negam a arte e outros que pretendem criar arte valendo-se de elementos antiartísticos ou não artísticos.

Em princípio, suas experiências não têm que ser negadas, uma vez que essa sua atitude radical pode suscitar expressões surpreendentes. E isso às vezes ocorre, embora não seja frequente.

Não resta dúvida de que quem opta por uma atitude tão radical merece atenção e crédito, por seu inconformismo e por sua coragem, mas isso, por si só, não basta.

É preciso que dessa opção radical e corajosa resulte alguma coisa que nos comova e se some a esse mundo imaginário de que já falamos. Honestamente, deve-se admitir que a audácia por si só não é valor artístico.

Nada me alegra mais do que me deparar com uma criação artística inovadora, mas, para isso, não basta fugir das normas, das soluções conhecidas e situar-se no polo oposto: é imprescindível que a obra inusitada efetivamente transcenda a banalidade e a sacação apenas cerebral ou extravagante.

O que todos nós queremos é a maravilha, venha de onde vier, surja de onde surgir.

E aqui cabe aquela afirmação minha - que tem sido repetida por mim e até por outras pessoas - de que a arte existe porque a vida não basta.

Nela está implícito que não é função da arte retratar a realidade, mas reinventá-la. É, portanto, o oposto do falecido realismo socialista que só faltou, em vez de pintar o operário, colocá-lo em carne e osso no lugar da obra.

E nisso não estaria muito distante de certos artistas de agora, ditos conceituais, como a que pôs casais nus em pelo nas salas do MoMA, de Nova York. Como essa arte visa gente de muita grana, bem que poderia chamar-se "realismo high society".

Tuesday, November 15, 2011


Vladimir Safatle

Pensar a USP

As reações ao que ocorreu na USP demonstram como, muitas vezes, é difícil ter uma discussão honesta e sem ressentimentos a respeito do destino de nossa maior universidade. Se quisermos pensar o que está acontecendo, teremos que abandonar certas explicações simplesmente falsas.

Primeiro, que o epicentro da revolta dos estudantes seja a FFLCH, isto não se explica pelo fato de a referida faculdade estar pretensamente "em decadência". Os que escreveram isso são os mesmos que gostam de avaliar universidades por rankings internacionais.

Mas, vejam que engraçado, segundo a QS World University Ranking, os Departamentos de Filosofia e de Sociologia da USP estão entre os cem melhores do mundo, isso enquanto a própria universidade ocupa o 169º lugar. Ou seja, se a USP fosse como dois dos principais departamentos da FFLCH, ela seria muito mais bem avaliada.

Segundo, não foram alunos "ricos, mimados e sem limites" que provocaram os atos. Entre as faculdades da USP, a FFLCH tem o maior percentual de alunos vindos de escola pública e de classes desfavorecidas. Isso explica muita coisa.

Para alunos que vieram de Higienópolis, a PM pode até significar segurança, mas aqueles que vieram da base da pirâmide social têm uma visão menos edulcorada.

Eles conhecem bem a violência policial de uma instituição corroída por milícias e moralmente deteriorada por ser a única polícia na América Latina que tortura mais do que na época da ditadura militar.

Não há nada estranho no fato de eles rirem daqueles que gritam que a PM é o esteio do Estado de Direito. Não é isso o que eles percebem nos bairros periféricos de onde vieram.

Terceiro, a revolta dos estudantes nada tem a ver com o desejo de fumar maconha livremente no campus. A descriminalização da maconha nunca foi uma pauta do movimento estudantil.

Infelizmente, o incidente envolvendo três estudantes com um cigarro de maconha foi a faísca que expôs um profundo sentimento de não serem ouvidos pela reitoria em questões fundamentais. Era o que estava realmente em jogo. Até porque, sejamos claros, mesmo se a maconha fosse descriminalizada, ela não deveria ser tolerada em ambientes universitários, assim como não se tolera a venda de bebidas alcoólicas em vários campi.

Quando ocorreu a morte de um aluno da FEA, vários grupos de estudantes insistiram que a vinda da PM seria uma máscara para encobrir problemas sérios na segurança do campus, como a iluminação deficiente, a parca quantidade de ônibus noturnos, a concentração das moradias estudantis em só uma área e a falta de investimentos na guarda universitária. Isso talvez explique porque 57% dos alunos dizem que a presença da PM não modificou em nada a sensação de segurança.

Opinião.

Monday, November 14, 2011

Análise

CRISE NA USP

Conflito na universidade é sintoma de crise democrática

MAURO PAULINO - DIRETOR-GERAL DO DATAFOLHA
ALESSANDRO JANONI - DIRETOR DE PESQUISAS DO DATAFOLHA

A manifestação recente de estudantes da USP não é a brincadeira de criança que se tenta desenhar. Não se restringe ao debate sobre legalização das drogas ou estratégias de segurança pública. É um sintoma sério de crise democrática.

A exemplo do que vem acontecendo em outros países, as instituições tradicionais de representação do modelo hegemônico de democracia se distanciam da população, em especial dos jovens.

Cada vez mais os jovens se sentem menos representados por seus representantes. Os meios formais de participação política não gozam do prestígio de outrora. A representados, às suas necessidades e suas eventuais bandeiras, sobram frustrações.

Nos últimos anos, sinais dessa crise de representação foram observados em diversos estudos.

O Datafolha, por exemplo, em várias ocasiões tratou exclusivamente do segmento, tanto em pesquisas de mercado quanto em trabalhos de opinião pública.

Em 2008, em levantamento nacional, o instituto fez um raio X do jovem brasileiro, que, segundo os resultados, mesmo com acesso à informação por meio de múltiplas plataformas, não se via atendido em demandas básicas, como a inclusão no mercado de trabalho, educação de qualidade e combate à violência.

No ano passado, em pesquisa feita para a agência BOX 1824, o instituto detectou o papel da internet como arma política desse segmento em uma mobilização que dispensa intermediários e que encontra base no grau de identificação social entre usuários da rede em processos batizados de microrrevoluções.

Na pesquisa DNA Paulistano, feita há três anos pelo Datafolha em parceria com a Folha justamente para mapear as demandas da população de cada bairro de São Paulo, esse diagnóstico fica ainda mais claro.

De 32 itens avaliados em cada distrito do município, políticas específicas para o segmento jovem ficam em penúltimo lugar na matriz de avaliação geral da cidade, com nota média 3,7, numa escala que vai de zero a dez. Só ganha da nota atribuída à acessibilidade para deficientes físicos (2,9).

As piores notas para políticas para jovens ficam em bairros da periferia como Brasilândia e Lajeado.

Se na USP, berço da classe média paulistana, a falta de canais adequados para a participação dos jovens tomou a proporção que conhecemos, é preocupante o cenário que se projeta para a maioria do segmento, alocada principalmente nas franjas da cidade.

Se uma crise equivalente à europeia aqui se instalasse, como a polícia reagiria a eventuais manifestações dos jovens da periferia? Especialmente sem a mesma atenção da mídia, tão criticada pelos uspianos.

Editoriais

A POLÍCIA E A USP

PM tem problemas mais graves a resolver que revistar jovens, universitários ou não, à procura de pequenas quantidades de maconha

Efetuada a remoção do grupo de estudantes que invadira a reitoria da USP, não se dissipou o debate sobre a presença de policiais militares na Cidade Universitária.

Foi ilegítima e antidemocrática a atitude daquela minoria de ativistas, derrotados nas próprias instâncias deliberativas dos estudantes, ao ocupar as dependências administrativas da universidade.

Como mostrou pesquisa Datafolha publicada ontem, a maioria dos alunos (58%) é favorável ao convênio firmado pela reitoria com a Polícia Militar, enquanto 36% declaram-se contrários.

Vale notar, entretanto, que em alguns setores da comunidade universitária as inquietações suscitadas pela atuação cotidiana da PM extravasam o limitado e incandescente horizonte ideológico dos invasores da reitoria.

Não há dúvida, como já foi assinalado neste espaço, que a USP não é território que se excetue, por qualquer razão histórica ou simbólica, ao âmbito da ação legítima do poder de Estado. Muito menos seus estudantes, professores e funcionários constituem alguma casta ou elite que mereça privilégios por parte dos agentes da lei.

Foi particularmente infeliz, sob este aspecto, a frase do ministro da Educação, Fernando Haddad, segundo o qual "a USP não é a cracolândia". É difícil afastar a impressão de que, com isto, sugeria-se existir uma carta branca para a PM reprimir como bem entendesse os miseráveis dependentes do crack no centro de São Paulo, cabendo, ao contrário, mesuras especiais à "gente diferenciada" que frequenta o campus do Butantã.

A lei vale para todo cidadão brasileiro, universitário ou não. Deve valer, contudo, para a própria polícia. São notórios e frequentes, no Brasil, os casos de truculência policial; de assassinatos disfarçados sob o pretexto de "resistência à prisão"; de falsos flagrantes organizados por maus policiais em busca de propina.

A legislação brasileira a respeito das drogas, que deveria avançar no sentido de uma gradual liberalização, já exclui o porte e o consumo pessoal da pena de prisão. Persistem, entretanto, a intimidação e a repressão aos usuários.

Na USP e fora dela, a PM tem problemas mais importantes a resolver do que revistar mochilas de adolescentes à procura de pequenas quantidades de maconha.

Exceto em casos específicos de investigação fundamentada, a polícia não terá reconhecimento da comunidade se encarar como suspeito qualquer agrupamento de rapazes ou moças em seus momentos de lazer, cercando-os do olhar hostil da vigilância armada. Policiais e cidadãos devem conviver sem desconfiança mútua - essa obviedade está longe de confirmar-se no Brasil. A questão, que não exclui o rigoroso respeito à lei, envolve também um aspecto político, e até de relações públicas, que precisa ser levado em conta em todos os ambientes. Sendo o da USP especialmente sensível ao problema, a inquietação em curso poderia ser uma oportunidade para debater, e colocar em prática, maneiras de superá-lo.

Sunday, November 13, 2011

A partir de dicas por fonte confiabilíssima em Brasília:

Presidente pavio curto

Broncas frequentes de Dilma introduzem tensão na relação com ministros e colaboradores

VERA MAGALHÃES - ENVIADA ESPECIAL A BRASÍLIA

Quem tem medo de Dilma Rousseff? A julgar pelos relatos do dia a dia na Esplanada dos Ministérios, a resposta é simples: todo mundo.

A Folha ouviu ministros, assessores e parlamentares sobre as famosas broncas da presidente. A conclusão é que ninguém está imune a elas - nem os "queridinhos" de Dilma, como Gilberto Carvalho (Secretaria Geral) e Guido Mantega (Fazenda).

A lista de fatores que provocam a ira da presidente vai do desconhecimento dos assuntos de governo a tentativas de enrolá-la ou dar palpites sobre áreas dos colegas.

Alguns ministros se abalam emocionalmente com os pitos. Duas ajudantes de ordem e uma secretária da Presidência pediram demissão.

Anderson Dorneles, assessor pessoal que é tratado como se fosse um filho e acompanha Dilma há mais de 20 anos, já ameaçou duas vezes ir embora do governo.

Alguns assessores evitam levar problemas a Dilma por temer o mau humor presidencial. "Tem gente que nem decide nem submete a ela, com medo da bronca", resume um ministro, que, assim como os demais ouvidos pela Folha, falou em caráter reservado.

Outra senha para a gritaria é alguém tentar levar um "contrabando" para uma reunião. "Ela conhece o governo, sabe os caminhos da burocracia. Não dá para enrolá-la", sentencia outro auxiliar.

DILMA X LULA

Aqueles que permaneceram da gestão Lula dizem que o ex-presidente também dava broncas, mas elas eram "genéricas" e "no plural".

Com Dilma a coisa é pessoal, olho no olho, em público e quase sempre aos gritos.

Os alvos preferenciais são os ministros mais próximos: os palacianos e os que participam da coordenação de governo. Paradoxalmente, aqueles de quem ela não gosta escapam quase ilesos, porque raramente são recebidos.

Quando o tempo fecha, a presidente cruza os braços, põe as mãos sob as axilas, inclina a cabeça de lado e mira alguém. "O cara sabe na hora que vai para o pelourinho", descreve uma testemunha.

O bordão "meu querido" é outro sinal de encrenca.

Um traço de estilo que tensiona o ambiente é que Dilma não faz confraternizações. Aboliu a Festa Junina na Granja do Torto e as rodadas de prosa regadas a uísque que Lula promovia nas viagens.

"Se, numa viagem, ela convoca um café, é sempre para trabalhar", descreve quem já integrou algumas comitivas.

Apesar do temor, os assessores veem o estilo ríspido como demonstração de que ela está "investida da função" e "leva o cargo a sério".

"Chega a ser engraçado, porque, com a bronca, vem sempre uma ironia. Mas só quando não é com você", resume uma de suas vítimas.

Wednesday, November 09, 2011


A carta mostrada nesta página é datada de dois meses antes do suicídio de Van Gogh em julho de 1890. O pintor acabava de terminar um longo tratamento num asilo de Saint-Rémy de Provence e preparava-se para partir para Paris, onde planejava permanecer apenas quinze dias e seguir para Auvers.

Van Gogh escreve para o casal Ginoux, que o hospedara quando chegara em Arles, quatro anos antes, e com quem mantivera boa amizade.  A senhora Ginoux foi retratada várias vezes como A Arlesiana e uma dessas versões encontra-se hoje no Museu de Arte de São Paulo. Van Gogh também pintou o resto da família, tanto o senhor Ginoux, como todos os seus filhos.

Van Gogh escreve para Ginoux para desculpar-se de não ter podido ir a Arles despedir-se pessoalmente do casal ao deixar o asilo em Saint-Rémy, e para pedir-lhe um simples favor: mandar para Paris o que sobrara de tralha sua guardada na casa dos Ginoux.

O paupérrimo pintor pede que suas coisas sejam mandadas pelo trem mais lento para Paris − para poupar no preço do transporte − e chega a sugerir que os colchões de palha das camas sejam esvaziados, pois voltar a enchê-los em Paris custaria mais barato que o preço do transporte da palha:

“O objetivo desta é lhes pedir para mandar por trem de velocidade lenta minhas duas camas e os colchões que ainda estão com vocês... Quanto ao resto dos móveis, ainda há o espelho que eu gostaria também de ter. Se vocês puderem colar sobre ele fitas de papel para impedir que se quebre, serei grato. Com relação as duas cômodas, cadeiras e mesas, peço-lhes que as aceitem pelo trabalho que dei...”.


http://origin.revistapiaui.estadao.com.br/blogs/questoes-manuscritas/geral/a-tralha-de-van-gogh

Saturday, November 05, 2011

HÉLIO SCHWARTSMAN

A democracia funciona?

O premiê George Papandreou até que tentou submeter a referendo o pacote de ajuda da UE à Grécia, mas foi impedido por uma improvável aliança entre membros de seu próprio partido e países graúdos da Europa. A questão é: mercados e democracia são compatíveis?

Grupos mais à esquerda respondem com um sonoro "não" e se põem a maldizer o capital, num roteiro conhecido. Quem também diz "não", mas fica com o mercado, maldizendo os eleitores, é o economista ultraliberal e militante libertário Bryan Caplan, em The Myth of the Rational Voter (o mito do eleitor racional). A tese do autor é simples: democracias não dão muito certo porque elas entregam aos eleitores o que eles querem - e o que eles querem é frequentemente algo que os prejudica. Isso ocorre porque cidadãos de Estados democráticos, como todos os seres humanos, vêm de fábrica com uma série de preferências e vieses que os impelem a escolhas ruins.

Exemplos de erros sistemáticos citados incluem a nossa resistência natural a elementos do mercado, como juros e intermediários (a quem chamamos de "atravessadores"), a estrangeiros (imigração e deficit comercial são vistos como vilões) e nossa obsessão por criar empregos, mesmo que à custa de novas tecnologias.

No caso específico do pacote grego, ele provavelmente seria recusado nas urnas devido à nossa tendência de valorizar o presente em detrimento do futuro. Para não perder mais agora, o eleitor grego sacrificaria a retomada mais à frente.

Na democracia, sustenta o autor, esses vieses são ampliados pelo fato de que, como o peso de cada voto é irrisório, a urna se torna o lugar onde o eleitor dá rédeas aos seus instintos antimercadistas mais básicos. Não compro tudo da argumentação de Caplan. A economia precisa melhorar muito antes de reclamar o estatuto de ciência dura. Mas é sempre bom ler argumentos inteligentes dos quais discordamos. No mínimo, aprimoramos nossas próprias ideias.


PAUL KRUGMAN

Oligarquia à moda dos EUA

Os manifestantes que dizem representar 99% da sociedade podem até ter errado a conta para menos

A desigualdade voltou ao noticiário, graças em larga medida ao movimento "Ocupe Wall Street", mas com um empurrãozinho do Serviço Orçamentário do Congresso. E vocês sabem o que isso significa: é hora de os enroladores entrarem em ação.

Em relatório recente, o Serviço Orçamentário documentou um declínio acentuado na proporção da renda total do país que chega aos norte-americanos de renda baixa e média. Hoje, os 80% de domicílios com menos renda respondem por menos de 50% da renda nacional total.

Em resposta, os suspeitos de sempre ofereceram os argumentos de sempre: os dados são incorretos (não são), a composição da classe mais rica muda o tempo todo (não é verdade) e outros. O mais popular parece ser o de que, embora já não sejamos uma sociedade de classe média, somos uma sociedade de classe média alta, na qual uma ampla classe de trabalhadores com alto nível educacional e a competência necessária a concorrer no mundo moderno se sai muito bem.

A história é bacana. Mas, infelizmente, não é verdade.

Os trabalhadores que têm diplomas universitários de fato apresentam desempenho superior, em média, ao dos que não têm, e essa disparidade vem se alargando ao longo do tempo. Mas os americanos de melhor nível educacional de forma alguma estão imunes à estagnação de renda e à insegurança econômica. Os avanços salariais nessa faixa são praticamente inexistentes desde 2000, e hoje quem tem diploma universitário tem menor probabilidade de obter um bom plano de saúde do que os trabalhadores com educação secundária em 1979.

Assim, quem está ficando com a maioria dos ganhos? Uma minoria ínfima e muito rica.

O relatório do Serviço Orçamentário nos informa que basicamente toda a renda redistribuída dos 80% mais pobres nos EUA beneficiou o 1% mais rico da sociedade. Os manifestantes que afirmam representar 99% da sociedade estão essencialmente certos, e os sabichões que garantem solenemente que a questão real é a educação, e não o avanço na renda de uma pequena elite, estão completamente errados.

Na verdade, os manifestantes podem ter errado para menos em sua conta. Pesquisa anterior, cujos resultados só se estendiam até 2005, constatou que quase dois terços dos avanços de renda entre o 1% mais rico beneficiavam o 0,1% mais rico - o milésimo mais rico dos norte-americanos, cuja renda real subiu mais de 400% entre 1979 e 2005.

E quem compõe esse 0,1%? Empresários heroicos, criadores de empregos? Não: na maioria, executivos. Pesquisas recentes demonstram que 60% desse 0,1% se compõe de executivos de companhias não financeiras ou tem as finanças como fonte principal de rendas. Ou seja: descrição perfeita de Wall Street.

Mas por que a concentração de renda e riqueza em tão poucas mãos importa? A resposta mais ampla é que ela é incompatível com a democracia real. Nosso sistema político vem sendo distorcido pela influência dos endinheirados, e essa distorção se agrava à medida que a riqueza desses poucos se multiplica.

Alguns sabichões tentam descartar como tolice a preocupação com a desigualdade crescente. A verdade é que a natureza de nossa sociedade como um todo está em jogo.
 

Friday, November 04, 2011

O ano que não terminou

Então, Stenzel, há perigo de as coisas melhorarem?
DEPUTADO RAIMUNDO PADILHA

A brincadeira de Padilha com seu colega Clóvis Stenzel, porta-voz da linha-dura, dava o clima dos momentos que ficaram conhecidos como a crise dos 100 dias. Durante aquela primavera crítica, só em uma ocasião o país pareceu esquecer os seus problemas: nos dez dias em que a rainha Elizabeth II, da Inglaterra, e seu marido, o príncipe Philip, visitaram o Brasil. "A coroa inglesa está nos protegendo nesta crise", dizia o deputado Último de Carvalho, velho pessedista mineiro então hospedado na Arena.

Na verdade, uma espécie de acordo estabeleceu que as acusações e ameaças seriam adiadas post-Queen. A chamada "trégua da Rainha" fez emergir entre nós uma certa nostalgia da realeza há tempos perdida. "Não ter uma rainha", escreveu Nelson Rodrigues, "tem sido um dos complexos mais amargos do brasileiro. Nós não temos nem uma Madame Pompadour."

A visita e suas abundantes gafes, de parte a parte, devolveram o riso à cena política. Sua Alteza deu "buenas tardes" em fluente português, a nossa primeira-dama chamou o príncipe de "pão", criando um sério problema para o íntérprete, e o presidente cumprimentou a rainha, em novembro, pelo seu aniversário, ocorrido em abril.

Para remendar, saudou-a num inglês de fazer inveja ao português da rainha. Ao levantar um brinde na recepção do Itamarati à Sua Alteza, Costa e Silva, de taça erguida, disse: "God... God... the Queen". Não houve meio de o verbo sair. Estávamos quites.

Ainda bem que era um verbo do qual, mais do que a rainha, ele estava precisando. Naquela altura, só Deus salvaria a nossa cambaleante democracia e quem, como Costa e Silva, se dizia seu pilar.

Mais do que nunca, tornava-se visível a dualidade do poder, e previsíveis as consequências dessa fratura. No Congresso, havia dois comandos, o comando da paz, no gabinete do senador Daniel Krieger, e o comando da guerra, no gabinete do deputado Geraldo Freire. Mesmo no interior do que se poderia chamar de coração do governo, encontravam-se representantes dessa divisão.

O chefe da Casa Civil, Rondon Pacheco, por suas origens parlamentares e por sua vocação liberal, trabalhava naturalmente pela normalização democrática do país. Já o chefe da Casa Militar, general Jayme Portella, era o que Castelinho chamou de "consciência revolucionária do marechal", ou "uma ponta de lança do poder militar plantada no coração do governo."

O próprio Costa e Silva encarnava essa ambivalência. Como chefe de um governo, bem ou mal constitucional, ele era a mais alta autoridade civil do país; por outro lado, o seu mandato não emanava do povo, nem das forças políticas, mas das Forças Armadas, a quem devia gratidão e de cujo apoio dependia sua sobrevivência política.

Como dizia Castelinho, "ele era ao mesmo tempo o mais alto dos paisanos e o mais alto dos milicos". Se tivesse que fazer uma escolha, não era difícil prever para que lado o seu coração penderia. E a hora dessa opção estava chegando.

Zuenir Ventura - 1968: o ano que não terminou. Menos a Honra - Parte IV

Tuesday, November 01, 2011

PURPLESOFA

It can always get worse.

November 1, 2011

Eu, o SUS, a ironia e o mau gosto

Nina Crintzs

Há seis anos atrás eu tive uma dor no olho. Só que a dor no olho era, na verdade, no nervo ótico, que faz parte do sistema nervoso. O meu nervo ótico estava inflamado, e era uma inflamação característica de um processo desmielinizante. Mais tarde eu descobri que a mielina é uma camada de gordura que envolve as células nervosas e que é responsável por passar os estímulos elétricos de uma célula para a outra. Eu descobri também que esta inflamação era causada pelo meu próprio sistema imunológico que, inexplicavelmente, passou a identificar a mielina como um corpo estranho e começou a atacá-la. Em poucas palavras: eu descobri, em detalhes, como se dá uma doença-auto imune no sistema nervoso central. Esta, específica, chama-se Esclerose Múltipla. É o que eu tenho. Há seis anos.

Os médicos sabem tudo sobre o coração e quase nada sobre o cérebro – na minha humilde opinião. Ninguém sabe dizer porque a Esclerose Múltipla se manifesta. Não é uma doença genética. Não tem a ver com estilo de vida, hábitos, vícios. Sabe-se, por mera observação estatística, que mulheres jovens e caucasianas estão mais propensas a desenvolver a doença. Eu tinha 26 anos. Right on target.

Mil médicos diferentes passaram pela minha vida desde então. Uma via crucis de perguntas sem respostas. O plano de saúde, caro, pago religiosamente desde sempre, não cobria os especialistas mais especialistas que os outros. Fui em todos – TODOS – os neurologistas famosos – sim, porque tem disso, médico famoso – e, um por um, eles viam meus exames, confirmavam o diagnóstico, discutiam os mesmos tratamentos e confirmavam que cura, não tem. Minha mãe é uma heroína – mãos dadas comigo o tempo todo, segurando para não chorar. Ela mesma mais destruída do que eu. E os médicos famosos viam os resultados das ressonâncias magnéticas feitas com prata contra seus quadros de luz – mas não olhavam para mim. Alguns dos exames são medievais: agulhas espetadas pelo corpo, eletrodos no córtex cerebral, “estímulos” elétricos para ver se a partes do corpo respondem. Partes do corpo. Pastas e mais pastas sobre mesas com tampos de vidro. Colunas, crânio, córneas. Nos meus olhos, mesmo, ninguém olhava.

O diagnóstico de uma doença grave e incurável é um abismo no qual você é empurrado sem aviso. E sem pára-quedas. E se você tá esperando um “mas” aqui, sinto lhe informar, não tem. Não no meu caso. Não teve revelação divina. Não teve fé súbita em alguma coisa maior. Não teve uma compreensão mais apurada das dores do mundo. O que dá, assim, de cara, é raiva. Porque a vida já caminha na beirada do insuportável sem essa foice tão perto do pescoço. Porque já é suficientemente difícil estar vivo sem esta sentença de morte lenta e degradante. Dá vontade de acreditar em Deus, sim, mas só se for para encher Ele de porrada.

O problema é que uma raiva desse tamanho cansa, e o tempo passa. A minha doença não me define, porque eu não deixo. Ela gostaria muitíssimo de fazê-lo, mas eu não deixo. Fiz um combinado comigo mesma: essa merda vai ter 30% da atenção que ela demanda. Não mais do que isso. E segue o baile. Mas segue diferente, confesso. Segue com menos energia e mais remédios. Segue com dias bons e dias ruins – e inescapáveis internações hospitalares.

A neurologista que me acompanha foi escolhida a dedo: ela tem exatamente a minha idade, olha nos meus olhos durante as minhas consultas, só ri das minhas piadas boas e já me respondeu “eu não sei” mais de uma vez. Eu acho genial um médico que diz “eu não sei, vou pesquisar”. Eu não troco a minha neurologista por figurão nenhum.

O meu tratamento custaria algo em torno de R$12.000,00 por mês. Isso mesmo: 12 mil reais. “Custaria” porque eu recebo os remédios pelo SUS. Sabe o SUS?! O Sistema Único de Saúde? Aquele lugar nefasto para onde as pessoas econômica e socialmente privilegiadas estão fazendo piada e mandando o ex-presidente Lula ir se tratar do recém descoberto câncer? Pois é, o Brasil é o único país do mundo que distribui gratuitamente o tratamento que eu faço para Esclerose Múltipla. Atenção: o ÚNICO. Se isso implica em uma carga tributária pesada, eu pago o imposto. Eu e as outras 30.000 pessoas que tem o mesmo problema que eu. É pouca gente? Não vale a pena? Todos os remédios para doenças incuráveis no Brasil são distribuídos pelo SUS. E não, corrupção não é exclusividade do Brasil.

O maior especialista em Esclerose Múltipla do Brasil atende no HC, que é do SUS, num ambulatório especial para a doença. De graça, ou melhor, pago pelos impostos que a gente reclama em pagar. Uma vez a cada seis meses, eu me consulto com ele. É no HC que eu pego minhas receitas – para o tratamento propriamente dito e para os remédios que uso para lidar com os efeitos colaterais desse tratamento, que também me são entregues pelo SUS. O que me custaria fácil uns outros R$2.000,00.

Eu acredito em poucas coisas nessa vida. Tenho certeza de que o mundo não é justo, mas é irônico. E também sei que só o humor salva. Mas a única pessoa que pode fazer piada com a minha desgraça sou eu – e faço com regularidade. Afinal, uma doença auto-imune é o cúmulo da auto-sabotagem.

Mas, attention shoppers: fazer piada com a tragédia alheia não é humor, é mau gosto. É, talvez, falha de caráter. E falar do que não se conhece é coisa de gente burra. Se você nunca pisou no SUS – se a TV Globo é a referência mais próxima que você tem da saúde pública nacional, talvez esse não seja exatamente o melhor assunto para o seu, digamos, “humor”.

Quem me conhece sabe que eu não voto – não voto nem justifico. Pago lá minha multa de três reais e tals depois de cada eleição porque me nego a ser obrigada a votar. O sistema público de saúde está longe de ser o ideal. E eu adoraria não saber tanto dele quanto sei. O mundo, meus amigos, é mesmo uma merda. Mas nós estamos todos juntos nele, não tem jeito. E é bom lembrar: a ironia é uma certeza. Não comemora a desgraça do amiguinho, não.