Wednesday, March 28, 2012

O homem, o ser falante, se constitui pelo rompimento de sua harmonia com a natureza e, ao ter de abdicar de um destino guiado pela força instintiva, é impelido  a tecer a singular trama pulsional de sua vida. A criança chega ao mundo expulsa de seu acolhimento natural. Ao nascer, ao perder o envoltório protetor da placenta, ela perde - perda materializada pelo corte do cordão umbilical; ao enfrentar o desmame, outra perda. E não é difícil acompanharmos as sucessivas perdas que a inserção  no universo simbólico impõe e, em consequência, verificarmos o lugar do luto e seu trabalho ao longo de nossas vidas.

O que de fato é perdido quando todas essas perdas acontecem? Arriscaríamos dizer que luto e melancolia muitas vezes partilham uma mesma indagação, e que essas perdas que acontecem ao longo da vida poderão ou não ser significadas, simbolizadas, e receber um sentido que as farão caminhar na direção de um luto; em contrapartida, outra vicissitude poderá também ter lugar, e a perda ou as perdas permanecerem no vazio da falta de sentido, questão central da melancolia, materializada na dor da existência. Nessa direção, a procura do sentido da vida, a interrogação sobre a própria identidade ("Quem sou?") e o questionamento da existência ("Como existo?") justificam a relação entre a genialidade e a melancolia, tão presente na Antiguidade.

Por que razão todos os homens que foram homens de exceção, no que concerne à filosofia, à ciência do Estado, à poesia ou às artes, são manifestamente melancólicos, e alguns a ponto de serem tomados por males dos quais a bile negra é a origem, como contam, entre os relatos relativos aos heróis, os que são consagrados a Hércules?

Será o melancólico um enlutado na vida, aquele que não consegue uma resolução para suas perdas?

Freud insiste no que denomina "trabalho de luto". Ele não menciona os rituais através dos quais, ao longo da história, o homem pranteia seus mortos, porém, ao marcar o luto como ato, o luto como trabalho do eu (ego), chama a atenção para as consequências do abandono e do esquecimento desses rituais como processos de simbolização da dor.

Urania Tourinho Peres - Uma Ferida a Sangrar-lhe a Alma (posfácio à Luto e Melancolia - Sigmund Freud, tradução, introdução e notas por Marilene Carone)

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