Tuesday, July 23, 2013

Hannah Arendt - o filme


No programa Roda Viva, o filósofo e psicanalista Slavoj Zizek, que expele palavras como de uma espécie de metralhadora giratória, referiu-se três vezes ao filósofo Martin Heidegger. Na primeira, a legenda saiu "Hildegard"; nas outras duas, variações um pouco mais próximas do original não foram suficientes para esconder o fato de que o responsável pela tradução, muito provavelmente, não sabia de quem se falava.

Mas, sendo honesto, quem sabe quem foi Martin Heidegger? Quem seria capaz de reconhecê-lo numa foto?

Em caso de resposta negativa, é preciso cuidado com o filme mais recente de Margarethe Von Trotta, em que a bela Barbara Sukowa interpreta uma Hannah Arendt adentrando a meia idade, envolta em permanente fumaça de cigarro, madura como pensadora e cheia de afetos.

O filme usa como fio condutor o julgamento do criminoso de guerra Adolf Eichmann pelo recém fundado Estado de Israel e a escrita e publicação da série de reportagens para a revista New Yorker que posteriormente Arendt transformou em livro, Eichmann em Jerusalém, saído em 1964.

Heidegger surge três ou quatro vezes no roteiro em mais de um momento de sua vida, portanto, com mais de uma aparência. A quem não conheça o histórico do filósofo no partido nazista, o que temos é um professor e sua aluna aparentemente apaixonados que se encontram anos depois (no "presente" do filme) e se referem a um obscuro "Discurso da Reitoria". A maneira como a encenação se dá indica que "Discurso da Reitoria" é uma senha para algo revelador. Impossível de se entender, infelizmente.

Em princípio, as ideias fundamentais de Hannah Arendt sobre a banalidade do mal, que o livro Eichmann em Jerusalém celebrizou, o filme sabe, sim, tocar. O problema está em que é indispensável ser, no mínimo, familiarizado com vida e obra da escritora para que tais ideias façam sentido. Sem dúvida um desacerto cinematográfico que veda boa parte do entendimento dos diálogos a quem não tenha feito a "lição de casa".

De bom, o filme oferece um reconhecimento do instante em que Arendt formula, para si própria, o conceito de banalidade do mal. Esse verdadeiro susto (também registrado no Eichmann, assim como no ensaio Verdade e Política escrito como resposta pública ao que ela chamou ironicamente de "controvérsia" em torno do livro e, ainda, nas biografias), o filme consegue captar: a urgência de ter que admitir que se estava diante de algo que não havia sido vislumbrado. É isso e não (como quiseram vários dos que a atacaram) qualquer arrogância ou "trauma" antigo que a leva a enfrentar, ao preço de ser politicamente estigmatizada por seus próximos, o repúdio público e o ódio judeu que se manifestam de imediato e com toda a clareza, dos anfitriões em Jerusalém aos editores da New Yorker.

O que fica é que roteiro e direção demonstram fluência nos conceitos básicos da obra da autora, acrescentam detalhes interessantes a sua vida afetiva, mas a quem não a conheça, resta preencher com temáticas pessoais as várias gavetas deixadas abertas ao longo do filme, "adivinhando" certos sentidos.

Uma dessas gavetas poderia ser, diagnosticar o carrasco nazista como portador de um distúrbio de caráter, hipótese menos "complicada". Despreza-se, no entanto, assim, parte importante da descoberta: não se encontra traço de desequilíbrio psíquico em Eichmann. O que há é um vazio moral tão fundo que obriga a uma viravolta do eixo que norteara o exame do fenômeno totalitário formulado por Arendt até ali. Pois, pior que um evento, ainda que gigantesco, circunscrito a uma patologia singular e, no limite, intransferível, Adolf Eichmann revelava a possibilidade do mal mais extremo ser praticado por qualquer um. Daí, o adjetivo "banal". Não para perdoar ou minimizar os horrores cometidos e sim para circunscrever os campos de extermínio entre as consequências possíveis das ações humanas, não as raras, mas as mais ordinárias ações humanas.


Saturday, July 13, 2013

8 Batutas

Os Sonhos dos Outros

Na década de 1960, o artista Robert Smithson disse que as redes de signos da cultura contemporânea chegariam a uma densidade tamanha que formariam uma casca lisa e uniforme, sobre a qual seria possível correr livremente em todas as direções, como num deserto incontaminado. A música popular brasileira talvez esteja chegando a uma situação similar. O cânone, que vai mais ou menos de Nazareth a Chico e Caetano, já se fechou. Pode sofrer um acréscimo aqui ou ali, mas na substância já está formado, e é um valor indiscutível e incontornável para qualquer um que não seja de todo surdo ou insensível. Forma um núcleo sólido, uma casca dura sobre a qual se pode correr à vontade. Desse ponto de vista, já não há mais diferença substancial entre, digamos, Carlinhos Brown e Arnaldo Antunes, Zélia Duncan e Chico César, José Miguel Wisnik e Cássia Eller. Eles têm o mesmo background e o mesmo objetivo: simplesmente, o de escrever canções - e a canção brasileira já é definitivamente o que é. Não há mais distâncias porque, descontadas as diferenças de gosto e de qualidade, não há mais direções.

[...] O sonho é sonho de um outro, e nosso sonho é sonhá-lo; nossa veneração intrusiva pode levar o sonhador a perder seu sonho. Por outro lado, o que me caracteriza como este sonhador é justamente a consciência de que o sonho é de outro. Se eu o pego, ele evapora: se ele me pega, eu me perco. Saber lidar com esse risco e, no entanto, manter o sonho em aberto, essa é a questão.

Lorenzo Mammì - Os Sonhos dos Outros - Lendo Música: 10 ensaios sobre 10 canções

Wednesday, July 03, 2013

Rancière

O Espectador Emancipado III


[...] Aquilo que chamamos de imagem é um elemento num dispositivo que cria certo senso de realidade, certo senso comum. Um "senso comum" é, acima de tudo, uma comunidade de dados sensíveis: coisas cuja visibilidade considera-se partilhável por todos, modos de percepção dessas coisas e significados também partilháveis que lhe são conferidos. É também a forma de convívio que liga indivíduos ou grupos com base nessa comunidade primeira entre palavras e coisas. O sistema de Informação é um "senso comum" desse tipo: um dispositivo espaço-temporal dentro do qual palavras e formas visíveis são reunidas em dados comuns, em maneiras comuns de perceber, de ser afetado e de dar sentido. O problema não é opor a realidade a suas aparências. É construir outras realidades, outras formas de senso comum, ou seja, outros dispositivos espaço-temporais, outras comunidades de palavras e coisas, formas e significados.

Essa criação é trabalho de ficção, que não consiste em contar histórias, mas em estabelecer relações novas entre as palavras e as formas visíveis, a palavra e a escrita, um aqui e um alhures, um então e um agora. [...] As imagens da arte não fornecem armas de combate. Contribuem para desenhar configurações novas do visível, do dizível e do pensável e, por isso mesmo, uma paisagem nova do possível. Mas o fazem com a condição de não antecipar seu sentido e seu efeito.

[...] As palavras não estão no lugar das imagens. São imagens, ou seja, formas de redistribuição dos elementos da representação. São figuras que substituem uma imagem por outra, formas visuais por palavras, ou palavras por formas visuais. Essas figuras redistribuem ao mesmo tempo as relações entre o único e o múltiplo, o pequeno número e o grande número. Por isso são políticas, se é que a política consiste principalmente em mudar os lugares e a conta dos corpos.

[...] os meios de comunicação dominantes não nos afogam de modo algum sob a torrente de imagens que dão testemunho de massacres, fugas em massa e outros horrores que constituem o presente de nosso planeta. Bem ao contrário, eles reduzem o seu número, tomam bastante cuidado para selecioná-las e ordená-las. Eliminam tudo o que possa exceder a simples ilustração redundante de sua significação. O que vemos, sobretudo nas telas de informação da televisão, é o rosto de governantes, especialistas e jornalistas a comentarem as imagens, a dizerem o que elas mostram e o que devemos pensar a respeito. Se o horror está banalizado, não é porque vemos imagens demais. Não vemos corpos demais a sofrerem na tela. Mas vemos corpos demais sem nome, corpos demais incapazes de nos devolver o olhar que lhes dirigimos, corpos que são objeto de palavra sem terem a palavra. O sistema de Informação não funciona pelo excesso de imagens, funciona selecionando seres que falam e raciocinam, que são capazes de "descriptografar" a vaga de informações referentes às multidões anônimas. A política dessas imagens consiste em nos ensinar que não é qualquer um que é capaz de ver e falar. E essa lição é confirmada de maneira prosaica pelos que pretendem criticar a inundação das imagens pela televisão.

[..] O problema não é opor as palavras às imagens sensíveis. É subverter a lógica dominante que faz do visual o quinhão das multidões e do verbal o privilégio de alguns.

Jacques Rancière - A Imagem Intolerável - O Espectador Emancipado

Tuesday, July 02, 2013

Rancière

O Espectador Emancipado - II

[...] A política da arte, portanto, não pode resolver seus paradoxos na forma de intervenção fora de seus lugares, no "mundo real". Não há mundo real que seja o exterior da arte. Há pregas e dobras do tecido sensível comum nas quais se jungem e desjungem a política da estética e a estética da política. Não há real em si, mas configurações daquilo que é dado como nosso real, como o objeto de nossas percepções, de nossos pensamentos e de nossas intervenções. O real é sempre objeto de uma ficção, ou seja, de uma construção do espaço no qual se entrelaçam o visível, o dizível e o factível. É a ficção dominante, a ficção consensual, que nega seu caráter de ficção fazendo-se passar por realidade e traçando uma linha de divisão simples entre o domínio desse real e o das representações e aparências, opiniões e utopias. A ficção artística e a ação política sulcam, fraturam e multiplicam esse real de um modo polêmico. O trabalho da política que inventa sujeitos novos e introduz objetos novos e outra percepção dos dados comuns é também um trabalho ficcional. Por isso, a relação entre arte e política não é uma passagem da ficção para a realidade, mas uma relação entre duas maneiras de produzir ficções. As práticas da arte não são instrumentos que forneçam formas de consciência ou energias mobilizadoras em proveito de uma política que lhes seja exterior. Mas tampouco saem de si mesmas para se tornarem formas de ação política coletiva. Contribuem para desenhar uma paisagem nova do visível, do dizível e do factível. Forjam contra o consenso outras formas de "senso comum", formas de um senso comum polêmico.

Jacques Rancière - Paradoxos da Arte Política - O Espectador Emancipado