Saturday, September 28, 2013

O capitalismo é moral? II


Todos nós nos vemos confrontados com essas quatro ordens comuns (deixando a eventual quinta ordem à fé ou à não-fé de uns e outros), que resumo: a ordem tecnocientífica (ou econômico-tecnocientífica), estruturada internamente pela oposição entre o possível e o impossível, mas incapaz de se limitar por si mesma, limitada portanto do exterior por uma segunda ordem, a ordem jurídico-política, a qual é estruturada internamente pela oposição entre o legal e o ilegal, mas tão incapaz quanto a precedente de se limitar por si mesma; limitada portanto, por sua vez, do exterior por uma terceira ordem, a ordem da moral (o dever, o proibido), a qual é completada, "aberta por cima" para uma quarta ordem, a ordem ética, a ordem do amor.

O problema dos limites e da distinção das ordens

Por que o problema dos limites? Porque, quando se renuncia ao "tudo é permitido" do tolo, da geração 68 ou do canalha, coloca-se a questão de saber o que não é permitido. Ora, perguntar o que não é permitido é colocar o problema dos limites.

A ORDEM MORAL

[...] O que é a moral? Para abreviar, responderei com Kant: a moral é o conjunto dos nossos deveres - o conjunto, para dizer com outras palavras, das obrigações ou das proibições que impomos a nós mesmos, não necessariamente a priori (ao contrário do que queria Kant), mas independentemente de qualquer recompensa ou sanção esperada, e até de qualquer esperança. É o conjunto do que vale ou se impõe incondicionalmente, para uma consciência.

Essa moral, quanto à sua origem, é histórica, cultural, logo também relativa: ela é o conjunto das normas que a humanidade criou (de maneira ao mesmo tempo diferente e convergente em todas as civilizações do globo) para resistir à selvageria de que se originou e à barbárie que, de dentro, não pára de ameaçá-la. Mas nem por isso ela deixa de funcionar, subjetivamente, como um absoluto: moralmente, há o que devo fazer (o dever) e o que não devo fazer (o proibido, que nunca é mais que um dever negativo). É por isso que a moral não é tudo (muitas ações, felizmente, não dependem del: elas não são nem moralmente proibidas, nem moralmente exigíveis). É por isso que ela tampouco é nada. 

Coloca-se no entanto a questão de saber se é preciso limitar por sua vez essa terceira ordem, e com o quê.

Limitá-la, parece-me, não é a palavra que convém. Das duas primeiras ordens, devemos temer o pior. Da moral, se ela for bem compreendida, não. Vê-se perfeitamente o que poderia ser um canalha legalista, na ordem nº. 2, um canalha competente e eficiente, na ordem nº. 1... Tenho certa dificuldade para ver o que seria um canalha moral, na ordem nº. 3. Talvez vocês imaginem que há muitos canalhas moralizadores... Concedo-lhes integralmente esse ponto. Mas, precisamente, é essencial à moral que não seja a mesma coisa ser moral  e ser moralizador. A diferença é tão simples que, às vezes, nem dá para perceber. A diferença é a seguinte: ser moral é cuidar do seu dever; ser moralizador é cuidar do dever dos outros - o que é muito mais fácil, admito, muito mais agradável, mas completamente diferente. Alain dizia: "A moral nunca é para o vizinho". Ele tinha razão. Dizer ao vizinho "Você deve ser generoso" não é dar prova de generosidade. Dizer ao vizinho "Você deve ser corajoso não é dar prova de coragem. Ora, ser moralizador é exatamente cuidar da moral do vizinho. Não é moral, portanto. É o que distingue a "ordem moral", no sentido de Mac-Mahon ou dos puritanos, do que chamo de ordem moral. Quando a "ordem da moral" ameaça, o que pode acontecer, é que ela deixou de ser moral para se tornar moralizadora.

Se vocês me concederem essa distinção, hão de me conceder, creio, que dá para perceber perfeitamente o que pode ser um canalha moralizador, mas muito mal o que seria um canalha moral; e que, nesse sentido, essa ordem da moral não precisa ser limitada, em todo caso não no mesmo sentido que as duas precedentes, no sentido que se poderia esperar o pior dela.

Em compensação, se ela não precisa ser limitada (como se fosse possível ser moral demais), ela necessita ser completada - porque em si mesma a moral é insuficiente. Imaginem um indivíduo que cumpriria sempre com o seu dever, mas que  faria o seu dever. Não seria um canalha, é claro, mas não seria ele o que em nossa cultura, com ou sem razão historicamente, chamamos de um fariseu? Um fariseu, isto é, aquele que sempre respeita a letra da lei moral, mas costuma-se considerar que lhe falta sempre alguma coisa, que lhe falta uma dimensão, como se diz, ou mesmo que talvez lhe falte o essencial. O que falta ao fariseu? Dois mil anos de civilização cristã, talvez até três mil anos de civilização judaico-cristã, nos respondem com uma clareza e uma insistência notáveis o que falta ao fariseu: é, evidentemente, o amor. É por isso que creio ser importante marcar pelo menos o lugar - nem que ele devesse ficar em boa parte vazio - de uma quarta ordem, que proponho (apoiando-me numa distinção terminológica que a língua sugere) chamar de ordem ética: a ordem do amor.

André Comte-Sponville - O Capitalismo é Moral?

O Capitalismo é Moral?

No ensaio Da Dignidade da Política, Celso Lafer mostra que Hannah Arendt localiza na contemporaneidade o aguçamento de uma crise descrita como a "lacuna" que se abriu - com o advento dos chamados tempos modernos - entre o "não-mais" e o "ainda-não", ou seja, a quebra, como ela diz, na continuidade entre o passado e o futuro.

Parte da originalidade da argumentação de Hannah Arendt é demonstrar que os grandes pensadores do XIX, diante do fato de que "os padrões e as categorias políticas que compunham a continuidade da tradição ocidental se tornaram inadequados", buscaram entender "a realidade histórica e os acontecimentos que criaram o mundo moderno" e fornecer novas "regras para a ação", utilizando, no entanto, ferramentas herdadas daquela mesma tradição. Da previsível obsolescência das ferramentas decorreu, segundo Arendt,  que o pensamento que Nietzsche, Kierkegaard e Marx nos legaram não se provou eficaz para "inserir" as perguntas relevantes no "quadro de referência da perplexidade contemporânea".

Sem dúvida, faz parte desse raciocínio a constatação arendtiana de que "pertence à própria natureza da condição humana o fato de que cada geração se transforma em um mundo antigo", ou seja, o envelhecimento e seu concomitante turvamento cognitivo para o que lhe é inédito são componentes indispensáveis do permanente movimento que garante que o mundo possa ser "salvo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e jovens".

André Comte-Sponville, em seu O Capitalismo é Moral?, contribui para essa reflexão quando aponta um "retorno da moral" ao centro dos debates propriamente políticos à partir dos anos 80 do século passado e ao propor, como ele diz: "três explicações diferentes, complementares, pertencentes a três "durações" diferentes, a saber, uma breve, uma média e uma longa duração. O livro é do início da década passada e não presenciou as múltiplas "primaveras" dos últimos anos. Sinal, sem dúvida, de envelhecimento.

A seguir trecho em que Comte-Sponville trata da "breve duração".

O Retorno da Moral

Compreendamos primeiro do que se trata. Quando falo de um "retorno da moral" ou quando se fala disso na mídia, não quer dizer que as pessoas seriam hoje mais virtuosas do que eram seus pais ou avós. É um retorno da moral essencialmente no discurso. Não é que as pessoas sejam, de fato, mais virtuosas; é que, de moral, elas falam mais - e podemos emitir pelo menos a hipótese de que falam tanto mais quanto mais, a bem dizer, falta moral na realidade dos comportamentos humanos... É possível. Em todo caso, falam de moral. E esse retorno da moral na primeira linha dos discursos e das preocupações já é um fenômeno da sociedade que merece ser levado em conta.

Por que esse retorno da moral? Eu anunciava três explicações complementares, pertencentes a três durações diferentes... A primeira explicação que eu gostaria de lhes submeter pertence ao que um historiador chamaria de "breve duração": vinte anos, trinta anos, o espaço de uma geração.

1. DUAS GERAÇÕES, DOIS ERROS

De fato, parece-me que esse retorno da moral será percebido com particular nitidez se tomarmos certo recuo, especificamente se compararmos os jovens de hoje, os que têm uns vinte anos nestes anos de 1990-2000, com os jovens que éramos, muitos de nós, trinta ou trinta e cinco anos atrás, digamos, para dar uma data de referência, os que tinham uns vinte anos por volta de 1968. É o que se chamou de "geração 68". Faço parte dela; e se isso não me dá nem orgulho nem vergonha, guardo desse pertencimento algumas das minhas mais belas lembranças. Mas, afinal, a saudade, quando existe, não pode fazer as vezes da reflexão.

Há trinta, trinta e cinco anos, lembrem-se os que viveram essa época, com a moral nós geralmente nos preocupávamos muito pouco. A moda, naqueles anos, era muito mais o imoralismo, a libertação geral e irrestrita. Os mais filosóficos dentre nós reivindicavam Nietzsche: queríamos viver além do bem e do mal. Quanto aos que não eram filosóficos, contentavam-se com pichar os muros da faculdade - ou com ler, e quase sempre aprovando - os belos lemas de então. Vocês se lembram? "É proibido proibir" ou "Vivamos sem tempos mortos, fruamos sem limites".

Como era lindo, e que bom se fosse possível! Foram necessários uns vinte anos para compreender que não era. Muitos poderão se espantar por termos necessitado de tanto tempo (se bem que alguns tenham levado menos tempo que outros) e até que tenhamos podido acreditar, nem que por uma só primavera e com a desculpa da juventude, que era possível libertar-se a tal ponto de qualquer preocupação propriamente moral. Mas o que explica essa crença ou essa ilusão é que reinava naqueles anos, especificamente na juventude estudantil, uma ideologia particular, que eu chamaria de ideologia do tudo política. Isso não valia apenas para os militantes. Estes davam o tom, muito além do seu pequeno círculo, a toda uma geração. O apoliticismo, então, era quase inimaginável. O engajamento, quase uma evidência. Naqueles anos de 60-70, tudo era política, como dizíamos, e não só tudo era política (o que no fundo era verdade e continua sendo), como a política era tudo - o que é bem diferente (continuo acreditando que tudo é política, mas não creio mais que a política seja tudo). Na época, porém, era assim que víamos as coisas: tudo era política, a política era tudo, a tal ponto que uma boa política  nos parecia ser a única moral necessária. Uma ação nos parecia moralmente válida se fosse, como dizíamos, politicamente justa. Moral de militante, cheia de boa consciência e de entusiasmo. Mas será que ainda era uma moral?

Vejo meu melhor amigo daqueles anos, do curso preparatório para a École Normale Supérieure, me dizendo, com o olhar límpido: "Meu chapa, não tenho moral!" A estima que eu tinha por ele cresceu subitamente ouvindo isso... Era um rapaz encantador, e continua sendo. Não fazia mal a uma mosca (a não ser, talvez, a uma mosca de extrema direita). Mas a moral lhe parecia uma ilusão inútil e nefasta. Ele era ao mesmo tempo nietzschiano e marxista, como muitos de nós. Essa mistura duplamente contrária à natureza (um Nietzsche de esquerda! um Marx imoralista!) nos dispensava de interrogar demais. A moral? Ideologia servil e judaico-cristã. O dever? Idealismo pequeno-burguês. Disparávamos flechas incendiárias contra o estado-maior da consciência. Abaixo a moralina, como dizia Nietzsche, viva a Revolução e a liberdade! Ingenuidade dos jovens... Cumpre dizer que os mais velhos, aqueles que admirávamos, não faziam muito esforço naqueles anos para nos desenganar. O próprio Sartre havia renunciado a fazer uma moral. Quanto a Althusser ou Foucault, que eram mais importantes para nós, na época a simples palavra os teria feito sorrir. Deleuze celebrava Espinosa? Sim, e com que talento! Mas era para saudar nele, antes de mais nada, o "imoralista"... Era o ar do tempo, generoso e paradoxal: a moral - repressiva, castradora, culpabilizadora - parecia-nos imoral. Não precisávamos dela. A política a substituía e bastava para tudo.

Vinte anos depois, trinta anos depois, a mudança de cenário é espetacular. A política não interessa mais a muita gente, muito menos aos jovens. Quando ainda falam de política, na maioria das vezes é para debochar dela - porque agora só a percebem sob o ridículo aspecto que lhe dão os humoristas da tevê. Enquanto esses mesmos jovens que abandonaram em massa o terreno político empreendem um notável retorno a certo número de preocupações morais, muitas vezes rebatizadas, é claro (porque a palavra "moral" soa meio antiquada: os jovens preferem falar de direitos humanos, humanitarismo, solidariedade...), mas nem por isso deixam de ser morais.

André Comte-Sponville - O Capitalismo é Moral?

Sunday, September 15, 2013

O Narrador - Considerações Sobre a Obra de Nikolai Leskov


WALTER BENJAMIM

1

Por mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva. Ele é algo de distante, e que se distancia ainda mais. Descrever um Leskov* como narrador não significa trazê-lo mais perto de nós, e sim, pelo contrário, aumentar a distância que nos separa dele. Vistos de uma certa distância, os traços grandes e simples que caracterizam o narrador se destacam nele. Ou melhor, esses traços aparecem, como um rosto humano ou um corpo de animal aparecem num rochedo, para um observador localizado numa distância apropriada e num ângulo favorável. Uma experiência quase cotidiana nos impõe a exigência dessa distância e desse ângulo de observação. É a experiência de que a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências. 

Uma das causas desse fenômeno é óbvia: as ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo. Basta olharmos um jornal para percebermos que seu nível está mais baixo que nunca, e que da noite para o dia não somente a imagem do mundo exterior, mas também a do mundo ético sofreram transformações que antes não julgaríamos possíveis. Com a guerra mundial tornou-se manifesto um processo que continua até hoje. No final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha, não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável. E o que se difundiu dez anos depois, na enxurrada de livros sobre a guerra, nada tinha em comum com uma experiência transmitida de boca em boca.

Não havia nada de anormal nisso. Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela guerra de material e a experiência ética pelos governantes. Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos se encontrou ao ar livre numa paisagem em que nada permanecera inalterado, exceto as nuvens, e debaixo delas, num campo de forças de torrentes e explosões, o frágil e minúsculo corpo humano.

(*) Nikolai Leskov nasceu em 1831 na província de Orjol e morreu em 1895, em S. Petersburgo. Por seus interesses e simpatias pelos camponeses, tem certas afinidades com Tolstoi, e por sua orientação religiosa, com Dostoievski. Mas os textos menos duradouros de sua obra são exatamente aqueles em que tais tendências assumem uma expressão dogmática e doutrinária - os primeiros romances. A significação de Leskov está em suas narrativas. que pertencem a uma fase posterior. Desde o fim da guerra houve várias tentativas de difundir essas narrativas nos países de língua alemã. Além das pequenas coletâneas publicadas pelas editoras Musarion e Georg Müller, devemos mencionar, com especial destaque, a seleção em nove volumes da editora C. H Beck.

2

A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos. Entre estes, existem dois grupos, que se interpenetram de múltiplas maneiras. A figura do narrador só se torna plenamente tangível se temos presentes esses dois grupos. "Quem viaja tem muito que contar", diz o povo, e com isso imagina o narrador como alguém que vem de longe. Mas também escutamos com prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país e que conhece suas histórias e tradições. Se quisermos concretizar esses dois grupos através dos seus representantes arcaicos, podemos dizer que um é exemplificado pelo camponês sedentário, e outro pelo marinheiro comerciante. Na realidade, esses dois estilos de vida produziram de certo modo suas respectivas famílias de narradores. 

Cada uma delas conservou, no decorrer dos séculos, suas características próprias. Assim, entre os autores alemães "modernos, Hebel e Gotthelf pertencem à primeira família, e Sielsfield e Gerstäcker à segunda. No entanto essas duas famílias, como já se disse, constituem apenas tipos fundamentais. A extensão real do reino narrativo, em todo o seu alcance histórico, só pode ser compreendida se levarmos em conta a interpenetração desses dois tipos arcaicos. O sistema corporativo medieval contribuiu especialmente para essa interpenetração. O mestre sedentário e os aprendizes migrantes trabalhavam juntos na mesma oficina; cada mestre tinha sido um aprendiz ambulante antes de se fixar em sua pátria ou no estrangeiro. Se os camponeses e os marujos foram os primeiros mestres da arte de narrar, foram os artífices que a aperfeiçoaram. No sistema corporativo associava-se o saber das terras distantes, trazidos para casa pelos migrantes, com o saber do passado, recolhido pelo trabalhador sedentário. 

3

Leskov está à vontade tanto na distância espacial como na distância temporal. Pertencia à Igreja Ortodoxa grega e tinha um genuíno interesse religioso. Mas sua hostilidade pela burocracia eclesiástica não era menos genuína. Como suas relações com o funcionalismo leigo não eram melhores, os cargos oficiais que exerceu não foram de longa duração. O emprego de agente russo de uma firma inglesa, que ocupou durante muito tempo, foi provavelmente, de todos os empregos possíveis, o mais útil para sua produção literária. A serviço dessa firma, viajou pela Rússia, e essas viagens enriqueceram tanto a sua experiência do mundo como seus conhecimentos sobre as condições russas. Desse modo teve ocasião de conhecer o funcionamento das seitas rurais, o que deixou traços em suas narrativas. Nos contos lendários russos, Leskov encontrou aliados em seu combate contra a burocracia ortodoxa. Escreveu uma série de contos desse gênero, cujo personagem central é o justo, raramente um asceta, em geral um homem simples e ativo, que se transforma em santo com a maior naturalidade. A exaltação mística é alheia a Leskov. Embora ocasionalmente se interessasse pelo maravilhoso, em questões de piedade preferia uma atitude solidamente natural. Seu ideal é o homem que aceita o mundo sem se prender demasiadamente a ele. Seu comportamento em questões temporais correspondia a essa atitude. É coerente com tal comportamento que ele tenha começado tarde a escrever, ou seja, com 29 anos, depois de suas viagens comerciais. Seu primeiro texto impresso se intitulava: Por Que São os Livros Caros em Kiev?. Seus contos foram precedidos por uma série de escritos sobre a classe operária, sobre o alcoolismo, sobre os médicos da polícia e sobre os vendedores desempregados. 

4

O senso prático é uma das características de muitos narradores natos. Mais tipicamente que em Leskov, encontramos esse atributo num Gotthelf, que dá conselhos de agronomia a seus camponeses, num Nodier, que se preocupa com os perigos da iluminação a gás, e num Hebel, que transmite a seus leitores pequenas informações científicas em seu Schatzkastlein (Caixa de Tesouros). Tudo isso esclarece a natureza da verdadeira narrativa. Ela tem sempre em si, às vezes de forma latente uma dimensão utilitária. Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida - de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos. Mas se "dar conselhos" parece hoje algo de antiquado, é porque as experiências estão deixando de ser comunicáveis. Em consequência, não podemos dar conselhos nem a nós mesmos nem aos outros. Aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada. Para obter essa sugestão, é necessário primeiro saber narrar a história (sem contar que um homem só é receptivo a um conselho na medida em que verbaliza a sua situação). O conselho tecido na substância viva da existência tem um nome: sabedoria. A arte de narrar está definhando porque a sabedoria - o lado épico da verdade - está em extinção. Porém esse processo vem de longe. Nada seria mais tolo que ver nele um "sintoma de decadência" ou uma característica "moderna". Na realidade, esse processo, que expulsa gradualmente a narrativa da esfera do discurso vivo e ao mesmo tempo dá uma nova beleza ao que está desaparecendo, tem se desenvolvido concomitantemente com toda uma evolução secular das forças produtivas.

5

O primeiro indício da evolução que vai culminar na morte da narrativa é o surgimento do romance no início do período moderno. O que separa o romance da narrativa da epopeia no sentido estrito é que ele está essencialmente vinculado ao livro. A difusão do romance só se torna possível com a invenção da imprensa. A tradição oral, patrimônio da poesia épica, tem uma natureza fundamentalmente distinta da que caracteriza o romance. O que distingue o romance de todas as outras formas de prosa - contos de fada, lendas e mesmo novelas - é que ele nem procede da tradição oral nem a alimenta. Ele se distingue, especialmente, da narrativa. O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance.é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los. Escrever um romance significa, na descrição de uma vida, levar o incomensurável aos seus últimos limites. Na descrição dessa riqueza, o romance anuncia a profunda perplexidade de quem a vive. O primeiro grande livro do gênero, Dom Quixote, mostra como a grandeza da alma, a coragem e a generosidade de um dos mais nobres heróis da literatura são totalmente refratárias ao conselho e não contêm a menor centelha de sabedoria. Quando no correr dos séculos se tentou ocasionalmente incluir no romance algum ensinamento - talvez o melhor exemplo seja Wilhelm Meisters Wanderjahre (Os Anos de Peregrinação de Wilhelm Meister), essas tentativas resultaram sempre na transformação da própria forma romanesca. O romance de formação (Bindungsroman), por outro lado, não se afasta absolutamente da estrutura fundamental do romance. Ao integrar o processo da vida social na vida de uma pessoa, ele justifica de modo extremamente frágil as leis que determinam tal processo. A legitimação dessas leis nada tem a ver com sua realidade. No romance de formação, é essa insuficiência que está na base da ação. 

6

Devemos imaginar a transformação das formas épicas segundo ritmos comparáveis aos que presidiram à transformação da crosta terrestre no decorrer dos milênios. Poucas formas de comunicação humana evoluíram mais lentamente e se extinguiram mais lentamente. O romance, cujos primórdios remontam à Antiguidade, precisou de centenas de anos para encontrar na burguesia ascendente, os elementos favoráveis a seu florescimento. Quando esses elementos surgiram, a narrativa começou pouco a pouco a tornar-se arcaica; sem dúvida, ela se apropriou de múltiplas formas, do novo conteúdo, mas não foi determinada verdadeiramente por ele. Por outro lado, verificamos que com a consolidação da burguesia – da qual a imprensa, no alto capitalismo, é um dos instrumentos mais importantes - destacou-se uma forma de comunicação que, por mais antigas que fossem suas origens, nunca havia influenciado decisivamente a forma épica. Agora ela exerce essa influência. Ela é tão estranha à narrativa como o romance, mas é mais ameaçadora e, de resto, provoca uma crise no próprio romance. Essa nova forma de comunicação é a informação.

Villemessant, o fundador do Figaro, caracterizou a essência da informação com uma fórmula famosa. "Para meus leitores", costumava dizer, "o incêndio num sótão do Quartier Latin é mais importante que uma revolução em Madri". Essa fórmula lapidar mostra claramente que o saber que vem de longe encontra hoje menos ouvintes que a informação sobre acontecimentos próximos. O saber, que vinha de longe - do longe espacial das terras estranhas, ou do longe temporal contido na tradição -, dispunha de uma autoridade que era válida mesmo que não fosse controlável pela experiência. Mas a informação aspira a uma verificação imediata. Antes de mais nada, ela precisa ser compreensível "em si e para si". Muitas vezes não é mais exata que os relatos antigos. Porém, enquanto esses relatos recorriam frequentemente ao miraculoso, é indispensável que a informação seja plausível. Nisso ela é incompatível com o espírito da narrativa. Se a arte da narrativa é hoje rara, a difusão da informação é decisivamente responsável por esse declínio.

Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação. Metade da arte narrativa está em evitar explicações. Nisso Leskov é magistral. (pensemos em textos como A Fraude, ou A Águia Branca). O extraordinário e o miraculoso são narrados com a maior exatidão, mas o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação.

7

Leskov frequentou a escola dos Antigos. O primeiro narrador grego foi Heródoto. No capítulo XIV do terceiro livro de suas Histórias encontramos um relato muito instrutivo. Seu tema é Psammenit. Quando o rei egípcio Psammenit foi derrotado e reduzido ao cativeiro pelo rei persa Cambises, este resolveu humilhar seu cativo. Deu ordens para que Psammenit fosse posto na rua em que passaria o cortejo triunfal dos persas. Organizou esse cortejo de modo que o prisioneiro pudesse ver sua filha degradada à condição de criada, indo ao poço com um jarro, para buscar água. Enquanto todos os egípcios se lamentavam com esse espetáculo, Psammenit ficou silencioso e imóvel, com os olhos no chão; e, quando logo em seguida viu seu filho, caminhando no cortejo para ser executado, continuou imóvel. Mas, quando viu um dos seus servidores, um velho miserável, na fila dos cativos, golpeou a cabeça com os punhos e mostrou os sinais do mais profundo desespero.

Essa história nos ensina o que é a verdadeira narrativa. A informação só tem valor no momento em que é nova. Ela só vive nesse momento, precisa entregar-se inteiramente a ele e sem perda de tempo tem que se explicar nele. Muito diferente é a narrativa. Ela não se entrega. Ela conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver. Assim, Montaigne alude à história do rei egípcio e pergunta: porque ele só se lamenta quando reconhece o seu servidor? Sua resposta é que ele "já estava tão cheio de tristeza, que uma gota a mais bastaria para derrubar as comportas". É a explicação de Montaigne. Mas poderíamos também dizer: "O destino da família real não afeta o rei, porque é o seu próprio destino". Ou: "muitas coisas que não nos afetam na vida nos afetam no palco, e para o rei o criado era apenas um ator". Ou: "as grandes dores são contidas, e só irrompem quando ocorre uma distensão. O espetáculo do servidor foi essa distensão". Heródoto não explica nada. Seu relato é dos mais secos. Por isso, essa história do antigo Egito ainda é capaz, depois de milênios, de suscitar espanto e reflexão. Ela se assemelha a essas sementes de trigo que durante milhares de anos ficaram fechadas hermeticamente nas câmaras das pirâmides e que conservam até hoje suas forças germinativas.

8

Nada facilita mais a memorização das narrativas que aquela sóbria concisão que as salva da análise psicológica. Quanto maior a naturalidade com que o narrador renuncia às sutilezas psicológicas, mais facilmente a história se gravará na memória do ouvinte, mais completamente ela se assimilará à sua própria experiência e mais irresistivelmente ele cederá à inclinação de recontá-la um dia. Esse processo de assimilação se dá em camadas muito profundas e exige um estado de distensão que se torna cada vez mais raro. Se o sono é o ponto mais alto da distensão física, o tédio é o ponto mais alto da distensão psíquica. O tédio é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência. O menor sussurro nas folhagens o assusta. Seus ninhos - as atividades intimamente associadas ao tédio - já se extinguiram na cidade e estão em vias de extinção no campo. Com isso, desaparece o dom de ouvir, e desaparece a comunidade dos ouvintes. Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido. Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrá-las. Assim se teceu a rede em que está guardado o dom narrativo. E assim essa rede se desfaz hoje por todos os lados, depois de ter sido tecida, há milênios, em torno das mais antigas formas de trabalho manual.

9

A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesãos - no campo, no mar e na cidade -, é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o "puro em si" da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. Os narradores gostam de começar sua história com uma descrição das circunstâncias em que foram informados dos fatos que vão contar a seguir, a menos que prefiram atribuir essa história a uma experiência autobiográfica. Leskov começa A Fraude com uma descrição de uma viagem de trem, na qual ouviu de um companheiro de viagem os episódios que vai narrar; ou pensa no enterro de Dostoievski, no qual travou conhecimento com a heroína de A Propósito da Sonata a Kreutzer; ou evoca uma reunião num círculo de leitura, no qual soube dos fatos relatados em Homens Interessantes. Assim, seus vestígios estão presentes de muitas maneiras nas coisas narradas, seja na qualidade de quem as viveu, seja na qualidade de quem as relata.

O próprio Leskov considerava essa arte artesanal - a narrativa - como um ofício manual. "A literatura", diz ele em uma carta, "não é para mim uma arte, mas um trabalho manual." Não admira que ele tenha se sentido ligado ao trabalho manual e estranho à técnica industrial. Tolstoi, que tinha afinidades com essa atitude, alude de passagem a esse elemento central do talento narrativo de Leskov, quando diz que ele foi o primeiro "a apontar a insuficiência do progresso econômico... É estranho que Dostoievski seja tão lido... Em compensação, não compreendo por que não se lê Leskov. Ele é um escritor fiel à verdade". No malicioso e petulante A Pulga de Aço, intermediário entre a lenda e a farsa, Leskov exalta, nos ourives de Tula, o trabalho artesanal. Sua obra-prima, a pulga de aço, chega aos olhos de Pedro, o Grande e o convence de que os russos não precisam envergonhar-se dos ingleses.

Talvez ninguém tenha descrito melhor que Paul Valéry a imagem espiritual desse mundo de artífices, do qual provém o narrador. Falando das coisas perfeitas que se encontram na natureza, pérolas imaculadas, vinhos encorpados e maduros, criaturas realmente completas, ele as descreve como "o produto precioso de uma longa cadeia de causas semelhantes entre si". O acúmulo dessas causas só teria limites temporais quando fosse atingida a perfeição. "Antigamente o homem imitava essa paciência", prossegue Valéry. "Iluminuras, marfins profundamente entalhados; pedras duras, perfeitamente polidas e claramente gravadas; lacas e pinturas obtidas pela superposição de uma quantidade de camadas finas e translúcidas... - todas essas produções de uma indústria tenaz e virtuosística cessaram, e já passou o tempo em que o tempo não contava. O homem de hoje não cultiva o que não pode ser abreviado." Com efeito, o homem conseguiu abreviar até a narrativa. Assistimos em nossos dias ao nascimento da short story, que se emancipou da tradição oral e não mais permite essa lenta superposição de camadas finas e translúcidas, que representa a melhor imagem do processo pelo qual a narrativa perfeita vem à luz do dia, como coroamento das várias camadas constituídas pelas narrações sucessivas.

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Valéry conclui suas reflexões com as seguintes palavras: "dir-se-ia que o enfraquecimento nos espíritos da ideia de eternidade coincide com uma aversão cada vez maior ao trabalho prolongado". A ideia da eternidade sempre teve na morte sua fonte mais rica. Se essa ideia está se atrofiando, temos que concluir que o rosto da morte deve ter assumido outro aspecto. Essa transformação é a mesma que reduziu a comunicabilidade da experiência à medida que a arte de narrar se extinguia.

No decorrer dos últimos séculos, pode-se observar que a ideia da morte vem perdendo, na consciência coletiva, sua onipresença e sua força de evocação. Esse processo se acelera em suas últimas etapas. Durante o século XIX, a sociedade burguesa produziu, com as instituições higiênicas e sociais, privadas e públicas, um efeito colateral que inconscientemente talvez tivesse sido seu objetivo principal: permitir aos homens evitarem o espetáculo da morte. Morrer era antes um episódio público na vida do indivíduo, e seu caráter era altamente exemplar: recordem-se as imagens da Idade Média, nas quais o leito de morte se transforma num trono em direção ao qual se precipita o povo, através das portas escancaradas. Hoje, a morte é cada vez mais expulsa do universo dos vivos. Antes não havia uma só casa e quase nenhum quarto em que não tivesse morrido alguém. (A Idade Média conhecia a contrapartida espacial daquele sentimento temporal expresso num relógio solar de Ibiza: ultima multis). Hoje, os burgueses vivem em espaços depurados de qualquer morte e, quando chegar sua hora, serão depositados por seus herdeiros em sanatórios e hospitais. Ora, é no momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e, sobretudo sua existência vivida – e é dessa substância que são feitas as histórias - assumem pela primeira vez uma forma transmissível. Assim como no interior do agonizante desfilam inúmeras imagens - visões de si mesmo, nas quais ele se havia encontrado sem se dar conta disso -, assim o inesquecível aflora de repente em seus gestos e olhares, conferindo a tudo o que lhe diz respeito aquela autoridade que mesmo um pobre-diabo possui ao morrer, para os vivos em seu redor. Na origem da narrativa está essa autoridade.

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A morte é a sanção de tudo o que o narrador pode contar. É da morte que ele deriva sua autoridade. Em outras palavras: suas histórias remetem à história natural. Esse fenômeno é ilustrado exemplarmente numa das mais belas narrativas do incomparável Johann Peter Hebel. Ela faz parte do Schatzkästlein des Rheinischen Hausfreunde (Caixa de Tesouros do Amigo Renano das Famílias) e chama-se Unverhofftes Wiedersehen (Reencontro Inesperado). A história começa com o noivado de um jovem aprendiz que trabalha nas minas de Falun. Na véspera do casamento, o rapaz morre em um acidente, no fundo da sua galeria subterrânea. Sua noiva se mantém fiel além da morte e vive o suficiente para reconhecer um dia, já extremamente velha, o cadáver do noivo, encontrado em sua galeria perdida e preservado da decomposição pelo vitríolo ferroso. A anciã morre pouco depois. Ora, Hebel precisava mostrar palpavelmente o longo tempo decorrido desde o início da história, e sua solução foi a seguinte: 

"Entrementes, a cidade de Lisboa foi destruída por um terremoto, e a guerra dos Sete Anos terminou, e o imperador Francisco I morreu, e a ordem dos jesuítas foi dissolvida, e a Polônia foi retalhada, e a imperatriz Maria Teresa morreu, e Struensee foi executado, a América se tornou independente, e a potência combinada da França e da Espanha não pôde conquistar Gibraltar. Os turcos prenderam o general Stein na grota dos veteranos, na Hungria, e o imperador José morreu também. O rei Gustavo da Suécia tomou a Finlândia dos russos, e a Revolução Francesa e as grandes guerras começaram, e o rei Leopoldo II faleceu também. Napoleão conquistou a Prússia, e os ingleses bombardearam Copenhague, e os camponeses semeavam e ceifavam. O moleiro moeu, e os ferreiros forjaram, e os mineiros cavaram à procura de filões metálicos, em suas oficinas subterrâneas. Mas, quando no ano de 1809 os mineiros de Falun...". Jamais outro narrador conseguiu inscrever tão profundamente sua história na história natural como Hebel com essa cronologia. Leia-se com atenção: a morte reaparece nela tão regularmente como o esqueleto, com sua foice, nos cortejos que desfilam ao meio-dia nos relógios das catedrais.

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Cada vez que se pretende estudar uma certa forma épica é necessário investigar a relação entre essa forma e a historiografia. Podemos ir mais longe e perguntar se a historiografia não representa uma zona de indiferenciação criadora com relação a todas as formas épicas. Nesse caso, a história escrita se relacionaria com as formas épicas como a luz branca com as cores do espectro. Como quer que seja, entre todas as formas  épicas a crônica é aquela cuja inclusão na luz pura e incolor da história escrita é mais incontestável. E, no amplo espectro da crônica, todas as maneiras com que uma história pode ser narrada se estratificam como se fossem variações da mesma cor. O cronista é o narrador da história. Pense-se no trecho de Hebel citado acima, cujo tom é claramente o da crônica, e notar-se-á facilmente a diferença entre quem escreve a história, o historiador, e quem a narra, o cronista. O historiador é obrigado a explicar de uma ou outra maneira os episódios com que lida, e não pode absolutamente contentar-se em representá-los como modelos da história do mundo. É exatamente o que faz o cronista, especialmente através dos seus representantes clássicos, os cronistas medievais, precursores da historiografia moderna. Na base de sua historiografia está o plano da salvação, de origem divina, indevassável em seus desígnios, e com isso desde o início se libertaram do ônus da explicação verificável. Ela é substituída pela exegese, que não se preocupa com o encadeamento exato de fatos determinados, mas com a maneira de sua inserção no fluxo insondável das coisas. 

Não importa se esse fluxo se inscreve na história sagrada ou se tem caráter natural. No narrador, o cronista conservou-se, transformado e por assim dizer secularizado. Entre eles, Leskov é aquele cuja obra demonstra mais claramente esse fenômeno. Tanto o cronista, vinculado à história sagrada, como o narrador, vinculado à história profana, participam igualmente da natureza dessa obra a tal ponto que, em muitas de suas narrativas, é difícil decidir se o fundo sobre o qual elas se destacam é a trama dourada de uma concepção religiosa da história ou a trama colorida de uma concepção profana. Pense-se, por exemplo, no conto A Alexandrita, que coloca o leitor nos velhos tempos em que "as pedras nas entranhas da terra e os planetas nas esferas celestes se preocupavam ainda com o destino do homem, ao contrário dos dias de hoje, em que tanto no céu como na terra tudo se tornou indiferente à sorte dos seres humanos, e em que nenhuma voz, venha de onde vier, lhes dirige a palavra ou lhes obedece. Os planetas recém descobertos não desempenham mais nenhum papel no horóscopo, e existem inúmeras pedras novas, todas medidas e pesadas e com seu peso específico e sua densidade exatamente calculados, mas elas não nos anunciam nada e não têm nenhuma utilidade para nós. O tempo já passou em que elas conversavam com os homens" . 

Como se vê, é difícil caracterizar inequivocamente o curso das coisas, como Leskov o ilustra nessa narrativa. É determinado pela história sagrada ou pela história natural? Só se sabe que, enquanto tal, o curso das coisas escapa a qualquer categoria verdadeiramente histórica. Já se foi a época, diz Leskov, em que o homem podia sentir-se em harmonia com a natureza. Schiller chamava essa época o tempo da literatura ingênua. O narrador mantém sua fidelidade a essa época, e seu olhar não se desvia do relógio diante do qual desfila a procissão das criaturas, na qual a morte tem seu lugar ou à frente do cortejo, ou como retardatária miserável. 

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Não se percebeu devidamente até agora que a relação ingênua entre o ouvinte e o narrador é dominada pelo interesse em conservar o que foi narrado. Para o ouvinte imparcial, o importante é assegurar a possibilidade da reprodução. A memória é a mais épica de todas as faculdades: somente uma memória abrangente permite à poesia épica apropriar-se do curso das coisas, por um lado, e resignar-se, por outro lado, com o desaparecimento dessas coisas, com o poder da morte. Não admira que para um personagem de Leskov, um simples homem do povo, o czar, o centro do mundo e em torno do qual gravita toda a história, disponha de uma memória excepcional. "Nosso imperador e toda a sua família têm com efeito uma surpreendente memória." 

Mnemosyne, a deusa da reminiscência, era para os gregos a musa da poesia épica. Esse nome chama a atenção para uma decisiva guinada histórica. Se o registro escrito do que foi transmitido pela reminiscência - a historiografia - representa uma zona de indiferenciação criadora com relação às várias formas épicas (como a grande prosa representa uma zona de indiferenciação criadora com relação às diversas formas métricas), sua forma mais antiga, a epopeia propriamente dita, contém em si, por uma espécie de indiferenciação, a narrativa e o romance. Quando no decorrer dos séculos o romance começou a emergir do seio da epopeia, ficou evidente que nele a musa épica - a reminiscência - aparecia sob outra forma que na narrativa. 

A reminiscência funda a cadeia da tradição. Que transmite o acontecimento de geração em geração. Ela corresponde à musa épica no sentido mais amplo. Ela inclui todas as variedades da forma épica. Entre elas, encontra-se em primeiro lugar a encarnada pelo narrador. Ela tece a rede que em última instância todas as histórias constituem entre si. Uma se articula na outra, como demonstraram todos os outros narradores, principalmente os orientais. Em cada um deles vive uma Sherazade, que imagina uma nova história em cada passagem da história que está contando. Tal é a memória épica e musa da narração. Mas a esta musa deve se opor outra; a musa do romance que habita a epopeia, ainda indiferenciada da musa da narrativa. Porém ela já pode ser pressentida na poesia épica. Assim, por exemplo, nas invocações solenes das Musas, que abrem os poemas homéricos. O que se pronuncia nessas passagens é a memória perpetuadora do romancista, em contraste com a breve memória do narrador. A primeira é consagrada a um herói, uma peregrinação, um combate; a segunda, a muitos fatos difusos. Em outras palavras, a rememoração, musa do romance, surge ao lado da memória, musa da narrativa, depois que a desagregação da poesia épica apagou a unidade de sua origem comum na reminiscência. 

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Como disse Pascal, ninguém morre tão pobre que não deixe alguma coisa atrás de si. Em todo caso, ele deixa reminiscência, embora nem sempre elas encontrem um herdeiro. O romancista recebe a sucessão quase sempre com uma profunda melancolia. Pois assim como se diz num romance de Arnold Bennet que uma pessoa que acabara de morrer "não tinha de fato vivido", o mesmo costuma acontecer com as somas que o romancista recebe de herança. Georg Lukács viu com grande lucidez esse fenômeno. Para ele, o romance é "a forma do desenraizamento transcendental". Ao mesmo tempo, o romance, segundo Lukács, é a única forma que inclui o tempo entre os seus princípios constitutivos. "O tempo", diz a Teoria do Romance, "Só pode ser constitutivo quando cessa a ligação com a pátria transcendenta1 [...] Somente o romance [...] separa o sentido e a vida, e, portanto, o essencial e o temporal. Podemos quase dizer que toda a ação interna do romance não é senão a luta contra o poder do tempo [...] Desse combate, [...] emergem as experiências temporais autenticamente épicas: a esperança e a reminiscência [...] Somente no romance [...] ocorre uma reminiscência criadora, que atinge seu objeto e o transforma [...] O sujeito só pode ultrapassar o dualismo da interioridade e da exterioridade quando percebe a unidade de toda a sua vida [...] na corrente vital do seu passado, resumida na reminiscência [...] A visão capaz de perceber essa unidade é apreensão divinatória e intuitiva do sentido da vida, inatingido e, portanto, inexprimível.".

Com efeito, "o sentido da vida" é o centro em torno do qual se movimenta o romance. Mas essa questão não é outra coisa que a expressão da perplexidade do leitor quando mergulha na descrição dessa vida. Num caso, "o sentido da  vida" e no outro, "a moral da história" - essas duas palavras de ordem distinguem entre si o romance e a narrativa, permitindo-nos compreender o estatuto histórico completamente diferente de uma e outra forma. Se o modelo mais antigo do romance é Dom Quixote, o mais recente talvez seja A Educação Sentimental. As últimas palavras deste romance mostram como o sentido do período burguês no início do seu declínio se depositou como um sedimento no copo da vida. Frédéric e Deslauriers, amigos de juventude, recordam-se de sua mocidade e lembram um pequeno episódio: uma vez, entraram no bordel de sua cidade natal, furtiva e timidamente, e limitaram-se a oferecer à dona da casa um ramo de flores, que tinham colhido no jardim. "Falava-se ainda dessa história três anos depois. Eles a contaram prolixamente, um completando as lembranças do outro, e quando terminaram Frédéric exclamou: - Foi o que nos aconteceu de melhor! -. Sim, talvez. Foi o que nos aconteceu de melhor! disse Deslauriers." Com essa descoberta, o romance chega a seu fim, e este é mais rigoroso que em qualquer narrativa. Com efeito, numa narrativa a pergunta - e o que aconteceu depois? - é plenamente justificada. O romance, ao contrário, não pode dar um único passo além daquele limite em que, escrevendo na parte inferior da página a palavra fim, convida o leitor a refletir sobre o sentido de uma vida. 

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Quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a lê partilha dessa companhia. Mas o leitor de um romance é solitário. Mais solitário que qualquer outro leitor (pois mesmo quem lê um poema está disposto a declamá-lo em voz alta para um ouvinte ocasional). Nessa solidão, o leitor de um romance se apodera ciosamente da matéria de sua leitura. Quer transformá-la em coisa sua, devorá-la, de certo modo. Sim, ele destrói, devora a substância lida, como fogo devora lenha na lareira. A tensão que atravessa o romance se assemelha muito à corrente de ar que alimenta e reanima a chama. O interesse ardente do leitor se nutre de um material seco. O que significa isto? "Um homem que morre com trinta e cinco anos". disse certa vez Moritz Heimann, "é em cada momento de sua vida um homem que morre com trinta e cinco anos." Nada mais duvidoso. Mas apenas porque o autor se engana na dimensão do tempo. A verdade contida na frase é a seguinte: um homem que morre aos trinta e cinco anos aparecerá sempre, na rememoração, em cada momento de sua vida, como um homem que morre com trinta e cinco anos. Em outras palavras: a frase que não tem nenhum sentido em relação à vida real torna-se incontestável com relação à vida lembrada. Impossível descrever melhor a essência dos personagens do romance. A frase diz que o “sentido” da vida somente se revela a partir de sua morte. Porém o leitor do romance procura realmente homens nos quais possa ler "o sentido da vida". Ele precisa, portanto, estar seguro de antemão, de um modo ou outro, de que participará de sua morte. Se necessário, a morte no sentido figurado: o fim do romance. Mas de preferência a morte verdadeira. Como esses personagens anunciam que a morte já está a sua espera, uma morte determinada, num lugar determinado? É dessa questão que se alimenta o interesse absorvente do leitor. 

Em consequência, o romance não é significativo por descrever pedagogicamente um destino alheio, mas porque esse destino alheio, graças à chama que o consome, pode dar-nos o calor que não podemos encontrar em nosso próprio destino. O que seduz o leitor no romance é a esperança de aquecer sua vida gelada com a morte descrita no livro.

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Segundo Gorki, Leskov é o escritor [...] "mais profundamente enraizado no povo, e o mais inteiramente livre de influências estrangeiras". O grande narrador tem sempre suas raízes no povo, principalmente nas camadas artesanais. Contudo, assim como essas camadas abrangem o estrato camponês, marítimo e urbano, nos múltiplos estágios do seu desenvolvimento econômico e técnico, assim também se estratificam de múltiplas maneiras os conceitos em que o acervo de experiências dessas camadas se manifesta para nós. (Para não falar da contribuição nada desprezível dos comerciantes ao desenvolvimento da arte narrativa, não tanto no sentido de aumentarem seu conteúdo didático, mas no de refinarem as astúcias destinadas a prender a atenção dos ouvintes. Os comerciantes deixaram marcas profundas no ciclo narrativo de As Mil e Uma Noites.) Em suma, independentemente do papel elementar que a narrativa desempenha no patrimônio da humanidade, são múltiplos os conceitos através dos quais seus frutos podem ser colhidos. O que em Leskov pode ser interpretado numa perspectiva religiosa, parece em Hebel ajustar-se espontaneamente às categorias pedagógicas do Iluminismo, surge em Poe como tradição hermética e encontra um último asilo, em Kipling, no círculo dos marinheiros e soldados coloniais britânicos. Comum a todos os grandes narradores é a facilidade com que se movem para cima e para baixo nos degraus de sua experiência, como numa escada. Uma escada que chega até o centro da terra e que se perde nas nuvens - é a imagem de uma experiência coletiva, para a qual mesmo o mais profundo choque da experiência individual, a morte, não representa nem um escândalo nem um impedimento. 

"E se não morreram, vivem até hoje", diz o conto de fadas. Ele é ainda hoje o primeiro conselheiro das crianças, porque foi o primeiro da humanidade, e sobrevive, secretamente, na narrativa. O primeiro narrador verdadeiro é e continua sendo o narrador de contos de fadas. Esse conto sabia dar um bom conselho, quando ele era difícil de obter, e oferecer sua ajuda, em caso de emergência. Era a emergência provocada pelo mito. O conto de fadas nos revela as primeiras medidas tomadas pela humanidade para libertar-se do pesadelo mítico. O personagem do "tolo" nos mostra como a humanidade se fez de "tola" para proteger-se do mito; o personagem do irmão caçula mostra-nos como aumentam as possibilidades do homem quando ele se afasta da pré-história mítica; o personagem do rapaz que saiu de casa para aprender a ter medo mostra que as coisas que tememos podem ser devassadas; o personagem “inteligente" mostra que as perguntas feitas pelo mito são tão simples quanto as feitas pela esfinge; o personagem do animal que socorre uma criança mostra que a natureza prefere associar- se ao homem que ao mito. O conto de fadas ensinou a muitos séculos à humanidade, e continua ensinando até hoje às crianças, que o mais aconselhável é enfrentar as forças do mundo místico com astúcia e arrogância. Assim, o conto de fadas dialetiza a coragem (Mut) desdobrando-a em dois pólos: de um lado Untermut, isto é, astúcia, e de outro Obermut, isto é, arrogância. O feitiço libertador do conto de fadas não põe em cena a natureza como uma entidade mítica, mas indica a sua cumplicidade com o homem liberado. O adulto só percebe essa cumplicidade ocasionalmente, isto é, quando está feliz; para a criança, ela aparece pela primeira vez no conto de fadas e provoca nela uma sensação de felicidade.


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Poucos narradores tiveram uma afinidade tão profunda pelo espírito do conto de fadas como Leskov. Essas tendências foram favorecidas pelos dogmas da Igreja Ortodoxa grega. Nesses dogmas, como se sabe, a especulação de Orígenes, rejeitada pela Igreja de Roma, sobre a apocatastasis, a admissão de todas as almas ao Paraíso, desempenha um papel significativo. Leskov foi muito influenciado por Orígenes. Tinha a intenção de traduzir sua obra Dos Primeiros Princípios. No espírito das crenças populares russas, interpretou a ressurreição menos como uma transfiguração que como um desencantamento, num sentido semelhante ao do conto de fada. Essa interpretação de Orígenes é o fundamento da narrativa O Peregrino Encantado. Essa história, como tantas outras de Leskov, é um híbrido de contos de fadas e lenda, semelhante ao híbrido de contos de fadas e saga, descrito por Ernst Bloch numa passagem em que retoma à sua maneira nossa distinção entre mito e conto de fadas. Segundo Bloch, "nessa mescla de conto de fadas e saga o elemento mítico é figurado, no sentido de que age de forma estática e cativante, mas nunca fora do homem. Míticos, nesse sentido, são certos personagens de saga, de tipo taoísta, sobretudo os muito arcaicos, como o casal Filemon e Baucis: salvos, como nos contos de fada, embora em repouso, como na natureza. Existe certamente uma relação desse tipo no taoísmo muito menos pronunciado de Gotthelf; ele priva ocasionalmente a saga do encantamento local; salva a luz da vida, a .luz própria à vida humana, que arde serenamente, por fora e por dentro. "Salvos, como nos contos de fadas", são os seres à frente do cortejo humano de Leskov: os justos. Pavlin, Figura, o cabeleireiro, o domador de ursos, a sentinela prestimosa - todos eles, encarnando a sabedoria, a bondade e o consolo do mundo, circundam o narrador. É incontestável que são todos derivações da imago materna. Segundo a descrição de Leskov, "ela era tão bondosa que não podia fazer mal a ninguém, nem mesmo aos animais. Não comia nem peixe nem carne, tal sua compaixão por todas as criaturas vivas. De vez em quando, meu pai costumava censurá-la [...] Mas ela respondia: eu mesma criei esses animaizinhos, eles são como meus filhos. Não posso comer meus próprios filhos! Mesmo na casa dos vizinhos ela se abstinha de carne, dizendo: eu vi esses animais vivos; são meus conhecidos. Não posso comer meus conhecidos".

O justo é o porta-voz da criatura e ao mesmo tempo sua mais alta encarnação. Ele tem em Leskov traços maternais, que às vezes atingem o plano mítico (pondo em perigo, assim, a pureza da sua condição de conto de fadas). Característico,  nesse sentido, é o personagem central da narrativa Kotin, o Provedor e Platônida. Esse personagem, um camponês chamado Pisonski, é hermafrodita. Durante doze anos, a mãe o educou como menina. Seu lado masculino e o feminino amadurecem simultaneamente e seu hermafroditismo transforma-se em "símbolo do Homem-Deus".  Leskov vê nesse símbolo o ponto mais alto da criatura e ao mesmo tempo uma ponte entre o mundo terreno e o supra-terreno. Porque essas poderosas figuras masculinas, telúricas e maternais, sempre retomadas pela imaginação de Leskov, foram arrancadas, no apogeu de sua força, à escravidão do instinto sexual. Mas nem por isso encarnam um ideal ascético; a castidade desses justos tem um caráter tão pouco individual que ela se transforma na antítese elementar da luxúria desenfreada, representada na Lady Macbeth de Mzensk. Se a distância entre Pavlin e essa mulher de comerciante representa a amplitude do mundo das criaturas, na hierarquia dos seus personagens Leskov sondou também a profundidade desse mundo. 

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A hierarquia do mundo das criaturas, que culmina na figura do justo, desce por múltiplos estratos até os abismos do inanimado. Convém ter em mente, a esse respeito, uma circunstância especial. Para Leskov, esse mundo se exprime menos através da voz humana que através do que ele chama, num dos seus contos mais significativos, A Voz da Natureza. Seu. personagem central é um pequeno funcionário, Filip Filipovitch, que usa todos os meios a seu dispor para hospedar em sua casa um marechal-de-campo, que passa por sua cidade. Seu desejo é atendido. O hóspede, a princípio admirado com a insistência do funcionário, com o tempo julga reconhecer nele alguém que havia encontrado antes. Quem? Não consegue lembrar-se. O mais estranho é que o dono da casa nada faz para revelar sua identidade. Em vez disso, ele consola seu ilustre hóspede, dia após dia, dizendo que "a voz da natureza" não deixará de se fazer ouvir um dia. As coisas continuam assim, até que o hóspede, no momento de continuar sua viagem, dá ao funcionário a permissão, por este solicitada, de fazer ouvir "a voz da natureza". A mulher do anfitrião se afasta. "Ela voltou com uma corneta de caça, de cobre polido, e entregou-a a seu marido. Ele pegou a corneta, colocou-a na boca e sofreu uma verdadeira metamorfose. Mal enchera a boca, produzindo um som forte como um trovão, o marechal-de-campo gritou: - Pára! Já sei, irmão, agora te reconheço! És o músico do regimento de caçadores, que como recompensa por sua honestidade enviei para vigiar um intendente corrupto. - É verdade, Excelência, respondeu o dono da casa. Eu não queria recordar esse fato a Vossa Excelência, e sim deixar que a voz da natureza falasse." A profundidade dessa história, escondida atrás de sua estupidez aparente, dá  uma ideia do extraordinário humor de Leskov.

Esse humor reaparece na mesma história de modo ainda mais discreto. Sabemos que o pequeno funcionário fora enviado "como recompensa por sua honestidade... para vigiar um intendente corrupto". Essas palavras estão no final, na cena do reconhecimento. Porém no começo da história lemos o seguinte sobre o dono da casa: "os habitantes do lugar conheciam o homem e sabiam que não tinha uma posição de destaque, pois não era nem alto funcionário do Estado nem militar, mas apenas um pequeno fiscal no modesto serviço de intendência, onde, juntamente com os ratos, roía os biscoitos e as botas do Estado, chegando com o tempo a roer para si uma bela casinha de madeira". Manifesta-se assim, como se vê, a simpatia tradicional do narrador pelos patifes e malandros. Toda a literatura burlesca partilha essa simpatia, que se encontra mesmo nas culminâncias da arte: os companheiros mais fiés de Hebel são o Zumdelfrieder, o Zundelheiner e Dieter, o ruivo. No entanto, também para Hebel o justo desempenha o papel principal no theatrum mundi. Mas, como ninguém está à altura desse papel, ele passa de uns para outros. Ora é o vagabundo, ora o judeu avarento, ora o imbecil, que entram em cena para representar esse papel. A peça varia segundo as circunstâncias, é uma improvisação moral. 

HebeI é um casuísta. Ele não se solidariza, por nenhum preço, com nenhum princípio, mas não rejeita nenhum, porque cada um deles pode se tornar um instrumento dos justos. Compare- se essa atitude com a de Leskov. "Tenho consciência", escreve ele em A Propósito da Sonata a Kreutzer, "de que minhas ideias se baseiam muito mais numa concepção prática da vida do que na filosofia abstrata ou numa moral elevada, mas já me habituei a pensar assim." De resto, as catástrofes morais que ocorrem no universo de Leskov se relacionam com os incidentes morais que ocorrem no universo de Hebel como a vasta e silenciosa torrente do Volga se relaciona com o riacho tagarela e saltitante que faz girar o moinho. Entre as narrativas históricas de Leskov existem várias nas quais as paixões são tão destruidoras como a ira de Aquiles ou o ódio de Hagen. É surpreendente verificar como o mundo pode ser sombrio para esse autor e com que majestade o mal pode empunhar o seu cetro. Obviamente, Leskov conheceu estados de espírito em que estava muito próximo de uma ética antinomística, e esse é talvez um dos seus poucos pontos de contato com Dostoievski. As naturezas elementares dos seus Contos dos Velhos Tempos vão até o fim em sua paixão implacável. Mas esse fim é justamente o ponto em que, para os místicos, a mais profunda abjeção se converte em santidade. 

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Quanto mais baixo Leskov desce na hierarquia das criaturas, mais sua concepção das coisas se aproxima do misticismo. Aliás, como veremos, há indícios de que essa característica é própria da natureza do narrador. Contudo poucos ousaram mergulhar nas profundezas da natureza inanimada, e não há muitas obras, na literatura narrativa recente, nas quais a voz do narrador anônimo, anterior a qualquer escrita, ressoe de modo tão audível como na história de Leskov A Alexandrita. Trata-se de uma pedra semipreciosa, o piropo. A pedra é o estrato mais ínfimo da criatura. Mas para o narrador ela está imediatamente ligada ao estrato mais alto. Ele consegue vislumbrar nessa pedra semipreciosa, o piropo, uma profecia natural do mundo mineral e inanimado dirigida ao mundo histórico, na qual ele próprio vive. Esse mundo é o de Alexandre II. O narrador - ou antes, o homem a quem ele transmite o seu saber - é um lapidador chamado Wenzel, que levou sua arte à mais alta perfeição. Podemos aproximá-lo dos ourives de Tula e dizer que, segundo Leskov, o artífice perfeito tem acesso aos arcanos mais secretos do mundo criado. Ele é a encarnação do homem piedoso:- Leskov diz o seguinte desse lapidador: "Ele segurou de repente a minha mão, na qual estava o anel com a alexandrita, que como se sabe emite um brilho rubro quando exposta a uma iluminação artificial, e gritou: - Olhe, ei-la aqui, a pedra russa, profética [...] Ô, siberiana astuta! Ela sempre foi verde como a esperança e somente à noite assume uma cor de sangue. Ela sempre foi assim, desde a origem do mundo, mas escondeu-se por muito tempo e ficou enterrada na terra, e só consentiu em ser encontrada no dia da maioridade do czar Alexandre, quando um grande feiticeiro visitou a Sibéria para achá-la, a pedra, um mágico [...] - Que tolices o Sr. está dizendo! interrompi-o. Não foi nenhum mágico que achou essa pedra, foi um sábio chamado Nordenskjõld! - Um mágico! digo-lhe eu, um mágico, gritou Wenzel em voz alta. Veja, que pedra! Ela contém manhãs verdes e noites sangrentas [...] Esse é o destino, o destino do nobre czar Alexandre! Assim dizendo, o velho Wenzel voltou-se para a parede, apoiou-se nos cotovelos... e começou a soluçar". 

Para esclarecer o significado dessa importante narrativa, não há melhor comentário que o trecho seguinte de Valéry, escrito num contexto completamente diferente. "A observação do artista pode atingir uma profundidade quase mística. Os objetos iluminados perdem os seus nomes: sombras e claridades formam sistemas e problemas particulares não dependem de nenhuma ciência, que não aludem a nenhuma prática, mas que recebem toda sua existência e todo seu valor de certas afinidades singulares entre a alma, o olho e a mão de uma pessoa nascida para surpreender tais afinidades em si mesmo e para as produzir.”

A alma, o olho e a mão estão assim inscritos no mesmo campo. Interagindo, eles definem uma prática. Essa prática deixou de nos ser familiar. O papel da mão no trabalho produtivo tornou-se mais modesto, e o lugar que ela ocupava durante a narração está agora vazio. (Pois a narração, em seu aspecto sensível, não é de modo algum o produto exclusivo da voz. Na verdadeira narração, a mão intervém decisivamente com seus gestos apreendidos na experiência do trabalho, que sustentam de cem maneiras o fluxo do que é dito). A antiga coordenação da alma, do olhar e da mão, que transparece nas palavras de Valéry, é típica do artesão, e é ela que encontramos sempre, onde quer que a arte de narrar seja praticada. Podemos ir mais longe e perguntar se a relação entre o narrador e sua matéria - a vida humana - não seria ela própria uma relação artesanal. Não seria sua tarefa trabalhar a matéria-prima da experiência - a sua e a dos outros - transformando-a num produto sólido, útil e único? Talvez se tenha uma noção mais clara desse processo através do provérbio, concebido como uma espécie de ideograma de uma narrativa. Podemos dizer que os provérbios são ruínas de antigas narrativas, nas quais a moral da história abraça um acontecimento, como a hera abraça um muro. 

Assim definido, o narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar conselhos: não para alguns casos, como o provérbio, mas para muitos casos, como o sábio. Pois pode recorrer a um acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia. O narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer). Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. O narrador é o homem que poderia deixar a luz tênue de sua narração consumir completamente a mecha de sua vida. Daí a atmosfera incomparável que circunda o narrador: em Leskov como em Hauff, em Poe como em Stevenson. O narrador é a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo. (1936

BENJAMIN, Walter. O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov.
In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197-221.