Tuesday, April 22, 2014

Os Limites do Politicamente Correto

[..] uma análise social não é uma exortação moral nem pode ser medida pelos mesmos critérios. Num caso, o valor em jogo é a verdade, ou seja, a possibilidade de explicar como o mundo é o que ele é, em toda sua arbitrariedade e contingência. No outro caso, o valor é o da justiça e mede a menor ou maior aproximação de uma concepção de vida coletiva a partir de dado parâmetro (religioso) de conduta ideal. O mundo da ciência é o aqui e agora que todos (nós, os ainda vivos) compartilhamos. O mundo da religião cristã é o "outro mundo", daí que o cristianismo institucionalizado na Igreja Católica tenha podido, ao longo de toda a sua história, adotar práticas de compromisso e de conciliação com todo tipo de de dominação política secular.

Para entender e mudar o mundo do aqui e agora é necessário, portanto, ultrapassar a mera "piedade cristã" e compreender os mecanismos sociais que produzem e reproduzem formas permanentes de miséria existencial, política e material. As causas da desigualdade e da ausência de reconhecimento social são, por definição, invisíveis a olho nu. Ainda que a pobreza e a miséria material sejam facilmente perceptíveis e reconhecíveis, as causas e precondições que as tornam possíveis e socialmente legitimadas não o são. Esta é a razão última do fato historicamente invariante de que toda desigualdade existencial, política e material tenha que ser acompanhada por mecanismos simbólicos que mascaram e tornam opacas suas causas sociais. A reprodução da desigualdade material em todas as suas dimensões - econômica, cultural e política - pressupõe o sistemático desconhecimento/encobrimento, produzido e reproduzido simbolicamente, de suas causas efetivas. Isso é válido tanto para as chamadas sociedades tradicionais quanto para as sociedades modernas.

Nesse sentido, a atitude "politicamente correta" pode ter um resultado prático até pior que a perspectiva abertamente conservadora e liberal. É que ela aparenta e se traveste de crítica sem o ser. Na verdade, a "piedade cristã" deve, aqui, compensar a falta de "trabalho teórico" em reconstruir categorias que possam mostrar a lógica da competição social de uma "perspectiva crítica". Não é fácil desconstruir o discurso "politicamente correto" precisamente porque esse tipo de discurso "cientificamente preguiçoso" é, por outro lado, numa perspectiva "moralmente superficial" extraordinariamente sedutor. Sua sedução, como tudo, tem uma gênese e pode ser explicada por essa gênese. Quando Jesus Cristo diz que a pobreza é uma virtude em si e símbolo de boa ventura, ele está radicalizando e universalizando uma concepção moral do mundo já com raízes na sua socialização judaica. A "teodiceia do oprimido" vem substituir a antes dominante "teodiceia da riqueza", destinada a legitimar os privilégios dos mais ricos e felizes.

Como existem muitos mais pobres e infelizes no mundo que ricos e felizes, a teodiceia do oprimido abre, com essa revolução moral, um espaço muito maior para a ação do trabalho e da esfera religiosa. Como a penetração de valores religiosos é imensa por se realizar de modo afetivo e dizer respeito aos nossos medos e anseios mais fundamentais, toda a cultura aparentemente apenas secular é, pelo menos no Ocidente, fortemente influenciada pela moralidade religiosa. Assim, quando os "politicamente corretos" idealizam os oprimidos como a imagem da virtude, eles estão, na verdade, se aproveitando, parasitariamente, do enorme prestígio da imagem religiosa dominante que define a "bondade" e a "caridade" cristã. O pesquisador "politicamente correto" não só se utiliza do prestígio de valores religiosos para seus próprios fins como também pode, para si e para os outros, posar de "virtuoso" ele mesmo. Ele acaba, desse modo, por reproduzir os paradoxos da "ética da convicção" na esfera da ciência, ao trocar uma análise objetiva e rigorosa - o que significa nenhuma espécie de compromisso na busca da "verdade" - por uma "boa consciência" aparente. Isso significa não ter que prestar contas das consequências práticas de sua tão preciosa (para quem imagina possuir) " boa consciência" para a efetiva superação de uma vida de miséria e opressão por parte dos infelizes e miseráveis. Para Weber é precisamente a atenção em relação às consequências práticas de toda ação no mundo que permite a passagem de uma ética da convicção - que diz "eu estou certo e dane-se o mundo" - para uma ética da responsabilidade.

Na verdade, esse tipo de abordagem é tão frequente na esfera científica quanto a abordagem liberal-conservadora, ainda que esta última seja decididamente dominante no espaço público e na grande mídia. A perspectiva "politicamente correta" também é inofensiva "politicamente", apesar da aparência crítica, dado que "se está tudo bem do lado de baixo da sociedade", na medida em que todos já são virtuosos ou "escolheram" a vida que levam (a abordagem liberal-conservadora), por que mudar alguma coisa nessa maravilha de sociedade em que vivemos?

Jessé Souza - A Ralé Brasileira: Quem É e Como Vive

Monday, April 07, 2014

Senso Comum e Justificação da Desigualdade

[...] No mundo moderno, cuja legitimidade é baseada na liberdade e igualdade de seus membros, o poder não se manifesta abertamente como no passado. No passado, o pertencimento à família certa e à classe social certa dava a garantia, aceita como tal pelos dominados, de que os privilégios eram "justos" porque espelhavam a "superioridade natural" dos bem-nascidos. No mundo moderno, os privilégios continuam a ser transmitidos por herança familiar e de classe, mas sua aceitação depende de que os mesmos "apareçam", agora, não como atributo de sangue, de herança, de algo fortuito, portanto, mas como produto "natural" do "talento" especial, como "mérito" do indivíduo privilegiado. Existiria, no mundo moderno, uma "igualdade de oportunidades" que seria a forma de conciliar as demandas de igualdade e liberdade. Os privilégios que resultam disso não seriam "desigualdades fortuitas", como no passado com a dominância do status de sangue, mas "desigualdades justas" porque decorrentes do esforço e desempenho diferencial do indivíduo.

O que assegura, portanto, a "justiça" e a legitimidade do privilégio moderno é o fato de que ele seja percebido como conquista e esforço individual. Nesse sentido, podemos falar que a ideologia principal do mundo moderno é a "meritocracia", ou seja, a ilusão, ainda que seja uma ilusão bem fundamentada na propaganda e na indústria cultural, de que os privilégios modernos são "justos". Sua justiça reside no fato de que "é do interesse de todos" que existam "recompensas" para indivíduos de alto desempenho em funções importantes para a reprodução da sociedade. O "privilégio" individual é legitimado na sociedade moderna e democrática, fundamentada na pressuposição de igualdade e liberdade dos indivíduos, apenas e enquanto exista essa pressuposição.

O ponto principal para que essa ideologia funcione é conseguir separar o indivíduo da sociedade. Nesse sentido, toda determinação social que constrói indivíduos fadados ao sucesso ou ao fracasso tem que ser cuidadosamente silenciada. É isso que permite que se possa culpar os pobres pelo próprio fracasso. É também o mesmo fato que faz com que todo o processo familiar, privado, invisível e silencioso, que incute no pequeno privilegiado as predisposições e a "economia moral" - o conjunto de predisposições que explicam o comportamento prático de cada um de nós - que leva ao sucesso - disciplina, autocontrole, habilidades sociais etc. -, possa ser "esquecido". O "esquecimento" do social no individual é o que permite a celebração do mérito "próprio", que em última análise justifica e legitima todo tipo de privilégio em condições modernas. É esse mesmo "esquecimento", por outro lado, que permite atribuir "culpa" individual à queles "azarados" que nasceram em famílias erradas, as quais só reproduzem, em sua imensa maioria, a própria precariedade. Como, no entanto, o social, também nesse caso, é desvinculado do individual, o indivíduo fracassado não é discriminado e humilhado cotidianamente como mero "azarado", mas como alguém que, por preguiça, inépcia ou maldade, por "culpa", portanto, "escolheu" o fracasso.

A essa altura alguém pode se perguntar: então a "culpa" é da família pela reprodução da desigualdade, injustiças e privilégios? Tal questão é importante por duas razões. Primeiro, ela permite perceber que qualquer forma de dominação injusta depende do estreitamento do universo reflexivo. Sempre que a reflexividade humana não pode se expandir até a última cadeia causal que explica um fenômeno, este pode ser utilizado para fins de manipulação ideológica. Assim, como na ideologia dominante no senso comum só temos "indivíduos" que competem uns com os outros, nosso olhar, o olhar ingênuo e não treinado do senso comum, só consegue perceber a "família" como último elo da cadeia de causas que levam às desigualdades. A família seria o único elemento a ligar o indivíduo solto no mundo a alguma forma de comunidade social.

O que se esquece é que as famílias não possuem, enquanto famílias, nenhuma matriz valorativa própria. Elas buscam a visão de mundo que implementam diariamente em "outro" lugar. Se não fosse assim cada família ensinaria coisas distintas aos filhos, o que sabemos, não é o caso. Ao contrário, as famílias de uma mesma classe social ensinam coisas muito semelhantes aos filhos, e é isso que explica que esses filhos de uma mesma classe encontrem amigos, namorados e, depois, esposas e maridos da mesma classe e comecem todo o processo de novo. A "endogenia de classe", ou seja, o fato de as pessoas, em esmagadora maioria, se casarem dentro de uma mesma classe, mostra, de modo claro e insofismável, que as famílias reproduzem, na verdade, valores de uma classe social específica. O fato de o senso comum nunca perceber a presença das classes e da economia moral que vai determinar o comportamento peculiar de cada classe é o que explica precisamente que a "determinação social" dos comportamentos individuais seja sistematicamente escondida e "esquecida". Como esse aspecto central é deixado às sombras, pode-se culpar "indivíduos" por destinos que eles, na verdade, não escolheram.


Mas o "esquecimento" da "classe social", como segredo mais bem guardado da ideologia do senso comum, só pode ser adequadamente compreendido se separamos cuidadosamente o conceito de classe social como fonte de todas as heranças simbólicas, valorativas, morais e existenciais que se passam de pais a filhos por laços de afeto, do conceito meramente econômico de classe como acesso a dada "renda". Esse tema é de difícil compreensão num mundo e, muito especialmente, num país onde a única linguagem que parece existir é a da economia. Mas se "refletirmos" um pouquinho - afinal, é isso que o senso comum nunca faz - percebemos facilmente que o que os pais transmitem para os filhos de mais importante não é "dinheiro" nem nada que seja comprável apenas com ele.

O que os pais, ou figuras que os substituem, transmitem aos filhos, quer tenham consciência disso ou não, é toda uma visão de mundo e de "ser gente" que é peculiar à classe a que pertencem. O que a classe média ensina aos filhos é comer nas horas certas, estudar e fazer os deveres de casa, arrumar o quarto, evitar que os conflitos com amigos cheguem às vias de fato, chegar em casa na hora certa, evitar formas de sexualidade prematuras, saber se portar em ambientes sociais etc. As famílias da classe média ensinam, portanto, os "valores" de uma dada "classe", que são os valores da autodisciplina, do autocontrole, do pensamento prospectivo, do respeito ao espaço alheio etc. Que esse aprendizado seja "esquecido" ou não tematizado deve-se ao fato de que ele é transmitido afetiva e silenciosamente no refúgio dos lares. O aprendizado familiar é afetivo, ele só existe porque existe também a dependência e a identificação emotiva e incondicional dos filhos em relação aos pais.

Nos melhores lares da classe média também são ensinadas coisas mais "invisíveis" ainda, e que também não têm relação direta com dinheiro ou renda. Existe um número considerável de famílias da classe média em que as crianças, além de aprenderem "como devem se comportar", aprendem também que elas são "um fim em si mesmas" porque são amadas de modo incondicional pelos pais. Este último elemento permite acrescentar, além do mecanismo disciplinar indispensável ao sucesso nas condições de trabalho capitalistas, um elemento invisível para muitos, mas fundamental tanto na competição social quanto no desafio de levar uma vida com sentido, que é a "autoconfiança". A "autoconfiança", como nos ensina o pensador alemão Axel Honnet, é aquele elemento que confere a quem o possui, pelo simples fato de ter sido amado, a certeza do próprio valor, certeza essa que permite encarar derrotas e perdas como fatos transitórios e o enfrentamento de todo tipo de desafio e de dificuldades com confiança e esperança.

Mas esse tipo de aprendizado não é universal. As classes baixas no Brasil, ou mais propriamente seu patamar socialmente inferior, ao qual estamos dando o nome provocativo de "ralé", não possuem, muitas vezes, nem um nem outro tipo de aprendizado. Na imensa maioria dos casos lhes falta, pelo menos, o primeiro deles de modo muito evidente. Algumas vezes, ainda que alguns pais estimulem os filhos a irem à escola, os motivos dessa escolha são "cognitivos", da "boca pra fora", posto que a maior parte desses pais também não foi à escola ou não teve nenhuma experiência pessoal de sucesso escolar. Assim sendo, eles não "sabem", de modo "emotivo" e por experiência própria, os benefícios da vida escolar. Como esses pais, por exemplo, não possuem, como consequência do "fracasso" escolar, o hábito da leitura eles mesmos, de que vale o estímulo, da "boca pra fora", sem a força do exemplo, para a leitura das crianças?

Em muitas famílias da "ralé" brasileira é comum também a naturalização do estupro. As mulheres, especialmente, são estimuladas - de modos que as pesquisas empíricas mostram sobejamente - a um início prematuro da vida sexual, permitindo que sejam facilmente instrumentalizadas sexualmente pelos pais, padrastos, tios, irmãos mais velhos etc. Há 60 anos Florestan Fernandes havia detectado o mesmo estado de coisas. Qual o sentido de autoconfiança que é possível para esses seres humanos que só aprenderam a usar e serem usados? Que tipo de relação consigo mesmos? Que tipo de relação com os "outros"?

É a presença desses dois elementos conjugados, que faltam à "ralé", que permite às crianças de classe média o acesso às características emocionais e cognitivas que irão, mais tarde, separar aqueles que terão sucesso escolar e, consequentemente, sucesso no mercado de trabalho. A "renda" econômica que advém desse sucesso é, portanto, efeito, e não " causa" das diferenças entre as classes. A confusão entre efeito e causa, aliás, é o que faz as classes sociais, na sua determinação mais importante, que é não econômica, tornarem-se invisíveis aos olhos do senso comum. E apenas porque as classes se tornam invisíveis é que o senso comum e as "ciências" que se constroem a partir delas podem ver o indivíduo e o "mérito" individual como justificativa de todo tipo de privilégio. As classes sociais se reproduzem, portanto, de maneira duplamente invisível: primeiramente porque a construção das distintas capacidades de classe é realizada no refúgio dos lares e longe dos olhos do público; depois, invisível ao senso comum, que só atenta para o resultado, apresentado como "milagres do mérito individual", deixando as precondições sociais e familiares desse "milagre" cuidadosamente fora do debate público.

Jessé Souza e colaboradores. A Ralé Brasileira: Quem é e como vive.