Friday, November 14, 2025

14 de novembro de 2018

Não parece tão complicado. Nós fomos derrotados porque o terço dos eleitores que fica ao Centro com leve tendência à esquerda foi parcialmente capturado pelo bolsonarismo. O terço que fica ao Centro e se inclina à Direita, esse se voltou inteiramente para o bolsonarismo. Esses votos iam, em grande parte, para o PSDB. Com o desmanche dos tucanos a Centro-Direita adernou pro lado do atraso. O pedaço do espectro que se inclinaria pra esquerda não veio inteiro pro nosso lado, como nas eleições de 2002 a 2014, porque o Edir Macedo puxou pro polo oposto. Dilma e Lula se desdobravam para conseguir votos evangélicos porque tinham plena consciência de que parte decisiva da população brasileira está cada vez mais conectada aos cultos neopentecostais. Sem eles, Lula e Dilma sabiam muito bem, ninguém ganha eleição no Brasil. A guerra híbrida via WhatsApp teve papel decisivo, mas o que está na base do resultado é um fato aritmético: o campo democrático, ou progressista, padece da falta de eleitores. Somos poucos. O 'lulismo' atacava a questão de frente: é preciso aglutinar forças. 'Edir Macedo' é, aqui no texto, linguagem figurada. O todo pela parte. Conseguir voto no Brasil é convencer os pobres a comparecerem às urnas. Quem está mais perto dessas populações tem mais chances de convencê-las. E as igrejas evangélicas estão. Lula e Dilma sabiam disso. Por isso pactuavam. Para em seguida agir como anteparos à voracidade de eventuais vendilhões do templo. Fala-se muito em retorno às bases, mas deixa-se de lado que o PT só ganhou eleições para presidente quando trouxe para si os votos de milhões de brasileiros que não se interessam por trabalhos políticos de qualquer natureza. A igreja tem papel decisivo neste estado de coisas. Estamos falando de um país com mais de 200 milhões de habitantes. O eleitor que pode ser classificado 'de esquerda', é provável, não alcança a casa das dezenas de milhões. Uma piada dos anos 80 dizia que caberíamos todos em duas, ou três kombis.

14 de novembro de 2018

A defesa do 'retorno' do PT às bases precisa necessariamente explicitar a que 'bases' se refere.

Em 1989 o partido tinha como eleitor 'padrão' o trabalhador especializado dos grandes centros urbanos. Metalúrgicos e bancários, por exemplo. CUT e MST, tinham, respectivamente, 6 e 5 anos de existência, eram recém-nascidos. Existiam e atuavam, também, na época as Comunidades Eclesiais de Base, que não eram petistas em sentido estrito. Acrescente-se aí as juventudes estudantis e os intelectuais formadores de opinião. Era esse perfil complexo que puxava os proverbiais 30% de fidelizados cada vez que se abriam as urnas.

Na virada do século XXI os Fóruns Mundiais acrescentaram ao PT marcas importantes que associariam sua imagem à dos chamados movimentos populares que ganharam força a partir da Constituição de 1988 e da chegada do Terceiro Setor. Claro que essa configuração fez crescer ainda mais o PT, que também teve tempo para ganhar e administrar importantes capitais. Ao mesmo tempo, CUT e MST evoluíam a passos largos.

Todos esses grupos de militância estiveram presentes na fabulosa festa da posse de Lula em janeiro de 2003. Mas, antes disso, o PT havia sido derrotado por Fernando Collor e duas vezes por Fernando Henrique Cardoso (em primeiro turno).

Foi preciso a 'Carta aos Brasileiros' para que o projeto dito 'de esquerda' durante duas décadas fosse aceito majoritariamente pelos brasileiros em disputas presidenciais. Antes disso, estava claro, as bases não eram suficientes para levar Lula, nem o PT, ao Planalto.

Lula, como se sabe, foi reeleito com certa folga e saiu da presidência com mais de 80% de aprovação. Seu 'poste', Dilma Rousseff, nadou de braçada todo o primeiro mandato. Na crista de uma onda benfazeja na economia? Sem dúvida. Mas também operacionalizando um largo arco de alianças que, fundamentalmente, consistia em garantir os votos do eleitorado conservador liberal, o chamado 'centro' do espectro. A conta é simples. 30% dos eleitores são fiéis ao PT, 30% querem ver o PT e todos os petistas pendurados pelo pescoço e 30% formam um grupo a ser permanentemente disputado.

Não há trabalho de base a ser feito em relação a esse último pedaço do eleitorado. Trata-se de cidadãos de perfil conservador e que já têm seus referenciais políticos e sociais definidos. Esse grupo vai à Igreja. Mas não necessariamente 'obedece' ao pastor. Pode votar no PT, mas se identifica mais com o PSDB. Ao articular alianças de amplo alcance, Lula tirou votos dos tucanos que, vendo-se em queda acelerada, abraçaram a Direita. O resultado é que foram tragados por ela ao pretenderem dirigir um golpe para o qual não tiveram coragem de dar o rosto.

Se, 'voltar às bases' significa fortalecer os movimentos sociais e implementar ações que remetem às Comunidades Eclesiais de Base para atuar num campo de oposição que entende a disputa democrática para além das eleições (como propõe, por exemplo, o professor Luiz Felipe Miguel), a ideia de 'retorno' se aplica e pode ser muito oportuna.

Se o assunto for ganhar a presidência em 2022, estaremos falando de uma base que sempre deu consistência ao projeto do partido, mas que não decide eleição. A articulação que levou Lula e Dilma quatro vezes sucessivas ao governo dava prioridade a concorrer em condições de vitória e, para isso, precisava se congregar com forças sociais e eleitorais que podem ser, e muitas vezes são, estranhas à ideologia do PT.

O que há, e isso parece ainda não estar claro nas análises pós-tsunami bolsonarista, é uma nova base, essa sim, eleitoral, e não ideológica, surgida nos estados beneficiados pelas políticas de valorização dos salários, distribuição de renda e investimentos no setor produtivo e na infra-estrutura. Não se trata de 'retornar' e sim de consolidar essa base. E também não tem nada a ver com 'educação política'. A vida dessas populações se transformou no período Lula e Dilma. Essa transformação já resultou em vitórias acachapantes dos candidatos do campo democrático e popular. O assunto, no caso, é: o que será preciso fazer para que esse ciclo virtuoso não se interrompa? Ou em outras palavras, quem, eleito, pode se colocar a favor dessa nova realidade que o reacionarismo brasileiro quer destruir?

Wednesday, November 12, 2025

12 de novembro de 2018

Se o general Viddas Boas tá falando em público sobre esse tal de 'limite' da intervenção, imagine os papo que rola nas internas!

Eu sou um dos caras mais zé ruelas que eu conheci na vida. Sem dinheiro no bolso, sem parentes importantes, blá-blá-blá e sem condições psíquicas de entender como é que se produzem conspirações, tráfico de influência, bem-bolados, acordos, negócios e outras mumunhas mais. Resultado: sou uma desautoridade desconstituída. Nem o cachorro do vizinho dá atenção pras minhas ordens. 

Por exemplo: eu não consigo me interessar por entender como o PT se divide em facções, digo, tendências. Eu sei que elas existem. Que são fundamentais para a vida do partido. Sei mais ou menos quem, entre os mais famosos, anda com quem. Mas é até aí que eu vou. Senso prático: aprendi, durante o impeachment, a não contar com o Rui Falcão. Não vi necessidade de saber nada sobre as disputas internas do PT para perceber que dali não sairia coisa alguma.

Diferente eu vejo a Gleisi Hoffman agora. Daqui daonde observo ela é a representação cristalina de um grupo que pegou pra si a tarefa que, salvo engano, é a mais necessária para o campo democrático no Brasil atual: garantir a integridade física e política do presidente Lula e lutar por sua liberdade. Que não é nada menos do que lutar pela integridade da República. 

Lula é o maior líder popular da história do Brasil. Talvez o mais importante da América Latina. Sem dúvida um dos maiores do mundo. Lula está preso. De modo inequivocamente injusto e partidarizado. Gleisi, sempre que aparece, está, de alguma forma, noticiando que segue em vigília, dedicando-se em tempo integral à integridade do Lula.

Pode ser que, nas internas, Gleisi não seja nada disso e defenda interesses escusos, talvez o próprio Lula seja o oposto do que pensamos. Para o que estou dizendo, isso é indiferente. Os números da eleição não deixam dúvida sobre a importância de Lula para o Brasil. E a presença de Gleisi tampouco. Ela, goste-se ou não, é quem não deixa esmorecer o entusiasmo. É imperativo tirar Lula da cadeia e provar sua inocência.

Me pergunto sempre por que foi que as lideranças do campo democrático não foram até as últimas consequências no momento de impedir o ataque à democracia e à República que foi o processo de impeachment de Dilma Rousseff. Declarações como a do general Viddas Boas ajudam a pensar melhor o problema. Se em público ele admite que o Exército poderia intervir para que um habeas corpus não desse a Lula a liberdade, imagina o que esses caras não falaram por telefone, ou mandaram dizer através de emissários!

Inside information é pra quem pode, não é pra quem quer. Eu não posso e nem quero. Mas admiro quem tem. É quase obrigatório munir-se de boas e sigilosas fontes para desenvolver certos trabalhos jornalísticos. Quem é da lida partidária também não pode viver sem elas. Diferentes são os oráculos de Facebook, adivinhando o passado em bolas de cristal que ninguém sabe onde guardam. Transformando grandes arcos históricos em tiaras coloridinhas do varejo de notícias dessa enorme rua 25 de Março que são as redes sociais.

Do meu ponto de vista zé ruela, a luta pelo #LULALIVRE tem uma cara. Multiconstruída, não há dúvida. Mas, nela, os traços da Gleisi Hoffman aparecem inconfundíveis.

Monday, November 10, 2025

10 de novembro de 2016

Sendo melhor, igual ou pior que a Hillary Clinton, Donald Trump é um representante da chamada "Extrema Direita". Fenômeno com o qual ainda não tivemos que lidar para além do histrionismo de figuras que se fantasiam com roupas do exército brasileiro, saem em passeatas de meia dúzia, ou postam vídeos caseiros constrangedores. O que NÃO quer dizer que NÃO estejam em ascensão pelo mundo afora. A França, por exemplo, tem a Marine Le Pen. Se alguém não notou, ela foi a primeira a faturar na mídia comemorando a vitória do alaranjado maluco. Aqui foi o Bolsonaro quem sacou de imediato o potencial que o "alinhamento" à gestão Trump tem para alavancar seus planos eleitorais. O brasileiro, para os EUA, agora, mais que nunca, é apenas um "porco latino" a mais? Of course, my horse. Mas quem disse que a turma do Bolsonaro sonha em ir pra Miami lavar pratos? A Extrema Direita é nacionalista. O barato dessa gente (diferentemente do coxa-creme Ralph Lauren que sonha em viver na gringa) é permanecer no lugar de origem, só que dando as ordens. Ou melhor, dando porrada em quem "subverter" a ordem. Xenofobia, racismo, misoginia, sexismo, ódio de classe, homofobia, violência, tudo isso que compõe a base das sociedades patriarcais do Ocidente e que tem permanecido sob relativo controle desde os pactos universalizantes do pós-Grandes Guerras, lateja a cada dia com mais força, querendo vir à luz. Diferentemente do mero conservadorismo, a Extrema Direita substitui o regramento institucional pela ordem da horda. Não à toa, Bolsonaro é um clã. Assim como os Le Pen. Os Bush do Texas, os Clinton do Arkansas, os Neves de Minas Gerais, ou os Dória da Bahia, formam famílias também, mas nenhum pode ser rigorosamente classificado sob o rótulo "Extrema Direita". É uma completa perda de tempo, nessa discussão, elencar os prejuízos que Bushs, Clintons, Neves ou Dórias causam ao mundo. Disso ninguém duvida. Bobagem igual é imaginar que o Brasil sob Temer terá qualquer relevância no xadrez geopolítico planetário. No limite, é verdade, pra nós não muda nada, se Trump, ou Hillary. A novidade é que, desde ontem, os vermes que infestam as caixas de comentários dos portais da internet all over the world têm um presidente americano pra chamar de seu. Empoderaram o lúmpem. Daí não pode vir nada bom. No país da "cordialidade", do "patrimonialismo", do controle social genocida, o que menos precisamos é de Bolsonaros a mais. Já os temos de sobra. E, no entanto, eles estão se multiplicando. "Give me a break". Não há nenhuma justificativa para minimizar esse enorme problema.

Sunday, November 02, 2025

2 de novembro de 2018

Mudando o mood, saindo um pouco do deboche, é evidente que a eleição do Bolsonaro acendeu em todo mundo o temor da tomada do poder pelo Exército brasileiro (em algum tipo de combinação mais ou menos explícita entre FFAA e setores da sociedade civil). Pois eu tenho um palpite. O Exército, em sentido estrito, vai permanecer 'na dele'. Uma, porque nada indica que teremos ações de resistência que venham a justificar o chamamento de soldados; outra porque já temos tudo o que é necessário para viver em estado de exceção, próximos à experiência de uma Ditadura. E se chama Polícia. Aliás, nos períodos mais tenebrosos de Hitler e Stalin (e regimes totalitários posteriores), a rotina da repressão sempre esteve a cargo da polícia, não do exército. Hannah Arendt se refere constantemente a um 'Estado Policial': a autoridade que tem poder para gerenciar, quarteirão a quarteirão, as delações, as propinas, a vigilância, os enquadramentos, o uso seletivo da violência. Nas periferias essa é a lei vigente desde a invenção da Polícia Militar. Recomendo a leitura de O Crime pelo Avesso: gestão dos ilegalismos na cidade de São Paulo, da professora Alessandra Teixeira. É aterrador, mas muito instrutivo. Aquilo que para as populações pobres do Brasil é claro como a luz do dia, pode estar chegando ao centro do poder político de uma maneira para a qual a esquerda, fenômeno de classe média, não está preparada. Neste contexto, claramente autoritário, os bate-paus por excelência dos governos são as polícias. E se no Exército Bolsonaro será eternamente um oficial de baixa patente e, portanto, passível de, a qualquer momento, ser rejeitado, entre as polícias, tem ficado nítido, ele é ídolo. Com a figura de um Ministro da Justiça 'justiceiro', temos a 'tempestade perfeita' se armando sobre a frágil democracia brasileira.

Saturday, October 18, 2025

18 de outubro de 2016


LUZ, CÂMERA, AÇÃO

O cinema americano é repleto de advogados. O advogado cai bem para a tradição hollywoodiana porque encarna convincentemente a solitária jornada do herói. No mais das vezes ele representa nos filmes a experiência do homem comum em luta pela restauração da normalidade da lei. Sempre que o equilíbrio do mundo se vê abalado, os roteiros americanos escalam um "anybody" para protagonista do drama que põe de volta as coisas no lugar. O cowboy, o soldado, o policial, o professor, o jornalista e tantos outros, cada um à sua maneira, traduzem a capacidade que o indivíduo tem de tornar-se responsável pela mobilização de uma verdadeira teia de ações e reações, cujas consequências são tão imprevisíveis quanto inevitáveis. O happy end há tempos deixou de ser obrigatório, mas segue como o desfecho mais frequente para essa encenação do mito do eterno retorno à ordem natural da sociedade. O advogado, então, é aquele que ao tangenciar os limites estritos do que é considerado legal, realça as contradições sistêmicas da Justiça enquanto instituição. É o esquema dramático grego por excelência que Hollywood sabe, como ninguém, atualizar, diluindo-o na medida exata da catarse de entretenimento.

A arte do roteiro americano tem, porém, par a par com a construção das narrativas universalizantes e arquetípicas, seu viés narcisista. Hollywood não consegue evitar ser confessional. E, sendo a locomotiva da segunda, quiçá primeira, mais importante indústria dos EUA, odeia advogados e seus milionários "casos". Steven Spielberg é especialista em zombar deles incluindo menções em cenas secundárias de seus blockbusters. Em 'O Parque dos Dinossauros' um homem em pânico tenta se esconder de um monstro pré-histórico num prosaico banheiro químico. Farejado, é pego em pose ridícula, de cócoras sobre o vaso sanitário. Vira comida, sem piedade. Sua profissão? Advogado. Num outro filme, conta-se a seguinte piada: "Sabiam que estão substituindo as cobaias por advogados em pesquisas científicas? São dois os motivos: um, o pessoal do laboratório se apega menos. Depois, tem coisa que rato não topa fazer".

A relação de amor e ódio que Hollywood mantém com os advogados conta muito do ethos de um país que, ao mesmo tempo, se ergue sobre a crença emancipatória contida na defesa da igualdade de direitos e mantém em funcionamento as mais cruéis e genocidas práticas dentro de seu próprio território. O advogado - de filme - corporifica o Davi que vence, contra todas as expectativas, o gigante. O advogado da vida real é, para o big business estadunidense, a figura que pode roer-lhe pedaços, a pequena ameaça que, se não destrói, tem a manha de irritar profundamente. O personagem advogado mobiliza para a ação, é político, lidera processos. O advogado de carne e osso, pela via jurídica, "abre" processos, "move" ações.

Em comparação, o cinema brasileiro que, cada vez mais, adere ao mainstream de roteiro, fotografia e montagem de padrão hollywoodiano, já tem justiceiros, novos ricos, seres magicamente transformados, incorreção política, espiritismo e toda sorte de clichês narrativos, mas, salvo engano, nenhum advogado. A adoção de fórmulas na arte, ou, pelo menos, na comunicação, esbarra no limite do incompreensível. O Judiciário brasileiro é marcado, antes de mais nada, pela exclusividade do acesso, seja para o usuário ou para o profissional. Sua mais recente metamorfose acontece, acrescente-se, pela valorização dos concursos públicos e os concursos, ao restringirem, pela dificuldade das provas, os reais concorrentes a gente que vem de histórias de vida privilegiadas, acabaram por fortalecer uma espécie de casta encastelada no Estado. Uma coisa é imitar um filme americano de guerra de gangues numa favela do Rio, como 'Cidade de Deus'. Ou vestir como policial um personagem atormentado por dilemas shakespearianos e assim liberá-lo para cometer todo tipo de atrocidades, como em 'Tropa de Elite'. No Brasil, o advogado herói é uma espécie de impossibilidade estatística. Seria tão verossímil quanto um astronauta, ou um samurai tupiniquim. A Justiça no Brasil reforça abertamente nosso milenar patrimonialismo. Não temos, entre nós, o mito fundador da equidade. Como se Davi não tivesse nunca a chance de encontrar com Golias: falta o campo de batalha. O Judiciário tem a forma, não de um campo, mas de um enorme muro sem brechas. No filme de advogado made in Brazil, baseado em fatos reais, a gente morre no fim. Do lado de fora.

Tuesday, October 14, 2025

14 de outubro de 2015


 AS YOU LIKE IT

A manchete de hoje poderia ter sido:

"Apenas 33% dos leitores da Folha desaprovam a Gestão Alckmin".

Ou, então:

"67% dos leitores da Folha consideram o Congresso ruim ou péssimo".

Também cabia:

"Fernando Haddad tem 56% de reprovação entre leitores da Folha".

Ou mesmo:

"64% dos leitores da Folha acham que a crise tende a piorar nos próximos meses".

Mas, claro, a opção foi: "61% dos leitores querem renúncia de Dilma".

E apenas no subtítulo: "Pesquisa Datafolha feita - COM O PÚBLICO DA FOLHA - mostra que 77% classificam o governo como ruim ou péssimo".

Não é uma pesquisa sobre o Governo, embora pareça. É uma matéria sobre perfil de leitores do jornalão do Frias Filho.

O perfil que todo mundo já sabe qual é:

"Metade dos entrevistados (48%) tem renda familiar mensal superior a dez salários mínimos, 76% têm ensino superior, 83% são do Sudeste, quase 60% não têm partido de preferência, mas 59% votaram em Aécio Neves (PSDB) no segundo turno da eleição presidencial de 2014".

O aspecto mais relevante, sendo esta uma pesquisa de perfil de consumidor, e que, disparado, mereceria a manchete, diz respeito à percepção que o leitor tem do lugar que o jornal ocupa no espectro ideológico:

"O maior grupo de leitores (30%) posicionou a Folha como uma publicação de centro-direita. Para 26%, o jornal é de centro. Outros 22% o identificam como de direita. O jornal é visto como de centro-esquerda por 12%. E de esquerda por 5%".

A miopia política dos 5% que a classificam "à esquerda" está longe de desmentir o que já se sabe, mas a pesquisa comprova: quase 90% desses leitores altamente identificados com a linha editorial da Folha têm perfeita consciência das convicções políticas que o jornal defende. 

Na prática, os resultados da amostragem confirmam a clara via de mão dupla entre o que se publica e o que se espera que a Folha publique. Em detrimento, é claro, da proverbial imparcialidade que a propaganda anuncia há décadas.

Friday, September 19, 2025

19 de setembro de 2020


Destruição tão intensa e sistemática como a que estamos presenciando no Brasil tem, necessariamente, que atender às chamadas 'ordens superiores'. As consequências são profundas e duradouras demais para que os donos do poder não movam sequer uma palha. Passou da omissão e da conivência. É a mão nada invisível do Consórcio Golpista quem manipula ações e resultados. Isso não é uma crise. É um projeto. E tem mandante.

Se Bolsonaro chegou a ter voz ativa desde a posse, já há bom tempo foi reconduzido ao lugar do espantalho. Qual teria sido sua última ação? Forçar a saída do juiz Moro? Garantir o soldado Pazuello no ministério? Talvez, nem isso. De lá para cá tem se limitado a bater perna, bater papo e bater cabeça consigo próprio, que é o que sempre soube fazer, além de desviar dinheiro público em esquemas caseiros.

Bolsonaro virou, para o Golpe, um enorme para-raios. Tudo o que é de ruim lhe cai por cima. Salles, Damares, Guedes, Frias, Faria, Araújo e todos os congressistas, banqueiros, pastores, prefeitos, governadores golpistas e quem mais chegar, podem seguir, quase discretos, apostando na devastação, cada um no seu quadrado. Para não ser preso, ou os filhos, Bolsonaro, o ladrão sem nenhum caráter, topa qualquer combinado.

O objetivo final do Golpe, dá até medo de imaginar. Ao contrário do 'presidente', que procura centralizar tudo e vive em função de seu gueto, as forças da reação nacional têm capilaridade. Muita. Estão por toda parte. Bolsonaro funciona como um anteparo para o monstro. É muito fácil ridicularizar tudo o que faz porque ele é autenticamente ridículo. Mas não há nada de cômico no que estamos vivendo.

Bolsonaro não seria capaz de articular roteiro tão trágico de destruição. E é o que está acontecendo com o Brasil. Um desmanche. Da natureza, das instituições, do patrimônio público, da sociedade civil... O que você pensar está sendo destruído. Completa destruição.

imagem: Lalo de Almeida / Folhapress

Thursday, September 18, 2025

Ministro das Finanças de Israel diz que Gaza é 'mina de ouro imobiliária'


"PRIMEIRA ETAPA"

O ministro das Finanças israelense, Bezalel Smotrich, de extrema direita, disse nesta quarta-feira que a Faixa de Gaza é uma potencial "mina de ouro" imobiliária e que está em negociações com os Estados Unidos sobre como dividir o enclave costeiro ao fim dos ataques, segundo o jornal israelense Times of Israel. O ministro está entre as autoridades israelenses que poderá ser sancionadas pela União Europeia.

Em discurso numa conferência imobiliária em Tel Aviv, o ministro destacou que a oportunidade "se paga" e que ele "já iniciou negociações com os americanos".
 
— Pagamos muito dinheiro por esta guerra. Precisamos ver como vamos dividir a terra em porcentagens. A demolição, a primeira etapa da renovação da cidade já foi feita. Agora precisamos construir — afirmou Smotrich. — Há um plano de negócios, elaborado pelas pessoas mais profissionais daqui, que está na mesa do presidente [dos EUA, Donald] Trump.

(...)

Também nesta quarta-feira, Israel anunciou a abertura de uma nova rota de passagem temporária para permitir a fuga de civis palestinos da Cidade de Gaza, um dia após o início da esperada grande ofensiva por terra (anunciada ao longo dos últimos meses).

Segundo a AFP, um grande número de palestinos foi visto fugindo da cidade por qualquer meio, enquanto o Exército israelense continuava sua ofensiva terrestre, matando dezenas em ataques.

A ONU estima que a Cidade de Gaza era o lar de quase um milhão de pessoas no final de agosto. A nova ofensiva, porém, provocou mais um êxodo palestino nos últimos dias — embora muitas pessoas tenham dito que não pretendem sair da cidade, por considerar que não existe lugar seguro no enclave.

Na terça-feira, a Comissão Internacional Independente de Investigação da ONU, que reúne investigadores, mas não fala em nome das Nações Unidas, afirmou que "um genocídio está acontecendo em Gaza", citando o deslocamento forçado de pessoas como um dos elementos avaliados.

Israel rejeitou o relatório, acusando-o de ser "tendencioso e mentiroso", além de usar dados do Hamas. O governo israelense também pediu uma dissolução "imediata" da comissão investigadora.

HISTÓRICO DE AMEAÇAS

Esta não é a primeira vez que Smotrich faz planos pela anexação do enclave ao território israelense. Em agosto, o ministro disse em entrevista que estava trabalhando para restabelecer os antigos assentamentos israelenses de Ganim e Kadim, no norte da Cisjordânia, ambos evacuados e desmantelados durante a retirada de Israel em 2005.

Numa conferência intitulada "A Riviera de Gaza – da visão à realidade", em julho, ele afirmou que Gaza se tornaria uma "parte inseparável do Estado de Israel" e que sua visão tem o apoio do presidente americano Donald Trump. Em maio, ele havia garantido que o plano era deixar Gaza "totalmente destruída" e deslocar os palestinos para uma faixa de terra na região sul.

Em fevereiro, Trump disse que os EUA tomariam Gaza, realocariam seus moradores e a transformariam na "Riviera do Oriente Médio". Os planos do presidente americano foram rejeitados pelos palestinos e pela maior parte da comunidade internacional, além de autoridades de ambos os partidos nos EUA. Segundo o jornal americano The Washington Post, a proposta continua de pé. Em reportagem publicada no fim de agosto, o jornal confirmou que Trump está considerando uma proposta para a reconstrução de Gaza após a guerra. O projeto prevê colocar a Faixa de Gaza sob controle americano por uma década e pagar cerca de um quarto da população palestina para se mudar, muitos deles permanentemente.

O Globo e agências internacionais — Tel Aviv, Israel 17/09/2025

Monday, September 08, 2025

8 de setembro de 2018

Em meio ao vozerio quase histérico em torno do ataque a faca sofrido pelo presidenciável Jair Bolsonaro, a única narrativa que percebo ter tomado consistência e se firmado é a da 'armação'. Não que isso informe sobre o ato em si. Antes parece consequência da imagem construída pelo próprio candidato e seus filhos-clones, a saber, a de farsantes. Da negação da política à macheza, da patente militar à Wal do Açaí, tudo no candidato tem indícios de embuste. Seus seguidores, e não são poucos, contribuem para a consolidação da fama: atuam nas redes - um lugar 'virtual' - disseminando fakes, trolls, hoaxes, entre outras mutretas. Só mesmo um enorme conluio das forças de regressão brasileiras poderá eleger alguém tão indigesto. Pois, além de gerar a desconfiança típica que o demagogo sempre gera, Bolsonaro também transmite a certeza de ser o representante mais legítimo da misoginia, do racismo, da homofobia e todo tipo de violência que o Brasil vem, a duras penas, tentando enfrentar. 80% dos eleitores não demonstram interesse pela bazófia de Jair, família e pseudo-fanáticos. As pesquisas, ao contrário, apontam que o projeto capitaneado (perdoe o trocadilho) por ele é o preferido entre os homens brancos, ricos e escolarizados. O povo, o proverbial 'povão', quer que Bolsonaro 'se lasque'. O mesmo povão que, sabiamente, elegeu Getúlio, Juscelino, Lula e Dilma, contra o desejo dos dominadores. Se depender da vontade popular, uma chapa de títeres tão reacionários, entreguistas e fisiológicos quanto Bolsonaro & Mourão não se elege. Mas o momento pelo qual estamos passando não se parece com aqueles em que se saíram vencedores Getúlio, Juscelino, Lula e Dilma (assim como Dutra, Jânio, Collor e FHC). Estamos em pleno Golpe. A frágil ordem democrática foi afrontada. E, como inúmeras vezes antes na história do país, a potência que só a coletividade é capaz de mobilizar corre o risco de soterramento pela força bruta das oligarquias nacionais. O perigo não é desprezível.

Friday, September 05, 2025

... "problemática, mas acerta no diagnóstico"

EDUARDO CESAR MAIA

Discussão sobre o que é ou não literatura pode resultar banal e autoritária se não for nuançada

[RESUMO] Professor comenta discussão literária desencadeada após entrevista de Aurora Bernardini na Folha. Embora discorde da posição da tradutora a respeito do que seria ou não literatura, avalia que ela faz um diagnóstico correto ao apontar uma prevalência do assunto sobre o estilo na literatura atual. Para ele, precisamos renovar as perspectivas desse debate para superar essa disjunção equivocada de forma e conteúdo.

A mais recente polêmica no nosso campo literário esconde certas nuanças que, acredito, podem ser mais bem exploradas com certo afastamento do clima apaixonado e pouco reflexivo dos debates de rede social.

Em entrevista para a Folha, a professora e tradutora Aurora Fornoni Bernardini defende que a literatura contemporânea ficou mais pobre ao privilegiar o conteúdo em detrimento da forma.

Para ela, obras que trocam "significante por significado" podem até ser interessantes, mas não se qualificam como literatura de fato, pois carecem de uma preocupação estética com o estilo e a linguagem, o que caracterizaria particularmente a arte literária. A mesmíssima advertência já tinha sido feita pela ensaísta Walnice Nogueira Galvão, em termos muito parecidos, alguns meses atrás na Folha.

Tomada em sentido estrito e literal, a observação de Aurora Bernardini nos soa realmente problemática. Dizer simplesmente que Itamar Vieira Junior, Annie Ernaux e Elena Ferrante — escritores, por sinal, bastante diferentes literariamente entre si — "não são literatura", sem maiores matizações, parece-me somente uma frase de efeito pinçada e colocada em destaque para gerar engajamento virtual.

Se não compreendermos previamente certos debates históricos e teóricos em estética e teoria literária, a respeito dos quais certamente a professora Aurora Bernardini está muito bem-informada, estaremos somente diante de uma banal e autoritária petição de princípio ontológica: tal coisa é ou não é, porque se enquadra ou não em minha definição desta mesma coisa.

Ao que um adversário simplesmente poderia argumentar: "mas a minha definição é outra!". Assim, o debate se enreda numa sequência anódina de apriorismos, em réplicas e tréplicas, que não ajudam em nada na iluminação da interessantíssima questão subjacente.

Ora, ninguém pode determinar definitivamente o que um conceito histórico, como o de literatura, é, foi ou será, porque os usos desse tipo de conceito flutuam temporal e geograficamente numa dinâmica que não obedece a preceitos teóricos ou metodológicos.

Com isso em mente, podemos fazer melhor proveito do interessante comentário da notável tradutora Aurora Bernardini. Disse ela: "Um fenômeno muito curioso acomete o mundo, mas o Brasil em particular: a literatura se baseia no conteúdo e esquece a forma".

Ainda que se trate de uma amplíssima generalização, estou absolutamente de acordo com o diagnóstico e com a questão crítica que ele suscita: o da parca atenção que se tem dado ao engenho imaginativo e à qualidade verbal dos textos literários, seja por parte dos autores, da crítica e, claro, dos leitores contemporâneos — tudo isso em geral, claro.

Mas aqui é preciso matizar mais uma vez a discussão. Na verdade, toda transfiguração literária do mundo pressupõe certo grau de estilização. Não existe literatura sem forma, e isso independe da qualidade literária; o que se pode questionar criticamente numa obra é como a relação entre forma e assunto é efetivamente plasmada, e que efeitos artísticos o autor logra com suas escolhas.

Nas últimas duas décadas, pude acompanhar como crítico, jornalista cultural, jurado de prêmios literários e, principalmente, como professor e pesquisador universitário na área de comunicação e letras, a avassaladora emergência desse fenômeno, que podemos nomear talvez como empoderamento temático-ideológico da literatura e dos estudos literários (chamados agora, com razão, simplesmente de estudos culturais, dada a falta de especificidade com que se trata o texto literário).

Arrisco-me a apontar duas razões para isso: o acirramento da polarização política, alimentada pelo combustível inesgotável das chamadas guerras culturais; e a cada vez menor cultura literária das novas gerações de leitores, o que ocasiona uma óbvia falta de referências e de parâmetros qualitativos.

Curiosamente, há quase 45 anos, o ensaísta José Guilherme Merquior, em As Ideias e as Formas (1981), apontava o problema oposto nas letras e na crítica literária, particularmente no Brasil, onde vicejava o "estruturalismo dos pobres".

O autor de Formalismo e Tradição Moderna (1974) acreditava que o culto formalista — que classificava como "delírio irracionalista", e que teve como modelo os movimentos vanguardistas do início do século passado — fazia com que a criação artística e, em particular, a criação literária abdicassem das ideias (do conteúdo) em nome de um esteticismo radical. Acontecia, então, uma espécie de "usurpação da ideia pela forma".

Essa obra de Merquior, uma joia que merece reedição, permanece, em um certo sentido, atualíssima, ainda que o cenário literário e teórico tenha mudado radicalmente. E digo que o ensaio segue relevante porque Merquior não apenas aponta os problemas do momento, mas sugere caminhos para a superação de uma visão dicotômica de arte; indicações, creio, que ainda podem ser úteis ao nosso tempo, ainda que a mesma dicotomia agora apareça com os sinais trocados.

Em sua autoapresentação crítica, o ensaísta já revelava a formulação central do seu livro: "O pensamento crítico que anima estas páginas não busca apenas analisar ideias e formas — procura surpreender as ideias sob as formas, e também captar a forma das ideias. Por isso não se contenta com uma abordagem puramente aditiva do estético e do ideológico; pretende descrever e julgar o seu complexo acasalamento".

Talvez tenhamos que começar a tentar discutir a questão a partir de perspectivas renovadas, ou novo vocabulário, para superarmos, ou pelo menos atenuarmos, essa improdutiva disjunção teórica entre conteúdo e expressão.

É possível que um meio para começarmos a entender melhor o que significa essa "interpenetração" ou "complexo acasalamento" entre ideias e formas apareça de maneira muito mais nítida em um outro gênero de escrita: no discurso de natureza híbrida que é o ensaio.

É, talvez, na prática do ensaísmo que fique mais evidente que o pensamento não é um exercício independente da linguagem, e que a concepção de um pensamento anterior à expressão é, em definitiva, insustentável.

Na verdade, pensar e exprimir são a mesma atividade: sem verbalização, seja em monólogo interno ou em diálogo público, não há formulação de pensamento. Em suma, pensamento e expressão do pensamento são a mesma coisa.

Por isso, em grandes ensaístas-críticos como o próprio Merquior — ou, para citar exemplos de diferentes tradições intelectuais, um Lionel Trilling, um Edmund Wilson, um George Steiner ou um Octavio Paz —, o estilo, entendido como estrutura dramática do texto, é parte inextricável da verdade que se quer expressar.

Voltando ao nosso tempo, ao diagnóstico de Aurora Bernardini e à literatura que agora viceja e apaixona os corações do público e da crítica, relatarei, para concluir, uma experiência pessoal que se relaciona com tudo o que falei acima.

Estando eu, alguns anos atrás, em meio às discussões finais para decidir qual seria o texto premiado como melhor romance nacional em um importante certame literário, fui surpreendido pela visão de quase todos os demais membros do júri de que a melhor literatura é aquela que "toca nos temas mais urgentes"; a que "registra a verdade sobre os reais problemas da sociedade"; o texto que, enfim, "desperta nossas consciências para as iniquidades da realidade brasileira".

Diante de tais pressupostos, perfeitamente justos e morais, mas que desconsideravam, na economia das obras, quaisquer considerações de ordem formal, expressiva ou estilística, aceitei que minha visão era minoritária e me dei por vencido, pois minhas premissas —que tampouco pretendem ser verdades absolutas—, no que se refere particularmente a questões artísticas, eram, e ainda são, outras.

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Eduardo Cesar Maia. Ensaísta e professor da UFPE. 3.set.2025.

Imagem: Abertura da Flipei, Festa Literária Pirata das Editoras Independentes, no Galpão Elza Soares, centro de São Paulo, em 6 de agosto - Rafaela Araújo / Folhapress

... "interessantes, mas não literatura"

CAROLINA AZEVEDO

Itamar, Ernaux e Ferrante são interessantes, mas não literatura, diz Aurora Bernardini

[RESUMO] Em entrevista, Aurora Fornoni Bernardini, professora aposentada da USP e tradutora renomada de italiano, inglês e russo, comenta a vinda de sua família da Itália, onde nasceu, para o Brasil, descreve o início de sua paixão pelo estudos de línguas e os atritos com a ditadura e afirma que a literatura contemporânea ficou mais pobre ao privilegiar o conteúdo e esquecer a forma.

Aos 84 anos, Aurora Fornoni Bernardini ainda traduz livros inteiros à mão. Nos cadernos de espiral sem pauta, em letra cursiva clara, adapta verso e prosa do italiano, do inglês e do russo. Sua empreitada mais recente foi a da autobiografia da escritora russa Nina Berberova, mais de 900 páginas divididas com o jornalista e tradutor Irineu Franco Perpétuo, que a editora Kalinka lança em breve

Na hora de escolher o título, Aurora insistiu na tradução direta: O cursivo é meu. Ao que a editora rebateu: Os itálicos são meus, porque hoje ninguém sabe o que é cursivo.

Nascida em Domodossola, no norte da Itália, a professora sênior de língua e literatura russa da USP conta à reportagem que trabalha muito mais desde que se aposentou, ocupando-se sobretudo de resenhas de lançamentos.

Enquanto fala sobre as "várias solicitações" das editoras, ela organiza algumas das obras que acaba de receber em sua casa, cujas estantes já estão abarrotadas de livros. Onde sobra algum espaço entre as paredes, quadros pintados ao longo de sua vida formam uma galeria de retratos de amigos e familiares, muitos dos quais já não povoam seu dia a dia.

Em busca constante por uma ocupação intelectual — "é uma espécie de vício: se não tenho uma ocupação, me sinto vazia" —, Aurora coleciona opiniões categóricas sobre o mercado editorial contemporâneo. "Um fenômeno muito curioso acomete o mundo, mas o Brasil em particular: a literatura se baseia no conteúdo e esquece a forma", afirma.

Lembrando-se de um artigo que a ensaísta Walnice Nogueira Galvão publicou na Folha, a professora defende que escritos que trocam significante por significado "podem até ser interessantes, mas não são literatura".

Seu primeiro exemplo é Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, que ficou em segundo lugar na lista de melhores livros brasileiros de literatura do século 21, organizada pela Folha. Sua avaliação não é totalmente negativa, afinal, caracteriza o livro como "apaixonante, insólito e original" em seu conteúdo. Mas não hesita em dizer que "o autor não tem estilo particular".

Ela o compara a Umberto Eco, cujo O Nome da Rosa traduziu. O romance de sucesso global é, para Aurora, uma "obra-prima da arquitetura do conteúdo". No entanto, a professora se junta à parte mais rigorosa da crítica italiana para dizer que o estilo de Eco é "pesado, irregular e não suscita interesse". Sua conclusão é a de que "é muito raro, mas mesmo um autor que tem estilo discutível pode escrever um grande livro se relatar um conteúdo interessante o bastante".

No plano internacional, repete as críticas a Vieira Junior para falar da Nobel de Literatura Annie Ernaux e de Elena Ferrante, duas das mais conhecidas escritoras contemporâneas. Se cativam o público ao falarem de experiências acabrunhantes, como o aborto de Ernaux em O Acontecimento, ou assuntos de interesse comum, como os anos formativos de Ferrante em A Amiga Genial, para Aurora, não passam de best-sellers.

Se nenhuma das duas têm estilo o bastante para atrair a professora, a virtude aparece na medida certa na prosa da espanhola Rosa Montero. As apreciações da autora de O Perigo de Estar Lúcida movimentam algo de curioso que "dá vida ao seu estilo", mesmo quando escreve sobre o corriqueiro, defende Aurora.

O porquê da tendência conteudista acometer o Brasil, Aurora não sabe pontuar, mas cautelosamente a relaciona ao que classifica como "um exagero" por parte da crítica. "O passado não pode repercutir no presente como estão querendo. Esse fenômeno terrível do passado, a escravidão, não implica merecimentos no presente. É preciso partir da igualdade de condições de conhecimento. Não se pode dar o mérito antes das condições".

Para a professora, muita coisa melhorou no país nos últimos anos, mas a injustiça continua sendo a principal marca do cotidiano brasileiro. "O povo europeu é mais amadurecido, pois passou por guerras e revoluções, então reclama mais. Aqui, o povo é muito passivo".

Ela conta uma anedota de seu pai para ilustrar o ponto de vista. Enquanto diretor de uma fábrica na região de Carrara, ao norte da Itália, ele era constantemente intimidado por operários, que "diziam que sua cova estava pronta" e "ameaçavam dar com o sapato na cabeça dele".

Aurora lembra a história da região, por onde passava a linha gótica, uma das últimas linhas de defesa nazi-fascistas, cujo intuito era bloquear os avanços aliados durante a Segunda Guerra Mundial.

"Esse operariado, muitos deles antigos guerrilheiros, era muito sofrido", por isso combativo, diz. Tão logo foi convidado para dirigir a fábrica de cloro e soda cáustica das indústrias Matarazzo em São Paulo, quando Aurora tinha 13 anos, seu pai foi surpreendido por um operariado que "fazia fila para o abraçar no dia de seu aniversário".

Estabelecida com a família na região do rio Tamanduateí, entre São Paulo e São Caetano do Sul, Aurora logo aprendeu o português e saiu atrás de outro desafio, que encontrou na casa de uma vizinha russa disposta a ensinar-lhe sua língua. Em uma casa na rua Ibitirama, Aurora passou anos da adolescência tomando chá e estudando o livro de gramática russa escrito por Marina Dolenga ao lado da vizinha, com quem passeava pelos bairros de emigrados eslavos para treinar a língua.

Quando foi escolher a faculdade, seu pai logo a proibiu de cursar medicina. "Você vai ser professora, porque tem três meses de férias por ano", dizia. Aurora seguiu para o curso de letras na USP, onde se especializou em literatura anglófona com tese sobre Ulisses, de James Joyce.

Quase cem livros traduzidos depois, a professora encontrou-se com a prosa de Joyce mais uma vez em 2022, quando participou do Coletivo Finnegans, grupo que, liderado por Dirce Waltrick do Amarante, traduziu Finnegans Wake para a editora Iluminuras.

Com o título Finnegans Rivolta, o livro recebeu o prêmio de melhor tradução no Jabuti de 2023. Em 2004, Aurora já havia ganhado uma menção honrosa no mesmo prêmio, ao lado de Haroldo de Campos, pela tradução da coletânea Ungaretti: Daquela Estrela à Outra. Também ficou em terceiro lugar em 2007, pela tradução de "Indícios Flutuantes", da poeta russa Marina Tsvetáieva.

Logo que Aurora concluiu o curso de letras, em 1963, o professor ucraniano Boris Schnaiderman inaugurou o bacharelado em russo na USP, para o qual ela seguiu. Foi colega de Augusto de Campos e logo se tornou professora assistente de Schnaiderman. Lecionando literatura russa na universidade pública no meio da ditadura militar, Aurora conta que os colegas foram frequentemente visados pelos militares.

Ela rememora o episódio em que Schnaiderman, tradutor de Dostoiévski, Tolstói e Maiakóvski, estava lecionando quando três militares entraram armados e anunciaram a procura por um aluno.

"Boris, com aquele jeito vagaroso que tinha, disse a eles: 'Os senhores vêm aqui armados de metralhadoras enquanto nós só temos o apagador e o giz." Schnaiderman foi imediatamente levado para o Departamento de Ordem Política e Social, o Dops, o que causou alvoroço na Faculdade de Letras.

Foi Aurora quem teve a coragem de questionar aos militares o que aconteceria com o colega. Ela se aproximou do oficial com ar de ingênua, perguntando a que horas poderia ir apanhar Schnaiderman, ao que indicaram "por volta da meia-noite".

Apesar do desespero da esposa do colega, Aurora consentiu e aguardou: "À meia-noite eu fui buscá-lo no Dops. Cheguei e lá estava ele, vestido de avental branco, na frente do recinto. Nós sofremos muito, mas a juventude nos dava força para continuar", conta.

Por sua contribuição ao estudo da literatura e à tradução, Aurora recebeu em junho o prêmio Ciccillo Matarazzo per Italiani nel Mondo, ao lado do poeta, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) e presidente da Fundação Biblioteca Nacional, Marco Lucchesi.

Entre os vários projetos aos quais se dedica no momento, ela destaca dois. Para a versão em italiano da biografia do empresário Francesco Matarazzo, escrita por Ronaldo Costa Couto, já comprou quatro cadernos de espiral. Mas a novidade que mais lhe interessa é a publicação da coletânea de ensaios Em Busca do Quem das Coisas, do escritor, tradutor e ecologista Per Johns.

Os manuscritos herdados por Aurora partem de uma série de palestras realizadas pelo escritor de origem dinamarquesa a convite da ABL e da PUC-Rio. O livro póstumo, editado por ela, reúne pensamentos sobre a literatura — com destaque para Guimarães Rosa, cujo Grande Sertão: Veredas Johns cotraduziu, durante cinco anos, para o dinamarquês — e a natureza.

Apontando para o retrato que pintou de Johns, Aurora destaca a importância do livro, que deve sair em breve pela editora Iluminuras. Ela situa o amigo, morto em 2017, "entre os mais dotados escritores de nossa época".

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Carolina Azevedo. Jornalista, para a Ilustríssima da Folha de São Paulo. 30.ago.2025.

Imagem: Aurora Bernardini. Adriano Vizoni / Folhapress



Thursday, September 04, 2025

25 melhores livros brasileiros do século 21

BIANCA SANTANA

A lista dos 25 melhores livros brasileiros do século 21 não apenas destaca obras excepcionais, como evidencia uma possível reconfiguração do que entendemos por cânone na literatura brasileira.

Se até aqui os nomes consagrados foram quase exclusivamente de homens brancos — não, não estou esquecendo Machado de Assis —, a seleção agora apresentada aponta um novo paradigma, mais plural e, veja só, insurgente.

Defendi em minha tese de doutorado, de 2020, a autoria negra — especialmente a de mulheres negras — como uma técnica de resistência ao racismo. Ali, evidencio como a elaboração estética de mulheres negras sobre a própria existência enfrenta o dispositivo de racialidade, tal como nomeou Sueli Carneiro, inscrevendo novas epistemologias no campo literário e ampliando possibilidades de vida para a população negra brasileira, quando a política de Estado é uma política de morte.

Um Defeito de Cor é exemplo máximo dessa potência: ao narrar em primeira pessoa a vida de Kehinde, uma africana escravizada que conta sua própria história, Ana Maria Gonçalves aprofunda um paradigma de autoria no Brasil. Paradigma fundado por Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria Jesus, Conceição Evaristo, nomeado pela própria Conceição como "escrevivência".

Mulheres negras deixamos de ser objeto da literatura para escrevermos, com nossos corpos-penas, vivências que ainda não foram suficientemente narradas. Maria, de Olhos d'Água, de Conceição, olhada no desejo de apresentar melão aos filhos, não apenas nos gritos. Primeira pessoa do singular, que é também primeira pessoa do plural.

Em Torto Arado, os corpos negros de Belonísia e Bibiana, descendentes de escravizados no sertão da Bahia, reinventam o romance social brasileiro, dando centralidade às experiências de resistência. Em O Avesso da Pele, o trauma da violência racial é narrado a partir da intimidade de personagens complexos, sem a reprodução de estereótipos fartamente reproduzidos em obras consideradas clássicas, e sem alarmismos panfletários.

A Queda do Céu inscreve na literatura brasileira a cosmovisão yanomami, em uma ruptura de barreiras entre literatura, espiritualidade, conhecimento coletivo, texto didático. Trata-se, a meu ver, de uma obra que amplia o que tradicionalmente é considerado literário.

O Sol na Cabeça, de Geovani Martins, escrito em bom pretuguês, expande a norma culta e registra novas sintaxes, que nascem das favelas, das quebradas, dos becos e dos ônibus lotados. A poesia de Um Útero É do Tamanho de um Punho, de Angélica Freitas, reinventa o lirismo a partir de experiências femininas, lésbicas, dissidentes, gordas e sujas.

É uma alegria que a lista amplie as tradições literárias brasileiras, sem perpetuar exclusões, apenas invertendo quem agora é lido.

Leite Derramado, Diário da Queda e tantos outros escritos de homens brancos têm seu valor reconhecido, como deve ser, mas agora dividindo espaço com obras de autorias historicamente excluídas. Afinal, há lugar na mesa para todo mundo sentar, já nos alertou Lélia Gonzalez, há mais de 40 anos.

É ousado, mas a lista me provoca a perceber — e apontar — uma virada no imaginário nacional. Que não é de incluir autoras negras, indígenas, periféricas ou LGBTQIA+, mas de reconhecer a multiplicidade de obras em que pulsa a literatura brasileira contemporânea. O universalismo radical de Milton Santos expresso na literatura. Oxalá se materialize na redução das desigualdades e na democratização de direitos.

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Bianca Santana

Colunista da Folha, é doutora em ciência da informação pela Universidade de São Paulo, mestra em educação e jornalista. Autora de Arruda e Guiné: Resistência Negra no Brasil Contemporâneo e Quando me Descobri Negra (Fósforo).



Conteúdo predomina sobre a forma na literatura brasileira de hoje


WALNICE NOGUEIRA GALVÃO

Triunfo da negritude, evidente na lista de melhores livros do século 21, é sintoma de movimento social de âmbito desmedido

24 de maio de 2025 / UOL

À primeira vista, parece o triunfo da negritude, sobretudo pela acumulação nos primeiros lugares. Sem dúvida, é um privilégio poder ver o Brasil se assumir como o maior país africano do mundo, disputando a primazia com a Nigéria por uns poucos milhões de habitantes.

A lista dos melhores livros deste século 21 não desmente ninguém, é apenas um sintoma. Se não bastasse, era só olhar para os programas de televisão, dos mais broncos aos mais ambiciosos, e verificar como mudaram de cor. Até na publicidade: não se faz propaganda de nada, nada mesmo, sem feições morenas.

É um movimento social de âmbito desmedido, englobando o resultado de uma lista de consulta como essa. A tendência atual da literatura brasileira, dos leitores, dos editores, dos autores, dos prêmios literários, dos seminários e congressos, dos cursos de pós-graduação, das dissertações e teses, das escolas etc. é dedicar-se à temática da negritude.

Nem é preciso dizer que a tendência é bem-vinda, já vem tarde e pode ser entendida como uma tentativa de reparação simbólica aos males não só da escravidão como também à maneira desastrada pela qual a emancipação foi feita. A mesma atmosfera predomina tanto na ficção, quanto no ensaio e nas artes.

Nota-se que de outros campos, apesar de candentes e rumorosos, mal se divisa a esquiva silhueta nessa lista. É o que acontece com a temática da mulher, quase ausente, a temática queer, a temática explicitamente política, a temática indígena. Isso sim dá o que pensar. Qual a causa desse paradoxo?

Aqueles temas estão na ordem do dia, presidem até assassinatos, mas na lista quase sumiram. Sempre lembrando que a lista é apenas uma amostra e provavelmente insuficiente. Será que não há autores? Ou os editores não se interessam? No momento é difícil saber, por enquanto só podemos especular.

Mas não deixa de ser interessante: a temática da negritude é avassaladora. É bom lembrar que a negritude também é avassaladora no Censo, 56% de declarações voluntárias assumindo os muitos cambiantes da cor são um documento incontornável.

Já para a crítica literária propriamente dita, a constatação é de que estamos vivendo o predomínio do conteúdo. O que se escreve e o que se lê são definidos pelo conteúdo. Quanto à estética, ao trabalho com a forma, aos anseios da vanguarda, ao fermento da experimentação... Tudo isso fica no horizonte do futuro, e assim mesmo, talvez.

Essa hipertrofia do significado, em detrimento do significante, pode estar implicando uma inclinação da literatura mais para o lado do entretenimento, e menos para o lado da arte. Seria um bom desafio tratar de pensar um pouco se esse fenômeno é paralelo à crescente ênfase na biografia do autor, e menos em sua obra.

O palpitante parece ser aquilo que é da intimidade do artista, e não o que ele realiza e que lhe confere a legitimidade de ser artista. Aqui, a contaminação de estratégias da mídia, perita em incensar e derrubar ídolos, pode ser a responsável.

Mas, repita-se, é preciso lembrar que se trata de uma amostra apenas, portanto estas elucubrações permanecem entre parênteses.

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Walnice Nogueira Galvão

Ensaísta e crítica literária, é professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

Monday, August 18, 2025

Tempos do Cólera

"Acabavam de celebrar as bodas de ouro matrimoniais, e não sabiam viver um instante sequer um sem o outro, ou sem pensar um no outro, e o sabiam cada vez menos à medida que recrudescia a velhice. Nem ele nem ela sabiam dizer se essa servidão recíproca se fundava no amor ou na comodidade, mas nunca se haviam feito a pergunta com a mão no peito, porque ambos tinham sempre preferido ignorar a resposta. Tinha ido descobrindo aos poucos a insegurança dos passos do marido, seus transtornos de humor, as fissuras de sua memória, seu costume recente de soluçar durante o sono, mas não os identificou como os sinais inequívocos do óxido final e sim como uma volta feliz à infância. Por isso não o tratava como a um ancião difícil e sim como a um menino senil, e esse engano foi providencial para ambos porque os pôs a salvo da compaixão".

(...)

"Coisa bem diferente teria sido a vida para ambos se tivessem sabido a tempo que era mais fácil contornar as grandes catástrofes matrimoniais do que as misérias minúsculas de cada dia. Mas se alguma coisa haviam aprendido juntos era que a sabedoria nos chega quando já não serve para nada".

Gabriel García Márquez. O Amor nos Tempos do Cólera. Tradução de Antonio Callado.

Monday, August 11, 2025

Friday, August 01, 2025

Barbárie

A questão de saber quem é verdadeira e plenamente um ser humano, com os direitos inalienáveis que isso confere, não é nova, mas se coloca hoje em novos termos que não podem deixar indiferente quem se interessa pela educação.

A questão não é nova. "Bar, bar", diziam os gregos, zombando da forma de falar dos persas. O bárbaro nem mesmo sabe falar corretamente, é grosseiro, selvagem, mais ou menos cruel, sempre pronto a nos invadir. Mas a ideia de barbárie é ainda mais radical: existe barbárie em qualquer situação, encontro, relação entre humanos na qual um nega a humanidade do outro. O bárbaro, aos olhos do "civilizado", é radicalmente outro; ele tem aparência humana, mas se pode duvidar que seja verdadeiramente um homem e, portanto, pode ser tratado como um objeto, eliminado se for incômodo e, com certeza, ser maltratado e reduzido à escravidão. De modo que, por inversão da situação, o "civilizado" trata aquele que considera "bárbaro" com métodos cruéis, sanguinários, indignos de um ser humano e que podem, por sua vez, ser qualificados de bárbaros. Ao considerarmos o outro como um bárbaro, acabamos sempre nos comportando de forma bárbara  torturando, acendendo fogueiras, cortando cabeças, colocando ou lançando bombas, reduzindo à escravidão etc. Aquele que nega a humanidade do outro, rompe o vínculo de pertencimento a um mundo comum e, ao mesmo tempo, coloca a si próprio fora da humanidade: a barbárie é contagiosa.

Educação ou Barbárie? Uma escolha para a sociedade contemporânea. © 2020, Bernard Charlot. Tradução Sandra Pina. Cortez Editora.

Imagem: Gaza City. Omar Al-Qattaa /AFP / Getty Images. Outubro, 2024.

Thursday, July 31, 2025

31 de julho de 2018

Ao contrário do que parecia óbvio, Jair Bolsonaro saiu ileso do Roda Viva. Por ironia do destino, no mesmo dia em que Neymar Júnior virou picadinho poucos minutos depois de lançar seu comercial-desabafo pago pela Gillette.

Duas diferenças entre um e outro: apenas no YouTube do patrocinador, o camisa 10 tem quase 1 milhão de views e cerca de 60 mil likes ou deslikes. Visto que dali o vídeo viralizou, a repercussão necessariamente tem que ser medida em dezenas ou centenas de milhões, e ao redor de todo o planeta.

O Roda Viva dá traço no Ibope toda semana. Boa parte do país sequer recebe o sinal da TV Cultura.

A segunda diferença: a avalanche de críticas a Neymar partiu diretamente das redes sociais. Bolsonaro foi sabatinado pela imprensa chapa branca da eterna província constitucionalista de São Paulo dos Campos de Piratininga.

Se havia alguma dúvida sobre a 'arena' das eleições de outubro, passou da hora de saber que só a internet vai permitir o enfrentamento do discurso do golpe. Ainda que o candidato preferencial deles seja Geraldo Alckmin, a segunda opção, Bolsonaro, tem blindagem garantida. Ao contrário, mesmo os candidatos à esquerda sem qualquer chance, como Manuela, permanecerão amordaçados. Ao golpe pertence tudo quanto de mainstream se avista na comunicação do Brasil. E a ovelha raspa o pelo, mas não perde o vício. 

Outra discussão que deixa de ter sentido, se é que já teve em algum momento, passa por decidir se é bom ou ruim falar mal das pessoas ruins na internet. 'Um Novo Homem Todo Dia' bateu recordes de menções negativas. Por isso, e só por isso, 'Neymar, Gillette e agência' estudam 'reação', como noticiou o UOL, sem perder a oportunidade para o deboche: 'comercial cai mal', diz a manchete. O pelo e o vício, como queríamos demonstrar.

Bolsonaro no Roda Viva? Não foi confrontado. Repetiu o que sempre diz e ninguém ofereceu resposta - ou pergunta - à altura.

Enquanto as redes sociais transformavam a gilete do reizinho em guilhotina, o candidato a führer saiu do estúdio mais vistoso do que entrou. Barba, cabelo e bigode. Quase ninguém viu, mas os tosquiados fomos nós.

Como se não bastasse, ainda se encontra, na própria rede, gente sinceramente admirada com a eficácia da burrice de Jair Bolsonaro. Não é disso que se trata. O discurso totalitário funciona para os convertidos, não passa daí. E só vai amealhar mais adeptos enquanto não encontrar resposta. Embora Bolsonaro, estatisticamente, não seja a principal ameaça, sua ideologia nefasta precisa ser combatida. Assim como as deles, nossas ferramentas estão disponíveis. Hora de usá-las. Feito lâminas.

Tuesday, July 15, 2025

15 de julho de 2019

O 'Pavão Mysteriozo', trollagem explícita comandada pelo Carluxo, parece marcar um ponto de virada para os Bolsonaro. A proposta de fazer Eduardo embaixador nos Estados Unidos tem cara de ir na mesma direção.

Eles não estão falando sério.

(E, se estiverem, não vai fazer grande diferença, num Ministério das Relações Extraterrestres comandado por Ernesto Araújo).

Quer ver? A notícia 'bolsonaresca' de hoje é que o MP do Rio de Janeiro fará um pente fino das contas de campanha do filho Flávio.

Ou seja, em algum momento a casa virá abaixo.

Eles já estão morando 'de favor'.

O Boulos escreveu na Carta Capital: Bolsonaro se confirma como um inédito 'presidente de nicho ou, mais adequado à sua história, um presidente de baixo clero'.

(Procure lembrar alguma iniciativa do núcleo duro em torno deles que tenha gerado algum resultado nas últimas semanas).

Isso tudo, evidentemente, não nos autoriza a qualquer otimismo. Antes, muito pelo contrário. Pois o desmonte sistemático do Estado brasileiro segue célere e diário, sem pausas para o fim de semana.

A pergunta passa a ser: se o projeto vendido em campanha está sendo cumprido ponto a ponto, sem que o dedo do presidente se faça notar em nenhuma das principais decisões, quem, afinal, está governando este país?

Jair se confirma como a Rainha da Inglaterra da Família Surreal brasileira. Mas não nos falta governo. Um governo terrivelmente cumpridor de seus compromissos.

Quem tem a voz de comando?