Monday, June 30, 2025

30 de junho de 2015

NO COUNTRY FOR OLD MEN

Tenho 52 anos de idade e já vi o Brasil em situações muito  —  mas, muito  —  piores. E, no entanto, ele se moveu.

Tenho 52 anos e nunca vi o jornalismo brasileiro num buraco tão fundo.

Não há Tribunal de Inquisição que faça o Sol voltar a girar em torno da Terra quando os meios técnicos se transformam.

Assim como a Indústria Fonográfica nos anos 90, o business de notícias em seus moldes século XX está em vias de desaparecimento.

Qualquer orelha de manual de psicanálise explica o catastrofismo de nossa grande mídia: chama-se "projeção".

Querem vender um Dilúvio, mas, na verdade, trata-se apenas de um concorridíssimo abraço de afogados.

Thursday, June 19, 2025

20 de junho de 2015

Aqui vai um vídeo que reflete - com profundidade - sobre os quocientes de preconceito embutidos nos nossos palavrões. Quem me indicou foi um amigo querido que sabe manter a flexibilidade do pensamento. Que sabe se divertir com a ideia de que "uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa".

Sobre o radialista Ricardo Boechat, a coisa é que até as pedras caídas da Muralha de Jericó perceberam que o estado permanentemente exaltado de Malafaia denota desejos reprimidos. Malafaia sempre esteve à procura de algo que satisfaça sua excitação.

Bem sabemos que a rôla "não é solução para tudo" e que é uma enorme bobagem pretender que "todo homofóbico é um homossexual enrustido".

Acontece que aconteceu de um radialista mainstream, de perfil masculino normalopata, desses que fazem piadas falocentradas, tirar da garganta de todo mundo o que andava há tempos querendo sair. 

Num mundo ideal não mandaremos ninguém tomar no... pois isso é homofóbico, nem diremos a alguém "seu filho da..." pois é misógino; não desabafaremos porque "a coisa está preta", por ser racista, nem usaremos mais o termo "judiação", por suas conotações anti-semitas.

Nesse possível futuro tempo da delicadeza, não precisaremos da ajuda de um típico macho alfa branco como Ricardo Boechat para nos representar, pois vendilhões como Silas Malafaia, simplesmente, terão sido expulsos do templo.

Por enquanto, é necessário registrar que, antes de enfiar a rôla no discurso, Boechat se valeu de vocabulário amplo: idiota, paspalhão, pilantra, tomador de grana de fiel, explorador da fé alheia, otário, homofóbico, figura execrável, horrorosa, charlatão.

Quanto nos ofendem as dinâmicas da comunicação de massa? Quanto nos proibimos de rir do desnudamento do charlatão, na praça do mercado e pelas normas do mercado? Quanto negamos o poder impuro da rua? Da indústria cultural? E quanto nos permitimos desfrutar das vitórias provisórias?

"Malafaia, vá procurar uma rôla", apesar de infantiloide, misógino e patriarcal, expôs o farisaísmo do pastor. “Você usa o nome de Deus para tomar dinheiro de fiéis. Você é tomador de grana, você e muito outros”. Boechat construiu seu discurso em seus próprios termos. Conseguiu coerência entre a forma e o conteúdo. Nesse processo de individuação, representou milhões de pessoas. Aceitemos ou não, barrou o sermão de Malafaia. E isso é o que tivemos para hoje.

Friday, May 30, 2025

Efeito 'tororó' barra cachês milionários

Efeito 'tororó' de Anitta barra cachês milionários de prefeituras

XICO SÁ para o ICL Notícias / 30_05_2025

A Justiça do Mato Grosso decidiu esta semana que o cantor Leonardo terá que devolver R$ 300 mil aos cofres da Prefeitura de Gaúcha do Norte, a 595 km de Cuiabá. O sertanejo recebeu, há um ano, R$ 750 mil para um show no município. O valor, segundo o Ministério Público Estadual (MPE), foi superfaturado.

Por mais bizarro que pareça, os cachês milionários — com dinheiro público — só começaram a ser barrados no Brasil depois que Zé Neto (da dupla com Cristiano) atacou a cantora Anitta: "A gente não precisa fazer tatuagem no 'toba' para mostrar se a gente está bem ou mal. A gente simplesmente vem aqui e canta, e o Brasil inteiro canta com a gente".

Para bajular Jair Bolsonaro, em plena campanha eleitoral à reeleição, Zé Neto ainda repetiu a tese do presidente sobre a 'mamata da Lei Rouanet'.

Anitta reagiu com humor à crítica sobre a tatuagem no 'tororó' — como ela prefere definir na sua lição informal de anatomia —, mas acabou falando também sobre esquemas de desvios de verbas municipais por intermédio de cachês superfaturados.

A produtora dos seus shows havia recebido propostas do gênero. "Falei não", disse ela.

A partir desse momento, o Ministério Público de vários Estados iniciou uma série de investigações sobre shows com valores suspeitos. Graças ao 'efeito tororó', o assunto nunca mais saiu da lupa dos procuradores.

O primeiro escândalo foi descoberto em Roraima, em 2022. A prefeitura de São Luiz, município com 8.232 habitantes, contratou o cantor Gusttavo Lima por R$ 800 mil.

Depois de muita polêmica e investigação do MPE, o mesmo cantor teve um contrato de R$ 1,2 milhão cancelado em Conceição do Mato Dentro, em Minas Gerais.

Outro inquérito foi aberto na cidade de Magé, no Rio de Janeiro, onde Lima faria mais um show do milhão. Na Bahia, o Tribunal de Justiça cancelou uma apresentação na Festa da Banana de Teolândia — o cachê seria de R$ 704 mil.

A decisão levou a prefeita Rosa Batinga (PP) ao choro. "A minha dor é muito grande, vocês não têm ideia. Eu queria estar hoje, de vermelho e preto, arrumada para o Embaixador (apelido de Gusttavo Lima)", disse, em lágrimas.

Conhecido informalmente como 'CPI do Sertanejo', o escândalo provocou debate no país inteiro. Em Alagoas, o MP pediu cancelamento de uma apresentação do ídolo popular Wesley Safadão que levaria R$ 600 mil da prefeitura de Viçosa. No entendimento dos procuradores, esse gasto com as festas não deveria ultrapassar o limite de R$ 100.

Acossado pela maioria das investigações, Gusttavo Lima chorou, em um live no Instagram. "Sou um cara que faz poucos shows de prefeitura. E quando a gente faz algum, a gente é massacrado como bandido, como se fosse um ladrão que estivesse roubando dinheiro público. E não é isso".

No ano passado, reportagem de Deborah Magagna e Chico Alves no ICL Notícias revelou que shows de Gusttavo Lima consumiam até 50% de orçamento de cultura de pequenas cidades.

O senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente, prestou solidariedade ao cantor. "Fique firme, meu irmão! Você é um cara do bem! Deus proverá", escreveu nas redes sociais. A essa altura, o "efeito tororó" havia provocado o cancelamento de 40 shows.

A bendita tatuagem — com a palavra Love em destaque — tem feito um bem danado aos cofres públicos.

Sunday, May 11, 2025

"A Democracia É Perigosa"

Entrevista com Jacob Chansley, o 'viking do Capitólio'.

JAMIL CHADE para o UOL.

11/05/2025

💧

Jake é intransigente. Ao aceitar conversar comigo, em Phoenix, onde mora, marcou o encontro em um restaurante que imaginava servir comida orgânica. Mas, ao pedir o cardápio, percebeu que não existiam garantias de que o que estaria no prato seria mesmo alimentos que respeitam seus critérios — e optou por não comer.

Jake, apelido de Jacob Chansley, ficou famoso em todo o mundo pela roupa que usava em 6 de janeiro de 2021 ao invadir o Capitólio, nos Estados Unidos: capuz de pele de animal adornado com chifres, torso nu e o rosto pintado com as cores da bandeira americana. Ele se transformou em ícone do movimento que abalou a democracia americana, o "Viking do Capitólio" ou "Xamã QAnon".

Em novembro daquele mesmo ano, foi condenado a 41 meses de prisão. Hoje, graças a Donald Trump, Jake e outras 1,4 mil pessoas que atacaram as instituições americanas estão livres.

Após mais de uma hora de conversa, ao falar de democracia, Jake foi categórico: "A democracia é a lei da multidão". "Uma das formas mais burras de governo", se não houver um controle dos poderes, disse.

Tudo o que uma pessoa precisa fazer é mentir à multidão e eles vão matar quem acreditarem ser o inimigo. Quando, na verdade, quem mentiu é seu maior inimigo. Democracia, portanto, é perigosa.

Conforme nossa conversa se desenrolava, meu objetivo era que ele se sentisse à vontade para falar. Nosso encontro ocorreu cedo. Ele me aguardava diante de um café às 7h30. Calvo, com seus músculos talhados e sem os ornamentos que o fizeram famoso, usava uma camiseta com a estampa de um homem de barba e chifres. "Foi um presente de um fã", me explicou, orgulhoso.

Jake, que se declarou culpado perante a Justiça, estava entre os primeiros a entrar no Capitólio. Em sua confissão perante a corte, reconheceu ter usado um megafone para incitar a multidão. Já no Senado, liderou uma oração de gratidão a Deus.

"Obrigado por permitir que os Estados Unidos da América renascessem. Obrigado por permitir que nos livrássemos dos comunistas, dos globalistas e dos traidores de nosso governo", disse, segundo os documentos de seu processo.

Em sua condenação, há ainda a referência ao fato de Jake ter ocupado, no Senado, o lugar em que o vice-presidente, Mike Pence, havia estado uma hora antes. A invasão ocorreu no dia em que o Senado confirmaria a vitória de Joe Biden, e a pressão dos aliados mais radicais de Donald Trump era para que Pence rompesse com a ordem constitucional, o que ele não fez.

"Jake Chansley passou a tirar fotos de si mesmo na tribuna e se recusou a deixar o assento quando solicitado pela polícia. Em vez disso, ele declarou que 'Mike Pence é um traidor maldito'. Então, escreveu um bilhete ameaçador para o vice-presidente, dizendo: 'É apenas uma questão de tempo. A justiça está chegando'."

Antes de ser sentenciado, Chansley disse ao juiz Royce Lamberth que admitia seu erro em entrar no Capitólio e que aceitou a responsabilidade por suas ações. Enfatizou que não era um insurrecionista e estava preocupado com a maneira como foi retratado nas notícias após o tumulto. "Não tenho nenhuma desculpa", disse Jake.

Ao anunciar a sentença, o juiz disse que o remorso de Jake parecia ser genuíno, mas observou a gravidade de suas ações no Capitólio. "O que você fez foi terrível", disse Lamberth. "Você se tornou o centro do tumulto."

Antes do 6 de Janeiro de 2021, Jake se autodenominava "Xamã QAnon". Mas, desde então, abandonou o apelido para evitar uma associação ao grupo de extrema-direita.

O QAnon surgiu nas profundezas das redes sociais em 2017, quando uma postagem anônima de uma conta que se identificava apenas como "Q" passou a publicar mensagens enigmáticas online sobre os supostos esforços de Trump para derrubar o que era chamado de Deep State — teoria sem fundamento de que o mundo é controlado pelo "Estado Profundo", uma cabala de pedófilos adoradores de Satanás, e que Trump é a única pessoa que pode derrotá-los.

No esforço para se distanciar do grupo, o advogado de Jake, Albert Watkins, disse que seu cliente sofria de problemas de saúde mental que foram agravados por ter sido preso em confinamento solitário devido aos protocolos da covid-19.

Naquela conversa no começo da primavera no deserto do Arizona, começamos por um outro ato que mudou sua vida: o perdão de Donald Trump, uma das primeiras atitudes do novo governo. "Eu estava fazendo exercícios numa academia de ginástica quando meu advogado me ligou para contar a novidade. Saí correndo pela rua aos berros: 'Liberdade, liberdade'", relembrou Jake.

Nas redes sociais, quando soube do perdão, sua reação foi mais agressiva: "OBRIGADO PRESIDENTE TRUMP!!! AGORA EU VOU COMPRAR ALGUMAS ARMAS DE FOGO!!! EU AMO ESTE PAÍS!!! DEUS ABENÇOE A AMÉRICA!!!! Os J6ers (prisioneiros do 6 de janeiro) estão sendo libertados e a JUSTIÇA CHEGOU... TUDO o que foi feito no escuro virá à tona!"

Quando Jake me explicou o que ocorreu em seu processo, sua versão não mostrava qualquer sinal do remorso identificado pelo juiz.

A Justiça me ferrou. Meu advogado ajudou a me ferrar. Mas, quer saber? Fui perdoado. Eu tinha confiança de que Trump manteria sua palavra. Mas não achava que seria tão rápido.
Jake Chansley, o Viking do Capitólio, em entrevista ao UOL

Embora muitas pessoas não tivessem antecedentes criminais antes da invasão de 6 de janeiro, nem todos em Washington naquele dia estavam numa "missão espiritual". Dezenas de réus tinham sido condenados anteriormente ou tinham acusações pendentes por crimes como estupro, abuso sexual de menores, violência doméstica, homicídio culposo, produção de material de abuso sexual de crianças e tráfico de drogas. Não era o caso do viking Jake, ainda que polêmicas tenham feito parte de sua vida.

Eu estava diante de um veterano da Marinha americana que foi expulso da corporação por se recusar a tomar uma vacina, uma década antes da aparição da covid-19.

Segundo ele, depois de conhecer os resultados oficiais da eleição de 2020, sua decisão foi de protestar em Phoenix. "Todos sabíamos que era uma mentira que Joe Biden tinha vencido", garantiu, olhando nos meus olhos enquanto falava sem qualquer prova. "O mal no mundo sabia que não poderia mais parar Trump e, então, lançaram um vírus que destruiria todo o progresso que ele fez", disse, alegando que a covid-19 seria uma conspiração contra o republicano.

"Eles tinham de destruir tudo", alegou. "O passo seguinte foi roubar a eleição. Todos sabiam nas ruas que estava ocorrendo", afirmou.

Entendi, naquele momento, que não seria uma entrevista como qualquer outra. Por duas horas, naquele restaurante repleto de aposentados em seus longos cafés da manhã, seu relato entusiasmado seria permeado por teorias conspiratórias e gestos grandiosos com seus braços tatuados.

Jake me contou que, nos protestos ainda no Arizona, conheceu uma mulher que lhe ofereceu carona para ir até Washington DC. A condição era de que ele topasse dirigir seu carro pelos 3,1 mil quilômetros que separam as duas cidades. O objetivo era chegar a um protesto no dia 12 de dezembro de 2020.

Na capital americana, ele conheceu outra mulher que ofereceu uma cama para ele ficar. "Foi como se o Mar Vermelho tivesse aberto para mim e eu atravessei", disse, dando um tom épico para sua viagem.

Uma semana antes dos protestos de 6 de janeiro, ele estava mais uma vez nas ruas de Phoenix manifestando contra o suposto roubo da eleição que deu a vitória aos democratas. Foi quando, de novo, uma pessoa lhe questionou se ele estaria disposto a viajar uma vez mais para Washington.

"Eles me disseram que, por eu estar ali todos os dias protestando contra o roubo da eleição, eu mereceria estar em Washington", disse, sem dar detalhes de quem seriam essas pessoas.

Jake garantiu que "nunca imaginou" que o evento terminaria em violência e nem nas prisões que se seguiram.

Não era um ato político. Claro que existia algo de político nisso. Mas era mais espiritual.

"Foi quando a polícia atacou a multidão pacífica que a merda eclodiu", disse, invertendo a história, as confissões de centenas de pessoas e a investigação por parte da própria polícia e até por parte do Congresso americano.

Sua versão se contrasta com as conclusões do relatório oficial da Comissão de Inquérito do Congresso americano que, em 19 de dezembro de 2022, apontou que nada daquilo que o mundo viu no dia 6 de janeiro havia sido apenas uma reação orgânica e espontânea.

O informe destacou que Trump mentiu sobre a existência de uma suposta fraude eleitoral com o objetivo de permanecer no poder, além de conspirar para anular a eleição. O documento mostrou como o republicano pressionou Pence a se recusar a certificar a eleição, algo que o vice-presidente não fez.

Num dos trechos, o informe ainda aponta como Trump convocou a multidão e lhes disse para marchar até o Capitólio, sabendo que alguns estavam armados. Ele ainda foi às redes sociais criticar o vice-presidente às 14h24 de 6 de janeiro de 2021, incitando mais violência. Apesar dos pedidos de seus assessores para que Trump parasse com a violência, ele optou por apenas acompanhar os acontecimentos pela televisão.

Tudo fazia parte de uma conspiração para anular a eleição. E foi o Secretário de Defesa, e não Trump, quem finalmente chamou a Guarda Nacional.

"Quando seu esquema para se manter no poder por meio de pressão política encontrou obstáculos, ele seguiu em frente com um plano paralelo: convocar uma multidão para se reunir em Washington, DC, no dia 6 de janeiro, prometendo que as coisas 'seriam selvagens!'", indicou o relatório final da Comissão de Inquérito.

"Essa multidão apareceu. Eles estavam armados. Estavam com raiva. Eles acreditaram na 'Grande Mentira' de que a eleição havia sido roubada. E quando Donald Trump os apontou para o Capitólio e lhes disse para 'lutar como o inferno', foi exatamente isso que eles fizeram. Donald Trump acendeu esse fogo. Mas nas semanas anteriores, o fogo que ele acabou acendendo estava acumulado à vista de todos", alertou a Comissão.

Em nossa conversa, porém, Jake insistiu que o público "ainda não sabia de toda a verdade" sobre aquele dia, apesar das dezenas de horas de vídeos que existem sobre a data que colocou em questão as instituições americanas. "Mas estamos chegando perto disso", prometeu.

Para o personagem que simbolizou aquele ataque, havia supostamente uma missão na ida para o Capitólio. "O mal tentou ser legalizado e queriam que fosse ilegal resistir ao mal. Por isso fui para Washington", justificou.

A cada frase que ele considerava como "boa" ao longo da entrevista, Jake interrompia nossa conversa e as anotava em seu celular. Pensei comigo mesmo: estaria ele falando aquelas coisas pela primeira vez?

Uma palavra, porém, se repetia ao longo da conversa: "satânica". Segundo ele, existiria uma ofensiva para usar a lei e a política para "implementar uma agenda anti-espiritual, uma agenda satânica". "Eu escolhi encontrar esses bandidos no campo de batalha que eles criaram", disse, sobre sua ida para Washington.

Jake garante que a vitória de Trump em 2024 não é o final da "missão". "Vai levar tempo para restabelecer a verdade. Não é só tomar um comprimido", disse, talvez numa referência ao filme Matrix. "Mas é, ao mesmo tempo, um curto prazo para Deus. Estamos vencendo uma batalha como o mal de séculos", insistia.

Para ele, um ponto fundamental nesta batalha é o controle das redes sociais. "A censura no Twitter era importante. Quando eles perderam o Twitter para Elon (Musk), foi o começo do fim", analisou. De certa forma, ele confirmava que aquele movimento do bilionário pela plataforma jamais foi apenas uma "oportunidade de negócios". Havia um objetivo político claro: dar um canal poderoso para as vozes da extrema direita.

Quando eu lhe questionei sobre o que esperar do novo governo, suas frases ecoavam os slogans de Musk, responsável por um departamento para supostamente garantir a eficiência do estado. "O grande desafio é lutar contra a burocracia. Trump pode ser o comandante. Mas a frota é feita por marinheiros que estão fazendo um motim", disse.

Sua avaliação é de que existe uma "guerra". "Temos de aprender a ler o que está escrito no muro e ali está colocado que os americanos estão fartos. Se há alguém no caminho, precisam entender que o povo deu o mandato para Trump", insistiu, desconsiderando que parte das medidas adotadas violavam a Constituição.

"Trump é o pé que está dando o passo neste caminho, em nome da humanidade. Deus é a luz. Acabou a escuridão", afirmou.

Quando eu lhe questionei o que estaria em jogo nesta "guerra", seu tom era de indignação diante de minha ignorância. "A sobrevivência da humanidade", respondeu. "Estamos lidando com pessoas satânicas e trans-humanas", disse.

Enquanto conversávamos naquele café no Arizona, todas as pesquisas mostravam um declínio da popularidade de Trump.

Perguntei, portanto, se ele acreditava que os desafios seriam superados, como a inflação. "O que eles querem é que desistamos", rebateu, sem explicar quem eram "eles". "A elite tem um interesse de criar a ilusão de que nada pode ser feito. Mas é um castelo de cartas. Haverá resistência. O mal não desiste. Mas Deus tampouco", alertou.

Insisti em tentar saber se haveria uma eventual queda no apoio ao governo, caso as mudanças nas vidas das pessoas não fossem perceptíveis. Sua resposta, uma vez mais, foi mais mística que factual.

"Não estamos no comando. Essa energia é resultado de milhares de anos de um processo. Estamos completando ciclos e começando novos. Estamos saindo de um ciclo dormente. E entrando numa era da consciência. Uma nova civilização global. Estamos numa nova frequência", disse.

Quando perguntei sobre o caos nos mercados financeiros diante das tarifas criadas pelo presidente e a guerra comercial que havia se instalado, Jake apenas respondeu: "Trump sabe o que está fazendo". "É uma dádiva estarmos vivendo isso. A transição parece o caos, que foi Biden. Trump chega e tudo começa a fazer sentido. Quem não abraçar o novo sistema vai sofrer", advertiu.

"Temos uma oportunidade única. Nunca o povo teve uma pessoa que os representasse, salvo quando o país foi fundado. Temos o gabinete que mais representa os valores americanos", defendeu, ignorando os levantamentos que indicaram que se tratava também do gabinete com o maior número de milionários e bilionários da história.

Para provar o "momento único", Jake recorreu à astrologia. "Plutão estava na mesma posição há 250 anos quando o país foi criado e volta a estar na mesma posição agora", justificou.

Diante das críticas de Jake à democracia, questionei qual seria o melhor sistema de governo. "A república constitucional dos EUA".

Ele ponderou que esse sistema precisa vir com educação. "Temos um governo que intencionalmente subverteu a educação para que a multidão não possa governar", explicou.

Jake não media palavras ainda para criticar a agenda woke. "Isso foi algo imposto. As pessoas odeiam isso", garantiu. "Eles são satânicos, veneram o diabo. Mas os globalistas estão na defensiva, algo que eles nunca experimentaram", tentou me explicar.

Ele ainda defendeu que o mundo deve se desfazer da ONU. "Quem disse que o mundo precisa de um governo? Deus nos governa. Qualquer sistema deve ser descentralizado e a criptomoeda pode ser uma república econômica", defendeu.

Jake me contou que começou uma moeda digital. "Isso pode acabar com escravidão monetária. É um sistema paralelo de governo. Essa é a governança global", disse.

Pedi que ele comentasse a questão da imigração, alvo de polêmicas nos EUA. E, uma vez mais, a palavra "satânica" voltou à mesa. "A autodeportação é uma ótima ideia. Agir contra as gangues é uma ótima ideia. Mas isso envolve recuperar o Panamá e jogar luz no governo corrupto do México", disse.

"Fico satisfeito em ver que Guantánamo e El Salvador existem", afirmou, citando dois dos locais para onde Trump vem deportando os imigrantes.

"São pessoas satânicas que precisam deixar esse país. Elas precisam ser mandadas para uma prisão militarizada. E gosto que o cara em El Salvador seja um cristão", afirmou, numa referência ao presidente Nayib Bukele e seu acordo para transformar suas prisões em destinos para os deportados dos EUA.

"Isso é o que vai precisar ser feito no mundo todo. Vai ter de ser um esforço global", defendeu Jake.

Perguntei ainda se a onda de deportações não afetaria a economia ao privar os americanos de mão de obra. De novo, a resposta veio em forma de enigma. "Precisamos usar o momento de nosso inimigo contra eles. Se não temos trabalhadores, vamos usar isso como uma arma contra as empresas que os contrataram", disse.

Voltei à questão central: para ele, por que tudo isso estava ocorrendo?

"Estamos despertando. A verdade está vindo à tona. Está chegando a hora", concluiu. Naquele instante, ao terminar a frase, ele levantou as sobrancelhas, interrompeu a entrevista de novo e disse: "Uau, essa é outra frase boa". E anotou, visivelmente satisfeito.

1996 - 2025 UOL - O melhor conteúdo. Todos os direitos reservados.

Tuesday, April 29, 2025

Sete Faces

    Quando nasci, um anjo torto
    Desses que vivem na sombra
    Disse: Vai, Carlos, ser guache na vida...

Sunday, April 27, 2025

27 de abril de 2019

Cachac-eiro, se bem me lembro, assim como maconh-eiro, ou trapac-eiro, remete a vício, compulsão, dependência, coisas assim. Bolsonaro não deve estar querendo classificar Lula como dependente químico, logo mais agora que o homem emergiu de quase 400 dias de completa e obrigatória abstinência com pele e cabelo saudabilíssimos, sem olheiras, pensamento ágil, discurso articulado e disposição de felino.

Lula tá segurando o rojão muito bem 'sem a cachaça', contrariando até o caro amigo Chico.

Talvez o felliniano Bolsonaro queira insinuar que aquele irmão do Capitão América que chefia a segurança do ex-presidente mantém uma destilaria e abastece a cela especial da PF de Curitiba com garrafas pet cheias de maria-louca.

Mas é improvável.

Bolsonaro chamou Lula de cachaceiro. Não em sentido estrito. Ele quis confirmar o estereótipo que associa gente pobre ao uso excessivo de bebidas alcoólicas baratas. É uma das formas de rebaixar simbolicamente o pobre: negar-lhe a capacidade de auto-controle tão cara às classes abastadas.

Um dos pontos ainda mais baixos a que um brasileiro pobre pode se ver conduzido é a cadeia. O calabouço é o lugar onde se cala a boca do cidadão. É nessa jaula que a busca de desconstruir o homem humano acontece de modo mais totalizante. A prisão pretende ser o lugar da morte em vida. O local do apagamento.

Pois bem, Lula negou a seus inimigos também essa confirmação. Está tão vivo quanto antes. Está mais vivo que nunca. E de lá de dentro, ainda diagnostica: um bando de malucos.

Claro que, também, não em sentido estrito. Maluco aqui é quem governa desgovernado, atira para todos os lados, não sabe dizer a que veio. Ou é o psicopata destruindo nos mínimos detalhes e sem nenhum remorso, as poucas conquistas civilizatórias que obtivemos em 500 anos.

Lula, em sua cáustica lucidez, disse o que todo mundo sabe: o desgoverno de Bolsonaro não obedece lógica alguma que não seja a da destruição pura e simples, o que, convenhamos, é um modo alucinado de funcionar.

Lula soube, também, deixar no ar a desconfiança de que aqueles caras não batem bem da bola.

Bolsonaro não fez por menos. Devolveu de bate-pronto mais uma de suas sandices.

Como queríamos demonstrar.

Sunday, April 13, 2025

Saturday, March 29, 2025

Villa / Stokowski


1.

https://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/146365/159214

2.

https://g.co/arts/fJWqQCrMcruPXws7A

Wednesday, March 26, 2025

Monday, February 24, 2025

Cemitério alagoano (Trapiche da Barra)

Sobre uma duna da praia
o curral de um cemitério,
que o mar todo o dia, todos,
sopra com vento antisséptico.

Que o mar depois desinfeta
com água de mar, sanativa,
e depois, com areia seca,
ele enxuga e cauteriza.

O mar, que só preza a pedra,
que faz de coral suas árvores,
luta por curar os ossos
da doença de possuir carne,

e para curá-los da pouca
que de viver ainda lhes resta,
lavadeira de hospital,
o mar esfrega e reesfrega.

João Cabral de Mello Neto. A Educação Pela Pedra.

Tuesday, February 18, 2025

18 de fevereiro de 2016

 

Ao contrário do que está parecendo, Miriam Dutra Schmidt não veio a público falar de filhos bastardos, ou fazer futricas sobre o tempo em que foi amante de Fernando Henrique Cardoso.

Miriam deu uma longa entrevista em que o centro da questão é um caso seríssimo de assédio moral. Como de hábito, a mulher que denuncia é imediatamente desqualificada. O pessoal que trabalha nas Defensorias aponta essa tendência dominante: a culpa, sempre, "só pode ser dela". Quem se aproveitou antes, agora quer ganhar mais um pouco. Leviana, como diria o Aécio.

Pois bem, o Palmério Dória, em artigo publicado hoje, diz o seguinte sobre o estado de espírito de Miriam em 2000: 'Mirian, procurada pelo repórter João Rocha, em Barcelona, foi cortês. Pelo telefone conversaram longamente. Miriam demonstrou querer falar, mas não falou. Já era uma mulher amargurada, quando disse uma frase reveladora ao ser perguntada pela paternidade de Tomas: 'pergunte para a pessoa pública'.

Palmério fez parte da equipe que em abril de 2000 levantou o caso do filho extraconjugal de FHC para a Revista Caros Amigos. Diz o Palmério: "O então presidente da República foi procurado e não quis se pronunciar. Os editores dos principais jornais, revistas e telejornais deram suas versões, todas publicadas. Mário Sérgio Conti, chefão da Veja, atendeu meu telefonema com frieza que foi substituída por um ataque de ira e impropérios publicados na íntegra".

Em outro artigo, de 2011, Palmério manda essa: "a operação cala-a-boca-da-Miriam foi organizada por uma força-tarefa: Alberico de Souza Cruz; o então deputado federal José Serra; e Sérgio Motta, que tinha coordenado a campanha de Fernando Henrique para o Senado, seu amigo mais íntimo".

Motivos para tirar a limpo o que essa mulher está dizendo não faltam. Mas há uma forte corrente de opinião que aponta para o perigo de, com isso, praticar apenas fofoca. Miriam, suposta vítima de brutal assédio, fica relegada a segundo plano. Aliás, o lugar que ocupou nos últimos 24 anos.

Se Miriam foi conivente, foi conivente como um antílope é conivente com o leão que o caça. Sem dúvida, ambos fazem parte da mesma cadeia alimentar. Mas um é predado, enquanto o outro tem os atributos para ser o predador.

Reduzir esse grande conluio entre poderosos ao direito de se discutir ou não o uso que FHC dá para o próprio bilau, convenhamos, parece um respeito meio totêmico pelo bilau dele. Freud explica.

https://issuu.com/brazilcomz/docs/web_1_

http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/02/1740563-fhc-usou-empresa-para-me-bancar-no-exterior-afirma-ex-namorada.shtml

Saturday, February 15, 2025

Líderes do conformismo nacional

Com o falecimento de Cacá Diegues, ontem, começou a circular esta imagem, acredito, do final da década de 1970.

A mim me chamam a atenção o lugar de destaque de Glauber Rocha e a íntima camaradagem entre os retratados.

Em tempos de rede social — quando o próprio tempo parece ter sido abolido — a foto leva a gente a enxergar um quarteto harmônico que a devida contextualização histórica desmente.

Lembrei do artigo de Francisco Alambert — 'A Realidade Tropical' — publicado em 2012 na Revista IEB n. 54, em que o professor transcreve trechos da entrevista concedida por Glauber a Elio Gaspari, Heloisa Buarque de Hollanda e Zuenir Ventura para o livro '70/80: Cultura em Trânsito'.

Os entrevistadores fizeram apenas uma pergunta ao cineasta:

— O que você tem a dizer sobre a questão das Patrulhas Ideológicas que vêm invadindo a imprensa e as paixões nesse último mês?

Estávamos em março de 1980 e, em resposta, Glauber disparou uma vez mais sua famosa metralhadora giratória.

Um outro tipo de retrato de época emerge da diatribe glauberiana, ele, antes e mais que qualquer um, persona polêmica de fio a pavio.

Vejamos.

💣

[o Cebrap]  "é cofinanciado ou patrocinado pela Fundação Rockfeller ou pela Fundação Ford (…), tem inclusive ligação com o liberalismo americano (…). Os liberais democratas do Brasil são apenas capitalistas progressistas ligados a multinacionais, que lutam contra o arcaísmo da economia política brasileira, que é a dominante".

(...) "o grupo capitalista do cinema brasileiro hoje, que é formado por Luiz Carlos Barreto, Bruno Barreto, Arnaldo Jabor, Walter Clark e Carlos Diegues, é oriundo do Cinema Novo".

(...) "os intelectuais e artistas comunistas, ligados ao PC, foram para a Rede Globo".

(...) "acho que o debate aqui tinha de ser colocado em outro nível: o da busca da identidade nacional pela compreensão dos processos econômicos e culturais da colonização. (...) E esse salto é importante, tem que se superar essa feijoada ideológica, multi-ideológica, com uma visão clara do problema".

(...) "aqui você tem que adorar Deus, MDB, Flamengo, e ser fã de Maria Bethânia. A MPB, vanguarda crítica dos anos 1960, passou a liderar (ao lado do futebol e da política de centro) o conformismo nacional, uma vez liquidado seu aspecto revolucionário".

(...) "intelectual aqui é um palhaço da burguesia, são as mesmas figuras da revista Interview, das colunas sociais de O Globo (...). Show da Gal Costa, espetáculo de Ney Matogrosso, teatro de Dias Gomes é tudo uma porcaria só".

💣

As fontes:

https://revistas.usp.br/rieb/article/view/49116

https://www.estantevirtual.com.br/livro/7080-cultura-em-transito-da-repressao-a-abertura-1YK-1970-000

Wednesday, January 22, 2025

Tuesday, January 14, 2025

Salvar o Fogo

Se seu rosto foi se apagando como uma pintura malconservada ou como as abstrações que nos escapam dos sonhos, o mesmo não ocorreu com o restante de sua figura. As vestes escuras, pesadas e com cheiro de naftalina, que pareciam quentes, continuaram a surgir vivas em meus pensamentos, assim como as gotas de suor a sobressair num rosto para sempre enevoado. Seu andar lento e os movimentos sincronizados ao seu discurso também permaneceram plenos no que me restou de recordação. Da mesma forma, os sermões ora ponderados ora inflamados, os questionamentos ásperos que nos dirigia sem esperar por respostas, pareciam na mesma medida suaves e revoltos ao encontrarem nossos ouvidos. Foi dessa maneira que quis saber se gostava da ideia de estudar. Respondi que sim. Quis saber também se ajudava a Luzia em casa e, sobretudo, se temia a Deus. Luzia fez questão de recordar a dom Tomás do meu batizado por suas mãos para que não crescesse pagão. "São tantas crianças", disse, justificando a falta de memória. Sem demora, informou que minhas aulas começariam logo após o início da Quaresma. Luzia poderia retirar o uniforme uma semana antes do Carnaval. Guardei daquele encontro uma genuína felicidade. Poderia sair só de casa, teria um ambiente diferente para estar com outras crianças. Aprender a ler e a escrever era o passo firme a caminho do mundo adulto, ainda que muitos dos que vivessem ao meu redor não tivessem tido a mesma oportunidade. Quem deixava a Tapera a caminho da cidade dizia ser preciso saber ler para encontrar as ruas, usar o transporte, se virar de todo jeito. Sem contar as chances de conseguir um trabalho melhor, que não exigisse tanto esforço físico, como o de meu irmão Joaquim carregando fardos do cais para o saveiro, e do saveiro para a cidade, e com o que mais trabalhava quando já se encontrava distante da aldeia.

Salvar o Fogo © 2023 Itamar Vieira Júnior. Todavia, SP.

🎨: Aline Bispo

Sunday, January 12, 2025

12 de janeiro de 2023

Como estão sendo publicadas listas com nome e data de nascimento dos presos do Capim Tólio de Brasília, já tem gente tabulando as faixas etárias deles (e delas).

Se eu entendi o que li, quase 80% dos terroristas têm de 50 a 60 anos. Entre os 20% restantes, pode haver gente com 19, ou 77.

Portanto, a presença de "idosos" não é dominante.

É importante fazer essa informação circular para impedir que se atribua qualquer inimputabilidade à massa que atacou a Praça dos Três Poderes no domingo passado.

A característica mais geral daquela multidão é justamente a de ser composta por pessoas na fase da vida que se costuma chamar de "maturidade".

Em resumo, homens e mulheres donos de seus narizes e, por isso, aptos a responder pelas atitudes que tomaram.

Thursday, January 09, 2025

9 de janeiro de 2018

O 'an-alfabeto' simplesmente não existe. Não há alguém que não acesse a língua escrita em alguma medida. Os especialistas preferem falar em 'níveis de alfabetismo', que podem ser, isto sim, muito baixos em relação às necessidades médias do cidadão moderno e urbano. Mas zero, nunca.

O que está por trás da pseudo-polêmica do pseudo-escritor Agonialdo Silver é aquilo que a legislação brasileira denomina 'letramento'. O conjunto de saberes que permite o uso eficaz da leitura e da escrita. Que, não esquecem os especialistas, é uso cujo valor se determina socialmente. No Google um link leva à seguinte definição: 'Letramento é o estado ou condição que adquire um grupo social ou indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita'.

Por princípio, o lugar onde se mensura o conhecimento é a escola. Que no Brasil não é universalizada e, portanto, serve como o mais clássico filtro para determinar, na entrada, o 'estado' ou 'condição' dos grupos sociais, assim como serve para 'certificar' o cidadão ao final do processo.

O grande recorte, portanto, aquele que predispõe no início e atesta no final o 'estado' ou 'condição' do brasileiro, é a escolarização. O traço comum entre as classes médias e a elite é ter ido à escola. E, por óbvio, também o que as distingue dos grupos ditos subalternos. Esses vão à escola, mas... só um pouquinho. Não o 'suficiente'. E assim cumprem o destino pré-traçado de não alcançar a 'certificação'. De permanecer 'não-certos' aos olhos da norma social.

Agonialdo Silver, que escreve folhetins de quinta categoria, ironicamente destinados à fruição ágrafa, associa à figura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva atributos como grosseria, ignorância, desleixo, preguiça. 'Defeitos' de pobre. Ou, mais ainda, 'vícios' de pobre. Que, segundo a lógica social brasileira, seriam corrigidos através da educação.

Sarney é da Academia Brasileira de Letras. Michel Temer professor da pós-graduação do Direito na USP. Paulo Maluf engenheiro. Fernando Henrique Cardoso uma espécie de 'príncipe filósofo'. Não basta para esclarecer que a escola não 'corrige'? Precisa lembrar que o Abdelmassih é médico? Que a Adriana Ancelmo é advogada? Ou tem que ir mais longe, até os oficiais nazistas amantes da pintura, da arquitetura e da música de concerto?

'Analfabeto' é uma palavra próxima de não ter sentido algum. O uso que se faz dela desde sempre no Brasil é que é carregado de significados. Parece apenas tolo insistir no desapreço de Lula pelos livros. Sobram testemunhos de gente próxima a ele dando conta de que não apenas lê, como lê à beça e há décadas. Muito do que Lula demonstra saber passa inevitavelmente pelos livros. Negar isso não é burrice, ou mesmo incapacidade de reconhecer os saberes letrados quando estes se presentificam. É atestado de preconceito de classe.

Lula permanece, principalmente no jeito de falar, parecido com a gente pobre de sua origem. E com isso se contrapõe ao senso comum tão brasileiro do cidadão 'incompleto', do cidadão despreparado para a vida democrática, porque não foi à escola.

Parece provável que o ódio que atinge Lula é o ódio destinado ao que ele representa.

O Brasil ainda não está convencido da ideia que define a democracia não como o governo 'de todos' e sim como o governo de 'qualquer um'.

Para manter em funcionamento essa nossa perversa 'teoria das elites' o modelo de escola excludente que caracteriza a Educação brasileira é fundamental.

Claro que na sociedade da informação o custo da baixa escolaridade é cada vez mais alto, mais determinante. E que o acesso a inumeráveis bens culturais pressupõe as habilidades do letramento.

Há, porém, também uma vasta gama de conhecimentos que independem da língua escrita. Ler e escrever só recentemente foram reconhecidos como direito universal. Mas a sabedoria não. Esta, apesar de quase impossível de alcançar, permanece, desde tempos imemoriais, à disposição de qualquer um.