25 melhores livros brasileiros do século 21
BIANCA SANTANA
A lista dos 25 melhores livros brasileiros do século 21 não apenas destaca obras excepcionais, como evidencia uma possível reconfiguração do que entendemos por cânone na literatura brasileira.
Se até aqui os nomes consagrados foram quase exclusivamente de homens brancos — não, não estou esquecendo Machado de Assis —, a seleção agora apresentada aponta um novo paradigma, mais plural e, veja só, insurgente.
Defendi em minha tese de doutorado, de 2020, a autoria negra — especialmente a de mulheres negras — como uma técnica de resistência ao racismo. Ali, evidencio como a elaboração estética de mulheres negras sobre a própria existência enfrenta o dispositivo de racialidade, tal como nomeou Sueli Carneiro, inscrevendo novas epistemologias no campo literário e ampliando possibilidades de vida para a população negra brasileira, quando a política de Estado é uma política de morte.
Um Defeito de Cor é exemplo máximo dessa potência: ao narrar em primeira pessoa a vida de Kehinde, uma africana escravizada que conta sua própria história, Ana Maria Gonçalves aprofunda um paradigma de autoria no Brasil. Paradigma fundado por Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria Jesus, Conceição Evaristo, nomeado pela própria Conceição como "escrevivência".
Mulheres negras deixamos de ser objeto da literatura para escrevermos, com nossos corpos-penas, vivências que ainda não foram suficientemente narradas. Maria, de Olhos d'Água, de Conceição, olhada no desejo de apresentar melão aos filhos, não apenas nos gritos. Primeira pessoa do singular, que é também primeira pessoa do plural.
Em Torto Arado, os corpos negros de Belonísia e Bibiana, descendentes de escravizados no sertão da Bahia, reinventam o romance social brasileiro, dando centralidade às experiências de resistência. Em O Avesso da Pele, o trauma da violência racial é narrado a partir da intimidade de personagens complexos, sem a reprodução de estereótipos fartamente reproduzidos em obras consideradas clássicas, e sem alarmismos panfletários.
A Queda do Céu inscreve na literatura brasileira a cosmovisão yanomami, em uma ruptura de barreiras entre literatura, espiritualidade, conhecimento coletivo, texto didático. Trata-se, a meu ver, de uma obra que amplia o que tradicionalmente é considerado literário.
O Sol na Cabeça, de Geovani Martins, escrito em bom pretuguês, expande a norma culta e registra novas sintaxes, que nascem das favelas, das quebradas, dos becos e dos ônibus lotados. A poesia de Um Útero É do Tamanho de um Punho, de Angélica Freitas, reinventa o lirismo a partir de experiências femininas, lésbicas, dissidentes, gordas e sujas.
É uma alegria que a lista amplie as tradições literárias brasileiras, sem perpetuar exclusões, apenas invertendo quem agora é lido.
Leite Derramado, Diário da Queda e tantos outros escritos de homens brancos têm seu valor reconhecido, como deve ser, mas agora dividindo espaço com obras de autorias historicamente excluídas. Afinal, há lugar na mesa para todo mundo sentar, já nos alertou Lélia Gonzalez, há mais de 40 anos.
É ousado, mas a lista me provoca a perceber — e apontar — uma virada no imaginário nacional. Que não é de incluir autoras negras, indígenas, periféricas ou LGBTQIA+, mas de reconhecer a multiplicidade de obras em que pulsa a literatura brasileira contemporânea. O universalismo radical de Milton Santos expresso na literatura. Oxalá se materialize na redução das desigualdades e na democratização de direitos.
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Bianca Santana
Colunista da Folha, é doutora em ciência da informação pela Universidade de São Paulo, mestra em educação e jornalista. Autora de Arruda e Guiné: Resistência Negra no Brasil Contemporâneo e Quando me Descobri Negra (Fósforo).
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