Havertà
"Havertà" é palavra hebraica deturpada, tanto na forma quanto no sentido, e cheia de significados. Mais propriamente, é uma forma feminina arbitrária de Havèr = Companheiro, e vale por "doméstica", mas contém a ideia acessória de mulher de baixa extração, de crenças e costumes diferentes, que temos de abrigar sob nosso teto; a havertà é tendencialmente pouco asseada e, por definição, maliciosamente curiosa sobre os hábitos e as conversas dos donos da casa, a ponto de obrigá-los a recorrer em sua presença a um jargão particular, do qual decerto faz parte o próprio termo "havertà", além dos outros citados acima. Hoje esse jargão quase desapareceu; duas gerações atrás, ele ainda tinha algumas centenas de vocábulos e locuções, consistentes sobretudo em raízes hebraicas com desinências e flexões piemontesas. Um exame ainda que sumário revela sua função dissimuladora e subterrânea, de linguagem maliciosa destinada a ser empregada ao se falar dos gôjím e na presença de gôjím; ou ainda para responder ousadamente, com injúrias e maldições incompreensíveis, ao regime de clausura e de opressão instaurado por eles.
Seu interesse histórico é escasso, porque nunca foi falado por mais de alguns milhares de pessoas: mas seu interesse humano é enorme, assim como o de todas as linguagens de fronteira e de transição. De fato, ele contém uma admirável força cômica, que decorre do contraste entre o tecido do discurso, que é o dialeto piemontês áspero, sóbrio e lacônico, jamais escrito senão por milagre, e o enxerto hebraico, extraído da remota língua dos pais, sagrada e solene, geológica, polida durante milênios como o leito das geleiras. Mas tal contraste reflete outro, aquele essencial do judaísmo da Diáspora, disperso entre "os gentios" (isto é, os gôjím), estendido entre a vocação divina e a miséria cotidiana do exílio, e outro ainda, bem mais geral, inerente à condição humana, já que o homem é centauro, um emaranhado de carne e pensamento, de sopro divino e pó. Depois da dispersão, o povo judaico viveu longa e dolorosamente esse conflito e dele tirou, além de sua sabedoria, o sorriso que com efeito falta na Bíblia e nos Profetas. O iídiche é impregnado dele, e, em seus modestos limites, o era também a fala bizarra de nossos pais nesta terra, que aqui pretendo recordar antes que desapareça: fala cética e bem-humorada, que apenas em um exame distraído poderia parecer blasfema, ao passo que é, ao contrário, rica de uma intimidade afetuosa e respeitosa com Deus, Nôssgnôr, Adonai Eloénô, Cadòss Barôkhú.
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A Tabela Periódica. © 1975, Primo Levi. Tradução de: Maurício Santana Dias. Cia das Letras, 2025.
Imagem: Orizzontale Verticale. © 1978, Giorgio Griffa. LaM - Lille Métropole Musée d'art moderne, d'art contemporain et d'art brut.

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