Friday, September 05, 2025

... "problemática, mas acerta no diagnóstico"

EDUARDO CESAR MAIA

Discussão sobre o que é ou não literatura pode resultar banal e autoritária se não for nuançada

[RESUMO] Professor comenta discussão literária desencadeada após entrevista de Aurora Bernardini na Folha. Embora discorde da posição da tradutora a respeito do que seria ou não literatura, avalia que ela faz um diagnóstico correto ao apontar uma prevalência do assunto sobre o estilo na literatura atual. Para ele, precisamos renovar as perspectivas desse debate para superar essa disjunção equivocada de forma e conteúdo.

A mais recente polêmica no nosso campo literário esconde certas nuanças que, acredito, podem ser mais bem exploradas com certo afastamento do clima apaixonado e pouco reflexivo dos debates de rede social.

Em entrevista para a Folha, a professora e tradutora Aurora Fornoni Bernardini defende que a literatura contemporânea ficou mais pobre ao privilegiar o conteúdo em detrimento da forma.

Para ela, obras que trocam "significante por significado" podem até ser interessantes, mas não se qualificam como literatura de fato, pois carecem de uma preocupação estética com o estilo e a linguagem, o que caracterizaria particularmente a arte literária. A mesmíssima advertência já tinha sido feita pela ensaísta Walnice Nogueira Galvão, em termos muito parecidos, alguns meses atrás na Folha.

Tomada em sentido estrito e literal, a observação de Aurora Bernardini nos soa realmente problemática. Dizer simplesmente que Itamar Vieira Junior, Annie Ernaux e Elena Ferrante — escritores, por sinal, bastante diferentes literariamente entre si — "não são literatura", sem maiores matizações, parece-me somente uma frase de efeito pinçada e colocada em destaque para gerar engajamento virtual.

Se não compreendermos previamente certos debates históricos e teóricos em estética e teoria literária, a respeito dos quais certamente a professora Aurora Bernardini está muito bem-informada, estaremos somente diante de uma banal e autoritária petição de princípio ontológica: tal coisa é ou não é, porque se enquadra ou não em minha definição desta mesma coisa.

Ao que um adversário simplesmente poderia argumentar: "mas a minha definição é outra!". Assim, o debate se enreda numa sequência anódina de apriorismos, em réplicas e tréplicas, que não ajudam em nada na iluminação da interessantíssima questão subjacente.

Ora, ninguém pode determinar definitivamente o que um conceito histórico, como o de literatura, é, foi ou será, porque os usos desse tipo de conceito flutuam temporal e geograficamente numa dinâmica que não obedece a preceitos teóricos ou metodológicos.

Com isso em mente, podemos fazer melhor proveito do interessante comentário da notável tradutora Aurora Bernardini. Disse ela: "Um fenômeno muito curioso acomete o mundo, mas o Brasil em particular: a literatura se baseia no conteúdo e esquece a forma".

Ainda que se trate de uma amplíssima generalização, estou absolutamente de acordo com o diagnóstico e com a questão crítica que ele suscita: o da parca atenção que se tem dado ao engenho imaginativo e à qualidade verbal dos textos literários, seja por parte dos autores, da crítica e, claro, dos leitores contemporâneos — tudo isso em geral, claro.

Mas aqui é preciso matizar mais uma vez a discussão. Na verdade, toda transfiguração literária do mundo pressupõe certo grau de estilização. Não existe literatura sem forma, e isso independe da qualidade literária; o que se pode questionar criticamente numa obra é como a relação entre forma e assunto é efetivamente plasmada, e que efeitos artísticos o autor logra com suas escolhas.

Nas últimas duas décadas, pude acompanhar como crítico, jornalista cultural, jurado de prêmios literários e, principalmente, como professor e pesquisador universitário na área de comunicação e letras, a avassaladora emergência desse fenômeno, que podemos nomear talvez como empoderamento temático-ideológico da literatura e dos estudos literários (chamados agora, com razão, simplesmente de estudos culturais, dada a falta de especificidade com que se trata o texto literário).

Arrisco-me a apontar duas razões para isso: o acirramento da polarização política, alimentada pelo combustível inesgotável das chamadas guerras culturais; e a cada vez menor cultura literária das novas gerações de leitores, o que ocasiona uma óbvia falta de referências e de parâmetros qualitativos.

Curiosamente, há quase 45 anos, o ensaísta José Guilherme Merquior, em As Ideias e as Formas (1981), apontava o problema oposto nas letras e na crítica literária, particularmente no Brasil, onde vicejava o "estruturalismo dos pobres".

O autor de Formalismo e Tradição Moderna (1974) acreditava que o culto formalista — que classificava como "delírio irracionalista", e que teve como modelo os movimentos vanguardistas do início do século passado — fazia com que a criação artística e, em particular, a criação literária abdicassem das ideias (do conteúdo) em nome de um esteticismo radical. Acontecia, então, uma espécie de "usurpação da ideia pela forma".

Essa obra de Merquior, uma joia que merece reedição, permanece, em um certo sentido, atualíssima, ainda que o cenário literário e teórico tenha mudado radicalmente. E digo que o ensaio segue relevante porque Merquior não apenas aponta os problemas do momento, mas sugere caminhos para a superação de uma visão dicotômica de arte; indicações, creio, que ainda podem ser úteis ao nosso tempo, ainda que a mesma dicotomia agora apareça com os sinais trocados.

Em sua autoapresentação crítica, o ensaísta já revelava a formulação central do seu livro: "O pensamento crítico que anima estas páginas não busca apenas analisar ideias e formas — procura surpreender as ideias sob as formas, e também captar a forma das ideias. Por isso não se contenta com uma abordagem puramente aditiva do estético e do ideológico; pretende descrever e julgar o seu complexo acasalamento".

Talvez tenhamos que começar a tentar discutir a questão a partir de perspectivas renovadas, ou novo vocabulário, para superarmos, ou pelo menos atenuarmos, essa improdutiva disjunção teórica entre conteúdo e expressão.

É possível que um meio para começarmos a entender melhor o que significa essa "interpenetração" ou "complexo acasalamento" entre ideias e formas apareça de maneira muito mais nítida em um outro gênero de escrita: no discurso de natureza híbrida que é o ensaio.

É, talvez, na prática do ensaísmo que fique mais evidente que o pensamento não é um exercício independente da linguagem, e que a concepção de um pensamento anterior à expressão é, em definitiva, insustentável.

Na verdade, pensar e exprimir são a mesma atividade: sem verbalização, seja em monólogo interno ou em diálogo público, não há formulação de pensamento. Em suma, pensamento e expressão do pensamento são a mesma coisa.

Por isso, em grandes ensaístas-críticos como o próprio Merquior — ou, para citar exemplos de diferentes tradições intelectuais, um Lionel Trilling, um Edmund Wilson, um George Steiner ou um Octavio Paz —, o estilo, entendido como estrutura dramática do texto, é parte inextricável da verdade que se quer expressar.

Voltando ao nosso tempo, ao diagnóstico de Aurora Bernardini e à literatura que agora viceja e apaixona os corações do público e da crítica, relatarei, para concluir, uma experiência pessoal que se relaciona com tudo o que falei acima.

Estando eu, alguns anos atrás, em meio às discussões finais para decidir qual seria o texto premiado como melhor romance nacional em um importante certame literário, fui surpreendido pela visão de quase todos os demais membros do júri de que a melhor literatura é aquela que "toca nos temas mais urgentes"; a que "registra a verdade sobre os reais problemas da sociedade"; o texto que, enfim, "desperta nossas consciências para as iniquidades da realidade brasileira".

Diante de tais pressupostos, perfeitamente justos e morais, mas que desconsideravam, na economia das obras, quaisquer considerações de ordem formal, expressiva ou estilística, aceitei que minha visão era minoritária e me dei por vencido, pois minhas premissas —que tampouco pretendem ser verdades absolutas—, no que se refere particularmente a questões artísticas, eram, e ainda são, outras.

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Eduardo Cesar Maia. Ensaísta e professor da UFPE. 3.set.2025.

Imagem: Abertura da Flipei, Festa Literária Pirata das Editoras Independentes, no Galpão Elza Soares, centro de São Paulo, em 6 de agosto - Rafaela Araújo / Folhapress

... "interessantes, mas não literatura"

CAROLINA AZEVEDO

Itamar, Ernaux e Ferrante são interessantes, mas não literatura, diz Aurora Bernardini

[RESUMO] Em entrevista, Aurora Fornoni Bernardini, professora aposentada da USP e tradutora renomada de italiano, inglês e russo, comenta a vinda de sua família da Itália, onde nasceu, para o Brasil, descreve o início de sua paixão pelo estudos de línguas e os atritos com a ditadura e afirma que a literatura contemporânea ficou mais pobre ao privilegiar o conteúdo e esquecer a forma.

Aos 84 anos, Aurora Fornoni Bernardini ainda traduz livros inteiros à mão. Nos cadernos de espiral sem pauta, em letra cursiva clara, adapta verso e prosa do italiano, do inglês e do russo. Sua empreitada mais recente foi a da autobiografia da escritora russa Nina Berberova, mais de 900 páginas divididas com o jornalista e tradutor Irineu Franco Perpétuo, que a editora Kalinka lança em breve

Na hora de escolher o título, Aurora insistiu na tradução direta: O cursivo é meu. Ao que a editora rebateu: Os itálicos são meus, porque hoje ninguém sabe o que é cursivo.

Nascida em Domodossola, no norte da Itália, a professora sênior de língua e literatura russa da USP conta à reportagem que trabalha muito mais desde que se aposentou, ocupando-se sobretudo de resenhas de lançamentos.

Enquanto fala sobre as "várias solicitações" das editoras, ela organiza algumas das obras que acaba de receber em sua casa, cujas estantes já estão abarrotadas de livros. Onde sobra algum espaço entre as paredes, quadros pintados ao longo de sua vida formam uma galeria de retratos de amigos e familiares, muitos dos quais já não povoam seu dia a dia.

Em busca constante por uma ocupação intelectual — "é uma espécie de vício: se não tenho uma ocupação, me sinto vazia" —, Aurora coleciona opiniões categóricas sobre o mercado editorial contemporâneo. "Um fenômeno muito curioso acomete o mundo, mas o Brasil em particular: a literatura se baseia no conteúdo e esquece a forma", afirma.

Lembrando-se de um artigo que a ensaísta Walnice Nogueira Galvão publicou na Folha, a professora defende que escritos que trocam significante por significado "podem até ser interessantes, mas não são literatura".

Seu primeiro exemplo é Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, que ficou em segundo lugar na lista de melhores livros brasileiros de literatura do século 21, organizada pela Folha. Sua avaliação não é totalmente negativa, afinal, caracteriza o livro como "apaixonante, insólito e original" em seu conteúdo. Mas não hesita em dizer que "o autor não tem estilo particular".

Ela o compara a Umberto Eco, cujo O Nome da Rosa traduziu. O romance de sucesso global é, para Aurora, uma "obra-prima da arquitetura do conteúdo". No entanto, a professora se junta à parte mais rigorosa da crítica italiana para dizer que o estilo de Eco é "pesado, irregular e não suscita interesse". Sua conclusão é a de que "é muito raro, mas mesmo um autor que tem estilo discutível pode escrever um grande livro se relatar um conteúdo interessante o bastante".

No plano internacional, repete as críticas a Vieira Junior para falar da Nobel de Literatura Annie Ernaux e de Elena Ferrante, duas das mais conhecidas escritoras contemporâneas. Se cativam o público ao falarem de experiências acabrunhantes, como o aborto de Ernaux em O Acontecimento, ou assuntos de interesse comum, como os anos formativos de Ferrante em A Amiga Genial, para Aurora, não passam de best-sellers.

Se nenhuma das duas têm estilo o bastante para atrair a professora, a virtude aparece na medida certa na prosa da espanhola Rosa Montero. As apreciações da autora de O Perigo de Estar Lúcida movimentam algo de curioso que "dá vida ao seu estilo", mesmo quando escreve sobre o corriqueiro, defende Aurora.

O porquê da tendência conteudista acometer o Brasil, Aurora não sabe pontuar, mas cautelosamente a relaciona ao que classifica como "um exagero" por parte da crítica. "O passado não pode repercutir no presente como estão querendo. Esse fenômeno terrível do passado, a escravidão, não implica merecimentos no presente. É preciso partir da igualdade de condições de conhecimento. Não se pode dar o mérito antes das condições".

Para a professora, muita coisa melhorou no país nos últimos anos, mas a injustiça continua sendo a principal marca do cotidiano brasileiro. "O povo europeu é mais amadurecido, pois passou por guerras e revoluções, então reclama mais. Aqui, o povo é muito passivo".

Ela conta uma anedota de seu pai para ilustrar o ponto de vista. Enquanto diretor de uma fábrica na região de Carrara, ao norte da Itália, ele era constantemente intimidado por operários, que "diziam que sua cova estava pronta" e "ameaçavam dar com o sapato na cabeça dele".

Aurora lembra a história da região, por onde passava a linha gótica, uma das últimas linhas de defesa nazi-fascistas, cujo intuito era bloquear os avanços aliados durante a Segunda Guerra Mundial.

"Esse operariado, muitos deles antigos guerrilheiros, era muito sofrido", por isso combativo, diz. Tão logo foi convidado para dirigir a fábrica de cloro e soda cáustica das indústrias Matarazzo em São Paulo, quando Aurora tinha 13 anos, seu pai foi surpreendido por um operariado que "fazia fila para o abraçar no dia de seu aniversário".

Estabelecida com a família na região do rio Tamanduateí, entre São Paulo e São Caetano do Sul, Aurora logo aprendeu o português e saiu atrás de outro desafio, que encontrou na casa de uma vizinha russa disposta a ensinar-lhe sua língua. Em uma casa na rua Ibitirama, Aurora passou anos da adolescência tomando chá e estudando o livro de gramática russa escrito por Marina Dolenga ao lado da vizinha, com quem passeava pelos bairros de emigrados eslavos para treinar a língua.

Quando foi escolher a faculdade, seu pai logo a proibiu de cursar medicina. "Você vai ser professora, porque tem três meses de férias por ano", dizia. Aurora seguiu para o curso de letras na USP, onde se especializou em literatura anglófona com tese sobre Ulisses, de James Joyce.

Quase cem livros traduzidos depois, a professora encontrou-se com a prosa de Joyce mais uma vez em 2022, quando participou do Coletivo Finnegans, grupo que, liderado por Dirce Waltrick do Amarante, traduziu Finnegans Wake para a editora Iluminuras.

Com o título Finnegans Rivolta, o livro recebeu o prêmio de melhor tradução no Jabuti de 2023. Em 2004, Aurora já havia ganhado uma menção honrosa no mesmo prêmio, ao lado de Haroldo de Campos, pela tradução da coletânea Ungaretti: Daquela Estrela à Outra. Também ficou em terceiro lugar em 2007, pela tradução de "Indícios Flutuantes", da poeta russa Marina Tsvetáieva.

Logo que Aurora concluiu o curso de letras, em 1963, o professor ucraniano Boris Schnaiderman inaugurou o bacharelado em russo na USP, para o qual ela seguiu. Foi colega de Augusto de Campos e logo se tornou professora assistente de Schnaiderman. Lecionando literatura russa na universidade pública no meio da ditadura militar, Aurora conta que os colegas foram frequentemente visados pelos militares.

Ela rememora o episódio em que Schnaiderman, tradutor de Dostoiévski, Tolstói e Maiakóvski, estava lecionando quando três militares entraram armados e anunciaram a procura por um aluno.

"Boris, com aquele jeito vagaroso que tinha, disse a eles: 'Os senhores vêm aqui armados de metralhadoras enquanto nós só temos o apagador e o giz." Schnaiderman foi imediatamente levado para o Departamento de Ordem Política e Social, o Dops, o que causou alvoroço na Faculdade de Letras.

Foi Aurora quem teve a coragem de questionar aos militares o que aconteceria com o colega. Ela se aproximou do oficial com ar de ingênua, perguntando a que horas poderia ir apanhar Schnaiderman, ao que indicaram "por volta da meia-noite".

Apesar do desespero da esposa do colega, Aurora consentiu e aguardou: "À meia-noite eu fui buscá-lo no Dops. Cheguei e lá estava ele, vestido de avental branco, na frente do recinto. Nós sofremos muito, mas a juventude nos dava força para continuar", conta.

Por sua contribuição ao estudo da literatura e à tradução, Aurora recebeu em junho o prêmio Ciccillo Matarazzo per Italiani nel Mondo, ao lado do poeta, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) e presidente da Fundação Biblioteca Nacional, Marco Lucchesi.

Entre os vários projetos aos quais se dedica no momento, ela destaca dois. Para a versão em italiano da biografia do empresário Francesco Matarazzo, escrita por Ronaldo Costa Couto, já comprou quatro cadernos de espiral. Mas a novidade que mais lhe interessa é a publicação da coletânea de ensaios Em Busca do Quem das Coisas, do escritor, tradutor e ecologista Per Johns.

Os manuscritos herdados por Aurora partem de uma série de palestras realizadas pelo escritor de origem dinamarquesa a convite da ABL e da PUC-Rio. O livro póstumo, editado por ela, reúne pensamentos sobre a literatura — com destaque para Guimarães Rosa, cujo Grande Sertão: Veredas Johns cotraduziu, durante cinco anos, para o dinamarquês — e a natureza.

Apontando para o retrato que pintou de Johns, Aurora destaca a importância do livro, que deve sair em breve pela editora Iluminuras. Ela situa o amigo, morto em 2017, "entre os mais dotados escritores de nossa época".

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Carolina Azevedo. Jornalista, para a Ilustríssima da Folha de São Paulo. 30.ago.2025.

Imagem: Aurora Bernardini. Adriano Vizoni / Folhapress



Thursday, September 04, 2025

25 melhores livros brasileiros do século 21

BIANCA SANTANA

A lista dos 25 melhores livros brasileiros do século 21 não apenas destaca obras excepcionais, como evidencia uma possível reconfiguração do que entendemos por cânone na literatura brasileira.

Se até aqui os nomes consagrados foram quase exclusivamente de homens brancos — não, não estou esquecendo Machado de Assis —, a seleção agora apresentada aponta um novo paradigma, mais plural e, veja só, insurgente.

Defendi em minha tese de doutorado, de 2020, a autoria negra — especialmente a de mulheres negras — como uma técnica de resistência ao racismo. Ali, evidencio como a elaboração estética de mulheres negras sobre a própria existência enfrenta o dispositivo de racialidade, tal como nomeou Sueli Carneiro, inscrevendo novas epistemologias no campo literário e ampliando possibilidades de vida para a população negra brasileira, quando a política de Estado é uma política de morte.

Um Defeito de Cor é exemplo máximo dessa potência: ao narrar em primeira pessoa a vida de Kehinde, uma africana escravizada que conta sua própria história, Ana Maria Gonçalves aprofunda um paradigma de autoria no Brasil. Paradigma fundado por Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria Jesus, Conceição Evaristo, nomeado pela própria Conceição como "escrevivência".

Mulheres negras deixamos de ser objeto da literatura para escrevermos, com nossos corpos-penas, vivências que ainda não foram suficientemente narradas. Maria, de Olhos d'Água, de Conceição, olhada no desejo de apresentar melão aos filhos, não apenas nos gritos. Primeira pessoa do singular, que é também primeira pessoa do plural.

Em Torto Arado, os corpos negros de Belonísia e Bibiana, descendentes de escravizados no sertão da Bahia, reinventam o romance social brasileiro, dando centralidade às experiências de resistência. Em O Avesso da Pele, o trauma da violência racial é narrado a partir da intimidade de personagens complexos, sem a reprodução de estereótipos fartamente reproduzidos em obras consideradas clássicas, e sem alarmismos panfletários.

A Queda do Céu inscreve na literatura brasileira a cosmovisão yanomami, em uma ruptura de barreiras entre literatura, espiritualidade, conhecimento coletivo, texto didático. Trata-se, a meu ver, de uma obra que amplia o que tradicionalmente é considerado literário.

O Sol na Cabeça, de Geovani Martins, escrito em bom pretuguês, expande a norma culta e registra novas sintaxes, que nascem das favelas, das quebradas, dos becos e dos ônibus lotados. A poesia de Um Útero É do Tamanho de um Punho, de Angélica Freitas, reinventa o lirismo a partir de experiências femininas, lésbicas, dissidentes, gordas e sujas.

É uma alegria que a lista amplie as tradições literárias brasileiras, sem perpetuar exclusões, apenas invertendo quem agora é lido.

Leite Derramado, Diário da Queda e tantos outros escritos de homens brancos têm seu valor reconhecido, como deve ser, mas agora dividindo espaço com obras de autorias historicamente excluídas. Afinal, há lugar na mesa para todo mundo sentar, já nos alertou Lélia Gonzalez, há mais de 40 anos.

É ousado, mas a lista me provoca a perceber — e apontar — uma virada no imaginário nacional. Que não é de incluir autoras negras, indígenas, periféricas ou LGBTQIA+, mas de reconhecer a multiplicidade de obras em que pulsa a literatura brasileira contemporânea. O universalismo radical de Milton Santos expresso na literatura. Oxalá se materialize na redução das desigualdades e na democratização de direitos.

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Bianca Santana

Colunista da Folha, é doutora em ciência da informação pela Universidade de São Paulo, mestra em educação e jornalista. Autora de Arruda e Guiné: Resistência Negra no Brasil Contemporâneo e Quando me Descobri Negra (Fósforo).



Conteúdo predomina sobre a forma na literatura brasileira de hoje


WALNICE NOGUEIRA GALVÃO

Triunfo da negritude, evidente na lista de melhores livros do século 21, é sintoma de movimento social de âmbito desmedido

24 de maio de 2025 / UOL

À primeira vista, parece o triunfo da negritude, sobretudo pela acumulação nos primeiros lugares. Sem dúvida, é um privilégio poder ver o Brasil se assumir como o maior país africano do mundo, disputando a primazia com a Nigéria por uns poucos milhões de habitantes.

A lista dos melhores livros deste século 21 não desmente ninguém, é apenas um sintoma. Se não bastasse, era só olhar para os programas de televisão, dos mais broncos aos mais ambiciosos, e verificar como mudaram de cor. Até na publicidade: não se faz propaganda de nada, nada mesmo, sem feições morenas.

É um movimento social de âmbito desmedido, englobando o resultado de uma lista de consulta como essa. A tendência atual da literatura brasileira, dos leitores, dos editores, dos autores, dos prêmios literários, dos seminários e congressos, dos cursos de pós-graduação, das dissertações e teses, das escolas etc. é dedicar-se à temática da negritude.

Nem é preciso dizer que a tendência é bem-vinda, já vem tarde e pode ser entendida como uma tentativa de reparação simbólica aos males não só da escravidão como também à maneira desastrada pela qual a emancipação foi feita. A mesma atmosfera predomina tanto na ficção, quanto no ensaio e nas artes.

Nota-se que de outros campos, apesar de candentes e rumorosos, mal se divisa a esquiva silhueta nessa lista. É o que acontece com a temática da mulher, quase ausente, a temática queer, a temática explicitamente política, a temática indígena. Isso sim dá o que pensar. Qual a causa desse paradoxo?

Aqueles temas estão na ordem do dia, presidem até assassinatos, mas na lista quase sumiram. Sempre lembrando que a lista é apenas uma amostra e provavelmente insuficiente. Será que não há autores? Ou os editores não se interessam? No momento é difícil saber, por enquanto só podemos especular.

Mas não deixa de ser interessante: a temática da negritude é avassaladora. É bom lembrar que a negritude também é avassaladora no Censo, 56% de declarações voluntárias assumindo os muitos cambiantes da cor são um documento incontornável.

Já para a crítica literária propriamente dita, a constatação é de que estamos vivendo o predomínio do conteúdo. O que se escreve e o que se lê são definidos pelo conteúdo. Quanto à estética, ao trabalho com a forma, aos anseios da vanguarda, ao fermento da experimentação... Tudo isso fica no horizonte do futuro, e assim mesmo, talvez.

Essa hipertrofia do significado, em detrimento do significante, pode estar implicando uma inclinação da literatura mais para o lado do entretenimento, e menos para o lado da arte. Seria um bom desafio tratar de pensar um pouco se esse fenômeno é paralelo à crescente ênfase na biografia do autor, e menos em sua obra.

O palpitante parece ser aquilo que é da intimidade do artista, e não o que ele realiza e que lhe confere a legitimidade de ser artista. Aqui, a contaminação de estratégias da mídia, perita em incensar e derrubar ídolos, pode ser a responsável.

Mas, repita-se, é preciso lembrar que se trata de uma amostra apenas, portanto estas elucubrações permanecem entre parênteses.

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Walnice Nogueira Galvão

Ensaísta e crítica literária, é professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo