A arte é visão ou intuição. O artista produz uma imagem ou fantasma; e quem aprecia a arte dirige o olhar para o ponto que o artista lhe apontou, olha pela fresta que ele lhe abriu e reproduz em si aquela imagem.
"Para Croce, a intuição, drasticamente separada das esferas da percepção e do conceito, constitui o elemento substancial do ato de criação artística, ao mesmo tempo em que afirma a autonomia da arte como forma do conhecimento. A intuição é vista como síntese que integra sentimento e imagem; por sua vez, a expressão implica a contemplação artística do próprio sentimento." (Breviário de Estética, orelha da edição brasileira, ed. Ática)
(...) que arte é intuição, extrai ao mesmo tempo seu significado e sua força de tudo aquilo que nega implicitamente, e de que a arte se distingue.
(...) [que arte é intuição] nega em primeiro lugar que a arte seja um fato físico.
(...) os fatos físicos não têm realidade, enquanto a arte, (...) é sumamente real; de modo que ela não pode ser um fato físico, que é uma coisa irreal. À primeira vista, isso resulta paradoxal, porque nada parece mais sólido e seguro ao homem do vulgo do que o mundo físico. (...) a demonstração da irrealidade do mundo físico não só é feita e admitida de modo irrefutável por todos os filósofos (...), mas é professada pelos próprios físicos (...) quando concebem os fenômenos físicos como o produto de princípios que se subtraem à experiência, (...) ou como manifestação de um Incognoscível: a própria Matéria dos materialistas é, de resto, um princípio supramaterial. Com o que os fatos físicos se revelam, por sua lógica interna e por consenso geral, não como uma realidade, mas como uma construção de nosso intelecto para os fins da ciência.
(...) a arte pode ser construída fisicamente. (...) isso é certamente possível, e acontece de fato sempre que, distraindo-nos do sentido de uma poesia, renunciando à sua fruição, nos pomos, por exemplo, a contar as palavras de que a poesia é composta, e a dividi-las em sílabas e letras, ou sempre que, distraindo-nos do efeito estético de uma estátua, a medimos e pesamos: coisa sobremaneira útil para os que constroem embalagens para as estátuas;
(...) Portanto, (...) quando nos propomos penetrar sua natureza e seu modo de operar, de nada nos vale construí-la fisicamente.
(...) Há uma outra negação, implícita na definição de arte como intuição: a saber, que, se ela é intuição, e se intuição vale por teoria no sentido originário de contemplação, a arte não pode ser um ato utilitário; e como um ato utilitário visa sempre a alcançar um prazer e portanto a afastar uma dor, a arte, considerada em sua própria natureza, não tem nada a ver com o útil, nem com o prazer, nem com a dor, enquanto tais. (...) nossos interesses práticos, com os prazeres e dores correlatos, se misturam e confundem por vezes com ele, perturbam-no, mas não se fundem nunca com nosso interesse estético.
(...) a doutrina hedonista tem seu eterno motivo de verdade no fato de dar evidência ao acompanhamento hedonista, ou seja, ao prazer, que é compartilhado pela atividade estética e por todas as outras formas de atividade espiritual, e que não pretendemos de modo algum negar quando negamos radicalmente a identificação da arte com o agradável, e quando distinguimos a arte do agradável, ao definirmos a arte como intuição.
Uma terceira negação que se realiza graças à teoria da arte como intuição é que a arte seja um ato moral: vale dizer, aquela forma de ato prático que, embora se unindo necessariamente ao útil, ao prazer e à dor, não é imediatamente utilitária e hedonista, mas se move numa esfera espiritual superior. Mas a intuição, enquanto ato teorético, opõe-se a qualquer prática. E, na verdade, a arte, de acordo com uma observação antiqüíssima, não nasce por obra da vontade: a boa vontade, que define o homem de bem, [onest' uomo], não define o artista. E, porque não nasce por efeito da vontade, subtrai-se igualmente a toda outra discriminação moral, não porque lhe seja outorgado um privilégio de isenção, mas simplesmente porque a discriminação moral não encontra maneira de aplicar-se a ela. Uma imagem artística representará um ato moralmente louvável ou reprovável; mas a imagem, enquanto imagem, não é nem louvável nem reprovável moralmente. (...) seria como julgar moral o quadrado e imoral o triângulo.
(...) os estetas moralistas (...) outras vezes pensavam em valer-se dela como instrumento didático, porque não apenas a virtude é coisa áspera - mas também a ciência - e a arte podia tirar aquela aspereza e tornar ameno e atraente o acesso ao edifício da ciência, e até conduzir por ele os homens como por um jardim de Armida: alegre e voluptuosamente, sem que atinassem para o alto proveito que logravam e para a crise de renovação que preparavam para si mesmos.
A doutrina moralista da arte foi, é e sempre será um esforço, ainda que infeliz, por separar a arte do meramente agradável (...)
(...) ela também tem seu lado verdadeiro, porque, se a arte está além da moral, nem além nem aquém, mas sob o domínio da moral está o artista, enquanto homem, que não pode faltar aos deveres do homem, e deve considerar como uma missão e exercer como um sacerdócio a própria arte - que não é e não será nunca a moral.
Ainda (...) ao definir a arte como intuição, nega-se que ela tenha um caráter de conhecimento conceitual. O conhecimento conceitual, em sua forma pura, que é a filosófica, é sempre realista, visando a estabelecer a realidade em face da irrealidade, incluindo-na na realidade como momento subordinado da própria realidade. Mas intuição significa, precisamente, indistinção de realidade e irrealidade, a imagem em seu valor de mera imagem, a idealidade pura da imagem; e ao contrapor o conhecimento intuitivo ou sensível ao conhecimento conceitual ou inteligível, a estética à noética, visa-se a reivindicar a autonomia desta forma de conhecimento, mais simples e elementar, que foi comparada ao sonho (ao sonho, bem entendido, não ao sono) da vida teorética, relativamente ao qual a filosofia seria a vigília.
(...) É inútil retrucar que a individualidade da imagem não subsiste sem uma referência ao universal, de que aquela imagem é individualização; porque não se nega aqui que o universal, como o espírito de Deus, esteja por toda parte e tudo anime de si, mas nega-se que na intuição enquanto intuição o universal esteja logicamente explícito e pensado.
(...) Mas a distinção entre a arte e a filosofia (esta entendida em sua amplitude, que compreende todos os pensamentos do real) traz consigo outras distinções, entre as quais, em primeiro lugar, a distinção entre a arte e o mito. Porque o mito, para quem nele acredita, se apresenta como revelação e conhecimento da realidade contra a irrealidade, afastando de si as crenças que dele se distinguem como ilusórias ou falsas. (...) Considerado, pois, na realidade legítima, no ânimo do crente e não do incrédulo, o mito é religião e não simples fantasia. Pode tornar-se arte somente para aquele que já não acredita, e usa a mitologia como uma metáfora, o mundo austero dos deuses como um mundo belo, Deus como uma imagem de sublimidade. (...) À arte, para ser mito e religião, falta precisamente o pensamento, e a fé por ele gerada; o artista não crê ou deixa de crer em sua imagem: a produz.
(...) Por outra razão, o conceito de arte como intuição exclui também a concepção da arte como produção de classes e tipos e espécies e gêneros, ou mesmo como exercício de aritmética inconsciente; ou seja, distingue a arte das ciências positivas e das matemáticas, em ambas as quais está presente a forma conceitual, embora privada - de caráter realístico, como mera representação geral, ou mera abstração. Mas aquela identidade, que a ciência natural e matemática pareceria assumir em face do mundo da filosofia, da religião e da história, e que pareceria aproximá-la da arte, é ganha à custa de uma renúncia do pensar concreto, de uma generalização e uma abstração que são arbitrariedades, decisões impostas pela vontade, atos práticos e, como tais, estranhos e hostis ao mundo da arte. Ocorre, pois, que a arte mostra muito mais aversão pelas ciências positivas e matemáticas que pela filosofia, a religião e a história, porque estas se apresentam como concidadãs no mesmo mundo da teoria ou do conhecimento, ao passo que aquelas a ofendem com a rudeza da prática para com a contemplação. Poesia e classificação, e, pior ainda, poesia e matemática, aparecem assim pouco afins, como o fogo e a água: o esprit mathématique e o esprit scientifique, os inimigos mais declarados do esprit poétique; as épocas em que prevalecem as ciências naturais e a matemática (...) as mais estéreis para a poesia.
(...) Mas ao pé da verdade (...) nasce a dúvida (...). A doutrina da arte como intuição, como fantasia, como forma, dá lugar a um ulterior (...) problema, que não é mais de contraposição e distinção com respeito à física, à hedonística, à ética e à lógica, mas interior ao próprio campo das imagens; e, pondo em dúvida que a imagem baste para definir o caráter da arte, gira na realidade em torno ao modo de discernir a imagem genuína da imagem espúria e acaba enriquecendo por essa via o conceito da imagem e da arte. Que papel (pergunta-se) pode ter no espírito do homem um mundo de meras imagens, destituídas de valor filosófico, histórico, religioso ou científico, destituídas até mesmo de valor moral ou hedonista? O que pode ser mais vão do que sonhar de olhos abertos, na vida que exige abertos, não só os olhos como também a mente, e atento o espírito?
(...) ou seja, a intuição não pode consistir meramente em imaginar.
(...) Na realidade, a intuição é a produção de uma imagem, e não de uma acumulação incoerente de imagens, que se obteria evocando imagens antigas, deixando que se sigam umas às outras por um ato de arbítrio, combinando uma imagem com outra por outro arbítrio semelhante, juntando a cabeça humana com uma cerviz eqüina, numa brincadeira de crianças.
(...) Acumular imagens, escolhê-las com atenção, recortá-las, combiná-las pressupõe no espírito a produção e a posse de imagens singulares; e a fantasia é produtiva, ao passo que a imaginação é parasita, apta para combinações extrínsecas e não para gerar o organismo e a vida. O problema mais profundo que se agita por baixo da fórmula bastante superficial com que o apresentei de início é, pois: que papel cabe à mera imagem na vida do espírito?
(...) A melhor maneira de preparar esse aprofundamento é (...) diferençar a intuição artística da mera imaginação incoerente, e estabelecer em que consiste o princípio da unidade, e justificar o caráter produtivo da fantasia.
(...) essa necessidade (...) leva, com efeito, a um refinamento da teoria da intuição: (...) a teoria da intuição como símbolo; porque no símbolo a idéia não está mais presente por si, pensável separadamente da representação simbolizadora, e esta não está presente por si, representável de maneira viva, sem a idéia simbolizada. A idéia se dissolve toda na representação (...), como um torrão de açúcar em um copo de água, que está e opera em cada molécula da água, mas já não encontramos como torrão de açúcar. Contudo, a idéia que desapareceu, a idéia que se tornou toda representação, a idéia que não se consegue mais colher como idéia (a não ser extraindo-a como se extrai o açúcar da água açucarada) não é mais idéia: é somente o sinal do princípio de unidade - ainda não encontrado, da imagem artística. Por certo a arte é símbolo, toda símbolo, isto é, toda significante; mas símbolo de quê? A intuição é verdadeiramente artística, é verdadeiramente intuição, e não amontoado caótico de imagens, somente quando tem um princípio vital, que a anima formando uma unidade com ela; mas qual é esse princípio?
(...) podem resumir-se teoricamente na fórmula de que o que dá coerência e unidade à intuição é o sentimento: a intuição é verdadeiramente intuição porque representa um sentimento, e só dele e sobre ele pode surgir. Não a idéia, mas o sentimento é o que confere à arte a aérea leveza do símbolo: uma aspiração fechada no círculo de uma representação, eis a arte; e nela a aspiração está somente pela representação e a representação só pela aspiração.
(...) O que admiramos nas autênticas obras de arte é a perfeita forma fantástica que nelas assume um estado de alma: a isso chamamos vida, unidade, coesão, plenitude da obra de arte.
(...) O que nos desagrada nas obras falsas e imperfeitas, é o contraste não unificado de estados de alma plurais e distintos, sua estratificação ou mistura, ou seu proceder aos solavancos, que recebe uma unidade aparente do arbítrio do autor (...)
(...) Série de imagens as quais, uma por uma, parecem ricas em evidência, mas nos deixam em seguida decepcionados e suspeitosos, porque não as vemos geradas de um estado de alma, de uma "mancha", de um motivo, se sucedem e se aglomeram sem aquela justa entoação, sem aquele acento que provém do centro.
(...) Épica e lírica, ou drama e lírica, são divisões didáticas do indivisível: a arte é sempre lírica ou, se quisermos, épica e dramática do sentimento.
(...) "todas as artes tendem para a condição de música"; e seria preciso dizer mais exatamente que todas as artes são música, se, dessa forma, se pretende dar realce à gênese sentimental das imagens artísticas, excluindo de seu rol as imagens construídas mecanicamente ou realisticamente pesadas.