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Saturday, October 02, 2010

Dois pesos...

Maria Rita Kehl - O Estado de S.Paulo

Este jornal teve uma atitude que considero digna: explicitou aos leitores que apoia o candidato Serra na presente eleição. Fica assim mais honesta a discussão que se faz em suas páginas. O debate eleitoral que nos conduzirá às urnas amanhã está acirrado. Eleitores se declaram exaustos e desiludidos com o vale-tudo que marcou a disputa pela Presidência da República. As campanhas, transformadas em espetáculo televisivo, não convencem mais ninguém. Apesar disso, alguma coisa importante está em jogo este ano. Parece até que temos luta de classes no Brasil: esta que muitos acreditam ter sido soterrada pelos últimos tijolos do Muro de Berlim. Na TV a briga é maquiada, mas na internet o jogo é duro.

Se o povão das chamadas classes D e E - os que vivem nos grotões perdidos do interior do Brasil - tivesse acesso à internet, talvez se revoltasse contra as inúmeras correntes de mensagens que desqualificam seus votos. O argumento já é familiar ao leitor: os votos dos pobres a favor da continuidade das políticas sociais implantadas durante oito anos de governo Lula não valem tanto quanto os nossos. Não são expressão consciente de vontade política. Teriam sido comprados ao preço do que parte da oposição chama de bolsa-esmola.

Uma dessas correntes chegou à minha caixa postal vinda de diversos destinatários. Reproduzia a denúncia feita por "uma prima" do autor, residente em Fortaleza. A denunciante, indignada com a indolência dos trabalhadores não qualificados de sua cidade, queixava-se de que ninguém mais queria ocupar a vaga de porteiro do prédio onde mora. Os candidatos naturais ao emprego preferiam viver na moleza, com o dinheiro da Bolsa-Família. Ora, essa. A que ponto chegamos. Não se fazem mais pés de chinelo como antigamente. Onde foram parar os verdadeiros humildes de quem o patronato cordial tanto gostava, capazes de trabalhar bem mais que as oito horas regulamentares por uma miséria? Sim, porque é curioso que ninguém tenha questionado o valor do salário oferecido pelo condomínio da capital cearense. A troca do emprego pela Bolsa-Família só seria vantajosa para os supostos espertalhões, preguiçosos e aproveitadores se o salário oferecido fosse inconstitucional: mais baixo do que metade do mínimo. R$ 200 é o valor máximo a que chega a soma de todos os benefícios do governo para quem tem mais de três filhos, com a condição de mantê-los na escola.

Outra denúncia indignada que corre pela internet é a de que na cidade do interior do Piauí onde vivem os parentes da empregada de algum paulistano, todos os moradores vivem do dinheiro dos programas do governo. Se for verdade, é estarrecedor imaginar do que viviam antes disso. Passava-se fome, na certa, como no assustador Garapa, filme de José Padilha. Passava-se fome todos os dias. Continuam pobres as famílias abaixo da classe C que hoje recebem a bolsa, somada ao dinheirinho de alguma aposentadoria. Só que agora comem. Alguns já conseguem até produzir e vender para outros que também começaram a comprar o que comer. O economista Paul Singer informa que, nas cidades pequenas, essa pouca entrada de dinheiro tem um efeito surpreendente sobre a economia local. A Bolsa-Família, acreditem se quiserem, proporciona as condições de consumo capazes de gerar empregos. O voto da turma da "esmolinha" é político e revela consciência de classe recém-adquirida.

O Brasil mudou nesse ponto. Mas ao contrário do que pensam os indignados da internet, mudou para melhor. Se até pouco tempo alguns empregadores costumavam contratar, por menos de um salário mínimo, pessoas sem alternativa de trabalho e sem consciência de seus direitos, hoje não é tão fácil encontrar quem aceite trabalhar nessas condições. Vale mais tentar a vida a partir da Bolsa-Família, que apesar de modesta, reduziu de 12% para 4,8% a faixa de população em estado de pobreza extrema. Será que o leitor paulistano tem ideia de quanto é preciso ser pobre, para sair dessa faixa por uma diferença de R$ 200? Quando o Estado começa a garantir alguns direitos mínimos à população, esta se politiza e passa a exigir que eles sejam cumpridos. Um amigo chamou esse efeito de "acumulação primitiva de democracia".

Mas parece que o voto dessa gente ainda desperta o argumento de que os brasileiros, como na inesquecível observação de Pelé, não estão preparados para votar. Nem todos, é claro. Depois do segundo turno de 2006, o sociólogo Hélio Jaguaribe escreveu que os 60% de brasileiros que votaram em Lula teriam levado em conta apenas seus próprios interesses, enquanto os outros 40% de supostos eleitores instruídos pensavam nos interesses do País. Jaguaribe só não explicou como foi possível que o Brasil, dirigido pela elite instruída que se preocupava com os interesses de todos, tenha chegado ao terceiro milênio contando com 60% de sua população tão inculta a ponto de seu voto ser desqualificado como pouco republicano.

Agora que os mais pobres conseguiram levantar a cabeça acima da linha da mendicância e da dependência das relações de favor que sempre caracterizaram as políticas locais pelo interior do País, dizem que votar em causa própria não vale. Quando, pela primeira vez, os sem-cidadania conquistaram direitos mínimos que desejam preservar pela via democrática, parte dos cidadãos que se consideram classe A vem a público desqualificar a seriedade de seus votos.

Wednesday, December 16, 2009

A sublimação não é o caminho para a felicidade. Mas o encontro da sublimação com a paixão amorosa foi definido por Benjamin Péret como alternativa feliz para o beco sem saída que parece ser a paixão em seu estado narcísico. O amor sublime é o encontro da pulsão sexual do amor apaixonado, de toda a demanda de fusão com o outro que a sexualidade apaixonada contém, com os benefícios mais elevados da sublimação. Péret, em seu ensaio sobre o amor sublime, faz uma rápida história das formas que a relação amorosa foi tomando desde a Idade Média e conclui que a sublimação dentro da relação amorosa (não a sublimação da relação amorosa) só é possível nas civilizações em que o homem e a mulher se encontram em uma posição de igualdade social e intelectual. Em civilizações assim - como a nossa - é possível que o encontro entre o homem e a mulher ultrapasse as demandas iniciais da paixão, as demandas de fusão total do amor narcísico, do amor/morte, sem que a única saída seja reprimir e/ou negar a paixão no leito estreito do amor burguês, do amor de conveniência. É possível que os apaixonados ultrapassem suas fantasias narcísicas apaixonadas e se encontrem num outro plano além da sexualidade (mas não em detrimento dela), que é o plano da sublimação. O amor sublime é a possibilidade da troca (também) no plano simbólico. A possibilidade da poesia no encontro amoroso - não a poesia produzida pela frustração da paixão, mas a poesia  da paixão. A transformação dos desejos que não podem se concretizar na paixão amorosa no desejo de uma outra coisa que a poesia (no sentido lato, não apenas no sentido da produção de poemas) pode realizar.

Para Péret o amor sublime seria a contrapartida do amor romântico, da paixão grandiosa mas impossível, do amor que não encontra nem limites nem possibilidades concretas e por isso leva à morte - na melhor das hipóteses, a morte do outro em mim. O amor sublime não abre mão da paixão, mas sabe transformar o impossível da paixão em possibilidade de troca simbólica. É quando o outro fala comigo, é quando dois universos simbólicos se tocam, se interpenetram, frutificam, se potencializam, é nesse caso que a paixão pode se tornar aliada do amor.

O amor por sua vez perde suas tonalidades cristãs que exige o rebaixamento do erotismo em nome da santidade da união, que exige a fidelidade e a obediência mútua, que propõe o conformismo e a responsabilidade como motivo mais sublime da união - o amor sublime recusa isto tudo,  é amor de escolha e, portanto, uma aliança a favor, e não contra, o vôo livre de cada um pela vida. O amor sublime dá asas ao erotismo. Péret: "o desejo, longe de perder de vista a carne que lhe deu à luz, tende em definitivo a erotizar o universo!".

Maria Rita Kehl -  A Psicanálise e o Domíno das Paixões - Os Sentidos da Paixão; Funarte 1988

Tuesday, December 15, 2009

[...] as fantasias do início de uma relação apaixonada não concedem existência própria ao outro, que se torna um depósito das fantasias mais arcaicas, um representante da possibilidade da restauração do narcisismo ferido, um outro eu mesmo que deseja as mesmas coisas que eu e me resgata para sempre da condição da falta em que me encontro (que é a própria condição humana) para me elevar à condição dos deuses: a recuperação da onipotência.

Mas passado este momento de felicidade plena (que também pode ser de intensa angústia, já que eu já "sei", por experiência, que o outro me escapará), a paixão amorosa tem que reviver a decepção infantil do recém-nascido que perde a condição de único no desejo da mãe: o outro volta a se mover. Ganha corpo, existência concreta para além das minhas fantasias apaixonadas. O outro não pode estar sempre; o outro não pode dar tudo; e, o que é pior: eu não posso lhe dar tudo. A realidade se instala mais uma vez entre os dois-que-tentavam-ser-um e revela o que estava sendo negado: a falta; mais uma vez e sempre, a falta.

Dessa decepção revivida na paixão amorosa - uma reedição das primeiras frustrações infantis - o outro pode ganhar vida própria, independência, existência para além do meu desejo onipotente. Ou seja, dessa decepção revivida pode nascer o amor.

Ou não: [...] o mundo da desolação pela perda ou afastamento do ser amado que vive sua independência em relação a mim - o ser amado "absoluto" de quem o apaixonado passa a depender de maneira tão completa que sua falta faz do mundo um verdadeiro deserto -, este mundo pode ganhar vida, e o apaixonado pode descobrir que também tem condições de se mover dentro dele, se ele conseguir suportar a desilusão fundamental de não formar um todo indissociável com o objeto do seu amor. Do contrário ele pode preferir a morte a viver num deserto. A sua morte, ou a morte do outro. A morte pode ser a outra face do princípio do prazer, quando ele não consegue se associar ao princípio de realidade. O domínio absoluto do princípio do prazer não propicia satisfações ao desejo a não ser na fantasia; fora da fantasia o mundo é um deserto onde o desejo não consegue encontrar seus objetos.

Maria Rita Kehl - A Psicnálise e o Domínio das Paixões - Os Sentidos da Paixão - Funarte 1988

Sunday, September 20, 2009

Epígrafes de Maria Rita Kehl

- Sobre Ética e Psicanálise -


Introdução - Por Que Articular Ética e Psicanálise?

O mundo não marcha senão pelo mal-entendido.
É pelo mal-entendido universal que o mundo inteiro se
entende.
Pois se, por desgraça, os homens se compreendessem,
não poderiam jamais entender-se.

Charles Baudelaire, Meu Coração Desnudado



1. O Homem Moderno, o Desamparo e o Apelo a uma Nova Ética

[...]
E, assim, criam-se mundos
que são postos de lado,
girando, quando prontos,
presente abandonado.

Em meio, pois, a treva
e luz, calor e frio,
prossegue o nosso globo
seu giro no vazio.

Joseph Brodzky, fragmento sem título


2. A Neurose, Resposta Individual à Crise Ética da Modernidade

Ninguém nos moldará de novo em terra e barro,
ninguém animará pela palavra o nosso pó.
Ninguém.

Louvado sejas, Ninguém.
Por amor de ti queremos
florir.
Em direção
a ti.

Um Nada
fomos, somos, continuaremos
a ser, florescendo:
a rosa do Nada, a
de Ninguém.

Com
o estilete claro de alma,
o estame ermo de céu,
a corola vermelha
da purpúrea palavra que cantamos
sobre, oh, sobre
o espinho.

Paul Celan - Salmo



3. A Virada Freudiana

[...]
Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia
Cadáver adiado que procria?

Fernando Pessoa - D. Sebastião, Rei de Portugal

Flectere si nequeo superos, acherota movebo*

Virgílio, em epígrafe de A Interpretação dos Sonhos


4. A Ética da Cura e a Sublimação

Na dor eu passo a vau - charcos inteiros -
Questão de hábito.
Mas um leve esbarro de alegria
Me embaralha os pés,
Perco o equilíbrio - ébria.
Que nenhum seixo se ria -
Bebida inédita - é só isto!

Emily Dickinson


Conclusão - Humor, Poesia e Erotismo

Há cinco possibilidades. Primeira: Adão caiu.
Segunda: foi empurrado. Terceira: saltou. Quarta:
ao debruçar-se sobre o parapeito perdeu o equilíbrio. Quinta:
nada digno de nota aconteceu a Adão.

A primeira, de que caiu, é precária demais. A quarta,
medo, foi examinada e revelou-se inútil. A quinta,
de que nada aconteceu, não interessa. A solução é a alternativa:
saltou ou foi empurrado. E a diferença está apenas

na questão de saber se o demônio
age de dentro para fora ou de fora para
dentro: aí está
o verdadeiro problema teológico.

Robert Bringhurst - Ensaio sobre Adão

* Se não posso conciliar os deuses do céu, moverei os do inferno.

Monday, September 07, 2009

Metafísica Darwinista

[...] "acima do amor ao próximo está o amor ao Pai. Muito sangue de nossos semelhantes correu - na perseguição aos romanos, nas cruzadas, nas Inquisições -, em nome do amor ao Pai. O amor ao Pai está em contradição com o amor ao próximo. O mandato cristão não se sustenta como princípio norteador de uma ética para a modernidade, pois as condições de enunciação desse mandato portam uma dificuldade suplementar. Há uma contradição nos termos do apelo cristão: devo amar ao próximo para ser mais amado pelo Pai, por obediência a ele e temor ao Juízo Final, quando se decidirá, entre os muitos que foram chamados, quais serão os escolhidos. Isso equivale amar ao próximo mais do que o próximo me ama, de modo a ser escolhido para entrar no reino dos céus no lugar dele. Amar ao próximo para passá-lo para trás na preferência do Pai, o qual, por sua vez - embora supostamente ame a todos de modo igual -, já teria anunciado que não deixará de beneficiar seus prediletos. A dimensão da rivalidade (mortífera) entre irmãos está embutida nas condições da fraternidade cristã".

Maria Rita Kehl - Duas Vertentes da Crise Ética Contemporânea - Sobre Ética e Psicanálise

Sunday, September 06, 2009

The Problem We All Live With by Norman Rockwell (1894-1978)

"Todas as formas de racismo, intolerância étnica, religiosa ou nacional fundam-se na tentativa de fazer do semelhante um igual, ao preço de fazer do diferente um absoluto estranho".

In Spring 1960, Ruby Bridges was one of several African-American kindergarteners in New Orleans to take a test to determine which children would be the first to attend integrated schools. Six students were chosen; of these six, two decided to stay in their original schools, three were assigned to McDonogh Elementary school, and only Bridges was assigned to William Frantz. Her father initially was reluctant, but her mother felt strongly that the move was needed not only to give her own daughter a better education, but to "take this step forward ... for all African-American children.

Sunday, August 23, 2009

(...) Não há lugar para melancólicos e sonhadores entre os carros e os caminhões da Via Dutra. Nem entre as solicitações simultâneas do celular, do controle remoto, do mouse e das câmeras digitais - pois já se entendeu que são essas maquinetas que nos solicitam, que nos exigem que nos mantenhamos sempre ligados nelas, e não o contrário.

Escrevo propositalmente: melancólicos e sonhadores, em vez de melancólicos ou sonhadores. Meu propósito, ao associar melancolia e devaneio, é estabelecer uma continuidade entre as antigas manifestações da melancolia e essa forma de mal-estar que hoje denominamos depressões. As ruminações auto-agressivas que caracterizam a melancolia freudiana não têm a ver com a predisposição à meditação e ao devaneio dos melancólicos da Antiguidade. Penso que os herdeiros contemporâneos do lugar do sintoma social ocupado pelas melancolias até Freud (ou até Walter Benjamin) sejam os depressivos.

Desde que a melancolia freudiana passou a designar o ponto de vista psicanalítico sobre o que a psiquiatria entende por psicose maníaco-depressiva, o lugar da antiga melancolia passou a ser ocupado pelo que chamamos de depressão. Instalados em um tempo que lhes parece vazio, sob sua aparente imobilidade, os depressivos estão mais próximos de encontrar a temporalidade distendida da contemplação e do devaneio do que os neuróticos mais bem adaptados às condições que a vida social lhes impõe. O tempo vazio do depressivo recusa a urgência da vida contemporânea e remete a um outro modo de viver o tempo, que a modernidade recalcou ou, pelo menos, reprimiu.

Maria Rita Kehl - Os tempos do Outro - Tempo da consciência e tempo da memória - O Tempo e o cão: a atualidade das depressões.

Friday, August 21, 2009


1. Um homem sabe que é um homem.
2. Os homens se reconhecem entre eles por serem homens.
3. Eu afirmo que sou um homem, por temor de que os homens me convençam de que não sou um homem.

Resumido por Jacques Lacan em El Tiempo Lógico.

Maria Rita Kehl - O Tempo e o cão.

Friday, August 14, 2009


Maria Rita Kehl explica o post Lacan explica

(...) É possível que, no atual estágio do capitalismo, a condição de desamparo do sujeito moderno ante o descentramento e a multiplicação das formações imaginárias que, dessa forma, impossibilitam uma representação estável e socialmente compartilhada do Outro esteja em vias de superação. Se essa hipótese se confirma, a (re)unificação dos enunciados do Outro vem sendo operada, pelo menos em parte, pela ação onipresente da indústria do espetáculo e pela repetição coerente de suas mensagens, que aparentemente se diversificam para repetir sempre o mesmo mandato. A multiplicidade de discursos, de saberes e de valores que caracterizaram a modernidade vem dando lugar a uma nova forma de discurso único, fundado sobre razões de mercado, muito mais eficaz do que a dominação da Igreja na Idade Média - já que a norma contemporânea se impõe pela sedução, não pela interdição.

Os mandatos que caracterizam o "discurso do Outro" na vida contemporânea advêm de formações do imaginário produzidas e difundidas pela indústria das chamadas comunicações ou, como parece mais apropriado nomeá-las a partir das teses de Debord, indústria do espetáculo. O avanço das técnicas de sondagem das "motivações inconscientes" do chamado público consumidor joga um papel decisivo nesse quadro, o que torna possível afirmar que uma série de enunciados que dizem respeito às representações recalcadas deixaram de ser inconscientes. Eles participam da constituição da realidade social através de seus principais arautos: as mensagens publicitárias emitidas não apenas pelos outdoors, o rádio e a televisão, mas também pela internet, pelos aparelhos de celular, ou embutidos na forma de merchandising na teledramaturgia e no cinema, assim como em algumas notícias dos telejornais.

Vale ressaltar que, em Guy Debord, a idéia de "sociedade do espetáculo" não se reduz à mera constatação de que somos permanentemente assediados por uma abundante oferta de imagens. O conceito de espetáculo, em Debord, não se resume a "um conjunto de imagens, mas [é] uma relação social entre indivídous, mediada por imagens". Isso equivale a dizer que, na sociedade do espetáculo, as imagens, em sua forma mercadoria, é que organizam prioritariamente as condições do laço social. Que o inconsciente recalcado, parte necessária dessa relação social, seja incluído entre os termos dessa mediação por imagens, é apenas uma consequência do desenvolvimento da técnica. As imagens, por sua própria condição, se oferecem como resposta ao enigma do inconsciente pela via da produção de sentido, que é a mesma via da produção de identificações. Dessa forma, o movimento errático do desejo cede lugar ao gozo promovido pelo encontro com a imagem que encobre a falta do sujeito.

(...) Não se trata de ir tão longe a ponto de supor o apagamento da dimensão singular das formações do inconsciente; mas sim que a consistência com que o imaginário social responde às representações recalcadas do desejo favorece a co-validação social do fantasma [aquela "dimensão singular"], o que implica a possibilidade de as respostas fantasmáticas ao enigma do desejo do Outro já não precisarem forçosamente ser tomadas a cargo dos sujeitos, em sua singularidade. A face imaginária do Outro, na vida contemporânea, vem sendo atualizada continuamente nos termos da indústria espetacular através de seu setor de ponta, a publicidade. Por ela, a demanda do Outro vem coincidir com os mais primitivos mandatos do supereu, prometendo atender aos anseios recalcados ao longo da travessia edípica: anseios de abrir mão da via do desejo em troca de uma oferta - imaginária - de gozo. Poucos resistem à aparente segurança dessa troca: os otários e os sábios talvez, além dos depressivos que a recusam sem saber, necessariamente, o que fazem. A angústia, por sua vez, é o preço inevitável a ser pago por essa perspectiva imaginária de supressão da falta.

Maria Rita Kehl - O Tempo e o cão: a atualidade das depressões

Sunday, August 09, 2009

A montagem depressiva, assim, tem como premissa a onipresença do gozo do Outro, que sonega ao sujeito o tempo necessário à substituição metafórica ou metonímica do objeto ausente.

Jurandir Freire Costa - resenha a O Tempo e o cão, de Maria Rita Kehl.

Entrevista: Maria Rita Kehl.

Livro O Tempo e o cão: a atualidade das depressões

1) Primeiro, uma questão de método. Me refiro à sua maneira eclética de mesclar conceitos psicanalíticos (em especial de Lacan) com idéias da filosofia, principalmente dos frankfurtianos, a partir de Benjamin. Como chegou a essa síntese fértil para abordar um tema específico como o das depressões?

Esta primeira pergunta me é particularmente interessante. Na verdade o que faço não é nada novo. O próprio pensamento de Lacan, muitíssimo mais abrangente que o meu, dialoga constantemente com pensadores de outras áreas, tanto os contemporâneos dele quanto os clássicos. Os frankfurtianos, por sua vez, incluem a psicanálise como uma das ferramentas da teoria crítica – entre eles, penso que quem melhor compreendeu Freud foi Walter Benjamin. Hoje quem faz isso com mais ousadia, a meu ver, é o Savoj Zizek; no Brasil, posso citar rapidamente Paulo Arantes e Vladimir Safatle, entre outros, de modo que me considero muito bem acompanhada.

2) O título do livro, O Tempo e o cão, refere-se diretamente a uma experiência, que imagino um tanto traumática, de atropelar um cachorro na estrada. Gostaria que explicasse como elaborou esse incidente no sentido de uma percepção das relações entre a depressão e a temporalidade.

Foi um acidente de pequena importância até mesmo para o cão, que consegui não matar por sorte. Por pouco, a velocidade normal do tráfego na via Dutra, entre caminhões e ônibus, me obrigaria a passar por cima dele. Se em vez de um cão fosse uma criança seria impensável não frear, mas teria provocado um acidente de proporções tremendas. Qual a novidade disso? Sabemos que a velocidade regular de nossa vida cotidiana é brutal; estamos habituados a ela. Mas o incidente na estrada me fez pensar nos efeitos subjetivos da aceleração da vida contemporânea. Na época andava lendo Benjamin, para quem a atividade contínua de “aparar os choques” da vida moderna (repare que ele escrevia sobre Paris no final do XIX) é incompatível com a dimensão da experiência e está entre as causas do que ele chama de melancolia. Comecei a pensar no livro por aí.

3) São interessantes as suas objeções sobre o uso intensivo dos medicamentos no tratamento psiquiátrico das depressões. A doutrina da “eficácia contemporânea” passa necessariamente pela medicalização desse sintoma?

Eu não condeno em bloco o uso dos antidepressivos. Sei que muitas pessoas dependem de medicação até para sair de casa e chegar ao analista. Os antidepressivos podem salvar vidas. Minha crítica refere-se ao uso indiscriminado de medicamento como tentativa de apagamento do sujeito do inconsciente, segundo a lógica de que o valor da vida se mede pela eficiência. Os efeitos dessa aliança sobre o modo como as pessoas tentam suprimir as próprias crises normais da existência com medicamentos, a meu ver, incluem-se entre as causas do aumento das depressões no século XXI.

4) De que maneira isso também pode ser interpretado como uma conivência entre a psiquiatria e o interesse econômico dos laboratórios?

Este é um fato objetivo. A pressão dos laboratórios sobre os psiquiatras, a presença maciça das grandes marcas de medicamentos a financiar congressos de psiquiatria, o prestígio dos medicamentos de última geração, em relação aos quais os psiquiatras temem ficar desatualizados e perder clientela, etc. A psiquiatria hoje está tão atrelada às descobertas da indústria farmacêutica que, de acordo com alguns críticos da área, a produção de um pensamento teórico sobre as doenças mentais reduziu-se a zero. Virou uma “psiquiatria veterinária”, na expressão do psicanalista André Green. Mas há importantes exceções a este estado de coisas; não são poucos os psiquiatras que indicam que a medicação deva ser acompanhada de alguma forma de terapia da palavra.

5) De qualquer forma, o que parece contar mesmo é a “aceleração do tempo” contemporâneo. Ponho entre aspas porque o tempo não acelera e sim a nossa percepção dele. Você associa esse fenômeno às novas tecnologias, ao chamado “turbocapitalismo”? Estes fenômenos predispõem à depressão?

Você tem toda a razão, não é o tempo que acelera, somos nós. Aliás, o que é o tempo? A leitura de Henry Bergson me foi de grande valia para pensar nessa questão. A impressão que se tem, desde a revolução industrial, é que o tempo em sua dimensão cronológica vem se acelerando de uma forma exasperante. Quanto mais tentamos aproveitar o tempo, quanto mais dispomos das horas e dos dias segundo a convicção de que “tempo é dinheiro”, mais sofremos do sentimento de desperdiçar a vida. Você já reparou que depois de uma semana muito corrida, com a agenda repleta de compromissos, tem-se a impressão de que o tempo voou e nada aconteceu? O que me preocupa é que na tentativa de fazer render o tempo desde o começo da vida, hoje, os pais de classe média e alta começam a educar seus filhos segundo o mesmo princípio da agenda cheia. Algumas dessas crianças cheias de compromissos tornam-se insatisfeitas, dependentes de estimulação externa, incapazes de devanear e inventar brincadeiras quando estão desocupadas.

6) Achei interessante (e alarmante) a questão das mães ansiosas, que não conseguem dar aos filhos o seu devido tempo e mantêm uma expectativa alta em seu desempenho. Em que medida isso afeta a criança e a predispõe à depressão? A posição (enfraquecida) dos pais também chama a atenção. De que maneira a família nuclear parece se desagregar atualmente por força das exigências sociais crescentes?

Essa pergunta são duas, certo? A ansiedade materna, bem antes de se manifestar como expectativa pelo desempenho da criança, tem a ver com a pressa em mantê-la sempre satisfeita. Mas a melhor forma de amar uma criança não é impedir que ela conheça a falta: a falta é constitutiva do aparelho psíquico. Ela não pode faltar! A criança começa a virar gente (sujeito) ao inventar recursos simbólicos para lidar com o vazio e a insatisfação. Ora, a sociedade em que vivemos é regida por essa espécie de imperativo kantiano às avessas: goze. Que dizer da obrigatoriedade do gozo? Ela só não é mais danosa porque é impossível de cumprir. Aqui entra sua segunda questão: os chamados pais enfraquecidos são exatamente os que vivem em dívida com a satisfação de seus filhos. Difícil encontrar algum ideal tão inquestionável quanto o prazer. Mesmo os pais que não desconhecem a função de colocar limites aos excessos de suas crianças, não encontram outros ideais para transmitir a elas.

7) De certa forma, a modernidade pode ser vista como uma patologia do tempo, que atingiu um ponto insuportável de aceleração. Acredita que esse fator pode produzir outros sintomas psíquicos além da depressão?

Certamente sim: as drogadições, por exemplo, não seriam sintomas da urgência em gozar que comanda a vida contemporânea? E a violência banalizada nas grandes cidades, não seria um sinal do encolhimento da capacidade de negociar conflitos em função dessa mesma urgência?

8) Você acredita que um estudo psicanalítico desse tipo funciona também como uma crítica ao capitalismo contemporâneo, ao consumismo, à reificação crescente, etc?

Espero que sim, ainda que as críticas jamais tenham tido o poder de derrubar o capitalismo. O que o derrubará, algum dia, serão as condições materiais concretas produzidas por suas próprias contradições. Nossa: agora falei como uma cartilha. Mas penso que a produção do pensamento crítico é um importante dispositivo contra o conformismo, o sentimento fatalista de que está “tudo dominado”, de que o capitalismo conseguiu anular todas as visões de mundo diferentes dele. A crítica é um “veneno antimelancolia”, no sentido benjaminiano da “indolência do coração” que caracteriza a atitude fatalista.

9) Já detectou em sua clínica alguma repercussão da atual crise econômica mundial? Acha que ela contribuirá para produzir mais depressivos ou ao contrário, pode produzir uma conscientização crítica do modelo atual?

No meu consultório, casualmente, não. Pode ser questão de tempo. Quanto à crise atual provocar ainda mais depressões, respondo que sim, no que concerne ao desemprego, ao desamparo, à desesperança dos que são chutados para fora do sistema produtivo como seres supérfluos. E por outro lado, não: o abalo do pensamento único que correspondia ao triunfo da concentração do capital financeiro poderá ter interessantes efeitos antidepressivos. Somos novamente convocados a pensar, fazer projetos coletivos, resgatar esperanças em outra ordem mais justa que esta que causou o desastre. O singular, o modesto, o pequeno, poderão retomar seu trabalho nas brechas do grandioso, do monumental, do “dinheiro que apenas se olha” (Débord). Os movimentos sociais poderão se revitalizar; as pessoas poderão reinventar a ação política e deixar de se sentir supérfluas. Quem sabe o fatalismo melancólico deixe de dominar a subjetividade?

10) Você acha que a proliferação de manuais de auto-ajuda, de receitas de felicidade, tem algo a ver com a “felicidade obrigatória” que essa sociedade do desempenho nos prescreve?

Concordo com você. Mas respeito aqueles que, na falta de outros recursos, buscam nesses livros caminhos para sair da depressão. Ocorre que o ideal de felicidade, que no século XVIII nos libertou do conformismo religioso, hoje se tornou opressivo. Virou uma sub-ideologia da sociedade de consumo. Ora, a felicidade não é uma mercadoria que se possua. Não é uma conquista do ego; ela não para quieta, não nos garante nada. As pessoas sentem-se culpadas por não possuir a tal felicidade, o que os torna ainda mais infelizes. Prefiro, com Oswald de Andrade, deixar de lado a felicidade e apostar na prova dos nove da alegria.

11) Por fim, como você vê a possibilidade de diminuir o sofrimento do depressivo, sem alterar as condições sociais que com ele se relacionam?

Você me permite esclarecer um ponto importante. A idéia de que a depressão seja um sintoma social não significa que os depressivos devam ser tratados como casos sociológicos. Os depressivos devem ser escutados, como todos os que buscam a psicanálise, um a um. Assim, em sua singularidade irredutível, deve ser conduzida a análise dos depressivos – que passa, necessariamente, pela reversão da forma como cada um deles se deixou alienar (como todo sujeito, aliás) pelas formações hegemônicas do imaginário social.

Obrigada pelas excelentes perguntas.

http://www.mariaritakehl.psc.br/

Wednesday, August 05, 2009

O que decide, durante o atravessamento do complexo de Édipo, a saída pela depressão (crônica) para alguns sujeitos neuróticos? O que foi que o pequeno sujeito deixou de levar a cabo, em sua constituição, para ter se tornado, antes de um histérico ou de um obssessivo, um depressivo?

Entendo que a posição do depressivo decorre de uma escolha, no sentido freudiano de "escolha das neuroses", que se dá no momento em que o pai imaginário se apresenta como rival da criança, no segundo tempo do atravessamento do complexo de Édipo. A escolha precoce do futuro depressivo seria a de se retirar do campo da rivalidade fálica: em vez de disputar o falo com o pai (e perder para ele...), o depressivo defende-se mal da castração - a qual, nesse ponto da constituição do sujeito, já terá ocorrido, a partir do momento em que o discurso da mãe indica à criança o lugar que o pai ocupa diante do desejo dela. Ocorre que o futuro depressivo se detém a meio caminho do percurso em que os histéricos e obssessivos definem sua posição fantasmática: ao invés de enfrentar a rivalidade fálica, na tentativa de reverter os efeitos da perda que já ocorreu, os depressivos "escolhem" permanecer na condição de castrados. Isso não significa que tenham simbolizado a castração. Tampouco se trata das versões imaginárias da castração entendida como privação ou frustração, e sim de abster-se da reivindicação fálica, colocando-se sob o abrigo da castração infantil. Isso não significa que não existam paixões de rivalidade nos depressivos. Se eles recuam, é porque não admitem o risco da derrota nem a possibilidade de um segundo lugar. Ao colocar-se ante a exigência de "tudo ou nada", acabam por instalar-se do lado do nada.

O depressivo não enfrenta o pai. Sua estratégia é oferecer-se como objeto inofensivo, ou indefeso, à proteção da mãe. O gozo dessa posição protegida custa ao sujeito o preço da impotência, do abatimento e da inapetência para os desafios que a vida virá lhe apresentar. Além disso, existe um engodo nesse ato de oferecer-se como indefeso e dependente da proteção do Outro: ao apresentar-se como alheio aos enfrentamentos com o falo, o depressivo não desenvolve recursos para se proteger da ameaça de ser tomado como objeto passivo da satisfação de uma mãe que se compraz com o exercício de sua potência diante da criança fragilizada. Esse lugar, de objeto passivo dos cuidados maternos, não equivale ao lugar do pai como aquele que faz a lei para o desejo da mãe no plano erótico; o depressivo, insisto, é um sujeito castrado.

Maria Rita Kehl - Depressão, temporalidade, sintoma social - O Tempo e o cão: a atualidade das depressões

Sunday, July 12, 2009

Espetáculo da depressão

JURANDIR FREIRE COSTA

Maria Rita Kehl analisa os imperativos do consumo, que negam ao sujeito o tempo necessário para se constituir

"O Tempo e o Cão - A Atualidade das Depressões", de Maria Rita Kehl, é um livro empolgante. A leitura do trabalho é extremamente agradável, dada a qualidade literária da escrita da autora.

Não se engane, entretanto, o leitor. A leveza do que é escrito é inversamente proporcional à densidade do que é dito.

As numerosas referências conceituais mobilizadas e as hipóteses sustentadas exigem atenção e tempo para compreender. Portanto, qualquer resenha - inclusive esta - pode apenas fazer reverberar alguns aspectos da riqueza do tema abordado. É pouco, mas é o possível.

Maria Rita retomou o problema da depressão contemporânea pelo viés mais árduo: fazer [Jacques] Lacan dialogar com [Donald] Winnicott - dois herdeiros de Freud supostamente avessos um ao outro - e trazer a cultura para o interior da subjetividade. Como instrumento de análise, uma distinção nosológica e três grandes noções operativas: a distinção entre melancolia e depressão e as noções de gozo, tempo e vazio.

A descrição da melancolia, diz ela, permanece marcada pela tese freudiana da perda do objeto e do ataque ao próprio Eu, identificado em parte com o objeto perdido amado e odiado. Os sintomas melancólicos seriam, de um lado, a expressão da agressão ao Outro internalizado e, de outro, a resposta sintomática ao desinteresse do Outro pelo sujeito.

O fantasiado desinteresse é interpretado como sinal da vacuidade ou nulidade libidinal do indivíduo, donde a contrapartida do desinvestimento no mundo. O correlato cultural dessa organização psíquica seria o ethos da modernidade e da civilização burguesa oitocentista. A partir dos ensaios de Walter Benjamin sobre o barroco e sobre o mundo oitocentista de [Charles] Baudelaire, Maria Rita busca mostrar como a ordem socioeconômica reduplica, no nível simbólico, a vivência de superfluidade melancólica potencialmente inscrita em todos nós.

A depressão contemporânea é outra coisa. O deprimido, nesse caso, não sofre pela omissão do Outro, mas por sua intrusão. O protótipo desse tipo de trauma é a situação da mãe ansiosa ou obsessiva, que afoga o filho em cuidados constantes e excessivos.

Como consequência, a criança não pode experimentar a falta - desilusão, na terminologia de Winnicott - que o leva a recriar na fantasia o objeto da carência, condição "sine qua non" da existência de seu desejo. Assim, onde o desejo deveria advir, surge um arremedo de resistência ao gozo do Outro na forma passiva e reativa do esvaziamento de si. Essa predisposição se repete na etapa edipiana de rivalidade com o pai e redunda no retraimento do sujeito diante da vida pública ou privada.

A montagem depressiva, assim, tem como premissa a onipresença do gozo do Outro, que sonega ao sujeito o tempo necessário à substituição metafórica ou metonímica do objeto ausente.

Tempo angustiante

De forma breve, faltou desilusão no passado; sobra desesperança no presente. Sem tempo para desejar, o sujeito se rende à louca injunção do supereu lacaniano: "Goza! Não goza!". Goza para não desejar; não goza para que o Outro goze. Essa é a alavanca que Maria Rita aciona para passar do registro pessoal ao registro cultural, pois os filhos do Outro invasivo são a versão psicanalítica do que [o pensador e cineasta francês] Guy Debord chamou de "filhos do espetáculo".

Na sociedade do espetáculo, o Outro da publicidade também assedia o sujeito com imagens da felicidade do consumo, sem deixar-lhe tempo para elaborar as perdas ou fruir os ganhos da vida. Mães atribuladas, pais privados de autoridade simbólica, sujeitos mesmerizados pelas promessas do estilo de vida drogado, todos vivem angustiadamente correndo contra o tempo ou paralisados na atemporalidade da depressão.

Em suma e em bom português, o tempo depressivo do espetáculo é, verdadeiramente, um tempo de cão. Como o tempo do filme "Corra, Lola, Corra" ou o de Jack Bauer [herói de série televisiva americana] e suas 24 horas. Contra isso, lembra Maria Rita, tempo é memória; memória é desejo e desejo é sujeito. Nem derrotista, nem ufanista, ela afirma que recobrar o direito ao tempo é restaurar a dignidade do desejo e a alegria de sentir que a vida vale a pena ser vivida. Pode-se pedir mais de uma psicanalista?

Jurandir Freire Costa é psicanalista e professor na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autor de "História da Psiquiatria no Brasil" (ed. Garamond), entre outros livros.

O TEMPO E O CÃO - Autora: Maria Rita Kehl - Editora: Boitempo
Quanto: R$ 39 (304 págs.)