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Thursday, July 07, 2011

A reconstrução do tema dos direitos humanos elaborada com base em desenvolvimento ou sugestões contidas na obra de Hannah Arendt não leva a um sistema. Permite, no entanto, identificar problemas que são importantes e se tornaram relevantes em virtude da ruptura totalitária e dos seus desdobramentos. A identificação de tais problemas resulta de um juízo, uma faculdade da mente com que Hannah Arendt se preocupou – é, na verdade, um tema recorrente de sua reflexão – mas sobre a qual não chegou a escrever, e que seria o fecho de The Life of the Mind, seu último livro, publicado postumamente.

O juízo, entendido kantianamente como a faculdade de pensar o particular contido no geral, é um dos temas fundamentais do Direito, por ser uma das características da experiência jurídica moderna o processo através do qual o caso concreto é qualificado e subsumido pela norma geral. A lógica do razoável no pensamento jurídico explorou amplamente, em matéria de hermenêutica jurídica, as dificuldades da subsunção. Entretanto, sempre partiu do pressuposto de existir um geral, ao qual se possa razoavelmente recorrer por meio de interpretação. 

Precisamente porque articulou [...] a ruptura que dissolveu o geral, Hannah Arendt se deu conta da inexistência de um sistema de universais para aquilo que desborda da lógica do razoável. Por isso, toda a sua reflexão tem como horizonte o problema de como julgar um particular, para o qual não existe previamente o dado de um universal. Foi por essa razão que, diante das dificuldades do juízo determinante em situações-limite provenientes da impossibilidade de se aplicar uma regra universal de entendimento a um caso particular, ela explorou o campo dos juízos reflexivos e raciocinantes. Estes entreabrem a faculdade de pensar o particular, através de sua validade exemplar, que pode ser realçada e comunicada. 

O juízo reflexivo e raciocinante – que Kant examina na Crítica do Juízo – na análise da estética foi o ponto de partida heurístico de Hannah Arendt para unir a teoria à prática na sua proposta de reconstrução, como se vislumbra nas suas Lectures on Kant’s Political Philosophy, também publicadas postumamente sob os cuidados de Ronald Beiner. 

Tal proposta harmoniza-se com a sua visão [...] perante um mundo percebido centrifugamente, pois a importância dos juízos reflexivos e raciocinantes deriva da relação problemática entre o universal e o particular que a ruptura tornou evidente. Em síntese: precisamente porque o juízo, no mundo contemporâneo, não pode ser reduzido a uma fórmula inequívoca de subsunção é que se pode falar no seu peso e na sua responsabilidade. 

Hannah Arendt assumiu, com a sua obra, o ônus e a responsabilidade de juízos reflexivos e raciocinantes, que são esforços de mediação entre o particular e um universal fugidio. Ela nos convida a fazer a mesma coisa. Não é fácil aceitar tal convite, inclusive por força das limitações teóricas e práticas ao que se pode fazer com as indicações por ela deixadas a propósito do juízo. Estas indicações, no entanto, são suficientes para fundamentar por que uma reconstrução pós-totalitarismo do tema dos direitos humanos inspirada em Hannah Arendt só poderia ser tópica – e não sistemática –, mas que existe indiscutível validade nos problemas investigados com base em sua reflexão. 

Com efeito, e resumindo para a seguir concluir, quais são os temas de direitos humanos discutidos neste texto*, voltados para impedir a reemergência de um novo estado totalitário de natureza, e heuristicamente inspirados por um diálogo livre com o pensamento de Hannah Arendt? São eles: 

• a cidadania concebida com o “direito a ter direitos”, pois sem ela não se trabalha a igualdade que requer o acesso ao espaço público, pois os direitos – todos os direitos – não são dados (physei) mas construídos (nomoi) no âmbito de uma comunidade política; 

• a repressão ao genocídio concebido como um crime contra a humanidade e fundamentado na tutela da condição humana da pluralidade e da diversidade que o genocídio visa destruir;

• o estudo da obrigação política em conexão: com o direito de associação como a base do agir conjunto e condição de possibilidade da geração de poder; com a dimensão de autoridade e legitimidade da fundação do nós de uma comunidade política e a sua relação com o direito à autodeterminação dos povos; com o poder da promessa e conseqüentemente com o pacta sunt servanda enquanto base da obediência ao Direito; com a resistência à opressão, através da desobediência civil, que em situações-limite pode resgatar a obrigação política da destrutividade da violência; 

• o direito à informação, como condição essencial para a manutenção de um espaço público democrático, e o direito à intimidade, indispensável para a preservação do calor da vida humana na esfera privada. 

Todos estes temas são, penso eu, uma eloqüente e pertinente indicação da capacidade arendtiana de indicar caminhos teóricos a partir de problemas concretos. Daí os fermenta cognitionis dos tópicos abordados, derivados da experiência de ruptura, que revelam, pela sua validade exemplar, uma generalidade que de outra forma não poderia ser percebida.

ESTUDOS AVANÇADOS 11 (30), 1997

Celso Lafer, professor titular de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP, é chefe da missão do Brasil junto à ONU em Genebra e ex-ministro das Relações Exteriores do Brasil.


* A Reconstrução dos direitos humanos: a contribuição de Hannah Arendt. Hannah Arendt: Pensamento, Persuasão e Poder

Sunday, June 05, 2011

Reflexos de uma vocação libertária

Lançado em 1963, Sobre a Revolução, de Hannah Arendt, que ganha nova edição no País, permanece atual ao tratar da busca da felicidade pública por meio do fim da opressão - algo verificado, por exemplo, na primavera árabe de 2011

Celso Lafer - O Estado de S.Paulo

O que é uma Revolução? O que distingue um revolucionário de um revoltado - que é um insatisfeito - e de um rebelde - que se levanta contra a autoridade? Por que um golpe de Estado, que provoca uma mudança de governo e uma ruptura da ordem jurídica, não é a expressão de uma Revolução? O que separa um reformista de um revolucionário? Por que uma mudança radical como a representada pela Revolução Industrial, que transformou a economia, ou a Revolução Feminina, que alterou os costumes da sociedade, não tem a aura da Revolução Francesa ou da Revolução Russa que foram precedidas pela violência de um movimento revolucionário?

Estas perguntas permanecem na agenda da discussão pública. Delas trata, esclarecendo, Hannah Arendt em Sobre a Revolução. Daí uma razão do interesse do seu livro que, em nova e cuidadosa tradução para o português de Denise Bottmann, acaba de ser publicado pela Companhia das Letras.

A primeira edição do livro, publicada pela Viking Press de Nova York, é de 1963; a segunda, revista pela autora, é de 1965. A edição de 2006, inserida nos clássicos da Penguin, contém uma importante apresentação de Jonathan Schell que integra, igualmente, esta edição da Companhia das Letras. Schell destaca a atualidade do livro sublinhando a pertinência da reflexão arendtiana para a análise da onda das revoluções democráticas posteriores à redação do livro - da Revolução dos Cravos, de Portugal, às do Leste Europeu, nos processos que levaram à derrocada da União Soviética. A elas pode-se acrescentar as da primavera árabe de 2011. Por isso, Sobre a Revolução tem uma das características de um livro "clássico" - e como tal foi qualificado pela Penguin. Com efeito, continua propiciando caminhos para o entendimento do mundo atual, não obstante ter sido concebido e redigido no distinto contexto histórico da década de 1960, caracterizado pelo confronto entre os EUA - herdeiros do legado da Revolução Americana - e a URSS - herdeira, na época, do legado da Revolução Russa.

Hannah Arendt abre o seu livro explicando que a guerra tem em comum com a revolução a presença da violência e, portanto, o problema da sua justificativa. Esta, no caso de uma Revolução, diz respeito à possibilidade de um novo início, fruto de uma aspiração trazida pelo potencial da convergência entre libertação e liberdade. Revolução não se confunde, portanto, como ela diz, com rebelião e revolta que não apontam para a instauração de uma nova liberdade. Tampouco se identifica com o golpe de Estado, que não carrega o pathos da novidade, tem a sua origem no palácio e não na praça, que é o espaço político do exercício da liberdade motivador da Revolução. A Revolução não se assemelha ao reformismo nem às mudanças substantivas mas aluvionais como as trazidas pela Revolução Industrial ou pela Revolução Feminina, pois tem como nota distintiva não apenas a mudança mas o movimento da tempestade revolucionária, de que falava Robespierre.

A Revolução vem à tona por meio da violência. Esta não a explica, assim como a mudança que não dá conta do seu significado. O fenômeno da Revolução, aponta Hannah Arendt, tem como característica "quando a mudança ocorre no sentido de criar um novo início; quando a violência é empregada para constituir uma forma de governo totalmente diferente e para gerar a formação de um novo corpo político", e "quando a libertação da opressão visa pelo menos à constituição da liberdade".

Foi a aura da Revolução Francesa que incendiou o mundo, aponta Hannah Arendt ao propor a "ideia a realizar" da coincidência entre liberdade e um novo início. Não teve precedentes históricos, pois não foi entendida e historicamente recepcionada como uma indiferenciada expressão da mudança política mas sim como algo radicalmente novo: a fundação do novus ordo saeclorum, instaurador da legitimidade do poder. O impacto da Revolução Francesa, no campo das ideias, trouxe um novo conceito de História na filosofia de Hegel. Este conceito, por sua vez, exerceu uma influência direta sobre os revolucionários dos séculos 19 e 20, que absorveram o conceito nas lições de Marx e que passaram a enxergar a Revolução com base nas categorias hegelianas, como um libertário desenlace histórico da convergência entre necessidade e violência.

O tema recorrente do livro é uma grande reflexão sobre, de um lado, a validade das aspirações de liberdade que motivaram, no mundo moderno, o fenômeno revolucionário e, de outro, as razões dos descaminhos das Revoluções. Estes descaminhos integram o tema arendtiano da ruptura - vale dizer o das descontinuidades entre o passado e o futuro, assinaladores dos desdobramentos da modernidade - pois não trouxeram a constituição da liberdade. Explicam, ao mesmo tempo, a relevância do que Hannah Arendt considera o tesouro perdido da tradição revolucionária - a da autogestão dos townhalls, dos conselhos, dos Räte, dos sovietes - pela qual, com sua vocação libertária e empenho na construção de uma comunidade política criativa e criadora, tinha apreço e afinidade

Hannah Arendt traz à colação, neste livro, a importância da Revolução Americana. Destaca que o espírito da Revolução Americana não teve o mesmo impacto no imaginário político que caracterizou a Revolução Francesa, mas realça tanto o significado desta experiência na criação de uma nova ordem quanto à densidade das teorias políticas dos seus pais fundadores, que estão na origem da República norte-americana. Esta não nasceu de uma necessidade histórica nem de um desenvolvimento orgânico, mas "de um ato deliberado empenhado na fundação da liberdade". Por isso as reflexões e as ações de John Adams, Jefferson, Hamilton, Madison ecoam nas páginas deste livro assim como as de Robespierre, Saint-Just, Condorcet, Marx e Lenin. A comparação e o contraste entre as Revoluções Americana e a Francesa tem como horizonte a preocupação arendtiana de examinar as condições da possibilidade de um mundo comum, livre da opressão e ensejador da liberdade política de participação no governo e nos assuntos públicos.

O pensamento de Hannah Arendt é denso e abrangente. Daí os riscos da simplificação da sua análise. Ciente destes riscos diria que o fulcro de Sobre a Revolução é a tese de que a busca da felicidade pública (à que não têm acesso os Homens em Tempos Sombrios para os quais o espaço público desapareceu ou encolheu) através da liberação da opressão - econômica, social, política, colonial - não leva, necessária ou automaticamente, à liberdade. Esta requer instituições políticas apropriadas, a constitutio libertatis. Sem estas instituições não se efetiva a motivação revolucionária de uma nova ordem que assegure a permanência do espaço público para o exercício da liberdade. Daí a especificidade e a autonomia da política, que não se reduz à questão social e que Hannah Arendt ilumina no seu livro através da dicotomia liberação da opressão/construção da liberdade.

Na discussão da criação de instituições políticas, Hannah Arendt elaborou, com muito engenho, o significado fundacional do poder constituinte originário e explora o papel da Constituição como a convenção que enseja a gramática da ação e a sintaxe do poder. Na análise da experiência da Revolução Americana e dos desdobramentos no tempo de sua construção institucional chama atenção para o vínculo virtuoso entre República e Federação e mostra o significado da Suprema Corte e do Senado como instâncias de autoridade distintas do exercício da ação conjunta do poder.

Tanto no mando quanto no desmando, na política sempre ocorre o enlace, entre as forças impessoais e históricas e o bom e o mau das paixões e dos sentimentos humanos. Numa Revolução, que é uma situação-limite, este enlace adquire uma intensidade própria, à qual Hannah Arendt dedica páginas de grande acuidade.

No trato das motivações que levam aos movimentos revolucionários, destaca os efeitos da hipocrisia dos governantes de regimes corruptos e prepotentes que instiga a violência dos governados. Na análise do que leva aos descaminhos revolucionários, realça a obsessão jacobina com a pureza da virtude que induz o terror revolucionário e destaca os riscos do voluntarismo na política que não leva em conta a pluralidade e a diversidade da condição humana.

Em Sobre a Revolução Hannah Arendt discute os equívocos da piedade e da compaixão promovidos pela contemplação da miséria dos deserdados. A compaixão e a piedade são incapazes de argumentação. Por isso, não dizem respeito à política e a sua intrusão neste âmbito acaba levando à destrutividade da violência. A compaixão e a piedade são sentimentos. Não são um princípio da ação como a solidariedade, que pode orientar o juízo político.

O bom e o mau que caracteriza os seres humanos - da generosidade ao ressentimento - estão presentes na vida política. Na análise desta dimensão da política, Hannah Arendt com frequência valeu-se, na sua obra, da literatura que nos dá acesso, como ela dizia citando Shakespeare, "às trevas do coração humano". Do mal absoluto na política ela tratou em Origens do Totalitarismo e em Eichmann em Jerusalém. Em Sobre a Revolução, avaliou as consequências da bondade absoluta. Instigada pela leitura de O Grande Inquisidor de Dostoievski e do Billy Budd de Melville, discute os riscos para a política da bondade absoluta - a bondade além da virtude e o mal além do vício - capaz de buscar impor, pelo terror, a virtude revolucionária. Mostra, assim, como é fundamental, na discussão do fenômeno e da motivação revolucionária, a percepção da atuação concreta dos atores políticos que os ideólogos, com as suas paixões e sentimentos e as ideologias, nas suas abstrações, não alcançam.

CELSO LAFER É PROFESSOR TITULAR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS E DA ABL. PRESIDENTE DA FAPESP, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES DO GOVERNO FERNANDO HENRIQUE