Manual do self-made myth
Augusto de Campos - um exemplo de modéstia
Pergunta deste autor: alguém já viu Drummond, Bandeira ou João Cabral se expressando nestes termos?
1.
[...] Desacostumada com traduções artísticas, muita gente me acusou, durante a minha carreira literária, de só dar valor aos problemas estéticos. Realmente, mas transponho para as traduções a consideração mais genérica de Pound: “a técnica é o teste da sinceridade”. Se uma tradução não merece uma boa técnica, é porque ela é de valor inferior. Mas sempre acreditei, sem ser acreditado, que tradução é uma questão de forma & alma.
[...] até professores universitários não passam no teste da métrica. Foi uma tradição poética que se perdeu nas gerações mais novas e que, paradoxalmente, “os concretistas” Décio, Haroldo e eu, desde o início, dominamos.
2.
Era preciso reabilitar e fazer conhecer de verdade Mallarmé, os Cantos de Pound, o Finnegans Wake de Joyce, os poemas mais radicais de Cummings. Devotamo-nos a isso conscientemente, com a idéia poundiana da crítica-via-tradução, além de enfatizar esses grandes criadores em nossos artigos e manifestos. Isso foi imprescindível até para o entendimento da virada-de-mesa que estávamos tentando dar na poesia brasileira. Fazia-se imprescindível encontrar um “paideuma” – um elenco de autores básicos para que se pudesse regenerar a linguagem poética.
[...] os poetas franceses da badalada revista Change só vieram a se dar conta da importância do Lance de Dados em fins dos anos sessenta, mais de dez anos depois de nós. Mesmo assim, quem se debruçar sobre as nossas primeiras traduções lá encontrará, entre outras, as de Villon (na estupenda e irreverente tradução que Décio fez da Balada da Gorda Margô”), Donne, Marvel, Marino, Ungaretti, Wallace Stevens e muitos outros.
[...] Depois dessa primeira fase do movimento, restabelecido o “equilíbrio ecológico” da recepção dos “inventors” da poesia do nosso tempo, fomos abrindo ainda mais o leque.
3.
A verdade é que, desde a primeira hora, as nossas traduções foram muito mais longe do que se pensa, e com o tempo, mais longe ainda, embora sempre mantendo a marca de antitradição das “transcriações”. Um crítico afirmou que nós só traduzíamos poetas que interessavam à defesa do concretismo. Sentimo-nos honrados. Como se Dante, Shakespeare e Goethe houvessem sido traduzidos com esse objetivo. Não é que a afirmação de Haroldo, de que toda a poesia é “concreta”, fazia sentido? Bem-vindos ao Concretismo, queridos e incomparáveis mestres da poesia, “nos semblables, nos frères”…
4.
Quanto às minhas traduções, embora respeite e tenha até chegado a utilizar uma que outra vez, por mais técnico, o termo “transcriação”, cunhado por Haroldo, preferi sempre chamá-las de “tradução-arte”, em homenagem ao nosso “futebol-arte”, que tanto admiro.
5.
Eu me considero um “vocalista” dos poemas que traduzo. Aliás, isso me lembra que um dos líderes da “geração de 45” dizia com sarcasmo, que nós, os irmãos Campos e o Décio, éramos os “trigênios vocalistas” da poesia, comparando-nos, depreciativamente, aos Trigêmeos Vocalistas, sucesso popular da época, hoje esquecidos. O que chamo de “intraduções” (insinuando um ‘in-” e um “intra”), como A Rosa Doente, de Blake, são traduções intersemióticas, nas quais seleciono um poema ou fragmento que me impactaram e neles intervenho com elementos icônicos, gráfico-visuais, ausentes no original. No que diz respeito aos poemas que traduzi, sempre aprendi muito com todos eles, embora, na minha própria poesia, tenha procurado seguir o conselho de Hopkins: ”admirar e fazer outra coisa”.
6.
Se em vez de harmônica-de-boca (ah! quem me dera ser um Sonny Boy Williamson ou um Toots Thielemans…), tocasse saxofone como Coleman Hawkins e Charlie Parker, ou piano como Art Tatum e Thelonious Monk, provavelmente nunca teria escrito uma linha de poesia. Toquei, amadoristicamente a minha velha gaita, por insistência do meu filho, Cid Campos, na faixa 6 [Flor da Boca] do seu CD independente, No Lago do Olho, que vem de ser muito elogiado por Midani.
7.
[...] embora desgastada, a palavra “vanguarda” pelo menos não engana ninguém. Quem teria a coragem de dizer que Jorge Amado ou Paulo Coelho (“no offense”) são escritores de ”vanguarda” como se pode ainda dizer de Joyce ou Apollinaire? Essa história de que “as vanguardas” já cumpriram o seu papel histórico é argumentação defensiva dos que não souberam ou não puderam conversar com a sua época.
8.
JU – De uma entrevista sua: “Quem quiser praticar hoje o soneto tem que se medir com Dante, Camões, Shakespeare, Mallarmé, Rimbaud, Hopkins, Fernando Pessoa, Augusto dos Anjos etc. etc. etc.” – isto dito num contexto de exaustão das formas. Poetas de linhagem concreta hoje não estariam diante de desafio parecido, que é o de se medir com Augusto, Décio e Haroldo?
Augusto de Campos – Eu aludia aos versos de pé-quebrado que rolam, impunes, por aí, e também à tentativa de reabilitação do soneto por poetas de novas gerações. No mínimo pé-quebradíssimo e no máximo competentíssimo, mas reincidindo em todos os clichês “sonotológicos” (sic), embora de temática atual. De Camões a Cummings, o soneto foi explorado de todas as maneiras e está mais exaurido que a poesia concreta. Não dou conselhos aos poetas mais jovens porque, como disse Pound, os velhos tendem a gostar dos que se parecem com eles… Instado, nos últimos anos, já quase-mudo, a dar um conselho aos poetas novos, EP, aposentado da sua “Ezuversity” disse apenas: ”Curiosity, curiosity”. Quanto aos “trigênios” – “bright Brazilians blasting at bastards”, como os saudou ele em uma de suas cartas – é verdade que tornaram mais difícil fazer poesia, mas isso é saudável para os poetas e os realmente bons, que eventualmente os apreciarem, saberão “admirar” e ”fazer outra coisa”.
JU – Que projetos o sr. tem para o futuro no campo da poesia, da tradução ou da crítica?
Novos poemas? Muito poucos… e duvidosos. Considerando a distância que medeia entre Viva Vaia (1979) e os dois últimos livros, Despoesia (1994) e Não (2003) e a minha idade avançada, a perspectiva mais plausível é a de reabilitar o soneto camoniano (“começou a servir outros sete anos…”). Pode bem ser que eu já tenha ido para o espaço quando tiver poemas suficientes para um novo “folhetim de versos” (grande Cesário!). Poemas esparsos me parece um nome pós-razoável. Mas confesso que acho mais bonito terminar com um Não e um Sem Saída, partindo do livro para os cibercéus do futuro.
Para o Jornal da UNICAMP em novembro de 2008
Para o Jornal da UNICAMP em novembro de 2008
Talento para as vendas desde pequenininhos
Já contei algumas vezes que, quando éramos crianças, Haroldo, talento precoce, escrevia contos. Eu, um ano-e-meio mais moço, fazia desenhos a partir de histórias-em-quadrinhos. Meu pai, achando graça, mandou fazer um carimbo, “Escritório Irmãos Campos”, com o qual registrávamos as nossas “criações”, que vendíamos às nossas vítimas – os parentes próximos, de preferência os tios. Mais tarde, Oswáld (e não Ôswald como dizem agora horrorosamente) nos deu, em 1949, a Haroldo e a mim, que tinha 18 anos, um dos últimos exemplares da 1ª edição do Serafim Ponte-Grande, com a dedicatória: “Aos irmãos Haroldo e Augusto de Campos, firma de poesia”…
Acho que o Oswáld sacou... e sacaneou.