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Sunday, June 09, 2013

O ser-para-a-morte

Decaimento (Verfallenheit) não deve ser tomado em chave moralista. Ainda que evoque representações religiosas e morais (como o pecado original), designa a condição originária de ser lançado no mundo impessoal da esfera pública. É por essa razão - e unicamente em virtude dela - que o ser-o-aí pode também abrir-se para sua possibilidade mais autêntica: voltar-a-si, ou ser-si-próprio.

Ser-o-aí, desde sempre, é projeto, poder ser, possibilidade de ser. Por isso mesmo, é também possibilidade de não ser, em dois sentidos. Primeiro, o de não ser si-próprio, de existir anonimamente sob a capa e o manto da publicidade, de fugir de si, aderindo ao modo inautêntico e impróprio (uneigentlich) de ser ou existir - ao que corresponde o faltar a si mesmo. Segundo, em uma acepção mais radical de não ser, como realização da possibilidade da impossibilidade de ser, ou seja, da morte. Como ser-no-mundo temporal e finito, o ser-o-aí é constitutivamente (isto é, ontologicamente) ser-para-a-morte: abertura existencial para a possibilidade de não ser, ente que se compreendeu como tal.

Do decaimento, o ser-o-aí é resgatado para a autenticidade pela culpa (Schuld) e a consciência moral (Gewissen). A culpa é um faltar a si, é ser-em-falta; estar em dívida com as possibilidades de ser si-próprio. Uma falta ontológica forma o conteúdo da consciência moral, não como tribunal interior, como voz da consciência moral que acusa o sujeito de estar em débito com a lei por desobedecer a Deus. Ser culpado é sentir-se em falta para consigo mesmo, como poder-ser originário.

Ninguém existe no lugar de outra pessoa, ninguém morre a não ser a própria morte. A condição de ser-para-a-morte é o chamado do Dasein para a sua mais radical autenticidade. Por isso, a culpa e a morte são os chamamentos inapeláveis da consciência moral, que é a voz da de nossa culpa originária, de nossa condição de estar sempre em falta com relação ao nosso poder-ser, a cada momento de nossa existência.

A consciência de culpa não é má consciência, mas o correspondente ontológico da disposição angustiada. Trata-se também de uma ética fundamental, como cuidado de si e do mundo, na temporalidade própria à finitude humana. Ser e tempo não tem necessidade de um capítulo dedicado à ética como disciplina filosófica. A fenomenologia analítica de ex-sistência desdobra-se em um ethos originário.

Oswaldo Giacoia Jr. - Heidegger Urgente: Introdução a um novo pensar

Modos de ser-no-mundo

O ser-o-aí é também singular, existência irremissível, respectivamente adstrita a cada pessoa. A isso Heidegger denomina Jemeinigkeit (ser-a-cada-vez-meu, respectividade, ser singularmente adstrito a mim). Cada um de nós é a própria e respectiva existência singularíssima, na vida como na morte, na autenticidade como na inautenticidade. Os possíveis mais abrangentes do ser-o-aí são: ser si-próprio, ou perder-se, extraviar-se, desgarrar-se, dissipar-se no elemento genérico e impessoal (das Man, a gente):

Aquilo que se diz em Ser e tempo sobre "a gente" não quer fornecer, de maneira alguma, apenas uma contribuição incidental para a sociologia. Tampouco "a gente" significa apenas a figura oposta, compreendida de modo ético-existencialista, ao ser-si-mesmo da pessoa. O que foi dito contém, ao contrário, a indicação, pensada a partir da questão da verdade do Ser, para o pertencer originário da palavra ao Ser. Essa relação permanece oculta sob o domínio da subjetividade que se apresenta como a opinião pública.*

Existir no modo da autenticidade é um tornar-se, porque o ser-o-aí, desde sempre, advém na linha temporal de um passado histórico que o precede, como membro de uma dada família e sociedade, em um ponto do espaço prévio a toda deliberação ou escolha. Isso condiciona, em grande medida seu presente, a partir do qual se abrem as possibilidades futuras, às quais ele pode permanecer alheio, alienado nas malhas do impessoal.


Cura e preocupação

Com isso, a analítica existencial do ser-o-aí atinge um de seus resultados mais importantes: a sua descrição fenomenológica como Sorge (cura ou preocupação). Ex-sistência é ser-no-mundo temporalmente como cura ou preocupação. Esse cuidado, por sua vez, desdobra-se em Besorgen (o cuidado com alguma coisa, com providenciar alguma coisa) e Fürsorgen (a cura como tomar cuidado de algo, ou de alguém; e como preocupação, ocupar-se de algo ou alguém, tratar dele e com ele).

Ser-no-mundo é existir como cura: seja ao modo do providenciar utilitário, no trato com objetos e utensílios, seja ao modo da pré-ocupação como encargo, que se pré-ocupa e toma sob seus préstimos. Como ec-sistência, o ser-o-aí é no mundo como cura, preocupação e cuidado com o mundo, que é também uma dimensão essencial dele.

A cada uma das modalidades de abertura do ser-o-aí como ser-no-mundo corresponde um modo de existir como projeto lançado na esfera pública da inautenticidade: à afinação/estar disposto (Befindlichkeit) correspondem possibilidades ou modalidades diversas de estados afetivos gerais, humores (Stimmung) do ser-o-aí em sua existência cotidiana: alegre, triste, calmo, irritado, simpático, indiferente etc. À compreensão (Verstehen) corresponde a curiosidade (Neugier), e à fala (Rede) corresponde o falatório (Gerede).

Afinação/estar disposto, compreensão e fala são constituintes ontológicos do ser-o-aí. Disposição, curiosidade e falatório são o correspondente ôntico dessas estruturas na cotidianidade intramundana do ser-o-aí em sua condição de decaimento (Verfallenheit). As modalidade diversas de disposição afetiva são formas de obliteração da afinação/disposição originária da angústia, como preocupar-se com o próprio poder-ser.

curiosidade é um desgarramento que consiste em alienar-se na bisbilhotice do que interessa a todo mundo, no que distrai, ao cativar a atenção de todo mundo. É estar à cata de novidade - o que, por definição, significa estar condenado à infinita reposição, sob pena de deixar de ser o que é. O falatório domina a existência mundana do ser-o-aí no cotidiano, com o tagarelar e o opinar sobre tudo sem nada dizer, o discurso que não compromete, nada afirma nem nega quanto ao essencial. A retórica da opinião pública e o politicamente correto são exemplos de falatório impessoal, da fala inautêntica. Trata-se, então, de uma curiosidade dispersiva, alienada na distração do falatório.

Oswaldo Giacoia Jr. - Heidegger Urgente: Introdução a um novo pensar

Heidegger, M. Sein und Zeit, "Sobre o 'humanismo'", pg. 349

Saturday, June 08, 2013


Aberturas existenciais do ser-o-aí

À analítica existencial compete tornar manifesta a parte correlativa do ser-no-mundo (In-der-Welt-Sein). Este denota as modalidades intramundanas do ser-o-aí - ou seja, o plano do trato com os outros entes. Sua contrapartida fenomenológica destaca o ser-em (Sein-in), com o acento deslocado do polo "no mundo" para o modo do "ser-no" - para analisar de forma fenomenológica como esse ente se instala originariamente em sua condição de ser-no-mundo.

Ser-o-aí é essencialmente temporalidade (Zeitlichkeit). Mas também é ser ao modo da abertura - abertura para seu próprio ser e para os demais entes que, como ele, habitam o mundo. Ser-em se mostra como transparência a si, como  (da).

Três são as modalidades originárias dessa abertura - ou os existenciais, que denotam as estruturas fundamentais do ser-o-aí como ser-em:

a. Estar dispostoafinação (Befindlichkeit). O ser-o-aí se encontra no mundo em determinadas disposições e estados: instalado em algum lugar (em São Paulo, por exemplo); afinado nessa ou naquela modulação do afeto (alegre ou triste, por exemplo). A abertura para o mundo implica sempre um estado de ânimo, não um tipo particular de sentimento, como estado psicológico determinado, mas um tônus afetivo geral, um modo de viver o relacionamento com o mundo em suas diferentes modalidades.

Angústia (Angst) é a mais fundamental dessas disposições basais do afeto, na medida em que concerne não aos entes intramundanos, mas ao ser do ser-o-aí no mundo. Não se trata de temor ou ansiedade pela perda de um objeto presente ou virtual, pela cessação de um estado de coisas, mas um ânimo que abrange todas as possibilidades de ser do ser-o-aí em sua raiz: a tensão entre ser-si-próprio e perder-se, desgarrar-se, a possibilidade sempre presente de faltar a si.

b. Compreensãocompreender (Verstehen): o ser-o-aí sempre toma pé em uma compreensão prévia e tácita, inarticulada, da condição existencial em que sempre - e a cada vez -  se encontra; compreensão e abertura para as possibilidades de ser nela existentes. Esse compreender, como dimensão ontológica do ser-o-aí, funda a hermenêutica de Ser e tempo, e com isso nota-se como Heidegger reelabora e dá nova fundamentação à categoria de compreensão, presente na filosofia dos valores, nas filosofias da vida e na ciência hermenêutica, transformando-a em elemento existencial-ontológico estruturante do ser-o-aí.

Compreensão é um limiar aquém do qual não é possível recuar em termos explicativos. Toda compreensão particular - de alguma coisa, por exemplo, um texto ou um signo - tem como pressuposto o próprio ato de compreender, que é dado como um âmbito prévio e irrefletido no interior do qual está inserido, desde sempre, quem compreende algo.

Não se pode compreender a própria compreensão, pois para tanto já seria necessário poder compreender, e assim ao infinito. Trata-se de uma circularidade inevitável, porém não viciosa, e sim virtuosa: quem compreende algo dispõe também previamente de um senso de compreensão. Esse círculo é essencialmente hermenêutico, pois a hermenêutica é a ciência da interpretação e da compreensão. Assim, a abertura existencial-ontológica do ser-o-aí como compreensão torna a hermenêutica parte constitutiva da ontologia fundamental e da analítica existencial de Ser e tempo.

A compreensão heideggeriana tem um lado cognitivo: entender, apreender o sentido de, inteirar-se de, tomar consciência de. No entanto, a acepção fundamental de Verstehen em Ser e tempo é outra: compreender como "entender de" (sich verstehen auf etwas). Nessa fórmula, compreender evoca, sobretudo, um poder, um dom ou uma capacitação. "Entender de" equivale, em português coloquial, a expressões como: "fulano entende do negócio, entende das coisas". Compreender é entender de ser, prima facie, saber de si, cuidar de seu próprio ser, cuidar de existir, de si como existência. Ser-o-aí, nesse sentido, é poder-serser-possível, entender de ser.

c. Fala, discurso, palavra, linguagem (Rede): entender de ser, poder ser, compreender em sentido ontológico é encontrar-se em uma disposição básica de abertura compreensiva, prévia e tácita, de preocupação com o ser. Nesse sentido, compreendemos o que significa ser, sabemos mais ou manos o que queremos dizer quando empregamos a palavra "ser".

A articulação desse sentido, ou dos diferentes sentidos de ser, dá-se sempre no logos - na palavra, na linguagem, no verbo, no discurso. Essa articulação é o modo como o ser-o-aí enuncia seu entendimento de Ser - como manifesta, pelo verbo, o que vem-a-ser, dando com isso as condições para o desvelamento do Ser em sua verdade. Por isso, a linguagem é a articulação que coliga e manifesta, é o âmbito de desvelamento ou verdade do Ser. é assim que se pode entender o que Heidegger pensa quando afirma que a linguagem é a clareira, ou a morada, do Ser.

Na condição de ser-o-aí, o homem habita a morada do Ser, a linguagem. Ao falar, ele traz à luz, manifesta o que os entes são em suas respectivas essências; assim, ele exibe, desvela os entes em seu ser. Todavia, essa dimensão do habitar humano no cotidiano de sua existência natural é marcada pela dimensão pública do falar, pelo linguajar característico do existir coletivo, genérico, impessoal.

Heidegger denomina Öffentlichkeit (esfera pública) essa condição do ser-no-mundo. Trata-se aqui de uma existência decaída em relação às suas possibilidades mais próprias e autênticas. Essa é a situação ontológica da queda (Verfallenheit), que não é o pecado original teológico, mas um perder-se no anonimato que afasta de ser-si-próprio - condição para a qual o ser-o-aí sempre pode ascender ao voltar-se para uma modalidade autêntica de existência.

Oswaldo Giacoia Jr. - Heidegger Urgente: Introdução a um novo pensar


Ser-no-mundo e ser-com

Intramundano, o ser-o-aí existe desde sempre em comércio com os outros entes, em um relacionamento que pode ser:

a. Objetivo: é o plano da relação entre sujeito e objeto, no qual o mundo é disposto ou coloca-se diante de nós como universo re-presentado. Nesse sentido, o mundo é a totalidade dos objetos presentes (Vorhanden) para um sujeito do conhecimento. Representar é reapresentar: dispor objetivamente os entes para a apreensão teórica, de modo a extrair deles um saber científico, que enseja controle e disponibilização para operações técnicas.

b. Trato ou lida (Umgang): diferentemente dos objetos do conhecimento, lidamos com coisas que nos defrontam - como os utensílios - e suscitam perguntas como: "Para quê?", "Com que finalidade?".

Seu modo de existir não é o da presentidade (Vorhandenheit). Essas coisas se dão a nós no vetor do sentido da Zuhandenheit - termo que designa aquilo que está à mão, não simplesmente como objeto presente, mas como entidade que tem a condição de utensílio. No modo de desvelamento próprio da condição ôntica de Zuhandenheit, os entes vêm ao nosso encontro como entes geradores, coisas das quais nos servimos para criar outras coisas e, por causa disso, estas são denominadas Zeug: trata-se do dispor de um instrumento útil para fazer coisas, ferramenta com que fazemos, produzimos, geramos outras coisas. Portanto, nessa acepção, o termo Zeug significa tanto "coisa" como "gerar" (nesse caso, na forma verbal: zeugen). Assim, em Werkzeug (ferramenta) temos uma coisa, que, ao lidar com ela, geramos ou produzimos outras coisas. Já no caso de Spielzeug, defrontamo-nos com uma coisa com a qual brincamos.

Não se trata aqui de relação teórica, objetivante, mas de lida pragmática. Produzir é, etimologicamente, producere: conduzir diante de, trazer à frente - como téchne (técnica), em sua significação originária, está ligada à poiésis (produzir, criar), pois é também uma modalidade de desocultar, trazer à luz, revelar. Nosso comportamento com os utensílios é trato, não cognição. Eles exigem um saber próprio do lidar, são de trato relativamente mais fácil ou mais difícil. Tocar um violão, por exemplo, não exige um conhecimento do processo de construção do instrumento, nem de sua história, nem necessariamente de teoria musical; brincamos com brinquedos, ou voamos em aeronaves, sem manter com essas coisas nenhum relacionamento cognitivo aprofundado.

c. Relação ética: engajamo-nos com certos entes em um relacionamento que não é nem o de cognição nem o de lida prático-instrumental, mas uma relação pessoal, ética. Essa relação não se limita à que estabelecemos com os outros, mas está também ontologicamente vinculada à relação que criamos conosco, a um tipo originário de cuidado de si, de préstimo e cura das possibilidades sempre abertas que constituem nossa existência. Existir significa, em sentido radical, cuidar de poder ser no mundo, que é também (e não menos essencialmente) ser-com-os-outros.

Ser-no-mundo é, antes de tudo, abertura (Erschlossenheit), estar aberto para a mundanidade (Weltlichkeit), nos planos da relação cognitiva, tecnocientífica, é lidar com as coisas, manter um relacionamento com elas enquanto utensílios (Zuhandenheit) ou, enfim, relacionar-se com os outros como pessoas, em um modo de ser-com, de compartilhar (mit-sein).

Cabe à fenomenologia a tarefa de descrever a mundanidade como elemento constitutivo do ser-lançado no mundo. O poder-ser é indefinido, mas não infinito. Temporal, ele implica finitude e a possibilidade da impossibilidade, de não ser. Por isso, o ser-o-aí é pré-ocupação, cuidado com os entes intramundanos, cura do mundo. Não há o ser-o-aí sem mundo, nem mundo sem ser-o-aí. É nesse sentido que a fenomenologia existencial de Ser e tempo é também uma ética originária do cuidado de si e do cuidado do mundo. É nessa condição que se ancoram as duas possibilidades de ser que mais profundamente penetram na raiz da facticidade: o existir autêntico, como ser si-próprio (das Selbst), e a existência inautêntica: o impessoal (das Man, "a gente").

Oswaldo Giacoia Jr. - Heidegger Urgente: Introdução a um novo pensar

Thursday, June 06, 2013

Ser-o-aí é o que nos é mais próximo, já que somos nós mesmos que existimos como tal. Porém, do ponto de vista ontológico é também o que há de mais estranho e distante para nós, quanto ao conhecimento de nossa essência. Para nos aproximarmos reflexivamente desse conhecimento, temos de perguntar pelo modo de ser da existência que somos. Esta é, fundamentalmente, contingência, temporalidade, facticidade (Faktizität), finitude.

Ser-o-aí existe no tempo, e a temporalidade (Zeitlichkeit) é um componente fundamental de sua estrutura. Isso implica que toda compreensão possível de Ser, a partir do Dasein, é uma compreensão temporal. Por outro lado, se a temporalidade constitui um predicado ontológico originário da sua essência, então o ser-o-aí deve ser mostrado pela análise fenomenológica como sendo finito  e mortal.

Oswaldo Giacoia Jr. - Heidegger Urgente: Introdução a um novo pensar

Tuesday, June 04, 2013

Ontologia fundamental

Ontologia fundamental nomeia a principal característica de Ser e tempo: é a tentativa de desconstrução da metafísica e de elaboração da analítica da finitude, tendo como ponto de partida uma fenomenologia hermenêutica das estruturas do ser-o-aí.

O ponto de confluência dessas tarefas é enunciado já na epígrafe do livro - tão incisiva quanto o título e que indica, de modo conciso, o centro nevrálgico do pensamento de Heidegger: a pergunta pelo sentido do Ser. A raiz dessa pergunta está plantada no solo do pensamento grego. Heidegger recorre a uma citação de O sofista, de Platão, para enunciá-la de modo paradigmático: "Uma vez, pois, que nos encontramos em dificuldade, caberá a vós explicar-nos o que entendeis por este vocábulo 'ser'. Evidentemente essas coisas vos são, de há muito, familiares. Nós mesmos, até aqui, acreditamos compreendê-las, e agora nos sentimos perplexos".

Ao longo de sua história, a filosofia ocidental preocupou-se sempre com o Ser, de modo que seria razoável esperar que, de há muito, estivéssemos familiarizados com o significado desse termo. Perguntas concernentes aos predicados mais gerais do ser (categorias) ou à distinção entre o ser e o devir, a realidade e a aparência, sempre constituíram o foco de atenção e meditação da filosofia.

Como se explicaria, então, que Platão, um dos maiores ícones da filosofia, tenha delegado à voz de um sofista a constatação perplexa de que não estamos familiarizados com aquilo que pensamos quando empregamos a palavra "ser"? Embaraçoso é constatar que até agora acreditávamos sabê-lo, mas, em verdade, carecemos de uma explicação que nos livre da dificuldade de não compreender o que propriamente pensamos quando dizemos "ser".

Assim, já estaria em Platão a suspeita de que a filosofia desconhece o que é pensado sob o termo "ser" - ainda que seja o mais empregado ao longo de sua história. Escândalo e pasmo, portanto, uma pedra de tropeço. Ser e tempo é uma das tentativas mais radicais da filosofia contemporânea para retomar essa pergunta em toda sua envergadura. Saberíamos nós o que Platão confessava desconhecer? A resposta de Heidegger é: não, de modo algum.

Ora, qualquer resposta pertinente só pode ser dada e, sobretudo, compreendida quando a pergunta a que ela responde é adequadamente formulada. Daí a suspeita de que nem Platão, nem a história da filosofia inteira ofereceram uma resposta pertinente à pergunta pelo sentido do Ser. E isso ocorre porque a pergunta não foi propriamente formulada, o questionamento não foi suficientemente pensado.

Essa perplexidade oferece a Ser e tempo o seu ponto de partida e a sua ocasião: é preciso perguntar novamente pelo sentido do Ser, e a elaboração concreta dessa questão é o propósito da obra de Heidegger. Para tanto, é imprescindível despertar de novo a compreensão prévia para o sentido da pergunta - isto é: que sentido tem a pergunta pelo sentido do Ser?

Oswaldo Giacoia Jr. - Heidegger Urgente: Introdução a um novo pensar