Aberturas existenciais do ser-o-aí
À analítica existencial compete tornar manifesta a parte correlativa do ser-no-mundo (In-der-Welt-Sein). Este denota as modalidades intramundanas do ser-o-aí - ou seja, o plano do trato com os outros entes. Sua contrapartida fenomenológica destaca o ser-em (Sein-in), com o acento deslocado do polo "no mundo" para o modo do "ser-no" - para analisar de forma fenomenológica como esse ente se instala originariamente em sua condição de ser-no-mundo.
Ser-o-aí é essencialmente temporalidade (Zeitlichkeit). Mas também é ser ao modo da abertura - abertura para seu próprio ser e para os demais entes que, como ele, habitam o mundo. Ser-em se mostra como transparência a si, como aí (da).
Três são as modalidades originárias dessa abertura - ou os existenciais, que denotam as estruturas fundamentais do ser-o-aí como ser-em:
a. Estar disposto, afinação (Befindlichkeit). O ser-o-aí se encontra no mundo em determinadas disposições e estados: instalado em algum lugar (em São Paulo, por exemplo); afinado nessa ou naquela modulação do afeto (alegre ou triste, por exemplo). A abertura para o mundo implica sempre um estado de ânimo, não um tipo particular de sentimento, como estado psicológico determinado, mas um tônus afetivo geral, um modo de viver o relacionamento com o mundo em suas diferentes modalidades.
Angústia (Angst) é a mais fundamental dessas disposições basais do afeto, na medida em que concerne não aos entes intramundanos, mas ao ser do ser-o-aí no mundo. Não se trata de temor ou ansiedade pela perda de um objeto presente ou virtual, pela cessação de um estado de coisas, mas um ânimo que abrange todas as possibilidades de ser do ser-o-aí em sua raiz: a tensão entre ser-si-próprio e perder-se, desgarrar-se, a possibilidade sempre presente de faltar a si.
b. Compreensão, compreender (Verstehen): o ser-o-aí sempre toma pé em uma compreensão prévia e tácita, inarticulada, da condição existencial em que sempre - e a cada vez - se encontra; compreensão e abertura para as possibilidades de ser nela existentes. Esse compreender, como dimensão ontológica do ser-o-aí, funda a hermenêutica de Ser e tempo, e com isso nota-se como Heidegger reelabora e dá nova fundamentação à categoria de compreensão, presente na filosofia dos valores, nas filosofias da vida e na ciência hermenêutica, transformando-a em elemento existencial-ontológico estruturante do ser-o-aí.
Compreensão é um limiar aquém do qual não é possível recuar em termos explicativos. Toda compreensão particular - de alguma coisa, por exemplo, um texto ou um signo - tem como pressuposto o próprio ato de compreender, que é dado como um âmbito prévio e irrefletido no interior do qual está inserido, desde sempre, quem compreende algo.
Não se pode compreender a própria compreensão, pois para tanto já seria necessário poder compreender, e assim ao infinito. Trata-se de uma circularidade inevitável, porém não viciosa, e sim virtuosa: quem compreende algo dispõe também previamente de um senso de compreensão. Esse círculo é essencialmente hermenêutico, pois a hermenêutica é a ciência da interpretação e da compreensão. Assim, a abertura existencial-ontológica do ser-o-aí como compreensão torna a hermenêutica parte constitutiva da ontologia fundamental e da analítica existencial de Ser e tempo.
A compreensão heideggeriana tem um lado cognitivo: entender, apreender o sentido de, inteirar-se de, tomar consciência de. No entanto, a acepção fundamental de Verstehen em Ser e tempo é outra: compreender como "entender de" (sich verstehen auf etwas). Nessa fórmula, compreender evoca, sobretudo, um poder, um dom ou uma capacitação. "Entender de" equivale, em português coloquial, a expressões como: "fulano entende do negócio, entende das coisas". Compreender é entender de ser, prima facie, saber de si, cuidar de seu próprio ser, cuidar de existir, de si como existência. Ser-o-aí, nesse sentido, é poder-ser, ser-possível, entender de ser.
c. Fala, discurso, palavra, linguagem (Rede): entender de ser, poder ser, compreender em sentido ontológico é encontrar-se em uma disposição básica de abertura compreensiva, prévia e tácita, de preocupação com o ser. Nesse sentido, compreendemos o que significa ser, sabemos mais ou manos o que queremos dizer quando empregamos a palavra "ser".
A articulação desse sentido, ou dos diferentes sentidos de ser, dá-se sempre no logos - na palavra, na linguagem, no verbo, no discurso. Essa articulação é o modo como o ser-o-aí enuncia seu entendimento de Ser - como manifesta, pelo verbo, o que vem-a-ser, dando com isso as condições para o desvelamento do Ser em sua verdade. Por isso, a linguagem é a articulação que coliga e manifesta, é o âmbito de desvelamento ou verdade do Ser. é assim que se pode entender o que Heidegger pensa quando afirma que a linguagem é a clareira, ou a morada, do Ser.
Na condição de ser-o-aí, o homem habita a morada do Ser, a linguagem. Ao falar, ele traz à luz, manifesta o que os entes são em suas respectivas essências; assim, ele exibe, desvela os entes em seu ser. Todavia, essa dimensão do habitar humano no cotidiano de sua existência natural é marcada pela dimensão pública do falar, pelo linguajar característico do existir coletivo, genérico, impessoal.
Heidegger denomina
Öffentlichkeit (esfera pública) essa condição do ser-no-mundo. Trata-se aqui de uma existência decaída em relação às suas possibilidades mais próprias e autênticas. Essa é a situação ontológica da queda (
Verfallenheit), que não é o pecado original teológico, mas um perder-se no anonimato que afasta de ser-si-próprio - condição para a qual o ser-o-aí sempre
pode ascender ao voltar-se para uma modalidade autêntica de existência.
Oswaldo Giacoia Jr. -
Heidegger Urgente: Introdução a um novo pensar