[...] é importante reconhecermos que em cada fase deste ciclo (que vai do seu nascimento até a sua morte) a história do herói toma formas particulares, que se aplicam a determinado ponto alcançado pelo indivíduo no desenvolvimento da sua consciência do ego e também aos problemas específicos com que se defronta a um dado momento. Isto é, a imagem do herói evolui de maneira a refletir cada estágio de evolução da personalidade humana.
Este conceito pode ser entendido mais facilmente se o apresentarmos de uma forma que corresponda a um diagrama. Tomo como exemplo uma tribo de índios norte-americanos, os Winnebagos, porque nela podemos observar, nitidamente, quatro etapas distintas da evolução do herói. Nestas histórias (publicadas pelo Dr. Paul Radin em 1948, sob o título O Ciclo Heróico dos Winnebagos) pode-se notar a clara progressão do mito desde o conceito mais primitivo do herói até o mais elaborado. Esta progressão é característica de outros ciclos heróicos. Apesar de suas figuras simbólicas terem nomes diferentes, sua atuação é idêntica, e vamos compreendê-las melhor através do que fica evidenciado neste exemplo.
O Dr. Radin constatou quatro ciclos distintos na evolução do mito do herói. Chamou-lhes: ciclo Trickster, ciclo Hare, ciclo Red Horn e ciclo Twin. Percebeu claramente o significado psicológico desta evolução quando disse: "Representa os esforços que fazemos todos para cuidarmos dos problemas do nosso crescimento, ajudados pela ilusão de uma ficção eterna".
O ciclo Trickster corresponde ao primeiro período de vida, o mais primitivo. Trickster é um personagem dominado por seus apetites; tem a mentalidade de uma criança. Sem outro propósito senão o de satisfazer suas necessidades mais elementares, é cruel, cínico e insensível (nossas histórias do Irmão Coelho ou da Raposa Reynard perpetuam o que há de mais essencial no mito Trickster).
Esse personagem, que inicialmente aparece sob a forma de um animal, passa de uma proeza maléfica a outra. Mas ao mesmo tempo começa a transformar-se e no final da sua carreira de trapaças vai adquirindo a aparência física de um homem adulto.
O personagem seguinte é Hare (a Lebre). Ele também, tal como Trickster (muitas vezes representado pelos índios americanos como um coiote), aparece inicialmente como um animal. Não tendo ainda alcançado a plenitude da estatura humana surge, no entanto, como o fundador da cultura - o transformador. Os Winnebagos acreditam que, tendo ele lhes dado o seu famoso Rito Medicinal, tornou-se seu salvador e uma espécie de "herói da cultura". [...] Esta figura arquetípica representa um avanço distinto sobre Trickster: é um personagem que se torna mais civilizado, corrigindo os impulsos infantis e instintivos encontrados no ciclo de Trickster.
Red Horn, o terceiro herói desta série, é uma pessoa ambígua e o caçula de 10 irmãos. Atende aos requisitos do herói arquetípico, vencendo difíceis provas em corridas e em batalhas. Seu poder sobre-humano revela-se na sua capacidade para derrotar gigantes pela astúcia (no jogo de dados) ou pela força (numa luta corporal). Tem um companheiro vigoroso sob a forma de um pássaro-trovão, chamado Storms-as he walks ('há uma tempestade quando ele passa'), cujo vigor compensa qualquer possível fraqueza de Red Horn. Com Red Horn chegamos ao mundo do homem apesar de ser um mundo arcaico, no qual são imprescindíveis poderes sobre-humanos ou deuses tutelares para garantir a vitória do indivíduo sobre as forças do mal que o perseguem. No final da história o herói-deus vai embora deixando Red Horn e seus filhos na Terra. Os perigos que ameaçam a felicidade e a segurança do homem nascem, agora, do próprio homem.
Este tema básico (repetido no último ciclo, o dos Twins) suscita uma questão vital: por quanto tempo podem os seres humanos alcançar sucesso sem caírem vítimas de seu próprio orgulho ou, em termos mitológicos, da inveja dos deuses?
Apesar de os Twins serem considerados filhos do Sol, eles são essencialmente humanos e, juntos, vêm a constituir-se numa só pessoa. Unidos originalmente no ventre materno, foram separados ao nascer. No entanto, são parte integrante um do outro e é necessário, apesar de extremamente difícil, reuni-los. Nestas duas crianças estão representados os dois lados da natureza humana. Um deles, Flesh, é conciliador, brando e sem iniciativas; o outro, Stump, é dinâmico e rebelde. Em algumas das histórias dos heróis Twins estas atitudes foram apuradas até chegar ao ponto de uma das figuras representar o introvertido, cuja força principal encontra-se na reflexão, e outra o extrovertido, um homem de ação capaz de realizar grandes feitos.
Por muito tempo estes dois heróis permanecem invencíveis. Tanto apresentados como dois personagens distintos ou como dois em um, nada lhes resiste. No entanto, exatamente como os deuses guerreiros dos índios Navajos, tornam-se, eventualmente, vítimas do abuso que fazem de sua própria força. Não deixam sobrar mais nenhum monstro no céu ou na terra sem ser combatido, e sua conduta desvairada acaba recebendo troco. Os Winnebagos contam que, por fim, não restou mais nada que lhes escapasse - nem mesmo os suportes que sustentam o mundo. Quando os Twins mataram um dos quatro animais em que se apoiava o nosso globo, ultrapassaram todos os possíveis limites, e chegou o momento de pôr fim à sua carreira. A morte era o castigo merecido.
Assim, tanto no ciclo do Red Horn quanto no ciclo dos Twins encontramos o tema do sacrifício ou morte do herói como a cura necessária para a hybris, o orgulho cego. Nas sociedades primitivas cujo nível cultural corresponde ao ciclo do Red Horn, parece que este perigo pôde ser evitado com a instituição do sacrifício humano expiatório - um tema de enorme importância simbólica, que reaparece continuamente na história do homem.
Nos exemplos de traição ou derrota do herói que encontramos na mitologia européia, o tema do sacrifício ritual é mais especificamente utilizado como punição para a hybris. Mas os Winnebagos, como os Navajos, não vão tão longe. Apesar de os Twins terem errado e merecerem, portanto, a pena de morte, eles próprios ficaram tão assustados com sua força incontrolável que concordaram em viver em estado de repouso permanente, permitindo aos dois aspectos contraditórios da natureza humana reencontrarem, assim, seu equilíbrio.
Joseph L. Henderson. Os mitos antigos e o homem moderno - O Homem e Seus Símbolos.
Este conceito pode ser entendido mais facilmente se o apresentarmos de uma forma que corresponda a um diagrama. Tomo como exemplo uma tribo de índios norte-americanos, os Winnebagos, porque nela podemos observar, nitidamente, quatro etapas distintas da evolução do herói. Nestas histórias (publicadas pelo Dr. Paul Radin em 1948, sob o título O Ciclo Heróico dos Winnebagos) pode-se notar a clara progressão do mito desde o conceito mais primitivo do herói até o mais elaborado. Esta progressão é característica de outros ciclos heróicos. Apesar de suas figuras simbólicas terem nomes diferentes, sua atuação é idêntica, e vamos compreendê-las melhor através do que fica evidenciado neste exemplo.
O Dr. Radin constatou quatro ciclos distintos na evolução do mito do herói. Chamou-lhes: ciclo Trickster, ciclo Hare, ciclo Red Horn e ciclo Twin. Percebeu claramente o significado psicológico desta evolução quando disse: "Representa os esforços que fazemos todos para cuidarmos dos problemas do nosso crescimento, ajudados pela ilusão de uma ficção eterna".
O ciclo Trickster corresponde ao primeiro período de vida, o mais primitivo. Trickster é um personagem dominado por seus apetites; tem a mentalidade de uma criança. Sem outro propósito senão o de satisfazer suas necessidades mais elementares, é cruel, cínico e insensível (nossas histórias do Irmão Coelho ou da Raposa Reynard perpetuam o que há de mais essencial no mito Trickster).
Esse personagem, que inicialmente aparece sob a forma de um animal, passa de uma proeza maléfica a outra. Mas ao mesmo tempo começa a transformar-se e no final da sua carreira de trapaças vai adquirindo a aparência física de um homem adulto.
O personagem seguinte é Hare (a Lebre). Ele também, tal como Trickster (muitas vezes representado pelos índios americanos como um coiote), aparece inicialmente como um animal. Não tendo ainda alcançado a plenitude da estatura humana surge, no entanto, como o fundador da cultura - o transformador. Os Winnebagos acreditam que, tendo ele lhes dado o seu famoso Rito Medicinal, tornou-se seu salvador e uma espécie de "herói da cultura". [...] Esta figura arquetípica representa um avanço distinto sobre Trickster: é um personagem que se torna mais civilizado, corrigindo os impulsos infantis e instintivos encontrados no ciclo de Trickster.
Red Horn, o terceiro herói desta série, é uma pessoa ambígua e o caçula de 10 irmãos. Atende aos requisitos do herói arquetípico, vencendo difíceis provas em corridas e em batalhas. Seu poder sobre-humano revela-se na sua capacidade para derrotar gigantes pela astúcia (no jogo de dados) ou pela força (numa luta corporal). Tem um companheiro vigoroso sob a forma de um pássaro-trovão, chamado Storms-as he walks ('há uma tempestade quando ele passa'), cujo vigor compensa qualquer possível fraqueza de Red Horn. Com Red Horn chegamos ao mundo do homem apesar de ser um mundo arcaico, no qual são imprescindíveis poderes sobre-humanos ou deuses tutelares para garantir a vitória do indivíduo sobre as forças do mal que o perseguem. No final da história o herói-deus vai embora deixando Red Horn e seus filhos na Terra. Os perigos que ameaçam a felicidade e a segurança do homem nascem, agora, do próprio homem.
Este tema básico (repetido no último ciclo, o dos Twins) suscita uma questão vital: por quanto tempo podem os seres humanos alcançar sucesso sem caírem vítimas de seu próprio orgulho ou, em termos mitológicos, da inveja dos deuses?
Apesar de os Twins serem considerados filhos do Sol, eles são essencialmente humanos e, juntos, vêm a constituir-se numa só pessoa. Unidos originalmente no ventre materno, foram separados ao nascer. No entanto, são parte integrante um do outro e é necessário, apesar de extremamente difícil, reuni-los. Nestas duas crianças estão representados os dois lados da natureza humana. Um deles, Flesh, é conciliador, brando e sem iniciativas; o outro, Stump, é dinâmico e rebelde. Em algumas das histórias dos heróis Twins estas atitudes foram apuradas até chegar ao ponto de uma das figuras representar o introvertido, cuja força principal encontra-se na reflexão, e outra o extrovertido, um homem de ação capaz de realizar grandes feitos.
Por muito tempo estes dois heróis permanecem invencíveis. Tanto apresentados como dois personagens distintos ou como dois em um, nada lhes resiste. No entanto, exatamente como os deuses guerreiros dos índios Navajos, tornam-se, eventualmente, vítimas do abuso que fazem de sua própria força. Não deixam sobrar mais nenhum monstro no céu ou na terra sem ser combatido, e sua conduta desvairada acaba recebendo troco. Os Winnebagos contam que, por fim, não restou mais nada que lhes escapasse - nem mesmo os suportes que sustentam o mundo. Quando os Twins mataram um dos quatro animais em que se apoiava o nosso globo, ultrapassaram todos os possíveis limites, e chegou o momento de pôr fim à sua carreira. A morte era o castigo merecido.
Assim, tanto no ciclo do Red Horn quanto no ciclo dos Twins encontramos o tema do sacrifício ou morte do herói como a cura necessária para a hybris, o orgulho cego. Nas sociedades primitivas cujo nível cultural corresponde ao ciclo do Red Horn, parece que este perigo pôde ser evitado com a instituição do sacrifício humano expiatório - um tema de enorme importância simbólica, que reaparece continuamente na história do homem.
Nos exemplos de traição ou derrota do herói que encontramos na mitologia européia, o tema do sacrifício ritual é mais especificamente utilizado como punição para a hybris. Mas os Winnebagos, como os Navajos, não vão tão longe. Apesar de os Twins terem errado e merecerem, portanto, a pena de morte, eles próprios ficaram tão assustados com sua força incontrolável que concordaram em viver em estado de repouso permanente, permitindo aos dois aspectos contraditórios da natureza humana reencontrarem, assim, seu equilíbrio.
Joseph L. Henderson. Os mitos antigos e o homem moderno - O Homem e Seus Símbolos.