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Saturday, June 25, 2011

3.

[...] Pensar e lembrar, dissemos, é o modo humano de deitar raízes, de cada um tomar seu lugar no mundo a que todos chegamos como estranhos. O que em geral chamamos de uma pessoa ou uma personalidade, distinta de um mero ser humano ou de um ninguém, nasce realmente desse processo que deita raízes. Nesse sentido, afirmei que é quase uma redundância falar de uma personalidade moral; sem dúvida, uma pessoa ainda pode ser de boa ou má índole, as suas inclinações podem ser generosas ou mesquinhas, ela pode ser agressiva ou dócil, franca ou dissimulada; pode ser dada a todos os tipos de vícios, assim como pode nascer inteligente ou estúpida, bela ou feia, amável ou um tanto rude. Tudo isso tem pouco a ver com as questões que nos preocupam nesse momento. Caso se trate de um ser pensante, arraigado em seus pensamentos e lembranças e, assim, conhecedor de que tem de viver consigo mesmo, haverá limites para o que se pode permitir fazer, e esses limites não lhe serão impostos de fora, mas auto-estabelecidos. Esses limites podem mudar de maneira considerável e desconfortavelmente de pessoa para pessoa, de país para país, de século para século: mas o mal ilimitado e extremo só é possível quando essas raízes cultivadas a partir do eu, que automaticamente limitam as possibilidades, estão inteiramente ausentes. Elas estão ausentes quando os homens apenas deslizam sobre a superfície dos acontecimentos, quando se deixam levar adiante sem jamais penetrarem em qualquer profundidade de que possam ser capazes. Certamente, essa profundidade também muda de pessoa para pessoa, de século para século, tanto na sua qualidade específica quanto nas suas dimensões. Sócrates acreditava que ensinando as pessoas como  pensar, como falar consigo mesmas, uma ação distinta da arte oratória de como persuadir e da ambição do sábio de ensinar o que  pensar e como aprender, ele melhoraria seus concidadãos; mas se aceitamos esse pressuposto e perguntamos a Sócrates quais seriam as sanções para aquele famoso crime oculto dos olhos dos deuses e dos homens, a sua resposta só poderia ter sido: a perda dessa capacidade, a perda de estar só, e, como tentei ilustrar, com ela a perda da criatividade - em outras palavras, a perda do eu que constitui a pessoa.

Hanna Arendt - Algumas questões de filosofia moral III - Responsabilidade e Julgamento

2.

Por fim, permitam-me lembrar-lhes um dos fenômenos mais assustadores em nossas experiências morais mais recentes. Suponho que todos os senhores já ouviram falar ao menos daqueles assassinos do Terceiro Reich que não só levavam uma impecável vida familiar, como gostavam de passar o seu tempo de lazer lendo Hölderlin e escutando Bach, provando (como se houvesse falta de provas a esse respeito) que os intelectuais podem ser tão facilmente induzidos ao crime quanto qualquer outra pessoa. Mas a sensibilidade e um gosto pelas assim chamadas coisas elevadas da vida não são capacidades do espírito? Sem dúvida, mas a capacidade de apreciação não tem nada a ver com o pensamento, que, devemos lembrar, é uma atividade, e não o desfrute passivo de algo. Na medida em que o pensamento é uma atividade, ele pode ser traduzido em produtos, em coisas como poemas, música ou pinturas. Todas as coisas desse tipo são realmente coisas do pensamento, assim como a mobília e os objetos de nosso uso diário são corretamente chamados objetos de uso: uns são inspirados pelo pensamento e os outros são inspirados pelo uso, por alguma necessidade e carência humana. O ponto importante sobre esses assassinos altamente cultos é que nem um único deles compôs um poema digno de ser lembrado, uma música digna de ser escutada, ou pintou um quadro que alguém gostaria de dependurar nas suas paredes. Sem dúvida, é necessário mais do que o pleno exercício da capacidade de pensar (thoughtfulness) para compor um bom poema, uma música ou pintar um quadro - é necessário um talento especial. Mas nenhum talento suportará a perda de integridade que experimentamos quando perdemos essa capacidade muito comum de pensar e lembrar.

Hannah Arendt - Algumas questões de filosofia moral II - Responsabilidade e Julgamento

1.

A primeira coisa que nos chama a atenção nos diálogos socráticos de Platão é que são todos aporéticos. A argumentação ou não leva a lugar nenhum ou anda em círculos.

[...] Nenhum dos logoi, os argumentos, jamais fica parado; movem-se ao redor porque Sócrates, ao fazer perguntas para as quais ele não sabe as respostas, coloca-os em movimento. E quando as afirmações perfazem o círculo completo é em geral Sócrates que, com prazer, propõe começar tudo de novo [...]

[...] Entretanto, Sócrates, de quem comumente se diz que teria acreditado na possibilidade de ensinar a virtude, parece ter sustentado de fato que falar e pensar sobre a piedade, a justiça, a coragem e tudo o mais, poderia tornar os homens mais piedosos, mais justos, mais corajosos, mesmo que não lhes fossem dadas definições ou "valores" para orientar a sua conduta posterior. Aquilo em que Sócrates realmente acreditava a respeito dessas questões pode ser mais bem ilustrado pelas comparações que aplicava a si mesmo. Ele se chamava de moscardo e parteira, e, segundo Platão, foi chamado por outra pessoa de "arraia-elétrica", um peixe que paralisa e entorpece pelo contato, uma semelhança cuja propriedade ele reconheceu sob condição de que fosse compreendido que "a arraia-elétrica só paralisa os outros por estar ela própria paralisada. Não é que, sabendo eu próprio as respostas, deixe perplexas as outras pessoas. A verdade é, antes, que também as infecto com a perplexidade que eu próprio sinto". O que, sem dúvida, resume com muita clareza a única maneira em que o pensamento pode ser ensinado - exceto que Sócrates, como ele disse repetidas vezes, não ensinava nada pela simples razão de que nada tinha para ensinar; ele era "estéril" como as parteiras na Grécia, que já tinham passado da idade de dar à luz.

[...] Sócrates (comparado a) um moscardo [...] sabe como provocar os cidadãos que, sem ele, "continuarão a dormir calmamente pelo resto da vida", a menos que apareça outra pessoa para voltar a despertá-los. E a que ele os provoca? A pensar, a examinar as questões, uma atividade sem a qual a vida, segundo ele, não só não valia muito a pena como não era plenamente viva.

[..] Parece que ele, ao contrário dos filósofos profissionais, sentia-se impelido a verificar se os seus semelhantes partilhavam as suas perplexidades - e esse impulso é totalmente diferente da inclinação a encontrar soluções para enigmas para então demonstrá-las aos outros.

Hannah Arendt - Pensamento e considerações morais - Responsabilidade e Julgamento