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Friday, December 07, 2007

A Apreensão do Belo

1. O estudo de Melanie Klein publicado em 1946 “Notas Sobre Alguns Mecanismos Esquizóides”, que introduziu as idéias sobre identificação projetiva e os processos de ruptura (splitting), destruiu o postulado da unidade da mente. (...) além do mais, abriu caminho para a multiplicação dos “mundos” da vida mental de um modo não previsto.

De forma ainda mais radical, Wilfred Bion propôs uma transformação que “divide a vida mental nas áreas simbólica e não-simbólica, enfatizando a mente como um instrumento para pensar a respeito de experiências emocionais. No entanto, a firme atitude de Bion ao relegar o pensamento criativo ao processo onírico inconsciente, e sua limitação da consciência como sendo o “órgão para a percepção das qualidades psíquicas”, deveriam com o tempo dar um golpe definitivo na equação da “razão” com consciência, e alterar profundamente nossa visão a respeito do modo como vivemos nossas vidas. Modifica-se radicalmente o modelo de Freud: o Ego se transforma no cavalo, estranhando cada objeto desconhecido em seu caminho, desejando perpetuamente prosseguir do modo que sempre foi; e os objetos internos inconscientes tornam-se o cavaleiro que o dirige sem quartel em direção a novas experiências de desenvolvimento.

(...) Ficou patente a necessidade de um modelo muito mais complexo para descrever os enganos, inconsistências e a impressionante auto-ignorância dos seres humanos.

(...) "A direção de objeto-relações assentada por Abraham”, (...) “delineou as relações parciais e totais dos objetos”. Os objetos ditos parciais ficam (...) “privados de sua mentalidade essencial, de sua capacidade para sentir, pensar e julgar”, ao mesmo tempo em que mantêm suas “características formais e sensoriais. Estes objetos podiam ser usados, valorizados, temidos, aplacados, mas não podiam ser admirados e amados, não podiam ser protegidos nem cuidados”.

2. (...) “a mente é a função geradora de metáforas que usa o grande computador” (cérebro) “para escrever sua poesia e pintar seus quadros de um mundo cintilante de significados. E significado é, em primeira instância, a manifestação fundamental das paixões da relação íntima com a beleza do mundo”.

A partir do momento que se incorpora a descrição de Bion a respeito de uma “experiência emocional” como o primeiro evento no curso do desenvolvimento, fica claro que seus conceitos fazem (...) uma distinção entre, de um lado, a formação simbólica e o pensamento, e de outro um uso computadorístico de signos e modos simplificados de extrapolação de experiências e idéias recebidas do passado. A criação de símbolos idiossincráticos, por oposição à manipulação de signos convencionais, constitui um divisor de águas entre o crescimento da personalidade e a adaptação. A tensão entre os dois é a essência daquilo que Freud rotulou como “resistência à investigação”. A distinção feita por Bion entre “aprender pela experiência” e “aprender a respeito” do mundo é precisa. É também marcada pela distinção que fazemos entre formas narcísicas de identificação (projetiva e adesiva) que produzem uma alteração imediata - e um tanto enganosa - no sentido de identidade, e o processo introjetivo através do qual nossos objetos internos são modificados estabelecendo gradientes de aspiração para o crescimento do self.

3. Nossas vidas ficam em grande parte ocupadas por relações que não são íntimas. O “Contrato Social” de Rosseau descreve muito bem o modo pelo qual movimentamo-nos no mundo, utilizando a lubrificação dos bons modos e dos costumes, da conformidade e da invisibilidade social com a finalidade de minimizar a fricção e, portanto o desgaste rasgo em nosso psique-soma.

4. Em “Inveja e Gratidão” livro de 1957, Melanie Klein estabeleceu o conceito de “inveja em relação ao objeto bom, com o intuito de apossar-se de suas características boas”.

(...) “Tal ambigüidade pareceu ter sido resolvida por Bion quando ele descreve as emoções como “vínculos”, descartando as dualidades tradicionais de amor e ódio e substituindo-as por um confronto mais complexo e filosoficamente mais penetrante. Inicialmente ele estendeu o raio de ação dos vínculos passionais, ao incluir o conhecer, juntamente com o amar e o odiar”.

(...) No entanto, Bion não se afasta do vínculo fundamental entre a dor mental e a frustração até (quando) ele introduz a idéia de “mudança catastrófica”. É a “nova idéia” que se abate sobre a mente como uma catástrofe, pois, para ser assimilada, detona o fluxo de toda a estrutura cognitiva. (...) Caso sigamos de perto o pensamento de Bion, vemos que a nova idéia se apresenta como sendo uma “experiência emocional” da beleza do mundo e de sua maravilhosa organização (...).

(...) O panorama descortinado pela formulação de Bion a respeito da dor mental e do prazer mental implica que o conflito intrínseco dos vínculos mentais positivos e negativos, perimetrais ao desejo e ao interesse, sempre se faz presente; em conseqüência, no nível passional – no qual a vida onírica segue seu curso – o prazer e a dor estão sempre inextricavelmente unidos. No entanto, este conflito essencial (a partir de cuja matriz o “aprender da experiência”, se desenvolve para produzir mudança estrutural por oposição a acréscimo de informação) precisa encontrar sua representação simbólica (função alfa) para tornar-se disponível para os pensamentos oníricos, transformação em linguagem verbal (ou outras formas simbólicas, como nas artes) e elaboração através de abstração, condensação, generalização e outros instrumentos de pensamento sofisticado.

A tolerância deste conflito, que forma a essência da força do ego, reside naquilo que Bion denominou “capacidade negativa”: a capacidade de permanecer na incerteza sem procurar com irritação o fato e a razão.

Na luta contra a força cínica dos vínculos negativos esta capacidade de tolerar a incerteza, o não-saber, a “nuvem de desconhecimento”, é constantemente solicitada na “paixão das relações íntimas e se situa no centro da questão do conflito estético”.

5. Não há nenhum evento da vida adulta que tenha sido tão calculado para originar nossa admiração frente à beleza e nosso maravilhamento frente aos intrincados mecanismos daquilo que denominamos Natureza quanto os eventos da procriação. Não há flor ou pássaro, por mais chamativa que seja sua coloração ou plumagem, que possa nos impor o mistério da experiência estética como a visão de uma jovem mãe amamentando seu bebê. Adentramos a um berçário como se penetrássemos em uma catedral ou nas florestas do Pacífico, pé ante pé, tirando o chapéu.

(...) A experiência estética da mãe com seu bebê é comum, regular, costumeira, pois tem milênios atrás de si, desde que o homem pela primeira vez viu o mundo “como sendo” lindo. E sabemos que isto data pelo menos desde a última glaciação.

“De modo análogo, deve-se apenas às nossas limitações em poder identificar-nos com o bebê o fato de deixá-lo, em nosso pensamento, privado de mentalidade”.

6. Relações íntimas – (...) A devotada mãe comum apresenta ao seu lindo bebê comum um objeto complexo de enorme interesse, tanto sensorial como infra-sensorial. Sua beleza externa, concentrada, como deve ser, nos seios e na face, complicada em cada caso pelos mamilos e pelos olhos, bombardeia o bebê com uma experiência emocional de qualidade passional, resultando em que o bebê seja capaz de ver estes objetos como “lindos”. Mas permanece desconhecido para o bebê o significado do comportamento de sua mãe; do aparecimento e do desaparecimento do seio e da luz de seus olhos, de uma face na qual as emoções passam como sombras de nuvens sobre a paisagem. Afinal das contas, o bebê veio para uma terra estranha onde ele desconhece a linguagem e também as indicações e comunicações não-verbais costumeiras. A mãe lhe é enigmática; ela exibe um sorriso de Gioconda a maior parte do tempo e a música de sua voz fica constantemente mudando do tom maior para o tom menor. Como “K” de Franz Kafka o bebê precisa esperar por definições advindas do “castelo” – o mundo interno de sua mãe. O bebê fica naturalmente em guarda contra um otimismo e confianças sem brigas, pois ele já dispõe de uma experiência dúbia, da qual escapou ou foi expulso – ou talvez o bebê, e não sua mãe, tenha “parido” perigo! Pois não obstante o fato de tirar de dentro de si o morder, ela também lhe fornece uma coisa que explode que ele precisa expelir por si mesmo. A rigor ela deu e tirou, tanto as coisas boas como as coisas ruins. O bebê não consegue discriminar se a mãe é Beatrice ou sua Belle Dame Sans Merci. Isto é conflito estético, que pode ser enunciado de modo mais preciso em termos do impacto estético do exterior da “linda mãe”, disponível aos sentidos, e do enigmático interior que precisa ser construído por meio da imaginação criativa.

(...) O elemento trágico na experiência estética reside na qualidade enigmática do objeto – não na sua transitoriedade.

É neste aspecto que o conflito estético difere da agonia romântica: sua experiência central de dor reside na incerteza.

(...) através do vínculo K, o desejo de conhecer, e não de possuir o seu objeto de desejo. O vínculo K assinala o valor do desejo enquanto estímulo ao conhecimento, e não apenas um clamor de gratificação e controle sobre o objeto. O desejo torna possível, até essencial, dar ao objeto sua liberdade.

(...) Coloca os valores humanos em mente, olhando para frente, para o desenvolvimento, e para a possibilidade de um objeto enriquecido cuja aquisição é possível justamente graças à sua perda.

(...) Como demonstrou Melanie Klein, é verdade que a mudança envolve a transformação do auto-interesse na própria segurança e conforto para a preocupação com o bem-estar do objeto amado. No entanto, isto não descreve o modus operandi da mudança. Pois é a busca pela compreensão (vínculo K) que salva a relação de um impasse, a interação de alegria e dor que engendrara os vínculos de ambivalência amor (L) e ódio (H). É neste ponto que a Capacidade Negativa se faz presente, onde o Belo e a Verdade se encontram.

Donald Meltzer - A Apreensão do Belo


Friday, November 02, 2007

Sobre a Fundamentação dos Valores

“(...) a parte que a força desempenha na natureza, como causa do movimento, tem por contrapartida, na esfera mental, o motivo como a causa da conduta”

Max Planck in Causation and Free Will. (citado por Hannah Arendt)

1. (...) “sobre o fundamento racional que podemos achar para o que consideramos valioso, isto é, para o fato de que assim o reputemos: o que funda e sustenta a preferência por determinadas atitudes, por certos comportamentos e instituições? Qual a razão da estima que merecem? E (...) não apenas o fato de serem estimados, mas o direito que temos de valorá-los assim.

(...) No imperativo moral – deixando agora de lado sua natureza hipotética ou categórica – coexistiram em todas as épocas e em todas as culturas dois ingredientes: a interiorização da norma social e o projeto de excelência pessoal. Essa coexistência nunca foi totalmente pacífica, mas sempre conheceu um vaivém mais ou menos acentuado de natureza dialética. Por um lado, a moral impõe o respeito ao coletivo e a subordinação da auto-afirmação individual à auto-afirmação do grupo ou até da humanidade em seu conjunto. Note-se que não se trata nunca de passar do interesse ao desinteresse, mas de um interesse mais estreito a um interesse mais geral; ou, se preferirem, de um interesse mais frágil e comprometido – o do indivíduo – a um interesse mais seguro, estável e consolidado, o da coletividade.

(...) Num primeiro momento, o indivíduo não se sente com forças suficientes – com suficiente vontade (energia ativa) – nem mesmo para conceber (...) uma aspiração ou destino pessoal; ele precisa sentir-se coberto pela vontade (energia ativa) coletiva, ligada ao dínamo social que institui e potencializa a resistência biológica e simbólica à morte. Por outro lado, num momento posterior do processo da genealogia ética, o assentamento da (...) empresa coletiva devolve ao indivíduo a plenitude de seu desejo auto-afirmativo, mas já como projeto ou destino pessoal.

(...) Seja como for, toda ética da excelência individual interioriza e potencializa os valores de um grupo, cujos membros aceitam um mesmo marco axiológico que define sua competência e delimita sua competição, enquanto as morais do bem comum nunca deixam de se propor como um caminho abnegado para a perfeição pessoal.

(...) As éticas transcorrem de códigos indistintamente coletivos a outros distintamente personalizados, da inatacabilidade sagrada da norma ao questionamento e recriação subjetiva, da fundamentação ancestral à projeção histórica, do acatamento do tabu ao reconhecimento da utilidade, da exterioridade coativa à interiorização do dever, do predomínio da lógica da pertinência (e exclusão) própria do grupo à dinâmica da participação relativa e da abertura universal próprias do individualismo, etc. Ou seja, da moral de fusão necessária à moral de livre distinção.

(...) A vontade individual se afirma por tentativas graças à energia recebida da vontade social capitalizada, mas esta afirmação é sentida, para começar, como choque e, portanto, como ameaça de destruição.

(da Antiguidade tribal aos tempos modernos) (...) O processo social pelo qual se produziu uma consciência individual capaz de suportar a si mesma sem pânico nem busca imediata de expiação foi sumamente trabalhoso e, ainda hoje, dista muito de estar concluído.

2. (...) toda moral tem sua raiz na busca decidida do mais conveniente para o sujeito, do que mais interessa a ele.

(...) A vontade – isto é, a capacidade ativa de procurar a imortalidade – começa a ser experimentada em certos casos ou em certos aspectos como aventura individual e não apenas como participação irremediável num fundo energético comum. Por “imortalidade” não se entende aqui a negação da morte nem a sobrevivência espiritual depois da morte, mas a resistência institucional ante a desvalorização aniquiladora que a presença permanente da morte impõe a toda a atividade humana. A imortalidade não nega a morte, mas é uma exigência vital ante sua irrefutável constatação: de tal modo que morte é vazio, e a imortalidade reclama plenitude; morte é acabamento, e a imortalidade busca duração ou perpetuação; morte é esquecimento, e a imortalidade quer memória; morte é despojamento, e a imortalidade procura propriedade; morte é suprema indiferença, e a imortalidade pretende distinção; morte é inação, e a imortalidade se afirma na atividade criadora; morte é desagregação caótica, e a imortalidade estabelece uma coordenação ordenada; morte é insensibilidade definitiva, e a imortalidade não pode renunciar ao prazer e à satisfação... Numa palavra, morte é cessação do sentido de uma condição cuja humanidade arrima em tê-lo, e imortalidade é consolidação do sentido diante da morte e apesar da morte. Toda instituição humana é num grau ou outro imortalizadora e não há mais cultura que a pretensão de imortalidade.

(...) o interesse que o indivíduo pretende assegurar é o de sua imortalidade, que não é mera sobrevivência, mas vida ao abrigo da necessidade e a despeito do (des) falecimento: perduração da intensidade, pertinência ao eterno. A forma mais acessível – digamos a mais barata, porque é a que menos custa embora não seja a de melhor qualidade – de alcançar este objetivo é a entrega efusiva a um grupo já consolidado, a uma tradição social, é a identificação com um líder ou um povo, a fé num Deus e numa religião salvadora ou no transmundano. Essas opções tendem a suprimir o obstáculo mais evidente para a imortalidade, que é a fragilíssima particularidade do sujeito individual. Em última instância, são fórmulas mais ou menos sofisticadas de perduração na espécie, que destrói os particulares, mas conserva e reproduz indefinidamente o genérico. Por outro lado, e isso é muito importante, ajudam a suportar a culpabilidade que sente o eu por se afirmar ativa e, portanto agressivamente diante do que preexiste a ele. A culpa do indivíduo ao agir como tal é o presságio da morte que há de castigar sua finitude. Ruptura com a matriz da espécie ou com o clã, ameaça de castração paterna ou legal, enfrentamento com a hostilidade numerosa dos outros, solidão diante das conseqüências nunca totalmente previsíveis da escolha própria, desafio à monstruosa natureza que vai nos cobrando um a um... Mas os demais sujeitos não se afiliam automaticamente à via da imortalidade coletiva – ou não fazem totalmente, ou não principalmente – e querem conservar juntamente o individual e o específico, o particular e o genérico de sua própria entidade. Ou seja, colocam-se o problema de imprimir uma marca irrepetível e distinta à fórmula da imortalidade, requerendo a cumplicidade e o apoio da coletividade, claro, mas negando-se à via despersonalizada dos que renunciam à sua alma para salvá-la melhor”.

Fernando Savater - Ética Como Amor Próprio