Showing posts with label Estética. Show all posts
Showing posts with label Estética. Show all posts

Thursday, July 21, 2011


1. Em Inveja e Gratidão, livro de 1957, Melanie Klein estabeleceu o conceito de “inveja em relação ao objeto bom, com o intuito de apossar-se de suas características boas”.
[...] “Tal ambiguidade pareceu ter sido resolvida por Wilfred Bion quando ele descreve as emoções como “vínculos”, descartando as dualidades tradicionais de amor e ódio e substituindo-as por um confronto mais complexo e filosoficamente mais penetrante. Inicialmente ele estendeu o raio de ação dos vínculos passionais, ao incluir o conhecer, juntamente com o amar e o odiar”.
[...] No entanto, Bion não se afasta do vínculo fundamental entre a dor mental e a frustração até (quando) ele introduz a idéia de “mudança catastrófica”. É a “nova ideia” que se abate sobre a mente como uma catástrofe, pois, para ser assimilada, detona o fluxo de toda a estrutura cognitiva. [...] Caso sigamos de perto o pensamento de Bion, vemos que a nova ideia se apresenta como sendo uma “experiência emocional” da beleza do mundo e de sua maravilhosa organização [...].
[...] O panorama descortinado pela formulação de Bion a respeito da dor mental e do prazer mental implica que o conflito intrínseco dos vínculos mentais positivos e negativos, perimetrais ao desejo e ao interesse, sempre se faz presente; em consequência, no nível passional – no qual a vida onírica segue seu curso – o prazer e a dor estão sempre inextricavelmente unidos. No entanto, este conflito essencial (a partir de cuja matriz o “aprender da experiência”, se desenvolve para produzir mudança estrutural por oposição a acréscimo de informação) precisa encontrar sua representação simbólica (função alfa) para tornar-se disponível para os pensamentos oníricos, transformação em linguagem verbal (ou outras formas simbólicas, como nas artes) e elaboração através de abstração, condensação, generalização e outros instrumentos de pensamento sofisticado.
tolerância deste conflito, que forma a essência da força do ego, reside naquilo que Wilfred Bion denominou “capacidade negativa”: a capacidade de permanecer na incerteza sem procurar com irritação o fato e a razão.
Na luta contra a força cínica dos vínculos negativos esta capacidade de tolerar a incerteza, o não-saber, a “nuvem de desconhecimento”, é constantemente solicitada na “paixão das relações íntimas e se situa no centro da questão do conflito estético”.
2. Não há nenhum evento da vida adulta que tenha sido tão calculado para originar nossa admiração frente à beleza e nosso maravilhamento frente aos intrincados mecanismos daquilo que denominamos Natureza quanto os eventos da procriação. Não há flor ou pássaro, por mais chamativa que seja sua coloração ou plumagem, que possa nos impor o mistério da experiência estética como a visão de uma jovem mãe amamentando seu bebê. Adentramos a um berçário como se penetrássemos em uma catedral ou nas florestas do Pacífico, pé ante pé, tirando o chapéu.
[...] A experiência estética da mãe com seu bebê é comum, regular, costumeira, pois tem milênios atrás de si, desde que o homem pela primeira vez viu o mundo “como sendo” lindo. E sabemos que isto data pelo menos desde a última glaciação.
“De modo análogo, deve-se apenas às nossas limitações em poder identificar-nos com o bebê o fato de deixá-lo, em nosso pensamento, privado de mentalidade”.
3. Relações íntimas – [...] A devotada mãe comum apresenta ao seu lindo bebê comum um objeto complexo de enorme interesse, tanto sensorial como infra-sensorial. Sua beleza externa, concentrada, como deve ser, nos seios e na face, complicada em cada caso pelos mamilos e pelos olhos, bombardeia o bebê com uma experiência emocional de qualidade passional, resultando em que o bebê seja capaz de ver estes objetos como “lindos”. Mas permanece desconhecido para o bebê o significado do comportamento de sua mãe; do aparecimento e do desaparecimento do seio e da luz de seus olhos, de uma face na qual as emoções passam como sombras de nuvens sobre a paisagem. Afinal das contas, o bebê veio para uma terra estranha onde ele desconhece a linguagem e também as indicações e comunicações não-verbais costumeiras. A mãe lhe é enigmática; ela exibe um sorriso de Gioconda a maior parte do tempo e a música de sua voz fica constantemente mudando do tom maior para o tom menor. Como “K” de Franz Kafka o bebê precisa esperar por definições advindas do “castelo” – o mundo interno de sua mãe. O bebê fica naturalmente em guarda contra um otimismo e confianças sem brigas, pois ele já dispõe de uma experiência dúbia, da qual escapou ou foi expulso – ou talvez o bebê, e não sua mãe, tenha “parido” perigo! Pois não obstante o fato de tirar de dentro de si o morder, ela também lhe fornece uma coisa que explode e que ele precisa expelir por si mesmo. A rigor ela deu e tirou, tanto as coisas boas como as coisas ruins. O bebê não consegue discriminar se a mãe é Beatrice ou sua Belle Dame Sans MerciIsto é conflito estético, que pode ser enunciado de modo mais preciso em termos do impacto estético do exterior da “linda mãe”, disponível aos sentidos, e do enigmático interior que precisa ser construído por meio da imaginação criativa.
[...] O elemento trágico na experiência estética reside na qualidade enigmática do objeto – não na sua transitoriedade.
É neste aspecto que o conflito estético difere da agonia romântica: sua experiência central de dor reside na incerteza.
[...] através do vínculo K, o desejo de conhecer, e não de possuir o seu objeto de desejo. O vínculo K assinala o valor do desejo enquanto estímulo ao conhecimento, e não apenas um clamor de gratificação e controle sobre o objeto. O desejo torna possível, até essencial, dar ao objeto sua liberdade.
[...] Coloca os valores humanos em mente, olhando para frente, para o desenvolvimento, e para a possibilidade de um objeto enriquecido cuja aquisição é possível justamente graças à sua perda.
[...] Como demonstrou Melanie Klein, é verdade que a mudança envolve a transformação do auto-interesse na própria segurança e conforto para a preocupação com o bem-estar do objeto amado. No entanto, isto não descreve omodus operandi da mudança. Pois é a busca pela compreensão (vínculo K) que salva a relação de um impasse, a interação de alegria e dor que engendrara os vínculos de ambivalência amor (L) e ódio (H). É neste ponto que a Capacidade Negativa se faz presente, onde o Belo e a Verdade se encontram.
Donald Meltzer - A Apreensão do Belo

Wednesday, July 20, 2011


[...] "De tudo o que eu disse até o momento, seria possível inferir que o juízo estético não é voluntário. Na verdade, isso não precisa ser dito. Toda intuição, seja comum ou estética, é involuntária quanto ao seu conteúdo ou resultado. O juízo estético de cada um, por ser uma intuição e nada mais, é acolhido, e não oferecido. Não se escolhe gostar ou deixar de gostar de determinada obra de arte mais do que se escolhe ver o sol como luminoso ou a noite como escura. [...] Por outras palavras: a valoração estética é reflexiva, automática, e jamais se chega a ela por arbítrio, deliberação ou raciocínio". (Clement Greenberg)

[...] Embora considerasse involuntários os juízos de gosto, Greenberg não foi persistente ao ponto de tomá-los como não passíveis de revisão ou aprimoramento. Concebia o gosto como uma faculdade que podia ser "desenvolvida" ou "cultivada" por meio de uma crescente exposição à arte - tanto através de uma ampliação do campo da experiência quanto de repetidos contatos com as mesmas obras - e por meio da reflexão sobre o que foi visto (ou ouvido, ou lido). (Charles Harrison)

[...] "Tudo o que digo é que a história não mostra nenhum caso de inovação significativa em que o artista inovador não conhecesse e dominasse a convenção ou as convenções que modificava ou abandonava. O que significa dizer que submetia sua arte à pressão dessas convenções, enquanto as modificava ou as rechaçava. Que não precisava sair em busca de novas convenções para substituir as que deixava de lado; suas novas convenções emergiriam das antigas simplesmente por meio de seu embate com as antigas. E estas, não importa quão abruptamente descartadas, de algum modo permaneceriam lá, como fantasmas, e como fantasmas governariam". (Clement Greenberg)

[...] Pertencer à vanguarda, na sua visão, jamais significou a realização de um "rompimento radical com o passado",  mas sempre a transformação dos mecanismos de um meio por aqueles diretamente envolvidos com esse meio. (Charles Harrison)

Charles Harrison - Introdução: O Juízo na Arte.
Clement Greenberg - A Intuição e a Experiência Estética / Convenção e Inovação

Clement Greenberg - Estética Doméstica

Tuesday, July 19, 2011

ENTREVISTA PAUL BLOOM

Crenças e preconceitos moldam reação das pessoas a prazer e dor

VAGUINALDO MARINHEIRO - ENVIADO ESPECIAL A EDIMBURGO

Paul Bloom, professor do Departamento de Psicologia da Universidade Yale (EUA), quer entender por que o conhecimento e as nossas crenças interferem na forma como sentimos prazer, seja ao beber um vinho, ver uma obra de arte ou fazer sexo.

Autor do livro How Pleasure Works (Como o Prazer Funciona), Bloom diz que, ao sentirmos prazer, respondemos a coisas mais profundas do que gosto, cheiro ou aparência. Na verdade, diz, nosso prazer é guiado pelo que sabemos, ou julgamos saber, sobre o objeto ou a pessoa com os quais interagimos.

"Mesmo nos prazeres mais animais, somos influenciados por aquilo em que acreditamos", diz o pesquisador.
Bloom, 47, também estuda o comportamento moral de bebês e diz que a crença de que todas as crianças são anjos está errada. "São humanos como eu ou você. Têm impulsos bons e maus."

O psicólogo, cuja disciplina de introdução à psicologia está disponível de graça para download (oyc.yale.edu/psychology/introduction-to-psychology), esteve na semana passada em Edimburgo, onde participou da TEDGlobal, série de palestras sobre inovação.

Após falar para uma plateia de 850 pessoas, ele conversou com a Folha. Confira os melhores trechos da conversa abaixo.

Folha - Como o prazer funciona? O que afeta a forma como apreciamos as coisas?

Paul Bloom - Ao obter prazer, não respondemos apenas aos aspectos superficiais de um objeto ou pessoa, como gosto, cheiro, aparência. Nosso prazer é afetado pelo conhecimento e pelas crenças que temos. Por exemplo, se achamos que um vinho é caro, teremos mais prazer em tomá-lo. No caso da pintura, você pode amar um quadro se acredita que é um Picasso ou um Chagall e não dá a mínima se pensa que é uma falsificação. Mesmo que o original e a cópia sejam iguais.
No caso das pessoas, juntamos à aparência outros fatores que julgamos conhecer sobre elas, que podem ser idade, vida profissional etc.

E com relação à comida? Por que uma pessoa gosta de queijo e outra não?

Queijo é um bom exemplo. Muitos têm cheiro muito forte. Se você disser a alguém que o cheiro que está sentindo é de um animal, ela ficará enojada. Mas se disser que é de um queijo, e que ele é caro, a pessoa pode salivar.

Como é esse processo dentro do cérebro?

Ninguém sabe. Sabemos pouco sobre o que acontece no cérebro. Mas o conhecimento direciona nossas sensações de uma forma que sejam prazerosas ou não.

É possível ensinar alguém a ter prazer?

Fazemos isso o tempo todo por meio da educação. Poucas crianças apreciam, a princípio, música clássica. Mas algumas desenvolvem o gosto por esse tipo de música. Ninguém nasce com apreço por arte moderna.

É possível controlar esse sistema de prazeres?

Depende. Eu não gosto de queijo. Nada me faz gostar de queijo. Por outro lado, se você quer mesmo desenvolver o gosto por algo, a melhor maneira é adquirir conhecimento sobre essa coisa. Por exemplo, pegue uma pessoa que gosta de música clássica e não goste de rap. Mas essa pessoa, por alguma razão, quer gostar de rap. O melhor caminho é pesquisar, aprender sobre esse movimento cultural.

E os prazeres sexuais, são inatos ou desenvolvidos?

O ser humano, como todos os animais que dependem de reprodução, tem desejo sexual. Mas sexo é outro exemplo interessante de como o conhecimento e as crenças definem o desejo, o prazer. Imagine um homem heterossexual vendo um vulto nu à distância. Se ele acreditar que é uma estrela de cinema, uma modelo, ficará muito excitado. Mas se de repente pensar que é um homem, ou sua mãe, sua irmã, sua filha, o desejo, a excitação, acabará imediatamente.

É possível separar o que já apreciamos ao nascer de prazeres desenvolvidos depois?

Sim. O gosto por açúcar, por exemplo, que já aparece em bebês, aparentemente é algo inato. Já o gosto por música clássica é adquirido. Muitos dos prazeres e desprazeres originais estão relacionados com a evolução, com coisas boas do ponto de vista animal. Por exemplo, animais não gostam de bater a cabeça na parede, porque machuca. Já humanos adultos podem desenvolver prazeres que não estejam ligados ao bem-estar. O masoquismo é um desses casos.

O senhor diz que há a mesma relação entre conhecimento e dor. É possível, então, ensinar alguém a tolerar a dor ou sentir menos dor?

Não há dúvidas de que a dor é influenciada pelo conhecimento. Pesquisas mostram que sentimos mais dor se soubermos que a pessoa que nos causa essa dor o faz de propósito. Por outro lado, há o caso de atletas. Corri uma maratona há alguns anos e senti muita dor, mas sabia por que estava doendo. Porém, suponha que tivesse acordado um dia com as mesmas dores. Seria muito mais intolerável, porque desconheceria a causa.

O senhor também estuda bebês e moralidade. O que já descobriu?

Que mesmo bebês de seis meses fazem escolhas baseadas em conceitos morais. Preferem, por exemplo, pessoas que são amigáveis. Em outros institutos de pesquisa, já mostraram que bebês não gostam de ver pessoas sendo agredidas ou feridas, e que, se já têm mobilidade, tentam ajudar.

Muitos defendem que a moral está relacionada com conceitos religiosos. A pesquisa desmente isso?

Já sabemos que a moral não está diretamente ligada a religiões. Os ateus não são piores que os religiosos. O conceito de Dostoiévski, a ideia de que, se não houvesse Deus, tudo seria permitido, é completamente falso. O fato de uma pessoa não crer em Deus não faz dela um assassino.

Sunday, July 17, 2011

Concluindo o que eu estava falando sobre a beleza, as mais satisfatórias relações do sensível devem, por conseguinte, corresponder às fases necessárias da apreensão artística. Descobre-as e terás descoberto as qualidades da beleza universal. Santo Tomás de Aquino diz: Ad pulcritudinem tria requiruntur integritas, consonantia, claritas. Eu traduzo isso assim: Três coisas são necessárias para a beleza: inteireza, harmonia e radiação. Correspondem essas três às fases da apreensão?

Para ver um cesto, o espírito, antes de mais nada, separa o cesto do resto do universo visível que não é o cesto. A primeira fase de apreensão é uma linha limitando, contornando o objeto a ser apreendido. Uma imagem estética se nos apresenta seja no espaço ou no tempo. O que é audível apresenta-se no tempo, o que é visível apresenta-se no espaço. Mas, tanto temporal como espacial, a imagem estética é em primeiro lugar luminosamente apreendida como autolimitada e autocontida sobre o incomensurável segundo plano do espaço ou do tempo, que não o são. Tu a apreendes como uma coisa. Tu a enxergas como um todo. Apreendes o seu todo. Eis o que é integritas.

Então, depois, tu passas dum a outro ponto, conduzido por suas linhas formais; apreendes cada ponto como parte em função de outra parte dentro dos seus limites; sentes o ritmo de sua estrutura.

Em outras palavras, a síntese da percepção imediata é seguida pela análise de apreensão. Tendo, primeiramente, sentido que é uma coisa, sentes, agora, que é uma coisa. Tu a apreendes como complexa, múltipla, divisível, separável, inteirada pelas suas partes, o resultado de suas partes e a soma harmoniosa. Eis o que é consonantia.

A conotação de claritas é um tanto vaga. Santo Tomás de Aquino emprega um termo que parece ser inexato, que me iludiu durante muito tempo. Tal termo levaria a crer que ele tinha em mente simbolismo ou idealismo, a suprema qualidade da beleza sendo uma luz como que dum outro mundo, a ideia de que a matéria não era senão a sombra, a sua realidade não sendo senão o símbolo. Penso que ele cuidaria que claritas fosse a descoberta e a representação artística da intenção divina nalgumacoisa, ou a força da generalização que faria da imagem estética uma imagem universal, que a faria irradiar as suas próprias condições.

Mas isso não passa de linguagem literária. Pelo menos assim a tomo eu. Quando apreendeste aquela cesta como uma coisa e a analisaste, depois, de acordo com a sua forma e a apreendeste como coisa, fizeste a única síntese que lógica e esteticamente é permissível. Viste que é a coisa que de fato é, e não uma outra coisa. A radiação de que ele fala na escolástica: quidditas, o quê de uma coisa. Tal qualidade suprema é sentida pelo artista quando primeiro a imagem estética é concebida em sua imaginação. O espírito, nesse misterioso instante, Shelley comparou-o lindamente a um carvão se apagando. O instante em que essa suprema qualidade de beleza, a radiação clara da imagem estética, é apreendida luminosamente pelo espírito que foi surpreendido por sua inteireza e fascinado por sua harmonia é o luminoso êxtase silencioso de prazer estético, um estado espiritual muito similar à condição cardíaca que o fisiologista italiano Luigi Galvani, servindo-se duma frase quase tão bonita quanto a de Shelley, chamou de encantamento do coração.

O que eu disse se refere à beleza no mais lato sentido da palavra, no sentido que tal palavra possui na tradição literária. No mercado da bolsa, se bem me exprimo, ela tem outro sentido. Quando falamos em beleza, no segundo sentido do termo, o nosso julgamento é influenciado em primeiro lugar pela arte mesma, bem como pela forma dessa arte. A imagem, é claro, deve ser posta entre o espírito ou os sentidos do artista pessoalmente e o espírito e os sentidos dos demais. Se fixares bem isso na tua memória, verás que a arte, necessariamente, se divide em três formas ligadas progressivamente uma à outra. Tais formas são: a forma lírica, isto é, a forma na qual o artista manifesta a sua imagem em imediata relação com ele próprio; a forma épica, isto é, a forma na qual ele manifesta a sua imagem em imediata relação consigo mesmo e com os outros; e a forma dramática, isto é, a forma na qual ele manifesta a sua imagem em imediata relação com os outros.

É uma cadeira bem feita, trágica ou cômica? É o retrato de Mona Lisa bom, se o desejo ver? O busto de Sir Philip Crampton é lírico, épico ou dramático? Se não é, por que não o é? Se um homem, trabalhando com fúria, um bloco de madeira faz aí a imagem duma vaca, é essa imagem uma obra de arte? Se não, por que não?

A arte, sendo inferior, não apresenta as formas, de que falei, distintamente claras umas das outras. Mesmo em literatura, a arte mais alta e mais espiritual, as formas são muitas vezes confusas. A forma lírica é, de fato, a veste verbal mais simples dum instante de emoção, uma exclamação rítmica, dessas que, há muitos anos, são gratas ao homem que empunhava um remo ou que rolava pedras numa ladeira. 

Aquele que a profere está mais cônscio do instante de emoção do que de si mesmo ao sentir a emoção. A forma épica mais simples é vista emergindo da literatura lírica quando o artista prolonga e se põe a se examinar como centro dum fato épico e essa forma progride até que o centro de gravidade emocional fique equidistante do artista propriamente e dos outros. A narrativa tampouco é meramente pessoal.

A personalidade do artista passa para a narração mesma, enchendo, enchendo de fora para dentro as pessoas e a ação como um mar vital. Tal progressão vê-la-ás facilmente nessa antiga balada inglesa, Turpin Hero, que começa na primeira pessoa e acaba na terceira. A forma dramática é atingida quando a vitalidade que encheu e turbilhonou em volta de cada pessoa enche todas as pessoas com uma força vital tal que ele ou ela acaba assumindo uma vida própria estética e intangível.

A personalidade do artista, no começo um grito, ou uma cadência, ou uma maneira, e depois um fluido e uma radiante narrativa, acaba finalmente se clarificando fora da existência, despersonalizando-se por assim dizer. A imagem estética, na forma dramática, é a vida purificada nela e tornando a se projetar para fora da imaginação humana. O mistério da criação estética, assim como o da criação material, então se realiza. O artista, como o Deus da criação, permanece dentro, junto, atrás ou acima da sua obra, invisível, clarificado fora da existência, indiferente, raspando as unhas dos seus dedos.

James Joyce - Retrato do artista quando jovem. Tradução de José Geraldo Vieira

Friday, July 15, 2011

Aristóteles não definiu a piedade e o terror. Eu defini. Escuta...

A piedade é o sentimento que faz parar o espírito na presença de algo que seja grave e constante no sofrimento humano e o une com o sofredor humano. O terror é o sentimento que detém o espírito na presença de seja lá o que for que seja grave e constante no sofrimento humano e o liga à sua causa secreta.

De fato, a emoção trágica é uma face olhando para dois lados, para o terror e para a piedade, pois que ambos são faces dela.

Repara bem que emprego o termo deter, ficar parado. Quero com isso significar que a emoção trágica é estática. Ou, antes, a emoção dramática é que o é. Os sentimentos excitados pela arte imprópria são cinéticos, desejo, ou repulsa. O desejo nos compele a possuir, a ir para alguma coisa; a repulsa nos compele a abandonar, a partir duma dada coisa. As artes que o excitam, pornográficas ou didáticas, são, por conseguinte, artes impróprias. A emoção estética (sempre emprego o termo geral) é, por conseguinte, estática. O espírito fica detido e suspenso acima do desejo e da repulsa.

O desejo e a repulsa excitados por meios estéticos impudicos não são realmente emoções estéticas, não só porque são cinéticas em caráter como também porque não são senão físicas. A nossa alma contrai-se ante aquilo que teme e responde ao estímulo daquilo que deseja por uma ação puramente reflexa do sistema nervoso. Nossas pálpebras fecham-se antes que estejamos cônscios de que a mosca está a ponto de entrar no nosso olho.

A beleza expressa pelo artista não pode despertar em nós uma emoção que é cinética, ou uma sensação que é puramente física. Ela desperta ou deve despertar, ou induz, ou deve induzir, um êxtase estético, uma piedade ideal ou um terror ideal, um êxtase que perdura, que se prolonga e que acaba, por fim, dissolvido pelo que chamo de ritmo de beleza.

O ritmo é a primeira relação formal estética duma parte com outra parte, em qualquer conjunto ou todo estético, ou dum todo estético para a sua parte ou para as suas partes ou duma parte para o todo estético do qual é parte.

Falar destas coisas, tentar compreender-lhes a natureza, e, tendo-a compreendido, procurar lenta, humilde e constantemente expressar (tornar a extrair da terra bruta ou do que dela procede, do som, da forma e da cor, que são as portas da prisão de nossa alma) uma imagem da beleza que chegamos a aprender — isto é arte.

Que é a arte? Que é que a beleza exprime? A arte é a disposição humana de matéria sensível ou inteligível para um fim estético.

Santo Tomás de Aquino diz que o belo é a apreensão do que agrada. Pulcra sunt quae visa placent.

Ele emprega a palavra visa para revestir as apreensões estéticas de todas as maneiras, seja através da vista ou do ouvido, seja através de qualquer outra perspectiva de apreensão. Esta palavra, conquanto seja vaga, é clara o suficiente para discernir o que haja de bom e de mau que excite o desejo e a repulsa. Significa certamente uma estase e não uma cinese. E relativamente ao real? Também produz uma estase do espírito. 

Por conseguinte, estático, Platão, creio eu, disse que a beleza é o esplendor da verdade. Não acho que isso tenha um sentido, mas a verdade e a beleza são aparentadas. A verdade é contemplada pelo intelecto que é acalmado pelas mais satisfatórias relações do inteligível; a beleza é contemplada pela imaginação que é acalmada pelas mais satisfatórias relações do sensível. O primeiro passo na direção da verdade é compreender o escopo e o encaixe do intelecto mesmo, compreender o ato mesmo de intelecção. Todo o sistema de filosofia de Aristóteles repousa no seu livro de psicologia e esta, penso eu, no seu princípio de que o mesmo atributo não pode ao mesmo tempo e com a mesma conexão pertencer e não pertencer ao mesmo objeto. O primeiro passo na direção da beleza é compreender o limite e o escopo da imaginação, compreender o ato mesmo da apreensão estética.

Embora o mesmo objeto possa não ser bonito para toda a gente, toda gente pode admirar um objeto bonito, encontrar nele certas relações que satisfaçam e coincidam com os estágios próprios mesmos de toda apreensão estética. Tais relações do sensível, visíveis para mim através duma forma e para ti através doutras, devem ser, por conseguinte, as necessárias qualidades da beleza. Já agora podemos voltar ao nosso velho amigo Santo Tomás para outros dez vinténs de sabedoria.

James Joyce - Retrato do artista quando jovem. Tradução de José Geraldo Vieira

Tuesday, July 12, 2011

PESSOAL INTRANSFERÍVEL

Trata-se de descrever, não de explicar nem de analisar. Essa primeira ordem que Husserl dava à fenomenologia iniciante de ser uma "psicologia descritiva" ou de retornar "às coisas mesmas" é antes de tudo a desaprovação da ciência. Eu não sou o resultado ou o entrecruzamento de múltiplas causalidades que determinam meu corpo ou meu "psiquismo", eu não posso pensar-me como uma parte do mundo, como o simples objeto da biologia, da psicologia e da sociologia, nem fechar sobre mim o universo da ciência. Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não poderiam dizer nada.

Todo o universo da ciência é construído sobre o mundo vivido, e se queremos pensar a própria ciência com rigor, apreciar exatamente seu sentido e seu alcance, precisamos primeiramente despertar essa experiência do mundo da qual ela é a expressão segunda. A ciência não tem e não terá jamais o mesmo sentido de ser que o mundo percebido, pela simples razão de que ela é uma determinação ou uma explicação dele.

Eu não sou um "ser vivo" ou mesmo um "homem" ou mesmo "uma consciência", com todos os caracteres que a zoologia, a anatomia social ou a psicologia indutiva reconhecem a esses produtos da natureza ou da história - eu sou a fonte absoluta; minha experiência não provém de meus antecedentes, de meu ambiente físico e social, ela caminha em direção a eles e os sustenta, pois sou eu quem faz ser para mim (e portanto ser no único sentido que a palavra possa ter para mim) essa tradição que escolho retomar, ou este horizonte cuja distância em relação a mim desmoronaria, visto que ela não lhe pertence como uma propriedade, se eu não estivesse lá para percorrê-la com o olhar.

As representações científicas segundo as quais eu sou um momento do mundo são sempre ingênuas e hipócritas, porque elas subentendem, sem mencioná-la, essa outra visão, aquela da consciência, pela qual antes de tudo um mundo se dispõe em torno de mim e começa a existir para mim.

Retornar às coisas mesmas é retornar a este mundo anterior ao conhecimento do qual o conhecimento sempre fala, e em relação ao qual toda determinação científica e abstrata, significativa e dependente, como a geografia em relação à paisagem.

IRREDUTÍVEL

O mundo está ali antes de qualquer análise que eu possa fazer dele, e seria artificial fazê-lo derivar de uma série de sínteses que ligariam as sensações, depois os aspectos perspectivos do objeto, quando ambos são justamente produtos da análise e não devem ser realizados antes dela. [...]

[...] O real deve ser descrito, não construído ou constituído. Isso quer dizer que não posso assimilar a percepção às sínteses que são da ordem do juízo, dos atos ou da predicação. A cada momento, meu campo perceptivo é preenchido de reflexos, de estalidos, de impressões táteis fugazes que não posso ligar de maneira precisa ao contexto percebido e que, todavia, eu situo imediatamente no mundo, sem confundi-los nunca com minhas divagações. 

A cada instante também eu fantasio acerca das coisas, imagino os objetos ou pessoas cuja presença aqui não é incompatível com o contexto, e todavia eles não se misturam ao mundo, eles estão adiante do mundo, no teatro do imaginário. Se a realidade de minha percepção só estivesse fundada na coerência intrínseca das "representações", ela deveria ser sempre hesitante e, abandonado às minhas conjecturas prováveis, eu deveria a cada momento desfazer sínteses ilusórias e reintegrar ao real fenômenos aberrantes que primeiramente eu teria excluído dele.

Não é nada disso. O real é um tecido sólido, ele não espera nossos juízos para anexar a si os fenômenos mais aberrantes, nem para rejeitar nossas imaginações mais verossímeis. A percepção não é uma ciência do mundo, não é nem mesmo um ato, uma tomada de posição deliberada; ela é o fundo sobre o qual todos os atos se destacam e ela é pressuposta por eles.

O mundo não é um objeto do qual possuo comigo a lei de constituição; ele é o meio natural e o campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas percepções explícitas. A verdade não "habita" apenas o "homem interior"*, ou, antes, não existe homem interior, o homem está no mundo, é no mundo que ele se conhece. Quando volto a  mim a partir do dogmatismo do senso comum ou do dogmatismo da ciência, encontro não um foco de verdade intrínseca, mas um sujeito consagrado ao mundo.

Maurice Merleau-Ponty - Prefácio - Fenomenologia da Percepção

* "In te redi; in interiore homine habitat veritas." Santo Agostinho.


Cogito

eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como sou
vidente
e vivo Tranquilamente
Todas as horas do fim.


Torquato Neto - Os Últimos Dias de Paupéria (Do Lado de Dentro) - organizado por Ana Maria S. de Araújo Duarte e Waly Salomão

Sunday, July 10, 2011

João e Miles

No mesmo lugar, muito à frente

No aniversário de João Gilberto, reponta o projeto de país fixado em sua obra e em sua intrigante figura. Ao se retirar de cena para não ocupar nem o "circo", nem a "fábrica", faz emergir um sujeito utópico, situado num tempo entre a modernidade e o passado primitivo e depurado, análogo ao Miles Davis de Kind of Blue.

LORENZO MAMMÌ 

A celebração dos 80 anos de João Gilberto proporciona certo desconforto. Não que ele não mereça. Mas a própria ideia de comemoração, com seu alarde festivo, não parece condizente com uma personalidade tão esquiva. 

Atrás de todas as páginas publicadas, memórias, artigos, testemunhos, fica a impressão de que ninguém sabe ao certo quem ele é. E que a expressão evasiva, quase abobalhada, com que pronuncia poucas frases em público é uma máscara com a qual consegue nos ludibriar há décadas. 

Ou não? E se sua figura, seu papel de referência para tudo o que foi produzido na música brasileira dos últimos 50 anos tiver crescido a tal ponto que já não admite um indivíduo atrás dela? 

João Gilberto virou uma espécie de entidade, mais do que um simples intérprete de canções, e entidades não fazem aniversário. Seu aniversário é o aniversário de um país, mais do que o de uma pessoa. E aí, seria o caso de investigar como isso se deu mais do que quem ele realmente é. 

TEMPO

De resto, se há alguém para o qual o tempo não passa, é ele. Há artistas que ficam presos a um momento glorioso e depois se repetem. Mas certamente não é esse o caso de João Gilberto: ao contrário, a repetição, a imobilidade nele parecem essenciais. 

Em sua forma geral, a bossa nova é um "loop", um movimento circular, que volta constantemente ao começo. Não tem propriamente exórdios e finais, evita cadências muito conclusivas. As introduções das canções parecem colhidas no meio de uma conversa já em andamento, e os finais sugerem quase sempre que a melhor coisa a fazer seria recomeçar tudo de novo - e, de fato, João Gilberto costuma repetir três ou quatro vezes a canção inteira. 

Assim como não há começo nem fim, tampouco há acontecimentos dentro da canção que possam sugerir um movimento progressivo. O recurso fundamental é o da elisão, ou seja, a arte de mostrar escondendo: esconder o contraste entre tempos fortes e fracos, não apenas arredondando o 2/4 do samba em 6/8, mas, sobretudo, na mítica batida de João, pela geração contínua de síncopas e síncopas de síncopas, de maneira que o pulso fundamental seja marcado pelas pausas, e não pelos acentos; elisão das transições harmônicas, pela multiplicação de acordes intermediários (no violão de João) ou por um uso sofisticadíssimo das vozes internas (no piano de Tom Jobim); elisão na melodia, que sugere uma curva que não chega a se realizar plenamente; e na emissão da voz, que parece buscar, mais do que o som, o silêncio. 

CHET BAKER

Muito se falou, e de vez em quando ainda se fala, de uma influência de Chet Baker sobre João Gilberto. De fato, foi Chet Baker quem introduziu no jazz o gosto da emissão vocal puríssima, quase sem timbre e sem dinâmica, "sottovoce". 

Mas as semelhanças são superficiais: atrás da voz do jazzista americano transparece a vontade de seduzir pela ternura e pelo aparente desprendimento - uma sedução antitética àquela afirmativa e atrevida de um Frank Sinatra, por exemplo, mas ainda uma sedução. 

Quando João Gilberto canta, em nenhum momento sentimos que está buscando um contato conosco. O sujeito já desapareceu, só ficou a canção - aí está a elisão suprema, aquela que justifica todas as outras. (Como intérprete, quem reintroduziu a busca de uma comunicação interpessoal na maneira de cantar de João Gilberto, fazendo a ponte com Chet Baker, foi Caetano Veloso; mas o que se revela no canto de Caetano, mais do que a voz do sedutor, é a voz do amigo: aquele que pode abordar qualquer assunto, mesmo o mais dolorido ou espinhoso, sem perder a dimensão do afeto.) 

A suspensão voluntária pela qual o sujeito se mostra ao se esvaecer, se oferece à vista (ou ao ouvido) enquanto se retira do mundo, talvez seja o significado essencial da bossa nova. Seu lugar de eleição é à beira-mar, dando as costas à cidade, mas sem entrar na água. Seu tempo é à tardinha, tarde demais para fazer alguma coisa, cedo demais para sair. 

De resto, essa afirmação pela negação se reflete na personalidade dos protagonistas: Vinicius, poeta prestigiado e diplomata, que vai perdendo louros e gravata e que, mesmo depois de se tornar o maior letrista da música popular brasileira, parece constantemente tentado a se esconder atrás de parceiros menos conhecidos (de Jobim para Baden Powell, de Baden Powell para Toquinho); a timidez lendária de Jobim, sua melancolia congênita, sua vontade de se embrenhar no mato (Águas de Março é uma canção eufórica, mas não alegre, como bem mostrou Arthur Nestrovski); e João Gilberto, bem, este quase conseguiu a façanha de não existir.

O mistério, no entanto, está no fato de esta poética da subtração, do quase não dito e não feito, ter sido um acontecimento cultural tão determinante, capaz de marcar com tamanha contundência a identidade brasileira moderna. 

Como pôde se tornar o maior ícone cultural de um país (porque é isso que João Gilberto é) um homem que só teima em desaparecer?

PROFISSIONALIZAÇÃO

O vício da linearidade histórica nos leva a inserir a bossa nova num esquema desenvolvimentista: há o samba clássico, em seguida a influência do jazz, que gera a bossa nova, que abre o caminho à MPB, cada momento servindo de escada para o sucessivo. 

É um modelo fácil de decorar, mas que pouco explica. Há, de fato, um processo de progressiva profissionalização da música popular brasileira, já a partir da era do rádio, na década de 1930 - arranjos mais complexos, cantores mais aparelhados tecnicamente, um sistema de produção muito bem azeitado. 

Nos anos 1950, esse sistema já incorporara o jazz mais moderno, com Johnny Alf e Dick Farney, por exemplo. Mas a aparição de João Gilberto não foi apenas um passo à frente num caminho já traçado. 

Nos primeiros álbuns, tirando as composições dos parceiros mais próximos (Jobim, Menescal, Lyra) e duas dele próprio (uma, vale ressaltar, que se autodefine como baião), poucas outras canções são incluídas, com um critério que, se não for fruto de uma estratégia consciente, é pelo menos índice de um gosto muito revelador.

Os autores mais frequentados são Ary Barroso e Dorival Caymmi, aos quais se acrescenta, a partir de 1961, Geraldo Pereira. Pereira, que morrera em 1955, talvez fosse o herdeiro mais consistente do humor cirúrgico de Noel Rosa, não apenas nas letras, como também em seu fraseado peculiar, com um uso muito inventivo da síncopa. 

Caymmi colocara um estilo de composição muito arrojado a serviço de uma fala popular, aparentemente folclórica. E Ary Barroso era a expressão mais plena da autoconsciência técnica e poética da música popular brasileira, no auge da era do rádio.

MODERNIDADE

Nenhum desses autores coincidia inteiramente com o ideal de modernidade da era JK, apesar da popularidade de que ainda gozavam. 

É como se João Gilberto, em plena febre desenvolvimentista, fosse procurar uma modernidade um pouco mais recuada, que já estava lá, e que, por sua vez, era baseada na releitura de uma tradição ainda mais antiga. O momento-chave, a meu ver, é a inclusão de Aos Pés da Cruz, de Marino Pinto e Zé Gonçalves, em seu primeiro álbum, Chega de Saudade

Se o público-alvo da bossa nova fosse apenas a classe média esclarecida da zona sul, como reza uma sociologia apressada, essa canção de versos católicos, carolas de tão recatados (apesar da citação de Pascal na segunda estrofe), ficaria deslocada.

Por outro lado, talvez em nenhuma outra faixa do disco se torne mais evidente a capacidade do violão de João Gilberto de desmontar, analisar e remontar na hora, no próprio ato de executá-la, a estrutura harmônica de uma canção - justamente porque, provavelmente, essa era a melodia que menos se dispunha a isso. 

A bossa nova (Tom Jobim especialmente) gosta de formas musicais um pouco envelhecidas (modinha, valsa), e o estilo despojado e delicado de seus intérpretes talvez deva mais à maneira de os compositores de samba apresentarem suas canções em volta de uma mesa de bar ou num terreiro do que ao jazz de Chet Baker. 

PASSADO DISSECADO

Mas João Gilberto parece ir mais fundo, se alojando inteiramente numa dimensão da memória e extraindo dela as características de seu estilo inovador. 

Os acordes de seu violão não são novos por aparecerem como experimentação, mas por emergirem de um passado dissecado, levado à essência, revalorizado. As melodias já existem, trata-se de descobrir as harmonias delas. 

Não deixa de ser revelador que só haja uma canção americana entre as gravações dos primeiros anos, I'm Looking over a Four-Leaf Clover (Trevo de Quatro Folhas), e é uma composição antiga, de 1927, que se popularizou na década de 1930 pelos "cartoons" das Merrie Melodies - enfim, quase uma melodia infantil.

O paradigma de Chega de Saudade insere, na projeção do país do futuro, uma modernidade que vem de trás. No fundo, é nesse momento, a partir do corte e da recuperação que a bossa nova opera, que se define o conceito de samba clássico e que a música popular brasileira começa a ter propriamente uma história. O curioso, no caso de João Gilberto, é que a descoberta da história comporta uma suspensão da história, a criação de um espaço mágico em que tudo é moderno ou pode sê-lo, e não há hierarquia. 

Provavelmente, se não houvesse Aos Pés da Cruz em Chega de Saudade, não haveria Coração Materno em Tropicália. Mas, Coração Materno desempenha em Tropicália um papel muito específico, nas antípodas, por exemplo, de Bat Macumba. Aos Pés da Cruz tem, em Chega de Saudade, o mesmo estatuto que Desafinado. As canções estão à mão, como objetos num quarto, num dia de feriado. Podem ser pegas a qualquer momento, manipuladas por um tempo indefinido, deixadas de lado de repente. Não são trabalho, muito menos espetáculo. 

CONSUMO

A década de 1950, e sobretudo os últimos anos, marca a transição da estética industrial da primeira metade do século 20 a outra, baseada no consumo. Como todos os momentos de transição, esse também abre espaços inesperados de liberdade ou, melhor dizendo, de felicidade. Já se viraram as costas às fábricas, mas ainda não se entrou no circo. E ainda não se sabe que o circo implica, ele também, exploração, regras rígidas, assentos numerados. 

A nova modernidade parece fluir sem esforço e, por isso mesmo, se parece com uma situação pré-moderna, não sistêmica, comunitária. Talvez o novo sempre tenha algo de primitivo. Mas o que se instaura nessa fase não é o primitivo selvagem das vanguardas históricas, que sugeria ruptura e revolução. É um primitivo doce, quase infantil, que sobrevive nos pontos mortos e nas horas vagas.

É uma utopia recorrente na época: quando as máquinas assumirem todas as tarefas, as hierarquias de valores vão se inverter. Tudo aquilo que é irrelevante passará a ser fundamental, porque é a outra face da vida, que o trabalho não contempla. 

Isso vale para o "nonsense", o tempo perdido, uma inflexão de voz que não pode ser quantificada e repetida, um sentimento que não visa à extroversão. Vale para tudo aquilo que é para nada.

Por alguma razão, o ideal brasileiro de modernidade se identificou com essa utopia de maneira mais profunda e persistente do que em outros países. E João Gilberto é sua mais perfeita expressão, inclusive pela teimosia em ficar nesse lugar indefinido - fora da fábrica, mas não dentro do circo.

MILES

Contraprova. Se não tivesse morrido em 1991, Miles Davis faria 85 anos 15 dias antes do aniversário de João Gilberto. Em 1959, o mesmo ano de Chega de Saudade, lançava Kind of Blue, que muitos consideram o mais importante disco de jazz já gravado. Miles Davis já fora responsável por outras revoluções: com seu mítico quinteto (ele ao trompete, John Coltrane ao saxofone, Red Garland ao piano, Paul Chambers ao baixo, Philly Joe Jones na bateria), praticamente inventou o cool jazz. Com Gil Evans, revolucionou o estilo das big bands.

No campo da música popular, a transição que tentei descrever tem nele seu maior protagonista. Nesse processo, contudo, Kind of Blue representa um ponto de volta, principalmente pela adoção sistemática da harmonia modal, que já experimentara ocasionalmente nos anos anteriores. 

Na harmonia tonal, a sequência de acordes é construída para "resolver" em determinadas notas, que são os pontos de apoio e de repouso da composição. Na harmonia modal, não há pontos de apoio privilegiados, as sequências não são direcionadas. Os acordes formam estruturas que permanecem, por assim dizer, em suspensão. 

A primeira faixa do disco, So What?, baseada em apenas dois acordes, é o manifesto de quase todo o jazz e de muita música popular que estava por vir. Mas o modalismo não é apenas pós, é também pré-tonal: permite aproveitar todo o material de tradições étnicas ou populares não atingidas pela técnica tonal ocidental. 

Por um lado, a atitude e as inovações de Miles Davis faziam com que o jazz ultrapassasse o virtuosismo "operário" que ainda marcava a geração anterior (até nos maiores: Charlie Parker e Dizzy Gillespie) e adquirisse a concentração e a precisão técnica de uma experiência de laboratório; por outro, a partir de Kind of Blue, os ritmos hipnóticos, as melodias circulares, os acordes não funcionais faziam emergir uma raiz africana que já não se confundia espontaneamente com o ritmo da produção industrial, como no jazz clássico.

CIENTISTA E XAMÃ

Sempre mais, nos anos seguintes, Miles Davis tentou conjugar a alta tecnologia e o transe, o laboratório e a tribo, reivindicando para si, ao mesmo tempo, o papel do cientista e o do xamã. 

Mas a conciliação, nesse caso, não era tão fácil - aliás, talvez fosse irrealizável. Não havendo síntese possível no presente, era necessário apontar para o futuro, se colocar sempre um pouco mais além. 

Miles Davis é condenado a abrir caminhos, a estar sempre quilômetros à frente, Miles Ahead, como reza o título de um álbum de 1957: como em Bitches Brew (1969), que inaugura o jazz fusion, ou em Tutu (1986), onde Miles contracena com apenas um músico (Marcus Miller) e uma floresta de sintetizadores. 

Mas todas essas gravações geniais, no fundo, apenas comentam e desdobram a intuição fundamental de 1959, a interrupção do fluxo do tempo pela síntese de dois acordes em que futuro e pré-história parecem coincidir por um instante. E, por um instante, não parece haver problema - so what?

Certamente, João Gilberto nunca teve a ambição de Miles Davis. Nunca se sentiu dilacerado entre um futuro inalcançável e uma raiz perdida. Para ele, um violão acústico é moderno o bastante, e as raízes estão bem aí, na Bahia, nos sambas um pouco envelhecidos, nas Merry Melodies. Porém, fechando-se nesse microcosmo, conseguiu encontrar um ponto de equilíbrio igualmente perfeito, e dedicou a vida a preservá-lo. 

Na história do século 20, o fim da década de 1950 foi um dos períodos mais criativos, e não apenas no campo da música (Acossado de Godard, por exemplo, esta outra ode ao tempo parado, também é de 1959).

Quase todos os movimentos artísticos posteriores nascem naquela época, naquele momento de suspensão que talvez ainda não tenhamos entendido plenamente - como se então a solução estivesse à mão, mas a deixamos escapar. 

Miles tentou reencontrá-la pelo resto da vida, sempre mais à frente. João permanece perto dela e se recusa a sair dali. Mas o tempo passa, em todo caso, e as memórias se tornam sempre mais longínquas, as celebrações sempre mais engessadas e automáticas. Talvez a melhor maneira de comemorar - se é que se pode comemorar uma vaga sensação de perda - fosse dar plena vazão às perguntas que há certo tempo rondam por aí: o que foi do jazz? O que será da canção? 

Thursday, January 03, 2008

Friday, December 07, 2007

A Apreensão do Belo

1. O estudo de Melanie Klein publicado em 1946 “Notas Sobre Alguns Mecanismos Esquizóides”, que introduziu as idéias sobre identificação projetiva e os processos de ruptura (splitting), destruiu o postulado da unidade da mente. (...) além do mais, abriu caminho para a multiplicação dos “mundos” da vida mental de um modo não previsto.

De forma ainda mais radical, Wilfred Bion propôs uma transformação que “divide a vida mental nas áreas simbólica e não-simbólica, enfatizando a mente como um instrumento para pensar a respeito de experiências emocionais. No entanto, a firme atitude de Bion ao relegar o pensamento criativo ao processo onírico inconsciente, e sua limitação da consciência como sendo o “órgão para a percepção das qualidades psíquicas”, deveriam com o tempo dar um golpe definitivo na equação da “razão” com consciência, e alterar profundamente nossa visão a respeito do modo como vivemos nossas vidas. Modifica-se radicalmente o modelo de Freud: o Ego se transforma no cavalo, estranhando cada objeto desconhecido em seu caminho, desejando perpetuamente prosseguir do modo que sempre foi; e os objetos internos inconscientes tornam-se o cavaleiro que o dirige sem quartel em direção a novas experiências de desenvolvimento.

(...) Ficou patente a necessidade de um modelo muito mais complexo para descrever os enganos, inconsistências e a impressionante auto-ignorância dos seres humanos.

(...) "A direção de objeto-relações assentada por Abraham”, (...) “delineou as relações parciais e totais dos objetos”. Os objetos ditos parciais ficam (...) “privados de sua mentalidade essencial, de sua capacidade para sentir, pensar e julgar”, ao mesmo tempo em que mantêm suas “características formais e sensoriais. Estes objetos podiam ser usados, valorizados, temidos, aplacados, mas não podiam ser admirados e amados, não podiam ser protegidos nem cuidados”.

2. (...) “a mente é a função geradora de metáforas que usa o grande computador” (cérebro) “para escrever sua poesia e pintar seus quadros de um mundo cintilante de significados. E significado é, em primeira instância, a manifestação fundamental das paixões da relação íntima com a beleza do mundo”.

A partir do momento que se incorpora a descrição de Bion a respeito de uma “experiência emocional” como o primeiro evento no curso do desenvolvimento, fica claro que seus conceitos fazem (...) uma distinção entre, de um lado, a formação simbólica e o pensamento, e de outro um uso computadorístico de signos e modos simplificados de extrapolação de experiências e idéias recebidas do passado. A criação de símbolos idiossincráticos, por oposição à manipulação de signos convencionais, constitui um divisor de águas entre o crescimento da personalidade e a adaptação. A tensão entre os dois é a essência daquilo que Freud rotulou como “resistência à investigação”. A distinção feita por Bion entre “aprender pela experiência” e “aprender a respeito” do mundo é precisa. É também marcada pela distinção que fazemos entre formas narcísicas de identificação (projetiva e adesiva) que produzem uma alteração imediata - e um tanto enganosa - no sentido de identidade, e o processo introjetivo através do qual nossos objetos internos são modificados estabelecendo gradientes de aspiração para o crescimento do self.

3. Nossas vidas ficam em grande parte ocupadas por relações que não são íntimas. O “Contrato Social” de Rosseau descreve muito bem o modo pelo qual movimentamo-nos no mundo, utilizando a lubrificação dos bons modos e dos costumes, da conformidade e da invisibilidade social com a finalidade de minimizar a fricção e, portanto o desgaste rasgo em nosso psique-soma.

4. Em “Inveja e Gratidão” livro de 1957, Melanie Klein estabeleceu o conceito de “inveja em relação ao objeto bom, com o intuito de apossar-se de suas características boas”.

(...) “Tal ambigüidade pareceu ter sido resolvida por Bion quando ele descreve as emoções como “vínculos”, descartando as dualidades tradicionais de amor e ódio e substituindo-as por um confronto mais complexo e filosoficamente mais penetrante. Inicialmente ele estendeu o raio de ação dos vínculos passionais, ao incluir o conhecer, juntamente com o amar e o odiar”.

(...) No entanto, Bion não se afasta do vínculo fundamental entre a dor mental e a frustração até (quando) ele introduz a idéia de “mudança catastrófica”. É a “nova idéia” que se abate sobre a mente como uma catástrofe, pois, para ser assimilada, detona o fluxo de toda a estrutura cognitiva. (...) Caso sigamos de perto o pensamento de Bion, vemos que a nova idéia se apresenta como sendo uma “experiência emocional” da beleza do mundo e de sua maravilhosa organização (...).

(...) O panorama descortinado pela formulação de Bion a respeito da dor mental e do prazer mental implica que o conflito intrínseco dos vínculos mentais positivos e negativos, perimetrais ao desejo e ao interesse, sempre se faz presente; em conseqüência, no nível passional – no qual a vida onírica segue seu curso – o prazer e a dor estão sempre inextricavelmente unidos. No entanto, este conflito essencial (a partir de cuja matriz o “aprender da experiência”, se desenvolve para produzir mudança estrutural por oposição a acréscimo de informação) precisa encontrar sua representação simbólica (função alfa) para tornar-se disponível para os pensamentos oníricos, transformação em linguagem verbal (ou outras formas simbólicas, como nas artes) e elaboração através de abstração, condensação, generalização e outros instrumentos de pensamento sofisticado.

A tolerância deste conflito, que forma a essência da força do ego, reside naquilo que Bion denominou “capacidade negativa”: a capacidade de permanecer na incerteza sem procurar com irritação o fato e a razão.

Na luta contra a força cínica dos vínculos negativos esta capacidade de tolerar a incerteza, o não-saber, a “nuvem de desconhecimento”, é constantemente solicitada na “paixão das relações íntimas e se situa no centro da questão do conflito estético”.

5. Não há nenhum evento da vida adulta que tenha sido tão calculado para originar nossa admiração frente à beleza e nosso maravilhamento frente aos intrincados mecanismos daquilo que denominamos Natureza quanto os eventos da procriação. Não há flor ou pássaro, por mais chamativa que seja sua coloração ou plumagem, que possa nos impor o mistério da experiência estética como a visão de uma jovem mãe amamentando seu bebê. Adentramos a um berçário como se penetrássemos em uma catedral ou nas florestas do Pacífico, pé ante pé, tirando o chapéu.

(...) A experiência estética da mãe com seu bebê é comum, regular, costumeira, pois tem milênios atrás de si, desde que o homem pela primeira vez viu o mundo “como sendo” lindo. E sabemos que isto data pelo menos desde a última glaciação.

“De modo análogo, deve-se apenas às nossas limitações em poder identificar-nos com o bebê o fato de deixá-lo, em nosso pensamento, privado de mentalidade”.

6. Relações íntimas – (...) A devotada mãe comum apresenta ao seu lindo bebê comum um objeto complexo de enorme interesse, tanto sensorial como infra-sensorial. Sua beleza externa, concentrada, como deve ser, nos seios e na face, complicada em cada caso pelos mamilos e pelos olhos, bombardeia o bebê com uma experiência emocional de qualidade passional, resultando em que o bebê seja capaz de ver estes objetos como “lindos”. Mas permanece desconhecido para o bebê o significado do comportamento de sua mãe; do aparecimento e do desaparecimento do seio e da luz de seus olhos, de uma face na qual as emoções passam como sombras de nuvens sobre a paisagem. Afinal das contas, o bebê veio para uma terra estranha onde ele desconhece a linguagem e também as indicações e comunicações não-verbais costumeiras. A mãe lhe é enigmática; ela exibe um sorriso de Gioconda a maior parte do tempo e a música de sua voz fica constantemente mudando do tom maior para o tom menor. Como “K” de Franz Kafka o bebê precisa esperar por definições advindas do “castelo” – o mundo interno de sua mãe. O bebê fica naturalmente em guarda contra um otimismo e confianças sem brigas, pois ele já dispõe de uma experiência dúbia, da qual escapou ou foi expulso – ou talvez o bebê, e não sua mãe, tenha “parido” perigo! Pois não obstante o fato de tirar de dentro de si o morder, ela também lhe fornece uma coisa que explode que ele precisa expelir por si mesmo. A rigor ela deu e tirou, tanto as coisas boas como as coisas ruins. O bebê não consegue discriminar se a mãe é Beatrice ou sua Belle Dame Sans Merci. Isto é conflito estético, que pode ser enunciado de modo mais preciso em termos do impacto estético do exterior da “linda mãe”, disponível aos sentidos, e do enigmático interior que precisa ser construído por meio da imaginação criativa.

(...) O elemento trágico na experiência estética reside na qualidade enigmática do objeto – não na sua transitoriedade.

É neste aspecto que o conflito estético difere da agonia romântica: sua experiência central de dor reside na incerteza.

(...) através do vínculo K, o desejo de conhecer, e não de possuir o seu objeto de desejo. O vínculo K assinala o valor do desejo enquanto estímulo ao conhecimento, e não apenas um clamor de gratificação e controle sobre o objeto. O desejo torna possível, até essencial, dar ao objeto sua liberdade.

(...) Coloca os valores humanos em mente, olhando para frente, para o desenvolvimento, e para a possibilidade de um objeto enriquecido cuja aquisição é possível justamente graças à sua perda.

(...) Como demonstrou Melanie Klein, é verdade que a mudança envolve a transformação do auto-interesse na própria segurança e conforto para a preocupação com o bem-estar do objeto amado. No entanto, isto não descreve o modus operandi da mudança. Pois é a busca pela compreensão (vínculo K) que salva a relação de um impasse, a interação de alegria e dor que engendrara os vínculos de ambivalência amor (L) e ódio (H). É neste ponto que a Capacidade Negativa se faz presente, onde o Belo e a Verdade se encontram.

Donald Meltzer - A Apreensão do Belo


Sunday, October 21, 2007

Do que a arte é feita

Paolo Veronese, mestre do Renascimento, pintara para o refeitório dos beneditinos, na ilha de San Giorgio Maggiore, em Veneza, uma pintura representando o episódio bíblico das bodas de Caná.
Veronese adaptara a tela enorme, 6,77 m x 9,94 m, à sala criada por Palladio. É em 1563 que, maravilhados, os venezianos assistem à conjunção criadora desses dois gênios. Porém, no final do século 18, o general Bonaparte invade a Itália. Como butim, leva obras de arte para o Louvre, museu universal que então se formava em Paris.
Entre elas estava a imensa pintura de Veronese. Até hoje os venezianos não se conformaram com o rapto. Ora, o "New York Times" traz um artigo contando que "As Bodas de Caná" voltaram para o velho refeitório do convento.
Não o original, que continua no Louvre. Dele foi feita uma cópia digital idêntica. Nada desses sucedâneos aproximativos, tristes e anêmicos. Um clone, com o mesmo exato colorido, com matéria equivalente, com os acidentes e o relevo sutil da superfície pictural sobre tela. A palavra clone foi usada como sinônimo de monstruosidade por um universitário italiano a respeito dessa réplica.
Adam Lowe, autor da reprodução, a recusa: "Nossa obra não é um clone, mas um profundo estudo detalhado". Resta que, monstro ou não, a metáfora do clone é bem tentadora. Outro crítico, Pierluigi Panza celebra: para ele trata-se do "terceiro milagre".
Entende-se: o primeiro foi quando, em Caná, Cristo transformou a água em vinho. O segundo, a própria pintura de Veronese, grande obra-prima. O terceiro, a reprodução que, dizem, o olho não consegue distinguir do original.

Impalpável

Pode ser que haja exagero. Pode se tratar de um mero factóide. No entanto a hipótese de uma identidade absoluta entre "As Bodas de Caná" e sua cópia reforça várias questões teóricas. Mesmo quando a perfeita imitação não ocorre, situações desse tipo indicam que a dimensão mais crucial da arte está na aparência, não na matéria.
Essa dimensão se vincula à idéia de semelhança que, ao contrário da imitação, suscitou pouca teoria. Proust a emprega como formidável meio de compreensão do mundo. Seu narrador discorre sobre pinturas a partir dos mais diversos tipos de reprodução: gravuras, cópias, fotos. Embora não seja o universo da teoria, mas do romance, Proust sugere que a característica mais definidora da arte é imaterial.

Faz-de-conta

A arte tem sua junção entre aquilo que a obra oferece ao espectador e o que é captado por ele. Está numa terceira margem do rio. Perder sua materialidade de coisa é o que lhe permite passar do original para as cópias, réplicas, citações, lembranças, múltiplos.

Sonhos

A existência da obra para além de sua materialidade contraria o fetichismo do objeto artístico, que os românticos sublinharam tanto, confundindo arte e relíquia. Walter Benjamin herdou deles as convicções expostas no texto conhecido sobre "a obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica", em que vislumbra uma aura exclusiva própria dos originais, capaz de ser detectada sabe-se lá por quais poderes.
Uma tal imaterialidade contraria também o mercado das artes, que sempre engorda com a sobrevalorização dos originais. Qual é o autêntico: o quadro original de Veronese, que está no Louvre, fora do seu lugar, de sua escala, em concorrência com outras obras, ou a réplica perfeita, instalada na luz e no espaço únicos para os quais foi concebido?

JORGE COLI - COLUNISTA DA FOLHA

Saturday, October 20, 2007

FOLHA - O que te motivou a fazer esse livro?

FERREIRA GULLAR - Eu não costumo planejar as coisas, vêm inesperadamente. Depois que eu adoto a idéia, eu sou sistemático, e aí é outra coisa, mas eu nunca planejei fazer esse livro. Surgiu do fato de que, escrevendo eventualmente colaborações daqui e dali, enfim, voltam as questões da arte concreta e neoconcreta. As pessoas me perguntavam coisas, e coisas que eu lia e não correspondiam à realidade. Eu que fui o autor do manifesto, o autor da teoria do não-objeto, modéstia à parte, tive uma participação decisiva na criação desse movimento, mas chegou um momento em que eu me afastei.

Então, ele seguiu em frente, e aí tomaram conta dele [risos]. Grande parte do que fiz não publiquei, como os livros-poema. Idéias que ficaram no manifesto foram sendo postas de lado e se criou uma teoria e uma interpretação do movimento que eu acho que não corresponde exatamente à verdade. Então, eu digo: é necessário botar as coisas nos seus devidos lugares, até para as pessoas compreenderem que é um movimento importante da arte brasileira. Há a contribuição da Lygia [Clark], do Hélio [Oiticica], do Amilcar [de Castro], do Weissmann, enfim, do grupo todo, e é muito importante.

FOLHA - Você mostra a cisão entre os grupos paulista e carioca na poesia e nas artes entre os concretos e os neoconcretos?

GULLAR - São coisas diferentes. A arte concreta e a poesia concreta são, de fato, preponderantemente paulistas. Houve contribuição do grupo do Rio no começo e, sobretudo, quando se refere à poesia, a gente começou mais ou menos junto e tal, mas depois houve a ruptura em condição de discordâncias teóricas, que eram, na verdade, expressão de uma tendência que preponderava mesmo no grupo de São Paulo. Já preponderava entre os pintores com o Waldemar Cordeiro.

A gente aqui no Rio achava ele racional demais, muito excludente das outras complexidades. Depois, com os poetas, quer dizer, com a tese de uma poesia que era feita segundo um plano piloto, coisas com as quais nós não concordávamos.
Era muito mais teoria do que prática. A poesia será feita segundo fórmulas matemáticas... Aí não é possível fazer. Eu considero charlatanismo dizer uma coisa que não pode ser feita. O movimento neoconcreto não nasceu como uma resposta ao concretismo de São Paulo. Essa cultura nasceu em meados de 57, o movimento neoconcreto só nasce em 59, quase dois anos depois.

FOLHA - Você considera que o primeiro marco da sua obra é "Luta Corporal", em 1954? E, na época, qual era a sua relação com poetas de gerações anteriores, como João Cabral, Drummond, Murilo Mendes, Manuel Bandeira?

GULLAR - Quando eu comecei a fazer poesia em São Luís do Maranhão, tinha 17, 18 anos, nem conhecia esses poetas. Não conhecia ninguém. Eu costumo dizer que São Luís era Macondo, lá ainda se fazia poesia parnasiana. Quando eu tomei conhecimento da poesia moderna, foi uma coisa estranha, surpreendente. Em seguida, eu procurei ler sobre aquilo, entender, aderir a essa visão nova e de maneira mais radical do que os próprios poetas da época. E daí "Luta Corporal" ter se tornado mesmo tão exclusivo, que terminou com a desintegração da linguagem, porque não aceitaria qualquer princípio a priori para fazer poesia. Qualquer norma agora, nada eu aceitaria. Esse fato me levou a desintegrar tudo.

Quando eu descobri esses poetas, quer dizer, Drummond, Murilo Mendes, eles contribuíram para me revelar, evidentemente, uma outra visão do que era a poesia. Uma poesia mais ligada ao mundo cotidiano, às constâncias atuais, à realidade material do mundo. Lia todos os dias esses poetas, Bandeira, Murilo, Drummond, lia, relia. Depois, comecei a descobrir os outros poetas do mundo, Rilke, foi uma revelação quando eu conheci a poesia dele, aí depois Rimbaud, Mallarmé.

FOLHA - Você defende a idéia de que a poesia neoconcreta tem uma nova sintaxe, mas não um novo verso...

GULLAR - Veja bem, o Augusto de Campos e o Haroldo de Campos tinham publicado um artigo em que eles diziam que se tratava de buscar um novo verso para a poesia. Aí eu falei para eles: não se trata de um novo verso, se trata de uma nova sintaxe, porque o verso já era. A sintaxe foi desintegrada, tem de ser buscada uma nova sintaxe. O que o grupo de São Paulo fez? Eles criaram, de fato, uma nova sintaxe, que foi a idéia do poema visual, o poema cuja construção não é a sintática, a sintaxe vocabular, a sintaxe da língua, mas o que eles dizem: as relações de proximidade e semelhança entre as palavras. Então, é uma outra forma de construir o poema. Isso é uma coisa nova, eles que fizeram.


FOLHA - Por que sua poesia partiu para o tridimensional? Seus poemas estão em exposições de artes...

GULLAR - Pois é, comecei a fazer o livro-poema. Como eu posso construir um poema que obrigue o leitor a ler palavra por palavra e que no final resulte em uma estrutura visual? Procurei criar um livro que obrigasse o leitor a ler palavra por palavra. Esse fato foi decisivo no neoconcreto. O que distingue a poesia concreta? A participação do espectador na obra de arte. E nasceu do livro-poema, mas eu não inventei nada.


FOLHA - No livro, você diz que seu poema "Fruta" influenciou a série dos "Bichos", da Lygia Clark?

GULLAR - O "Fruta" já é um objeto, ele não é mais um livro. A maneira como ele abre é como se você estivesse assim abrindo uma flor, você tira uma pétala, abre outra pétala, abre outra e aí no fundo está a palavra "fruta" [Gullar pega um "Bicho" e mostra as semelhanças do movimento da escultura]. A Lygia estava desintegrando a pintura e tirando do plano o elemento tridimensional. Estava fazendo os "Casulos", que inchavam a tela, que criavam uma terceira dimensão. Ela partiu para criar uma coisa no espaço, que não é uma escultura, na verdade, é uma coisa que nasce da pintura.


FOLHA - E você diz que seu "Poema Enterrado" influenciou projetos de Hélio Oiticica.

GULLAR - Sim. Depois que eu fiz "Fruta", que já era um objeto, eu pensei: bom, vou fazer objeto a partir de agora. Não vou fazer mais nem livros nem coisas parecidas com livros. Depois, vamos fazer algo com a participação corporal. Agora, não é só a mão que vai participar, agora é o corpo inteiro. E como será? Eu tenho de entrar no poema. Eu imaginei entrar no poema e aí bolei o "Poema Enterrado", que é uma sala no fundo do chão, em que o cara desce por uma escada, abre a porta e entra no poema e lá tem os cubos. Tem lá um cubo vermelho, você levanta, depois tem um cubo verde, você levanta e depois tem um cubo menor que você pega do chão e lê a palavra: "rejuvenesça".

Então, eu publiquei o projeto desse "Poema Enterrado" no Suplemento Literário do "Jornal do Brasil". Aí o Hélio Oiticica leu e me ligou. Falou: "Cara, achei genial, vamos construir. Meu pai está construindo uma casa nova aqui na Gávea Pequena e eu vou dizer a ele para a gente construir o "Poema Enterrado" no quintal". O pai depois se rendeu e construiu o "Poema Enterrado". Quando nós fomos ver, no dia da inauguração do poema, tinha chovido na véspera, o poema estava inundado [risos].
O "Poema Enterrado", do final de 59, teve influência sobre o trabalho do Hélio. Anos depois, os projetos "Cães de Caça", que o Hélio fez, são labirintos que a pessoa percorre, quer dizer, tem essa participação corporal, é uma coisa que foi antecipada pelo "Poema Enterrado". Não estou querendo dizer que eu sou o genial criador da arte neoconcreta. Nós éramos um grupo e havia uma permuta permanente de idéias.

FOLHA - Você fala no livro que Lygia Clark e Hélio Oiticica enveredaram por um campo sensorial.

GULLAR - Essas experiências-limite foram desenvolvidas pela arte neoconcreta e levadas às últimas conseqüências. Quando a própria Lygia, depois dos "Bichos", começa a fazer experiências com a fita de Moebius no "Caminhando", começa a cortar coisas e a experiência seria ficar cortando infinitamente aquelas formas. Ela própria disse que isso não era mais arte. Depois, ela própria transformou aquilo em terapia, os objetos relacionais. Quando o Hélio faz, por exemplo, os "Parangolés", ele não está mais no terreno da experiência formal, de alguma coisa que eu construo. É uma pessoa qualquer que bota um pano nas costas, tem a ver com uma porta-bandeira de Carnaval.


FOLHA - Você está desencantado com o atual estado da arte e da crítica?

GULLAR - Sim, claro. Porque não tem sentido o cara fazer um tipo de suposta arte que não tem artesanato, não tem técnica, não tem princípio, não tem norma, não tem objetivo nenhum. A gente sabe que não pode ser ensinada para ninguém. O que eles vão deixar para a outra geração? O quê? Como se vê mosca em microscópio? É uma pretensão descabida. Até Bach teve que aprender música para poder compor.

É publicada uma série de bobagens, e a crítica participa disso. Fica aí escrevendo coisas que não tem pé nem cabeça. O que você vai escrever? O cara bota larva de mosca... O que a crítica vai dizer? Essas larvas são boas, são belas larvas? Então, não há crítica para isso. Então, o crítico está sendo expulso e não percebe. Então ele fica escrevendo bobagens, sociologias, especulações filosóficas em torno da larva da mosca. Ah, o que há?