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Sunday, July 31, 2011



Hiroshima

Hoje à tarde assisti na tv a um documentário sobre nipo-americanos que nasceram e viveram nos EUA antes da 2a. guerra mundial, seus pais sofreram retaliações do governo e vizinhos, perderam emprego, casa, comércios, os filhos foram expulsos da escola e por isso voltaram ao Japão, para vários lugares, mas a entrevista foi com três que voltaram para Hiroshima. 

No dia 6 de agosto de 1945, às 8:15 da manhã, a bomba. 

Mas sobreviveram. 

As entrevistas foram feitas pelo ator japonês Ken Watanabe (O Último Samurai, Cartas de Iwo Jima e A Criação, pra lembrar). 

O mais interessante é que todos voltaram para os EUA nos anos 50 pois tinham readquirido a cidadania americana e o Japão não estava fácil para jovens que também sofreram por serem americanos (!) e terem perdidos amigos e membros da família. 

Todos moravam na zona rural ao redor de Hiroshima. 

Um deles, hoje dono de uma loja de acessórios e oficina para cortadores de grama em Pasadena, California, todo dia 6 de todos os meses, às oito e quinze da manhã, enche dois copos de cerveja, reza em silêncio, toma um dos copos e depois chora. Faz a pequena cerimônia pelos dois amigos que morreram. Eles tinham 14 anos e iam para a escola juntos. Naquele dia ele se atrasou e os dois gritaram "vamos na frente, nos alcance". Nunca mais se viram. Este senhor, ao voltar aos EUA, alistou-se no exército americano. A comunidade e toda a família o chamou de louco, menos o pai. Ele explicou que estava fazendo aquilo para provar aos americanos que ele era americano e que o que eles queriam era a paz. O pai o entendeu. Foi uma forma de apaziguar o preconceito aos japs que ficaram ou voltaram do país vencido. 

A outra entrevista foi com uma senhora que foi ao Japão ainda bebê de colo e voltou aos EUA com 15 anos. Casou-se com um americano e juntos construiram uma pequena vinícola nos arredores de San Francisco. Ela lembra que os pais trabalhavam numa grande plantação de uva e que ela ficava num berço embaixo das parreiras junto com outras crianças japonesas. As crianças maiores cuidavam das pequenas. Quando ela voltou, encontrou uma delas na penúria em San Francisco, a chamou para morar junto com a família e depois ela passou a cuidar da filha dela. 

A última entrevista foi com outra senhora que perdeu toda a família, só ela sobreviveu. Os pais dela tinham uma pequena plantação de morangos na California nos anos 30 e 40. Com a guerra, ninguém mais quis comprar os morangos pois achavam que os japs poderiam envenená-los. Como perderam tudo, os pais voltaram ao Japão no começo de 1945. Ela, pelo fato de ter ficado muito tempo nas plantações de morango com os pais, desenvolveu uma alergia que pegou de um fungo que ataca a fruta. Naquele verão de 1945, como a criança tossia muito e sentia falta de ar na cidade de Hiroshima, resolveram mandá-la para a casa de parentes, num sítio montanhoso ali perto. Ela tinha duas irmãs mais velhas, gêmeas. Todos morreram. Os parentes, quando puderam ver o local onde era a casa dela, só encontraram uma foto de uma das gêmeas. Até hoje tem a foto na parede da sala e durante todos esses anos, além de não comer morangos por causa da alergia, vem se perguntando: qual delas está ali?

Em Marcha contra Impunidade, ONG Rio de Paz quer lembrar as mais de 30 mil mortes violentas ocorridas no Estado do Rio, entre 2007 e junho de 2011



Publicado originalmente em dezembro de 2009

"O terrorista que atua sozinho é a nova ameaça"
El País

Fernando Peinado (em Madri)


Lorenzo Vidino, professor especializado em terrorismo e islamismo político na Universidade Harvard (EUA), visitou recentemente Madri para participar de um seminário sobre terrorismo organizado pela Fundação Ortega y Gasset e a Embaixada dos EUA, e aceitou dar esta entrevista por telefone, sobre as perguntas levantadas pelo atentado frustrado na sexta-feira no voo de Detroit.

El País: Que lição as agências de inteligência podem tirar dessa última tentativa terrorista?

Lorenzo Vidino: A estratégia dos jihadistas evoluiu para um novo tipo de terrorismo muito mais difícil de perseguir e interceptar, como demonstra não só esse último caso, mas também o do soldado da base militar norte-americana de Fort Hood, que matou 13 companheiros, e soube-se que havia tido relação com um imame radical. Também houve outros precedentes na Itália ou nos EUA. É o que se denominou ataque de um lobo solitário. Os membros das células são muito mais independentes hoje. Em alguns casos são preparados no manejo de explosivos pela internet, eles mesmos escolhem os alvos e atuam de modo individual. É mais difícil detectar em um aeroporto um único terrorista do que um grupo de 20. Essa nova estratégia foi a reação dos terroristas aos melhores controles de inteligência, e questionam se a estrutura clássica da Al Qaeda ficou obsoleta.

El País: O que os serviços de inteligência podem fazer contra um lobo solitário?

Vidino: É muito mais complexo. É mais difícil descobrir seus propósitos, porque deixa menos rastros. O FBI recorre à estratégia do agente provocador. Uma vez localizado um simpatizante do jihadismo nos bate-papos ou fóruns da internet, um agente se faz passar por um membro da Al Qaeda e o empurra a atuar. Nos últimos meses foram presos dessa forma dois indivíduos que pretendiam atentar contra edifícios federais em Illinois e no Texas. É um método muito polêmico e de legalidade duvidosa na Europa. Além disso, é uma questão de até onde estamos dispostos a reduzir a liberdade de expressão.

El País: O terrorista de Detroit não tinha o perfil de excluído social. Há quem acredite agora que o esforço de integração não serve para conter o jihadismo.

Vidino: Não é verdade. É algo mais complexo. A integração das comunidades muçulmanas é uma peça do quebra-cabeça, mas não uma solução milagrosa. É menos provável que pessoas melhor integradas economicamente e que se sentem parte da sociedade aceitem as mensagens dos radicais.

El País: O Iêmen é o cenário da nova guerra de Obama?

Vidino: Não teria sentido lançar uma nova invasão. Essas redes têm a seu alcance outros santuários alternativos, como a Somália ou o Magreb. Em curto prazo, o mais realista a que podemos aspirar é fortalecer a autoridade desses governos para que realizem operações policiais com êxito.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves


Escrito em 2004, postado originalmente em irajamenezes.blig.ig.com.br e republicado em setembro de 2006


Está em processo no mundo todo uma mudança que ainda não vamos conseguir aquilatar.

A Revolução Industrial de dois séculos e meio atrás inventou a produção em larga escala.

A longevidade humana aumentou, a mortalidade infantil diminuiu e o mundo, cada vez mais populoso, entrou em processo de massificação.

Os meios industriais eram todos de grande custo e com isto a fabricação de bens artesanais tendeu ao desaparecimento.

Adotamos um paradigma de objetos consumidos por grandes massas e produzidos por poucas pessoas. Com o avanço das tecnologias alguns destes mecanismos de produção vêm se democratizando. Não é preciso mais uma fábrica para se copiar discos, por exemplo. Tampouco é preciso gastar fortunas para divulgar um produto pela Internet.

Isto gera, por exemplo, a obsolescência do conceito de "indústria de entretenimento". Fazer um filme caro passa a ser só uma das inúmeras possibilidades que um cineasta pode escolher.

(O modelo de "montagem" de computadores, dominante no mercado brasileiro de informática, não poderia tornar-se factível para fornos de microondas ou geladeiras?)

A mudança, pois, a que me refiro é a que consiste em poder voltar-se em direção a modos de produção artesanais para a obtenção de objetos a serem replicados indefinidamente como discos, livros, filmes, sem depender de investimentos vultosos e de grandes corporações. Embora permaneçam inúmeros produtos que só poderão ser fabricados mediante mecanismos de alto investimento, tudo leva a crer que está em curso uma disseminação generalizada do conceito de indíviduo como detentor prioritário de suas decisões. De compra, venda, vida, morte e crenças.

O terrorismo é uma faceta aberrante deste mesmo conceito. Explodir-se é uma manifestação individualista. Requer tão somente uma bomba e um homem preso a ela. Fica difícil transformar em estatística o homem-bomba. Quantos explodem por mês? São ações, por natureza, pontuais, o oposto exato da indiscriminação do pesadelo atômico, das bombas atiradas de avião ou das armas de destruição em massa.

Isto é coerente com um modo descentralizado de organização social.

O desejo de igualdade de direitos que percorre o mundo todo consolida um avanço sem precedentes na história dos ideais democráticos.

Repito: ideais; mentalidade, desejo, aspiração democrática.

As propostas de manutenção de poder das elites, estas não são mais defensáveis. Um mundo superpovoado não permite ser gerenciado a partir de um centro. Um mundo superpovoado se impõe como teia.

É este fator estrutural que derruba a identificação com a autoridade. Não se reconhece autoridade. Ninguém está autorizado a nada.

Resultado da democratização do mundo, a "desautorização" gera também um processo de rompimento com a idéia de tradição. Campo aberto para a descrença e para o uso das instituições, agora, desautorizadas, em proveito próprio, já que ninguém se sente identificado com elas e, por conseguinte, não há quem tome conta.

Vivemos um eterno presente e, por isso, sem olhos para o futuro, como descreveu o professor Yves de La Taille. E, especificamente no Brasil, ao mesmo tempo, o "eterno retorno" à cordialidade.

Está em andamento um processo de humanização das massas. De "descoisificação" das pessoas. Um processo histórico de reconhecimento das identidades. Que acontece independente das políticas adotadas.

E há, ao mesmo tempo, o impulso gregário que os veículos de comunicação tentam alimentar, mas que as tendências de segmentação desmentem o tempo todo.

E há também, ao contrário, um tribalismo crescente. Grupos se fechando para manter seus métodos e costumes inalterados.

Joseph Campbell disse que uma mitologia para dar conta do nosso tempo, para conseguir simbolizá-lo, teria que surgir como uma mitologia planetária. A metáfora de integração de forças contrárias, típica de toda mitologia, teria o planeta como tema.

Os pequenos grupos tendem a se excluir mutuamente. É característico do grupo de gueto enxergar o outro antes como estrangeiro, estranho e, portanto, passível de ataque.

Meditar a convivência dos opostos, agora em escala planetária, é que poderia gerar novos mitos, afirma Campbell, novas compreensões.

As religiões, de certa maneira, já trazem em seus fundamentos esta vontade. O princípio de um Deus que ultrapassa barreiras e unifica humano e natureza num patamar de identificação, num cosmos.

Paradoxalmente são guerras declaradas religiosas as que estão atualmente em curso à roda toda do planeta. Guerras sectárias, guerras pelo predomínio de concepções que se pretendem excludentes.

Como fazer convergir a nova descentralização que percorre o planeta com a consciência de contexto histórico e com a possibilidade de negociação que permita acordos duradouros para o futuro?


29/07/2011
Radicalizados na Internet, combate a "lobos solitários" é difícil

Peter Apps - Em Londres

Muitas vezes radicalizados, invisíveis e conectados à Internet, agressores considerados "lobos solitários" pelas autoridades, aparentemente o caso do atirador que matou 77 pessoas na Noruega, são difíceis de detectar e podem representar desafio cada vez mais sério para os serviços de segurança.

O norueguês Anders Behring Breivik alega ser parte de uma rede mais ampla de cruzados, os chamados "cavaleiros templários", com células em outros locais da Europa.

Muitos especialistas em segurança duvidam que essa rede exista, mas se existir, seus membros podem estar operando de modo quase completamente independente - e isso representa a mais grave ameaça.

Nos 10 anos transcorridos desde os ataques do 11 de setembro de 2001, as autoridades se concentraram em criar sistemas de vigilância que tornam mais fácil bloquear as ações de "redes terroristas", rastreando as conexões interpessoais dos integrantes, e esses métodos são em larga medida improdutivos contra alguém que trabalhe sozinho.

A boa notícia era que os "lobos solitários" são muitas vezes ineptos e não dispõem dos conhecimentos necessários para executar ataques de grande porte, dizem especialistas em segurança. Agora, Breivik parece ter tornado mais ameaçadora essa categoria de agressor.

"Se ele estava de fato operando sozinho, os agentes de segurança enfrentarão problemas", disse John Bassett, antigo funcionário do GCHQ, o serviço de escuta de comunicações do governo britânico, e hoje pesquisador do Royal United Services Institute.

Hoje em dia, é mais e mais frequente que as atividades extremistas online se refiram menos a grupos militantes que deliberadamente recrutam pessoal para suas causas e mais a indivíduos vulneráveis e isolados que estão em busca de um senso de comunidade que lhes falta.

"Uma pessoa pode se radicalizar na Internet", disse Richard English, diretor do Centro do Estudo do Terrorismo e da Violência Política na University of St Andrews, Escócia. "E é muito mais difícil para as autoridades manter a vigilância quanto a isso".

É difícil prever esse tipo de ameaça, mas não impossível. Scott Stewart, um ex-agente de segurança norte-americano, diz que há momentos decisivos nos quais até os mais solitários dos "lobos" pode ser detectados.
O diário de Breivik na Internet deixa claro que ele sabia que os estava nos quais ele estava mais exposto foram quando procurava por fertilizantes (para fabricação de bombas) e armamento.


31/07/2011
Ação de atirador norueguês foi consciente e reflexo da ascensão da ultradireita na Europa, dizem analistas

Andréia da Silva Martins - Do UOL Notícias - Em São Paulo

País com o melhor IDH (índice de desenvolvimento humano) do mundo, e dono de bons indicadores sociais, sem problemas como fome e desemprego, a Noruega era, para muitos, o último lugar onde poderia se imaginar um ataque como o ocorrido no dia 22 de julho. Mas para analistas, o ato que até então é interpretado como isolado, pode ser resultado de um movimento que está em pleno crescimento na Europa, o da ultradireita.

Enquanto isso, a defesa de Anders Behring Breivik, autor confesso dos atentados que mataram 77 pessoas na Noruega, tenta emplacar a teoria de que o acusado sofre de problemas mentais, o que devido à meticulosidade dos ataques, será um discurso possível na teoria, mas difícil de provar na prática.

“O ato, aparentemente, foi insano, mas consciente se considerarmos que ele preparou um documento de 1.500 páginas com citações históricas e acadêmicas. O fato é que no caso de atrocidades como essa, a defesa tende sempre a tornar o algoz um desqualificado mentalmente”, diz Eduardo Oyakawa professor de Sociologia da Religião, Lógica e Filosofia da ESPM.

Apesar dos bons indicadores e do aparente ambiente perfeito, Oyakawa ressalta que quando “o humano está envolvido, logo há imperfeição”. “Mas ainda assim [o caso] é uma exceção. (...) Não é hábito dessa cultura enfrentar um desastre moral desse tamanho”, completa.

O professor coordenador do Instituto de Relações Internacionais da UnB, Alcides Costa Vaz, acredita que, apesar de ser um caso isolado, ataques como esse "podem voltar a se repetir" na Europa. "Foi um gesto político de reação e consciente. Uma resposta de defesa", do que para ele, o atirador, representaria uma "diluição da identidade", diz Vaz.

Para Oyakawa, a atitude explosiva de Breivik é resultado de um movimento crescente na Europa, o dos partidos de ultradireita, o que justifica o aumento da xenobofia e da islamofobia no continente. Sabe-se que Breivik foi membro do Partido Progressista norueguês, que segue uma linha populista de direita, e chegou a ocupar posições de liderança na ala jovem da agremiação.

“Esses movimentos reforçam a ideia de que o outro é uma ameaça. Hoje, por exemplo, é um problema ser muçulmano na França. Já na Espanha, o preconceito contra imigrantes é alto já que eles são vistos como competidores num mercado de trabalho que já não comporta nem os próprios espanhóis”, diz Oyakawa.

Para Vaz, a existência de grupos intolerantes a diferentes culturas e  pessoas de outras nacionalidades e etnias na Europa, não é  novidade, mas, segundo ele, o que chama atenção é que isso sempre foi mais observado em países como Espanha, França, Itália, do que nos países nórdicos.

Na Alemanha, por exemplo, a tragédia norueguesa trouxe de volta, ainda, o debate sobre a proibição do partido NPD, de tendência neonazista. Os muçulmanos são considerados os principais inimigos pelo movimento de extrema direita da Europa. Por meio da internet, extremistas de países, como Bélgica e a Áustria, criaram uma rede com grupos alemães como o Pro-Köln e o Pro-NRW.

O professor da UnB também destaca a resposta "positiva" do primeiro-ministro norueguês, Jens Stoltenberg. "A resposta do país foi a reafirmação dos valores que serão mantidos, da tolerância e da abertura".

Esquerda x direita

Para Oyakawa, há diferenças entre os chamados radicais da ala da esquerda e os da direita. Segundo o professor, para os da esquerda a ideia de “liberdade é muito forte, então o alvo será sempre os donos do poder”. No caso dos direitistas, o conceito de liberdade é diferente.

“Você deve respeitar a hierarquia, por isso eles seguem à risca a burocracia. Para eles, a palavra de ordem é segurança. É como ele [Breivik] disse no documento: ‘muçulmanos e marxistas estão ameaçando a pureza da raça’. Para essas pessoas, isso é visto como uma ameaça à segurança nacional”, diz o professor.

Nas eleições de 2009, a presença dos radicais de extrema direita cresceu no Parlamento Europeu. No total, eles têm 39 assentos, mas não estão organizados numa bancada por falta de acordo.


28/05/2006
Le Cocq vive "fim melancólico" no Rio

da Folha de S.Paulo

Famoso grupo formado por policiais e que ganhou estigma de esquadrão da morte nos anos de 1960 e 70, a Scuderie Le Cocq luta para não ser extinta no Rio de Janeiro.

Atualmente, mantém um prédio nas proximidades da favela Paula Ramos, no Rio Comprido (zona norte), conta com menos de 50 associados - na década de 70 eram mais de 7.000 -, que dão uma pequena taxa apenas para manter o grupo, pagar impostos e realizar obras sociais na favela.

Dos policiais com fama de durões que atuavam paralelamente às forças do estado e prendiam criminosos -os chamados "12 homens de ouro" - restou pouco. Hoje, não há mais repressão ao crime.

Seu presidente de honra é o ex-delegado de polícia e atual deputado estadual Sivuca (PSC), 76, autor da célebre frase "Bandido bom é bandido morto". Integrante do grupo dos 12, Sivuca se disse desanimado com a situação da Le Cocq. "Vivemos um fim melancólico", afirmou.

O deputado disse que não freqüenta a Le Cocq há pelo menos oito anos. Quem responde pela presidência do grupo é Antônio Augusto de Abreu, que comanda também a Portuguesa, clube da Ilha do Governador (zona norte).

À frente da Scuderie há seis anos, desde a morte do delegado Luís Mariano, Abreu declarou que o grupo vive um período de dificuldades financeiras e sua principal atuação é realizar projetos sociais na Paula Ramos e dar pequenas contribuições a asilos e orfanatos.

"Distribuímos brinquedos e presentes no Natal, em dia de são Cosme e são Damião. A comunidade nos respeita", disse.

A Le Cocq também cede seu espaço - um terreno de quase 5.000 metros quadrados - para os moradores realizarem atividades esportivas, festas e até campanhas de vacinação.

Segundo Abreu, além de policiais, integram a atual Scuderie comerciantes, jornalistas, cantores e professores.

Combate ao crime

Apesar de os integrantes terem respaldo dos moradores da Paula Ramos, Sivuca disse que uma das razões que levaram a Le Cocq a parar de combater o crime é a proximidade de sua sede com uma área dominada por traficantes de drogas.

Sivuca disse que as camisas com o símbolo da Le Cocq e a inscrição Esquadrão da Morte apreendidas em São Paulo não pertencem ao grupo. Segundo ele, a Le Cocq tem em seu logotipo as iniciais E.M., mas a sigla significaria Esquadrão dos Motociclistas e não Esquadrão da Morte, como vinha escrito nas camisas apreendidas.

O grupo de motociclistas participava da segurança do presidente Getúlio Vargas, explica Sivuca, e tinha, entre seus integrantes, o detetive Mílton Le Cocq, que inspirou a criação da Scuderie, na década de 60. "Não existe Le Cocq em São Paulo desde os anos 70", disse.

Camisas, bonés, adesivos e buttons com símbolos da Le Cocq são comercializados livremente no site de relacionamentos Orkut.

Sivuca contou que a Scuderie Le Cocq nunca foi um esquadrão da morte como falavam. Segundo ele, seus integrantes prendiam criminosos, mas a orientação era agir dentro da lei. "Mas tínhamos uma regra. Se o criminoso reagisse à prisão, era morto, sem dúvida."

O ex-delegado revelou que a fama de matadores surgiu porque muitos associados cometiam excessos. Um deles foi o policial Mariel Mariscot, que, por descumprir regras, acabou expulso do grupo na década de 1970 e foi assassinado em 1981. "Tinha muito le cocquiano que matava e, depois, ligava para a imprensa", disse.

Segundo Sivuca, o grupo que praticou crimes no Espírito Santo nas décadas de 80 e 90 não era vinculado à verdadeira Le Cocq. O grupo foi extinto por determinação da Justiça há cerca de cinco anos. Os policiais que investigaram os envolvidos hoje recebem proteção.

*
31/07/2011
Camiseta de esquadrão da morte é vendida nos Jardins, em SP

http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/952328-camiseta-de-esquadrao-da-morte-e-vendida-nos-jardins-em-sp.shtml



Saturday, July 30, 2011

Cadeias lotadas

DRAUZIO VARELLA

A sociedade quer todos os bandidos atrás das grades, mas não terá recursos para as condições mínimas

Lugar de bandido é na cadeia, diz o povo. Concordo, não tem cabimento deixar solto alguém que mata, assalta ou estupra, mas faço um reparo ao dito popular: lugar de bandido é na cadeia desde que haja lugar.

No sábado passado, o jornalista André Caramante publicou na Folha um relato sobre a superpopulação nos presídios: "Diariamente cem pessoas deixam as prisões paulistas, enquanto outras 137 são encarceradas".

Não é preciso ser gênio em matemática para avaliar as dimensões da bola de neve: se a cada dia a massa carcerária sofre um acréscimo de 37 presos, em um mês serão 1.110 a mais.

Os técnicos recomendam que as cadeias não tenham mais de 800 detentos, para evitar indisciplina, fugas, dificuldade de vigilância, perda de controle e aparecimento de facções dominadoras. Com 1.110 presos a mais a cada mês que passa, deveríamos construir três presídios novos de dois em dois meses, ou seja, 18 por ano.

Sem levar em conta as dificuldades logísticas e a má vontade dos municípios que movem montanhas para impedir a instalação de prisões nas proximidades, analisemos apenas os custos de construção: se uma cadeia nova não sai por menos de R$ 30 milhões, para levantar as 18 gastaríamos R$ 540 milhões por ano. Quantas escolas faríamos com esse dinheiro?

Para não aborrecê-lo com mais números, caríssimo leitor que resistiu até agora, vou deixar de lado as despesas com a folha de pagamento dos funcionários e todos os custos de manutenção.

Graças às medidas tomadas pela Secretaria da Segurança nos últimos anos, a polícia de São Paulo ganhou mais competência. A continuar assim, à medida que esse processo de modernização e moralização se aprofundar, mais gente será presa. Vejam o paradoxo: a sociedade quer polícia atuante e todos os bandidos atrás das grades, mas não terá recursos para aprisioná-los em condições minimamente civilizadas. Como sair do impasse?

Ainda que mal compare: quando um produto abarrota o mercado, o que fazem os produtores? Diminuem a produção.

Violência urbana é doença multifatorial e contagiosa, que nas camadas mais pobres adquire características epidêmicas. Em sua gênese estão implicados fatores tão diversos como escolaridade, consumo de drogas ilícitas, desemprego, impunidade, condições de moradia, falta de espaço para lazer e muitos outros aspectos. 

Os estudos mostram que correm mais risco de se tornar violentos aqueles que viveram pelo menos uma das seguintes situações: 1) falta de afeto e abusos físicos ou psicológicos na primeira infância; 2) falta de orientação familiar e de imposição de limites durante a adolescência; 3) convivência com pares envolvidos em atos de violência.

Na periferia das cidades brasileiras, milhões de crianças vivem nessas três situações de risco. São tantas que é de estranhar o pequeno número que envereda pelo crime.

Nossa única saída é oferecer-lhes alternativas de qualificação profissional e trabalho decente, antes que sejam cooptadas pelos marginais por um salário ridículo e sem direitos trabalhistas. Espalhadas pelo país há iniciativas bem-sucedidas nessa área, mas o número é tímido diante das proporções da tragédia social. Há necessidade de um grande esforço nacional que envolva as diversas esferas governamentais e mobilize a sociedade inteira.

Como parte dessa mobilização, é fundamental levar o planejamento familiar para os estratos sociais mais desfavorecidos. Negar-lhes o acesso ao controle da fertilidade é a violência maior que a sociedade comete contra a mulher pobre.

Toda vez que faço essa afirmação recebo e-mails de religiosos e de acadêmicos revoltados com ela. O argumento dos religiosos é o de sempre, o dos acadêmicos é a ausência de pesquisas que demonstrem a relação entre número de filhos e violência urbana.

Pergunto a você, leitor, e precisa? Há necessidade de evidências científicas para uma conclusão tão óbvia? Na penitenciária feminina em que atendo, é mais fácil achar uma agulha no palheiro do que uma menina de 25 anos que não tenha três ou quatro filhos, quase sempre indesejados. Algumas têm sete ou oito, espalhados em casas de parentes e vizinhos, morando na rua ou sob a tutela do Estado. 


O retorno das Cruzadas

Inácio Araújo

Georges Bernanos achava uma bobagem o processo do marechal Pétain, no fim da Segunda Guerra.

Para quem não sabe, Pétain foi o marechal que liderou o governo títere da França, quando invadida pelos nazistas. Assinou um armistício vergonhoso e iniciou a chamada política da Colaboração.

No fim da guerra, evidente, foi julgado e condenado à morte, mas De Gaulle comutou a pena. De Gaulle que, por sinal, o governo de Pétain condenara à morte por traição.

Bernanos via em Pierre Laval, célebre primeiro-ministro, maestro da Colaboração, não o monstro que todos viam, mas um aventureiro. Seria aventureiro em qualquer circunstância, diz Bernanos.

A execução de Darnand, o líder das Milícias, uma espécie de força paramilitar que perseguia os próprios franceses, também é vista com ceticismo pelo romancista.

Esses artigos, de enorme lucidez, foram escritos pouco depois de voltar à França (estava exilado no Brasil, diga-se), o que é notável.

Naquele momento, os patriotas babavam em busca de sangue dos “colabôs”, como se a vergonha da França viesse deles.

Bem, a visão de Bernanos me parece tão mais interessante porque nos remete a acontecimentos muito atuais. Escreve ele, a horas tantas:

“Para qualquer observador desinteressado, está claro que a mística do Marechal não se originava diretamente do espírito fascista. O fascismo nunca teve esse caráter clerical. A mística francesa do Marechal nasceu de uma outra mística, à qual a propaganda religiosa já havia dado, desde 1935, um alcance universal: a mística da guerra espanhola e da guerra santa entre os Bons e os Maus, os Puros e os Impuros, os Amigos e os Inimigos de Deus, os Vermelhos e os Brancos, breve: a mística da Cruzada.”

É de guerra santa que se trata hoje. Os fanáticos do islamismo alvejam as Torres Gêmeas. Os do cristianismo matam os jovens trabalhistas. Os do anti-israelismo matam em Israel. Os do anti-palestinismo matam em Gaza.

Como cada um tem sua verdade, como sua verdade se assenta na Bíblia ou no Alcorão, com eles não existe negociação possível: é o espírito da Cruzada.

Ele existia na França do pré-guerra com tal intensidade que os Colabôs não estavam infelizes por ver os alemães em seu país, na medida em que eles afastavam do horizonte os esquerdistas.

Mas não existe hoje?

Esse assassino norueguês será alguém tão isolado assim? Longe disso. Os fundamentalistas estão por toda parte. Não conversam senão entre si. Não admitem senão a própria verdade. Matam os outros e acham que está tudo certo.

O que move o norueguês a gente sabe bem o que é (o que move os muçulmanos tipo xiita eu não chego a entender): o ódio ao estrangeiro, ao imigrante, ao judeu, ao homossexual.

Vejamos aqui ao nosso lado mesmo: no momento em que arrancam a orelha do pai que abraçava o filho, onde se esconde o valentão Bolsonaro, de tantas bravatas? Por que ele não tem nada a dizer nessa hora? E o arcebispo? E os pastores evangélicos?

São inomináveis cretinos, é verdade, mas insuflam esse tipo de sub-humanidade que ora pode trucidar gays, ora destruir edifícios.

Bernanos via longe, é incrível. Ele acredita que as forças que haviam produzido coisas como o nazismo estavam longe de ser dissolvidas pela derrota na guerra.

Bom, aí está. Fico aqui e acho que já falei demais.

Na verdade eu queria falar de A Tristeza e a Piedade, o poderoso documentário de Marcel Ophuls sobre a França da Ocupação, que acabou de sair em DVD.

Voltarei a ele.

Sunday, July 24, 2011

Amy Winehouse morre aos 27

A polícia da Noruega divulgou neste sábado que o homem acusado de matar 92 pessoas na véspera se entregou logo após o massacre, sem oferecer qualquer tipo de resistência.

O norueguês Anders Behring Breivik, de 32 anos, está sendo questionado tanto pela explosão de uma bomba na capital, Oslo, que matou sete pessoas, quanto pelo tiroteio na ilha de Utoeya, no qual pelo menos 85 pessoas morreram.

No entanto, a polícia ainda não descartou a possibilidade de que ele teria agido em parceria com outro atirador.

O chefe de polícia Sveinung Sponheim disse que mensagens suas publicadas na internet sugerem que o atirador "tem opiniões políticas voltadas para a direita, anti-islâmicas".

Velório

Em Oslo, o clima era de velório: bandeiras estavam hasteadas a meio mastro e muitas pessoas se reuniram ao redor de igrejas, para prestar homenagem às vítimas acendendo velas e colocando flores.

Vestido de policial, Breivik teria chegado à ilha perto de Oslo e disparado contra jovens que participavam de um acampamento do Partido Trabalhista (do governo) no local. Havia cerca de 600 jovens no encontro.

Breivik também é suspeito de relação com o atentado a bomba ocorrido em Oslo um pouco antes.

Este foi considerado o pior ataque ocorrido na Noruega desde a Segunda Guerra Mundial.

A jovem Emma Christiansen, 16 anos, que participava do acampamento, disse à BBC ter visto o homem vestido de policial sendo abordado por um jovem e atirando contra ele. "Então, corri para dentro de casa. Foi assustador."

As autoridades não confirmaram se estão procurando por mais suspeitos, mas disseram que não tiveram conhecimento de nenhuma ameaça prévia relacionada aos atentados.

"Foi uma grande surpresa, não tínhamos nenhum indicativo de que isso ocorreria", disse o chanceler Store à BBC.

O ministro da Justiça disse que a polícia está usando "todos os recursos disponíveis" para lidar com a crise e investigar os responsáveis.

Ele pediu que a população fique longe do centro de Oslo por enquanto e que evite o uso de celulares, para não sobrecarregar a rede de telefonia do país.

BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC. 


Thursday, July 14, 2011

O que a Lei Seca dos anos 20 pode ensinar à legalização da maconha

Stephen J. Dubner entrevista Daniel Okrent, autor de Last Call: The Rise and Fall of Prohibition 


Foto de 1921 mostra agentes públicos despejando bebida alcoólica no esgoto

Como alguém que acredita ardorosamente na legalização da maconha e da maioria das outras drogas ilegais nos Estados Unidos, eu estou curioso em saber se você encontra alguma semelhança entre a atual guerra às drogas e a Lei Seca nos anos 20?

O paralelo óbvio entre a Lei Seca e a guerra às drogas é sua futilidade compartilhada –elas provam que não é possível legislar contra os apetites humanos. Também há o consequente enriquecimento daqueles que tentam atender esses desejos fora da lei: os contrabandistas nos anos 20 e os narcotraficantes atuais.

Mas o aspecto comum que sugere, para mim, que as leis americanas para drogas mudarão radicalmente nos próximos anos é a incapacidade do governo de extrair receita da venda de bebidas alcoólicas na época e das drogas atualmente. Nenhum fator exerceu um papel maior na derrubada da Lei Seca em 1933 do que a necessidade desesperada do governo por receita quando o país mergulhou na Grande Depressão. Antes da adoção da Lei Seca em 1919, uma quantia substancial da receita federal vinha do imposto sobre bebidas alcoólicas. Quando a arrecadação de impostos sobre renda e ganhos de capital despencou entre 1930 e 1933, os políticos perceberam que o retorno da venda do álcool ajudaria as finanças federais. De fato, no primeiro ano pós-suspensão, 1934, 9% da receita federal de impostos vieram da venda de bebidas alcoólicas.

No clima político atual, onde ninguém parece disposto a aumentar o imposto de renda, tanto o governo federal quanto os governos estaduais estão cada vez mais empregando impostos e outros tributos que poderiam ser facilmente aplicados à maconha.

Eu soube que a Lei Seca na verdade aumentou o consumo de bebidas alcoólicas nos Estados Unidos. Você tem alguma estatística sobre o consumo de bebidas alcoólicas antes, durante e depois da Lei Seca?

O que você ouviu está errado. Um dos pontos positivos da Lei Seca foi que ela reduziu o consumo de bebidas alcoólicas. Houve um declínio altamente acentuado após ela entrar em vigor, mas mesmo os anos subsequentes de bares ilegais, produção de fundo de quintal, contrabando e toda forma de violação da lei, não fizeram com que o consumo voltasse aos níveis pré-Lei Seca. Ao final da Lei Seca, os americanos consumiam aproximadamente 70% do que consumiam em 1914. (Historiadores demográficos usam este como ano base, já que muitos Estados começaram a aprovar leis altamente restringindo bebidas alcoólicas por volta dessa época.)

De fato, foi apenas em 1973 que os americanos voltaram os níveis de consumo de bebidas alcoólicas pré-Lei Seca e poucos anos depois o número de consumo per capita começou a cair de novo. Mesmo hoje, os americanos estão apenas caminhando lentamente de volta ao consumo de 1914.

Um número que os americanos nunca atingirão de novo: 28,4 litros de álcool absoluto que o americano médio bebia em 1830 – o equivalente a 663 litros de bebida com graduação alcoólica 40%, quase três vezes mais do que os americanos consomem hoje.

Ouvindo a maioria das pessoas falar, não resultou nada de bom da Lei Seca. Mas ouvi dizer que há evidências de que os índices de violência doméstica e outros problemas ligados ao álcool caíram significativamente após a Lei Seca entrar em vigor. Simplificando, ocorreu algo de bom a respeito da Lei Seca, ou ela foi um desastre do início ao fim?

Além da redução do consumo que mencionei antes, ocorreram alguns outros benefícios, dependendo do seu ponto de vista. Se você acreditar no cumprimento da lei federal, é possível rastrear muitas das leis criminais nacionais pós-suspensão aos exemplos estabelecidos durante a Lei Seca. Se você considerar sábia a decisão Roe contra Wade, a decisão da Suprema Corte em 1973 que concedeu à mulher o direito ao aborto, então você poderia agradecer a dissensão do ministro Louis Brandeis em um famoso caso da Lei Seca, Olmstead contra os Estados Unidos, onde ele escreveu sobre o direito do cidadão de ser deixado em paz –palavras citadas pelo ministro Potter Stewart em Roe.

Meu legado favorito da Lei Seca é a possibilidade de beber na companhia do sexo oposto. Na era pré-Lei Seca, o saloon era uma instituição masculina. Os bares ilegais promoveram uma mudança nos valores sociais permitindo que homens e mulheres bebessem juntos em público pela primeira vez, o que por sua vez levou à música nos bares – o nascimento do clube noturno.

Em um sentido mais geral, entretanto, eu diria que o legado mais positivo da Lei Seca foi nos dizer que proibições ao comportamento individual geralmente não funcionam.

Já foi dito que a Lei Seca nos Estados Unidos não teria chegado ao fim se não fosse pelos esforços do movimento feminista. Quão importantes foram as mulheres para a derrubada da Lei Seca?

Absolutamente essenciais. Quando a socialite proeminente e integrante do Partido Republicano, Pauline Morton Sabin, se manifestou contra a Lei Seca em 1929, o movimento pelo fim da Lei Seca começou a ganhar apoio. Viajando por várias cidades com outras mulheres ricas, socialmente proeminentes, com as quais formou a Organização das Mulheres pela Reforma Nacional da Lei Seca, Sabin atraiu um enorme público feminino. Seu exemplo estabeleceu que era respeitável para as mulheres se oporem à Lei Seca.

Sabin foi uma mulher extraordinária e provavelmente minha personagem favorita entre todas as pessoas sobre as quais escrevo em Last Call. Ela era honesta, franca, destemida e disposta a mudar de ideia – qualidades ausentes demais na vida pública americana atual.

Tradução: George El Khouri Andolfato

Sunday, July 10, 2011

Rumo a um mundo de 7 bilhões de pessoas

BABATUNDE OSOTIMEHIN

O empoderamento de meninas e de mulheres é um passo importante para erradicar a pobreza e para estabilizar o crescimento populacional

Em 31 de outubro de 2011, a população mundial atingirá 7 bilhões de pessoas. Esse marco apresenta um desafio, uma oportunidade e um convite à ação. Vivermos juntos, num planeta saudável, dependerá de nossas escolhas.

Por isso, amanhã, Dia Mundial da População, o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) lança a campanha mundial "7 Bilhões de Ações para um Mundo Mais Justo e Sustentável".

Atualmente, quase 78 milhões de pessoas são adicionados à população mundial a cada ano, aumentando a demanda por recursos naturais e pressionando o planeta.

Enquanto a pobreza, a desigualdade e a pressão por recursos representam grandes desafios, o mundo está mais interligado do que nunca; temos agora uma capacidade, sem precedentes, de compartilhar ideias e de envolver comunidades em todo o mundo para resolver nossos problemas.

Reduzir as desigualdades e melhorar o padrão de vida para as pessoas hoje - bem como para gerações seguintes - exige novas formas de pensamento e cooperação global. O momento de agir é agora.

Os 1,8 bilhão de jovens que vivem hoje podem contribuir com novas ideias e abordagens para a resolução de nossos problemas mais alarmantes. Principalmente os 600 milhões de meninas e de adolescentes, cujas decisões podem mudar o nosso mundo.

Se todas as garotas estivessem na escola, tivessem o número de filhos que desejam e vivessem livres da violência e discriminação, veríamos crianças e famílias mais saudáveis e as mulheres ocupando o seu lugar na sociedade.

A comunidade internacional concorda com a importância dos direitos de meninas e de mulheres. Em 1994, 179 governos se reuniram no Cairo para a histórica Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento.

Eles concordaram que o empoderamento das meninas e mulheres é um passo importante para erradicar a pobreza e estabilizar o crescimento populacional. Saúde reprodutiva e direitos - inclusive o de determinar livre e responsavelmente o número, espaçamento e momento de ter filhos, sem coerção, discriminação e violência - são pilares do empoderamento das mulheres e do desenvolvimento sustentável.

Infelizmente, enquanto o direito à saúde sexual e reprodutiva tem sido proclamado, está longe de ser universalmente respeitado. Estima-se que 215 milhões de mulheres nos países menos desenvolvidos querem evitar ou adiar a gravidez, mas não têm acesso a anticoncepcionais modernos.

A cada dia, mil mulheres morrem de complicações na gravidez e no parto. Mortes que podem ser evitadas. Quando mulheres e casais têm acesso a informações e serviços de saúde reprodutiva adequados, incluindo planejamento familiar, garantimos que cada criança seja desejada e que cada parto seja seguro. Assim, podemos reduzir a pobreza.

De acordo com a projeção mediana da Divisão de População das Nações Unidas, a população mundial chegará a 8 bilhões em 2025, a 9 bilhões em 2043 e a 10 bilhões em 2083. Mas essas projeções dependem do acesso ao planejamento familiar e dos direitos de que mulheres, homens e jovens façam suas próprias escolhas.

Os jovens já estão transformando a sociedade, a política e a cultura.

Com o ativo engajamento das mulheres e jovens, podemos construir um futuro melhor. Aproximamo-nos de uma população mundial de 7 bilhões, e cada um de nós é parte desse grande marco. Nossas pequenas ações individuais, multiplicadas em todo o mundo, podem levar a mudanças exponenciais.

Juntem-se a nós na criação de um mundo mais justo e sustentável. Visite www.7billionactions.org e faça parte desse movimento global. Juntos, somos 7 bilhões de pessoas, contando uns com os outros.

BABATUNDE OSOTIMEHIN é diretor-executivo do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA).

Thursday, July 07, 2011

Quando voltamos a pensar nos padrões e regras objetivos de comportamento segundo os quais agimos na vida cotidiana, sem pensar muito e sem julgar muito no sentido de Kant, isto é, quando de fato subordinamos os casos particulares às regras gerais sem jamais questioná-las, surge a questão de saber se não há realmente nada a que se agarrar quando somos solicitados a decidir que isto é certo e isto é errado, assim como decidimos que isto é belo e isto é feio. E a resposta a essa questão é sim e não. Sim - se com isso queremos dizer padrões geralmente aceitos como existentes em toda comunidade com respeito a maneiras e convenções, isto é, com respeito aos mores da moralidade. As questões de certo e errado não são decididas como as maneiras à mesa, como se não estivesse em jogo senão uma conduta aceitável. Mas há realmente algo a que o senso comum, quando se eleva ao nível de julgar, pode se agarrar e na verdade se agarra, e esse elemento é o exemplo. Kant disse: "Os exemplos são o andador do julgamento" (Crítica da Razão Pura, B174), e ele também chamou o "pensamento representativo" presente no julgamento em que os elementos particulares não podem ser subsumidos a algo geral pelo nome de "pensamento exemplar". Não podemos nos agarrar a nada geral, mas a algum elemento particular que se tornou um exemplo. De certo modo, esse exemplo lembra o edifício esquemático que trago no espírito para reconhecer como edifícios todas as estruturas que abrigam algo ou alguém. Mas o exemplo em contraposição ao esquema, deve nos dar uma diferença de qualidade. Deixem-me ilustrar essa diferença com um exemplo exterior à esfera moral. Perguntamos: O que é uma mesa? Em resposta a essa questão, invocamos a forma ou o esquema (kantiano) de uma mesa presente em nossa imaginação, com relação à qual toda mesa deve se conformar para ser uma mesa. Vamos chamar isso de a mesa esquemática (que, aliás, é mais ou menos a mesma coisa que a mesa "ideal", a ideia de mesa em Platão). Ou podemos reunir todos os tipos de mesa, despojá-los de suas qualidades secundárias, como cor, número de pernas, material etc., até chegarmos às qualidades mínimas comuns a todas. Vamos chamar esse objeto de a mesa abstrata. Ou podemos finalmente escolher entre as melhores dentre todas as mesas que conhecemos ou podemos imaginar, e dizer: este é um exemplo de como as mesas deveriam ser construídas e como deveria ser o seu aspecto. Vamos chamar isso de mesa exemplar. O que fizemos foi escolher, eximere, um caso particular que então se torna  válido para outros casos particulares. A maioria das virtudes e vícios políticos são pensados em termos de indivíduos exemplares: Aquiles para coragem, Sólon para perspicácia (sabedoria) etc. Ou tome-se o exemplo do cesarismo ou bonapartismo: tomamos Napoleão ou César como um exemplo, isto é, como uma pessoa particular que exibe qualidades que são válidas para outros casos. Sem dúvida, aqueles que não sabem quem foram César ou Napoleão não podem compreender do que estamos falando se mencionamos o cesarismo ou o bonapartismo. Por isso a validade do conceito é restrita, mas dentro de suas restrições, ele é ainda assim válido.

Os exemplos, que são realmente o "andador" (go-cart) de todas as atividades de julgamento, constituem também, e de maneira especial, os sinais de orientação de todo pensamento moral. A amplitude com que a antiga afirmação, outrora muito paradoxal - é melhor sofrer o mal do que fazer o mal -, tem conquistado a concordância dos homens civilizados deve-se primariamente ao fato de que Sócrates deu um exemplo, e, assim, tornou-se exemplo para um certo modo de conduta e um certo modo de decidir entre o certo e o errado. Esta posição é recapitulada por Nietzsche - o último filósofo, somos tentados a pensar, que levou a sério as questões morais e que, portanto, analisou e pensou até o limite todas as posições morais anteriores. Ele disse o seguinte: "É uma desnaturação da moralidade separar o ato do agente, dirigir o ódio ou o desprezo contra o 'pecado' [o ato em vez do agente], acreditar que uma ação poderia ser boa ou má em si mesma. [... Em toda ação] tudo depende de quem a pratica, o mesmo 'crime' pode ser, num caso, o privilégio mais elevado e, noutro caso, o estigma [do mal]. Na verdade, é o apego a si daquele que julga que interpreta uma ação, ou melhor, o seu autor, com respeito à [...] semelhança ou 'não-afinidade' entre o agente e o juiz" (Vontade de poder, nº 292). Julgamos e distinguimos o certo do errado por termos presentes em nosso espírito algum incidente e alguma pessoa, ausentes no tempo ou no espaço, os quais se tornaram exemplos. Há muitos desses exemplos. Podem estar no passado remoto ou entre os vivos. Não precisam ser realidade histórica; como Jefferson certa vez observou: "O assassinato fictício de Duncan por Macbeth" provoca em nós "um horror tão grande da vilania quanto o assassinato real de Henrique IV", e um "senso vivo e duradouro de dever filial é incutido com mais eficácia num filho ou numa filha pela leitura de Rei Lear do que por todos os volumes áridos de ética e divindade que já foram escritos". (Isso é o que diz todo professor de ética e o que nenhum outro professor jamais deveria dizer).

Bem , obviamente não tenho nem o tempo nem provavelmente a capacidade de analisar todos os detalhes, isto é, de responder, mesmo da forma mais breve, a todas as perguntas que eu própria fiz durante essas quatro palestras. Só posso esperar que ao menos alguma indicação de como podemos pensar e nos mover nesses assuntos difíceis e urgentes tenha se tornado aparente. Como conclusão, permitam-me apenas mais dois comentários. De nossa discussão de hoje sobre Kant, espero que tenha se tornado mais claro porque propus, por meio de Cícero e Meister Eckhart, a questão de determinar com quem desejamos estar juntos. Tentei mostrar que as nossas decisões sobre o certo e o errado vão depender de nossa escolha da companhia, daqueles com quem desejamos passar a nossa vida. Uma vez mais, essa companhia é escolhida ao pensarmos em exemplos, em exemplos de pessoas mortas ou vivas, reais ou fictícias, e em exemplos de incidentes passados ou presentes. No caso improvável de que alguém venha nos dizer que preferiria o Barba Azul por companhia, tomando-o assim como seu exemplo, a única coisa que poderíamos fazer é nos assegurarmos de que ele jamais chegasse perto de nós. Mas receio que seja muito maior a probabilidade de que alguém venha nos dizer que não se importa com a questão e que qualquer companhia lhe será satisfatória. Em termos morais e até políticos, essa indiferença, embora bastante comum, é o maior perigo. Em conexão com isso, sendo apenas um pouco menos perigoso, está outro fenômeno moderno muito comum, a tendência difundida da recusa a julgar. A partir da recusa ou da incapacidade de estabelecer uma relação com os outros pelo julgamento surgem os skandala reais, os obstáculos reais que os poderes humanos não podem remover porque não foram causados por motivos humanos ou humanamente compreensíveis. Nisso reside o horror e, ao mesmo tempo, a banalidade do mal.

1965-6

Hannah Arendt - Algumas questões de filosofia moral* - Responsabilidade e Julgamento


* Curso ministrado por Hannah Arendt na New School for Social Research em 1965. No ano seguinte, Arendt ministrou um curso semelhante na Universidade de Chicago, intitulado "Questões morais básicas"

Monday, July 04, 2011

Nos seus comentários, Arendt indicou que "o caráter imperecível" das obras de arte aplicada, o fato de que podemos julgá-las e realmente as julgamos belas depois de centenas ou milhares de anos, introduz a durabilidade do passado e com isso a estabilidade do mundo em nossa experiência. Mas, ao contrário das artes aplicadas que sustentam a estrutura do mundo, a ação, sem nenhum plano ou paradigma, o modifica. A ação, como testemunha o século XX, demonstra a fragilidade e a maleabilidade do mundo que ronda a liberdade abissal da vontade. No entanto, segundo Arendt, apesar de sua contingência "acidental" e "caótica", depois de terminada, pode-se contar uma história que "dá sentido" à ação. Como, perguntava ela, isso é possível? Em oposição aos filósofos da história, que tipicamente lêem progresso ou declínio nos resultados da ação, o interesse de Arendt era pela ação livre, cujos resultados são desconhecidos enquanto está sendo desempenhada. Se a faculdade de julgamento se mantém afastada da ação para adaptá-la a uma história, deve operar também naquele que age, que Arendt gostava de comparar a um ator, um artista. Embora a interpretação do agente desapareça assim que termina, enquanto perdura ela "ilumina" o princípio que a inspira. Espontaneamente, aquele que age julga esse princípio adequado para aparecer no mundo: ele lhe agrada, e sua ação é um apelo a outros, um pedido de que também lhes agrade. O agente, ocupado demais para pensar enquanto está agindo, não é irracional, e toda a atividade mental, segundo Arendt, torna a refletir sobre si mesma. Ao contrário do pensar e do querer, entretanto, o julgar está estreitamente ligado ao sentido que lhe corresponde, isto é, ao gosto. A reflexividade do julgar é qualificada pelo "agrada" ou "não agrada" do gosto, e quando o julgamento reflete o gosto de outros que julgam, transcende-se o imediatismo do próprio gosto daquele que julga. O ato de julgar transforma o gosto, o mais subjetivo de nossos sentidos, no senso comum especificamente humano que orienta os homens, homens que julgam, no mundo.

O julgamento, portanto, é uma espécie de atividade de equilíbrio, "congelada" na figura das balanças da justiça que pesam a estabilidade do mundo, em que o seu passado é presente, contra a renovação do mundo, a sua abertura à ação, mesmo que ela possa abalar a própria estrutura do mundo. [...] Com algum grau de confiança, pode-se dizer que a capacidade de pensar [...] é a precondição do julgar, e que a recusa e a incapacidade de julgar, de imaginar diante dos olhos os outros a quem o julgamento representa e reage, convidam o mal a entrar e infeccionar o mundo. Também se pode dizer que a faculdade de julgamento, ao contrário da vontade, não contradiz a si mesma: a capacidade de formular um julgamento não está separada de sua expressão, de fato são virtualmente a mesma coisa no discurso e na ação. [...] Seria possível dizer que o fenômeno da consciência é verdadeiro ao dar ouvidos e prestar atenção às vozes dos vivos, e dos que já não são ou ainda não são vivos, que partilham em comum um mundo duradouro e mutuamente agradável, cuja possibilidade tanto instiga o julgamento como é o seu resultado. Também se poderia dizer que a capacidade de reagir julgando imparcialmente - apreciando e tratando com consideração todos os pontos de vista possíveis - a adequação ou inadequação de certos fenômenos particulares que aparecerem no mundo une de forma inconsútil a política e a moralidade na esfera da ação. [...] Finalmente, talvez se possa perguntar: Arendt não estava se referindo ao poder estritamente moral do julgamento, quando [...] escreveu que julgar "pode realmente impedir catástrofes, pelo mesmo para mim mesma, nos raros momentos em que as cartas estão abertas sobre a mesa"?

Jerome Kohn, professor da New School for Social Research e diretor do Centro Hannah Arendt, na mesma instituição. Assistente de pesquisa de Hannah Arendt na New School. Responsável pela edição e publicação de seus inéditos. Introdução à edição americana - Responsabilidade e Julgamento,  pgs. 27, 28 e 29.

Saturday, July 02, 2011

Mencionei o colapso total dos padrões morais e religiosos entre pessoas que, segundo todas as aparências, sempre tinham acreditado firmemente nesses padrões, e também mencionei o fato inegável de que os poucos que conseguiram não ser tragados pelo redemoinho não foram de modo algum os "moralistas", pessoas que sempre apoiaram as regras da conduta certa, mas, ao contrário, foram muito frequentemente aqueles que tinham sido convencidos, mesmo antes da débâcle, da não-validade objetiva desses padrões per se. Assim, teoricamente, nós nos descobrimos hoje na mesma situação em que o século XVIII se descobriu com respeito aos meros julgamentos de gosto. Kant se indignava que a questão da beleza fosse decidida arbitrariamente, sem possibilidade de discussão e acordo mútuo, no espírito do  de gustibus non disputandum est. De maneira bastante frequente, mesmo em circunstâncias que estão muito longe de qualquer indicação catastrófica, nos descobrimos hoje exatamente na mesma posição no que diz respeito às discussões de questões morais. Assim, vamos retornar a Kant.

1.

O senso comum para Kant não significava um sentido comum para todos nós, mas, estritamente, aquele sentido que nos ajusta a uma comunidade formada com os outros, que nos torna seus membros e capacita-nos a comunicar as coisas dadas pelos nossos cinco sentidos. Ele cumpre essa tarefa com a ajuda de outra faculdade, a faculdade da imaginação (para Kant a faculdade mais misteriosa). A imaginação ou representação designa a minha capacidade de ter no espírito a imagem de algo que não está presente. A representação torna presente o que está ausente - por exemplo, a ponte George Washington. Mas embora eu possa evocar a ponte que está distante do olho de meu espírito, tenho realmente duas imaginações ou representações no espírito: primeiro, essa ponte particular que já vi muitas vezes, e segundo, uma imagem esquemática de ponte pela qual posso reconhecer e identificar qualquer ponte, inclusive a mencionada, como sendo uma ponte. Essa segunda ponte esquemática nunca aparece diante de meus olhos corpóreos; no momento em que a coloco no papel torna-se uma ponte particular, deixa de ser um mero esquema. Ora, a mesma capacidade representativa sem a qual nenhum conhecimento seria possível estende-se às outras pessoas, e os esquemas que aparecem no conhecimento se tornam exemplos no julgamento. O senso comum, em virtude de sua capacidade imaginativa, pode ter presente em si mesmo todos aqueles que de fato estão ausentes. Pode pensar, como diz Kant, no lugar de todos os outros, de modo que quando alguém faz um julgamento - isto é belo - ele não quer dizer meramente que isso me agrada (como se, por exemplo, sopa de galinha pudesse ser do meu gosto, mas não ser do gosto de outros), mas ele reivindica a aprovação dos outros porque no ato de julgar já os levou em consideração e, por isso, espera que seus julgamentos venham conter uma certa validade geral, ainda que talvez não universal. A validade vai se estender a toda a comunidade da qual o meu senso comum se torna membro - Kant, que se julgava um cidadão do mundo, esperava que se estendesse à comunidade de toda a humanidade. Kant dá a isso o nome de "mentalidade alargada", querendo dizer que sem esse acordo o homem não está preparado para a interação civilizada. O aspecto importante da questão é que meu julgamento de um caso particular não depende meramente da minha percepção, mas de representar para mim mesmo algo que não percebo. Deixem-me ilustrar esse ponto: vamos supor que eu veja uma moradia específica na favela e perceba nessa construção particular a noção geral que ela não exibe diretamente, a noção de pobreza e miséria. Chego a essa noção ao representar para mim mesmo como me sentiria se tivesse de viver ali, isto é, tento pensar no lugar do morador da favela. O julgamento a que vou chegar não será necessariamente igual ao dos habitantes, a quem o tempo e a falta de esperança podem ter embotado qualquer sensibilidade à afronta de sua condição, mas vai se tornar um exemplo marcante para os meus julgamentos posteriores dessas questões. Além disso, embora ao julgar eu leve em consideração os outros, isso não significa que me adapte em meu julgamento ao julgamentos dos outros. Ainda falo com a minha própria voz e não conto votos para chegar ao que penso ser certo. Mas o meu julgamento já não é subjetivo, no sentido de que chegaria às minhas conclusões levando apenas a mim mesma em consideração.

Hannah Arendt - Algumas questões de filosofia moral (1965 - 6) - Responsabilidade e Julgamento

Saturday, June 25, 2011

5.

[...]
Hoje a cidade acordou toda em contramão
Homens com raiva, buzinas, sirenes, estardalhaço
De volta à casa, na rua, recolhi um cão
Que, de hora em hora, me arranca um pedaço

[...]
Hoje o inimigo veio; veio me espreitar
Armou tocaia lá na curva do rio
Trouxe um porrete, um porrete a mode me quebrar
Mas eu não quebro, não, porque sou macio, viu?

Chico Buarque - Querido Diário

3.

[...] Pensar e lembrar, dissemos, é o modo humano de deitar raízes, de cada um tomar seu lugar no mundo a que todos chegamos como estranhos. O que em geral chamamos de uma pessoa ou uma personalidade, distinta de um mero ser humano ou de um ninguém, nasce realmente desse processo que deita raízes. Nesse sentido, afirmei que é quase uma redundância falar de uma personalidade moral; sem dúvida, uma pessoa ainda pode ser de boa ou má índole, as suas inclinações podem ser generosas ou mesquinhas, ela pode ser agressiva ou dócil, franca ou dissimulada; pode ser dada a todos os tipos de vícios, assim como pode nascer inteligente ou estúpida, bela ou feia, amável ou um tanto rude. Tudo isso tem pouco a ver com as questões que nos preocupam nesse momento. Caso se trate de um ser pensante, arraigado em seus pensamentos e lembranças e, assim, conhecedor de que tem de viver consigo mesmo, haverá limites para o que se pode permitir fazer, e esses limites não lhe serão impostos de fora, mas auto-estabelecidos. Esses limites podem mudar de maneira considerável e desconfortavelmente de pessoa para pessoa, de país para país, de século para século: mas o mal ilimitado e extremo só é possível quando essas raízes cultivadas a partir do eu, que automaticamente limitam as possibilidades, estão inteiramente ausentes. Elas estão ausentes quando os homens apenas deslizam sobre a superfície dos acontecimentos, quando se deixam levar adiante sem jamais penetrarem em qualquer profundidade de que possam ser capazes. Certamente, essa profundidade também muda de pessoa para pessoa, de século para século, tanto na sua qualidade específica quanto nas suas dimensões. Sócrates acreditava que ensinando as pessoas como  pensar, como falar consigo mesmas, uma ação distinta da arte oratória de como persuadir e da ambição do sábio de ensinar o que  pensar e como aprender, ele melhoraria seus concidadãos; mas se aceitamos esse pressuposto e perguntamos a Sócrates quais seriam as sanções para aquele famoso crime oculto dos olhos dos deuses e dos homens, a sua resposta só poderia ter sido: a perda dessa capacidade, a perda de estar só, e, como tentei ilustrar, com ela a perda da criatividade - em outras palavras, a perda do eu que constitui a pessoa.

Hanna Arendt - Algumas questões de filosofia moral III - Responsabilidade e Julgamento

2.

Por fim, permitam-me lembrar-lhes um dos fenômenos mais assustadores em nossas experiências morais mais recentes. Suponho que todos os senhores já ouviram falar ao menos daqueles assassinos do Terceiro Reich que não só levavam uma impecável vida familiar, como gostavam de passar o seu tempo de lazer lendo Hölderlin e escutando Bach, provando (como se houvesse falta de provas a esse respeito) que os intelectuais podem ser tão facilmente induzidos ao crime quanto qualquer outra pessoa. Mas a sensibilidade e um gosto pelas assim chamadas coisas elevadas da vida não são capacidades do espírito? Sem dúvida, mas a capacidade de apreciação não tem nada a ver com o pensamento, que, devemos lembrar, é uma atividade, e não o desfrute passivo de algo. Na medida em que o pensamento é uma atividade, ele pode ser traduzido em produtos, em coisas como poemas, música ou pinturas. Todas as coisas desse tipo são realmente coisas do pensamento, assim como a mobília e os objetos de nosso uso diário são corretamente chamados objetos de uso: uns são inspirados pelo pensamento e os outros são inspirados pelo uso, por alguma necessidade e carência humana. O ponto importante sobre esses assassinos altamente cultos é que nem um único deles compôs um poema digno de ser lembrado, uma música digna de ser escutada, ou pintou um quadro que alguém gostaria de dependurar nas suas paredes. Sem dúvida, é necessário mais do que o pleno exercício da capacidade de pensar (thoughtfulness) para compor um bom poema, uma música ou pintar um quadro - é necessário um talento especial. Mas nenhum talento suportará a perda de integridade que experimentamos quando perdemos essa capacidade muito comum de pensar e lembrar.

Hannah Arendt - Algumas questões de filosofia moral II - Responsabilidade e Julgamento

1.

A primeira coisa que nos chama a atenção nos diálogos socráticos de Platão é que são todos aporéticos. A argumentação ou não leva a lugar nenhum ou anda em círculos.

[...] Nenhum dos logoi, os argumentos, jamais fica parado; movem-se ao redor porque Sócrates, ao fazer perguntas para as quais ele não sabe as respostas, coloca-os em movimento. E quando as afirmações perfazem o círculo completo é em geral Sócrates que, com prazer, propõe começar tudo de novo [...]

[...] Entretanto, Sócrates, de quem comumente se diz que teria acreditado na possibilidade de ensinar a virtude, parece ter sustentado de fato que falar e pensar sobre a piedade, a justiça, a coragem e tudo o mais, poderia tornar os homens mais piedosos, mais justos, mais corajosos, mesmo que não lhes fossem dadas definições ou "valores" para orientar a sua conduta posterior. Aquilo em que Sócrates realmente acreditava a respeito dessas questões pode ser mais bem ilustrado pelas comparações que aplicava a si mesmo. Ele se chamava de moscardo e parteira, e, segundo Platão, foi chamado por outra pessoa de "arraia-elétrica", um peixe que paralisa e entorpece pelo contato, uma semelhança cuja propriedade ele reconheceu sob condição de que fosse compreendido que "a arraia-elétrica só paralisa os outros por estar ela própria paralisada. Não é que, sabendo eu próprio as respostas, deixe perplexas as outras pessoas. A verdade é, antes, que também as infecto com a perplexidade que eu próprio sinto". O que, sem dúvida, resume com muita clareza a única maneira em que o pensamento pode ser ensinado - exceto que Sócrates, como ele disse repetidas vezes, não ensinava nada pela simples razão de que nada tinha para ensinar; ele era "estéril" como as parteiras na Grécia, que já tinham passado da idade de dar à luz.

[...] Sócrates (comparado a) um moscardo [...] sabe como provocar os cidadãos que, sem ele, "continuarão a dormir calmamente pelo resto da vida", a menos que apareça outra pessoa para voltar a despertá-los. E a que ele os provoca? A pensar, a examinar as questões, uma atividade sem a qual a vida, segundo ele, não só não valia muito a pena como não era plenamente viva.

[..] Parece que ele, ao contrário dos filósofos profissionais, sentia-se impelido a verificar se os seus semelhantes partilhavam as suas perplexidades - e esse impulso é totalmente diferente da inclinação a encontrar soluções para enigmas para então demonstrá-las aos outros.

Hannah Arendt - Pensamento e considerações morais - Responsabilidade e Julgamento