Taibele e seu demônio
Na pequena cidade de Lashnik, não muito longe de Lublin, viviam um homem e sua mulher. Chamava-se Chaim Nossen; a mulher, Taibele. Não tinham filhos. Não que o casamento lhes fosse estéril: Taibele dera ao marido um menino e duas meninas, porém todos morreram na infância, um de coqueluche, outro de escarlatina e o terceiro de difteria. Depois do que, o útero de Taibele fechou-se e tudo resultou inútil: rezas, feitiços, poções. Cheio de dor, Chaim Nossen desligou-se do mundo. Isolado da mulher, deixou de comer carne e já não dormia em casa, mas em um banco, na casa de orações.
Taibele possuía um armarinho, que herdara dos pais, e ali sentava-se o dia inteiro, com um medidor à direita, uma tesoura à esquerda e o Livro de Preces das Mulheres, em iídiche, à sua frente. Chaim Nossen, alto, esbelto, de olhos negros e barba em ponta, sempre fora lento, silencioso — mesmo nos tempos ditosos. Taibele era pequena e bonita, com seus olhos azuis e rosto redondo. Embora punida pelo Todo-Poderoso, o riso ainda lhe vinha fácil, fazendo covinhas nas faces. Não tinha mais para quem cozinhar e, no entanto, acendia o fogão ou o tripé todos os dias e preparava mingau ou sopa para si mesma. Também continuava a tricotar — ora um par de meias, ora uma túnica, ou algo mais que pudesse bordar em cânhamo. Não estava em sua natureza injuriar o destino nem sucumbir ao infortúnio.
Um dia, Chaim Nossen pôs o xale de orações e amuletos, uma muda de roupa de baixo e uma fatia de pão num saco, e saiu de casa. Os vizinhos perguntaram para onde ia. Respondeu: "Para onde os olhos me guiarem".
Quando disseram a Taibele que o marido a deixara, era muito tarde para detê-lo. Ele já atravessara o rio. Descobriram que havia alugado uma carroça para ir a Lublin. Taibele enviou mensageiro em seu encalço, mas nem o marido nem o mensageiro voltaram a ser vistos.
Aos trinta e três anos, Taibele encontrou-se abandonada.
Depois de muito pensar, concluiu que não lhe restavam esperanças. Deus tirara-lhe os filhos e o marido. Jamais seria capaz de casar-se outra vez. Doravante teria de viver só. Ficavam apenas a casa, a loja e objetos pessoais. O povo da cidadezinha condoeu-se, pois tratava-se de mulher quieta, de boa índole e honesta em seus negócios.
Todo mundo inquiria: por que tantas desgraças? Acontece que os desígnios de Deus não se revelam logo ao conhecimento dos homens.
Taibele tinha várias amigas entre as damas da cidade, as quais conhecia desde a infância. Durante o dia as mães de família estavam ocupadas com seus pratos e caçarolas, mas no fim da tarde apareciam para um dedo de prosa. No verão, as amigas sentavam-se num banco, do lado de fora da casa, bisbilhotando e contando casos.
Em uma noite sem lua, no verão, com a cidade tão escura quanto o Egito, Taibele estava sentada no banco, narrando às amigas a história que lera num livro trazido por um mascate. Referia-se a uma jovem mulher judia e a um demônio que a violentara e com ela vivia como se fossem marido e mulher. Taibele recontou a história em todos os detalhes.
As mulheres acotovelaram-se, uniram as mãos, bateram os pés para afugentar o mal e soltaram a espécie de riso que advém do temor. Urna delas perguntou:
— Por que ela não exorcizou o demônio com amuletos?
— Nem todo demônio teme amuletos — respondeu Taibele.
— Por que não foi ver um santo rabi?
— O demônio avisou que a estrangularia caso revelasse o segredo.
— Ai de mim — gemeu uma mulher. — Que o Senhor nos proteja! Que nos livre de semelhantes coisas!
— Agora tenho medo de voltar para casa — disse outra.
— Irei com você — prometeu uma terceira.
Enquanto conversavam, Alchonon, o ajudante de professor que esperava um dia tornar-se palhaço casamenteiro, passou casualmente. Viúvo há cinco anos, Alchonon tinha fama de gaiato e travesso — uma pessoa de parafusos frouxos. Seus passos eram silenciosos porque a sola dos sapatos gastara-se e ele andava de pés nus. Ao ouvir Taibele iniciar a história, parou para escutar. A escuridão estava tão densa e as mulheres de tal forma embebidas no estranho relato que não o viram.
O tal Alchonon era um sujeito velhaco, cheio de artimanhas grosseiras. No mesmo instante esboçou um plano maluco.
Depois que as mulheres partiram, Alchonon entrou furtivamente no quintal de Taibele. Oculto atrás de uma árvore, olhou pela janela. Quando viu Taibele deitar-se e apagar a vela, esgueirou-se para dentro da casa. Taibele não passara a tranca na porta: naquela cidade não se mencionavam ladrões. Na saleta, tirou o cafetã roto, a túnica debruada, as calças — e ficou nu, tão nu como sua mãe o pariu. Em seguida, dirigiu-se na ponta dos pés até a cama de Taibele. Ela estava prestes a adormecer quando, de repente, viu a figura assomando nas trevas. De tão assustada não conseguiu balbuciar uma palavra.
— Quem é? — sussurrou afinal, a tremer. Alchonon respondeu em voz cava:
— Não grite, Taibele. Se gritar, eu a destruirei. Sou o demônio Hurmizah, senhor das trevas, da chuva, do granizo, do trovão e dos animais selvagens. Sou o espírito mau que desposou a jovem mulher de quem você falava esta noite. Você narrou o caso com tal realismo que eu ouvi suas palavras lá no abismo e fiquei cheio de desejo de seu corpo. Não tente resistir, pois eu desterro os que se recusam a fazer minha vontade para além das montanhas da Escuridão — até o monte Sair, lugar deserto onde jamais se viu pegada humana, onde fera alguma ousa pisar, onde a terra é de ferro e o céu de cobre. E eu os envolvo em espinhos e fogo, entre víboras e escorpiões, até que cada osso de seu corpo se transforme em pó, e eles se percam eternamente nas mais baixas profundezas. Mas, se você atender ao meu desejo, nem um só cabelo de sua cabeça será tocado, e eu lhe proporcionarei êxito em todos os empreendimentos...
Ouvindo estas palavras, Taibele jazia imóvel, como num desmaio. O coração inchava e parecia querer parar. Pensou que o seu fim havia chegado. Passado algum tempo, reuniu coragem e murmurou:
— Que pretende de mim? Sou uma mulher casada!
— Seu marido morreu. Eu próprio acompanhei o enterro.
A voz do ajudante de professor estrondou:
— Claro que não posso testemunhar isso em presença do rabi e liberar você para outro casamento. Os rabis não acreditam em gente como nós. Além do mais, não posso traspassar a soleira da câmara do rabi... Tenho pavor dos Sagrados Pergaminhos. Mas não estou mentindo. Seu marido morreu de uma epidemia, os vermes já lhe comeram o nariz. E mesmo estando vivo, você não estaria proibida de dormir comigo, pois as leis do Shulchan Aruch não se aplicam a nós.
Hurmizah, o ajudante de professor, prosseguiu com suas persuasões, umas vezes em tom doce, outras vezes ameaçador. Invocou nomes de anjos e demônios, de animais diabólicos e vampiros. Jurou que Asmodeu, rei dos demônios, era seu tio postiço. Disse que Lilith, rainha dos maus espíritos, dançava para ele em um pé só e fazia tudo para ser-lhe agradável. Shibtah, a diaba que roubava bebês das mulheres, no berço, assava pãezinhos de sementes de papoula para ele, nos fornos do inferno, e fermentava-os com a gordura de bruxos e cães pretos. Argumentou tanto, aduzindo engenhosas parábolas e provérbios, que Taibele se viu afinal forçada a rir em seu desespero. Hurmizah jurou que amava Taibele há longo tempo. Descreveu-lhe os vestidos e xales que ela usara aquele ano e no ano passado; contou os pensamentos secretos que lhe advinham quando misturava farinha, preparava a refeição do Sabbath, lavava-se no banho e satisfazia necessidades na privada externa. Recordou-lhe ainda a manhã em que ela acordou com uma marca preta e azulada no seio.
Ela pensou fosse o beliscão de um vampiro. Mas em verdade a marca fora produzida por um beijo dos lábios de Hurmizah.
Pouco depois, o demônio meteu-se na cama de Taibele e teve o que queria. Disse-lhe que doravante pretendia visitá-la duas vezes por semana, nas noites de quarta-feira e sábado, por serem as noites em que os não sacramentados soltam-se pelo mundo. Advertiu-a, no entanto, a não contar a ninguém o que lhe sucedera, sequer sugerir, sob pena de severo castigo: ele lhe arrancaria os cabelos do crânio, furaria seus olhos, despedaçaria seu umbigo. Por fim, haveria de atirá-la no ermo mais desolado, onde o pão era estéreo e a água sangue, e onde as lamentações de Zalmaveth eram ouvidas dias e noites sem cessar. Exigiu de Taibele que jurasse, pelos ossos de sua mãe, guardar o segredo até o fim de seus dias. Taibele viu que não tinha escapatória. Pôs a mão na coxa e proferiu o juramento; fez tudo o que o monstro lhe ordenara.
Antes de partir, Hurmizah deu-lhe longos e voluptuosos beijos, e, já que ele era demônio e não homem, Taibele devolveu os beijos e umedeceu-lhe a barba com suas lágrimas. Embora sendo espírito mau, ele a tratara com gentileza...
Quando Hurmizah desapareceu, Taibele afundou a cabeça no travesseiro e soluçou até despontar o sol.
Hurmizah voltou todas as noites de quarta e sábado. Taibele tinha medo de engravidar e dar à luz um monstro de cauda e chifres — um duende ou um palerma. Mas Hurmizah prometeu preservá-la da vergonha. Taibele perguntou-lhe se convinha ir ao banho ritual, para limpar-se após os dias impuros, porém Hurmizah garantiu que as leis relativas à menstruação não abrangiam os que se consorciavam com o visitante imundo.
Como diz o ditado, livre-nos Deus de tudo com que possamos nos habituar. Isso se aplicava a Taibele. No começo ela receou que o visitante noturno lhe causasse dano, produzisse furúnculos ou emaranhasse o cabelo, fazendo-a latir como cão ou beber urina, e convocasse contra ela toda sorte de desgraças. Mas Hurmizah não a chicoteava, beliscava ou nela cuspia. Ao contrário, fazia-lhe carinhos, sussurrava agrados, compunha trocadilhos e versos. Às vezes sacava traves-suras tais e babujava tantas asneiras, que ela se via obrigada a rir. Outras vezes puxava-lhe o lobo da orelha e dava-lhe mordidas amorosas no ombro. De manhã ela encontrava a marca dos dentes na pele. Persuadiu-a a deixar crescer o cabelo sob a touca e trançou-o. Ensinou-lhe feitiços e encantos, falou-lhe de seus irmãos noturnais, dos demônios em cuja companhia corria sobre ruínas e campos de cogumelos venenosos, sobre os pântanos salgados de Sodoma e as desoladas superfícies do mar de Gelo. Não negou que tivesse outras esposas; todas, porém, diabas. Taibele era a única esposa humana que possuía. Quando Taibele perguntou os nomes de suas mulheres, enumerou-as: Namah, Machlath, Aff, Chuldah, Zluchah, Nafkah e Cheimah. Sete, ao todo.
Disse-lhe que Namah era preta qual breu e cheia de ira. Quando brigava com ele, cuspia veneno e soprava fogo e fumo pelas ventas.
Machlath tinha o rosto de sanguessuga — e os que ela tocava com a língua ficavam marcados para sempre.
Aff adorava enfeitar-se de prata, esmeraldas e diamantes. Suas trancas eram fios de ouro. Nos tornozelos usava sinos e braceletes. Quando dançava, todos os desertos vibravam com os repiques.
Chuldah tinha forma de gato. Miava em vez de falar. Seus olhos eram verdes quais groselhas espinhosas. Ao copular, mascava sempre fígado de urso.
Zluchah era inimiga das noivas. Roubava a potência dos noivos. Se uma noiva saía sozinha à noite, durante as Sete Bênçãos Nupciais, Zluchah dançava para ela e a noiva perdia a capacidade de falar ou era vítima de doença repentina.
Nafkah era lasciva, traindo-o sempre com outros demônios. Retinha o afeto dele só por causa de seu falar vil e insolente, que lhe deliciava o coração.
Cheimah deveria ser, segundo seu nome, tão viciosa quanto Namah deveria ser meiga, mas o oposto era verdadeiro: Cheimah não passava de uma diaba sem ódio. Estava sempre a fazer ações caridosas, misturando farinha para donas-de-casa doentes, ou levando pão à casa dos pobres.
Assim Hurmizah descreveu suas mulheres e contou a Taibele como se divertia com elas, brincando de pegador nos telhados e metendo-se em todo gênero de travessuras. De hábito, uma mulher tem ciúmes quando um homem se liga a outras mulheres, mas como enciumar-se de uma diaba? Bem ao contrário, os contos de Hurmizah divertiam Taibele, que o importunava freqüentemente com perguntas. Às vezes ele lhe revelava mistérios que mortal algum conhecia — acerca de Deus, seus anjos e serafins, suas mansões celestiais e os sete céus. Dizia-lhe também como os pecadores, homens e mulheres, eram torturados em barris de breu e caldeirões de carvão fumegante, em leitos de pregos e em poços de neve, e como os anjos negros açoitavam os corpos dos pecadores com varas de fogo.
O supremo castigo no inferno consistia em provocar cócegas, disse Hurmizah. Havia um certo diabinho no inferno, por nome Lekish. Quando Lekish cocava uma adúltera na planta dos pés ou nas axilas, o riso torturado ecoava até a ilha de Madagascar.
Dessa maneira, Hurmizah entretinha Taibele a noite inteira, e dentro em pouco ela começou a sentir-lhe a falta quando ele se ausentava. As noites de verão pareciam muito curtas, pois Hurmizah partia cedo, logo após o canto do galo. Até as noites de inverno não eram bastante compridas. Em verdade, ela agora amava Hurmizah, e embora ciente de que uma mulher não deve arder de paixão por um demônio, por ele ansiava, dia e noite.
2
Conquanto viúvo há muitos anos, Alchonon continuava na lista dos contratantes de casamentos. As mulheres que estes propunham tinham origem humilde, viúvas e divorciadas, porque um ajudante de professor não parecia bom partido, e, além disso, Alchonon tinha fama de desastrado e incapaz.
Alchonon recusava as ofertas sob vários pretextos: aquela mulher era feíssima, a outra tinha língua de cobra, a terceira era relaxada. Os casamenteiros pensavam: um ajudante de professor, ganhando nove groschen por semana, estaria em condições de exigir e escolher? Por quanto tempo consegue um homem viver sozinho? Impossível, porém, forçar uma pessoa a convolar núpcias.
Alchonon perambulava pela cidade — comprido, esguio, esfarrapado, com sua desgrenhada barba ruiva, a túnica amarrotada, o pomo-de-adão subindo e descendo. Esperava que o palhaço casamenteiro Reb Zekele morresse, de forma a tomar-lhe o lugar. Mas Reb Zekele não demonstrava pressa de morrer: continuava a estimular casamentos com um inexaurível fluxo de sátiras e rimas, como nos dias de sua mocidade. Alchonon tentava ajeitar-se como professor de principiantes, porém nenhuma dona-de-casa confiava-lhe os filhos. Pela manhã ele levava crianças ao cheder e as recolhia à noite. Durante o dia sentava-se no pátio de Reb Itchele, o professor, a talhar preguiçosamente apontadores de madeira, ou a recortar para decoração papel que era usado somente uma vez por ano, no Pentecostes, ou então a modelar figuras de barro.
Não muito distante do armarinho de Taibele havia um poço, e Alchonon lá ia muitas vezes ao dia, para tirar um balde de água ou beber um pouco, entornando água na barba ruiva. Nessas ocasiões, lançava rápido olhar a Taibele. Taibele apiedava-se dele: como conseguia sobreviver? E Alchonon pensava, por seu turno: "Ai, Taibele, se você conhecesse a verdade!"
Alchonon habitava um sótão na casa de uma viúva entrada em anos, que era surda e meio cega. Muitas vezes a velha admoestava-o por não ir à sinagoga orar, como outros judeus. Assim que deixava as crianças em casa, Alchonon murmurava uma apressada prece noturna e metia-se na cama. Às vezes, a velha julgava ouvir o ajudante de professor erguer-se no meio da noite e sair para algum lugar. Perguntou-lhe por onde vagueava à noite, mas Alchonon dizia-lhe que ela estivera a sonhar. As mulheres que se sentavam nos bancos, ao cair da noite, tricotando meias e trocando bisbilhotices, espalharam o boato segundo o qual Alchonon, depois da meia-noite, transformava-se em lobisomem. Algumas diziam que ele se consorciara com um súcubo. De outra forma, por que um homem permaneceria tantos anos sem mulher? Os ricos já não lhe confiavam a guarda dos filhos. Agora ele só acompanhava os filhos dos pobres e raramente tinha uma colherada de alimento quente, tendo de contentar-se com côdeas secas.
Alchonon tornava-se cada vez mais magro, mas seus pés permaneciam ágeis como sempre. Com as pernas descarnadas, parecia percorrer a rua como se andasse em pernas de pau. Devia sofrer sede constante, pois estava sempre indo ao poço. Às vezes limitava-se a ajudar um vendedor ou um camponês a dar água ao cavalo. Um dia, quando Taibele percebeu, a distância, como seu cafetã estava roto e esfiapado, chamou-o à loja. Ele lançou-lhe um olhar assustado e empalideceu.
— Pelo que vejo, seu cafetã está rasgado — disse Taibele. — Se quiser, fio-lhe alguns metros de pano. Você pagará mais tarde, à base de cinco centavos por semana.
— Não.
— Por que não? — perguntou Taibele, atônita. — Prometo não o denunciar ao rabi se atrasar o pagamento. Pague quando puder.
— Não.
E ele saiu rapidamente do armarinho, temendo que ela lhe reconhecesse a voz.
No verão era fácil visitar Taibele no meio da noite. Alchonon caminhava pelos terrenos planos dos fundos, apertando o cafetã no corpo nu. No inverno, o ato de vestir-se e despir-se na saleta de Taibele tornava-se bem mais doloroso. O pior, no entanto, eram as noites que se seguiam a uma fresca lufada de neve. Alchonon receava que Taibele ou um de seus vizinhos observasse suas pegadas na neve. Apanhou um resfriado e começou a tossir. Uma noite entrou na cama de Taibele com os dentes a castanholarem; custou muito a se aquecer. Com medo de que ela descobrisse o embuste, inventava explicações e desculpas. Mas Taibele não o inquiria nem desejava investigar de muito perto. Já descobrira há algum tempo que um diabo tem todos os hábitos e fraquezas do homem. Hurmizah suava, roncava, soluçava, bocejava. Às vezes seu hálito cheirava a cebola, outras vezes a alho. O corpo dele assemelhava-se ao de seu marido, ossudo e peludo, com um pomo-de-adão e umbigo. Certas vezes Hurmizah mostrava ânimo chistoso, em outras dava para soltar suspiros. Seus pés não eram de ganso, e sim humanos, com unhas e ulcerações causadas pelo frio. Uma ocasião Taibele perguntou-lhe o significado dessas coisas, e Hurmizah explicou:
— Quando um de nós se une a uma fêmea humana, assume a forma de homem. Do contrário ela morreria de medo.
Sim, Taibele habituou-se a ele e amou-o. Já não sentia medo dele ou de seus grotescos gestos malignos. As histórias que ele contava eram inesgotáveis, e Taibele descobria nelas, muitas vezes, contradições. Como todos os mentirosos, tinha memória curta. Dissera-lhe a princípio que os demônios eram imortais, mas uma noite indagou:
— Que fará você se eu morrer?
— Demônios não morrem!
— Eles são levados ao abismo mais profundo... Durante aquele inverno houve uma epidemia na cidade.
Ventos furiosos chegaram do rio, dos bosques, dos pântanos. Não apenas crianças, mas adultos também baixaram ao leito com febre palúdica. Choveu e granizou. As tempestades arrancaram um braço do moinho de vento. Na noite de quarta-feira, quando Hurmizah entrou na cama de Taibele, ela observou que o corpo dele queimava de febre, mas os pés estavam gelados. Ele tremia todo e lamentava-se. Tentou entretê-la com sua conversa sobre diabas, de como elas seduziam rapazes, de como pinoteavam com outros demônios, revolviam-se no banho ritual, atavam a barba dos homens, mas estava fraco e incapaz de possuí-la. Jamais ela o vira em tão lastimável estado. Seu coração sobressaltou-se. Perguntou:
— Quer que lhe traga framboesas com leite?
— Esses remédios não nos convém — respondeu Hurmizah.
— Que costumam fazer quando adoecem?
— Coçamo-nos e nos esfregamos...
Pouco mais disse depois disso. Ao beijar Taibele, exalava um hálito acre. Sempre permanecia com ela até o cantar do galo, mas daquela feita partiu cedo. Taibele ficou silenciosa, ouvindo seus movimentos na saleta. Ele lhe havia jurado que saía pela janela, mesmo quando cerrada e trancada, mas ela ouviu a porta bater. Taibele sabia muito bem que era pecado rezar por demônios; em vez disso, devia-se amaldiçoá-los e varrê-los da memória. Contudo, pediu a Deus por Hurmizah.
— Já existem tantos diabos... Permita que este sobreviva — ela gemeu em sua angústia.
No Sabbath seguinte, Taibele esperou em vão por Hurmizah até a madrugada; ele não voltou mais. Ela convocou-o de todo o coração e murmurou os feitiços que ele lhe ensinara, mas a saleta permaneceu silenciosa. Taibele jazia amortecida. Hurmizah gabara-se uma vez de haver dançado para Tubal-cain e Enoch, de haver sentado no teto da Arca de Noé, de ter lambido o sal do nariz da mulher de Lot, e de ter puxado a barba de Ahasverus. Profetizara que ela reencarnaria cem anos depois como princesa, e que ele, Hurmizah, a seqüestraria com a ajuda de seus escravos Chittim e Tachtim, levando-a então ao palácio de Bashemath, a esposa de Esaú. E no entanto, ei-lo agora, com muita possibilidade, estendido algures, enfermo — um demônio desamparado, um órfão solitário, sem pai nem mãe, sem esposa fiel para dele cuidar. Taibele lembrou-se de como a respiração dele saía sibilante como uma serra quando com ela estivera pela última vez. Ao assoar o nariz, provocou um assovio no ouvido. De domingo a quarta-feira Taibele andou como envolta em sonho. Na quarta-feira mal pôde esperar até que o relógio soasse as pancadas da meia-noite, mas a noite passou e Hurmizah não apareceu. Taibele virou o rosto para a parede.
Começou o dia, escuro como a noite. Neve fina qual poeira tombava do céu sombrio. A fumaça, em vez de subir das chaminés, espalhava-se sobre os telhados, como lençóis esfiapados. As gralhas crocitavam asperamente. Cães latiam. Depois da noite medonha, Taibele não tinha forças para ir ao armarinho. Todavia, vestiu-se e saiu. Viu quatro pessoas carregando uma padiola. Esticando a colcha coberta de neve, os pés azuis de um cadáver. Somente o coveiro acompanhava o morto. Taibele perguntou quem era, e o coveiro respondeu:
— Alchonon, o ajudante de professor.
Uma estranha idéia acudiu a Taibele — acompanhar Alchonon, aquele homem fraco que vivera sozinho e morrera sozinho, em sua última jornada. Quem iria ao armarinho hoje? E que importavam os negócios? Taibele perdera tudo. Afinal, praticaria uma boa ação. Acompanhou o morto pela longa estrada até o cemitério. Ali, aguardou que o coveiro afastasse a neve e cavasse uma sepultura na terra gelada. Enrolaram Alchonon, o ajudante de professor, num xale de orações e num capote, colocaram cacos de louça em seus olhos e entre os dedos espetaram um ramo de murta que ele utilizaria para abrir caminho até a Terra Santa, quando o Messias chegasse. Em seguida, o túmulo foi fechado e o coveiro recitou o Kaddish, Taibele soltou um grito. Alchonon vivera uma existência solitária, como ela. Como ela, não deixara herdeiro. Sim, Alchonon, o ajudante de professor, dançara sua última dança. Pelos contos de Hurmizah, Taibele sabia que os falecidos não iam diretamente para o céu. Cada pecado cria um demônio, e esses demônios são os filhos do homem após sua morte. Os demônios vêm exigir sua parte. Chamam ao morto de pai e o arrastam pela floresta e pelo ermo até que a medida do castigo é preenchida e ele fica pronto para a purificação no inferno...
Daí em diante Taibele permaneceu sozinha, duplamente abandonada — por um asceta e por um demônio. Envelheceu com rapidez. Nada lhe restou do passado, exceto um segredo que nunca seria contado e jamais acreditado por alguém. Existem segredos que o coração não pode revelar aos lábios. São levados para o túmulo. Os salgueiros murmuram-nos, as pedras tumulares conversam a seu respeito silenciosamente, na linguagem da pedra. Os mortos acordarão um dia, mas seus segredos subsistirão com o Todo-Poderoso e Seu julgamento, até o fim de todas as gerações.
Isaac Bashevis Singer - Breve sexta-feira