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Wednesday, June 03, 2009

Taibele e seu demônio

Na pequena cidade de Lashnik, não muito longe de Lublin, viviam um homem e sua mulher. Chamava-se Chaim Nossen; a mulher, Taibele. Não tinham filhos. Não que o casamento lhes fosse estéril: Taibele dera ao marido um menino e duas meninas, porém todos morreram na infância, um de coqueluche, outro de escarlatina e o terceiro de difteria. Depois do que, o útero de Taibele fechou-se e tudo resultou inútil: rezas, feitiços, poções. Cheio de dor, Chaim Nossen desligou-se do mundo. Isolado da mulher, deixou de comer carne e já não dormia em casa, mas em um banco, na casa de orações.

Taibele possuía um armarinho, que herdara dos pais, e ali sentava-se o dia inteiro, com um medidor à direita, uma tesoura à esquerda e o Livro de Preces das Mulheres, em iídiche, à sua frente. Chaim Nossen, alto, esbelto, de olhos negros e barba em ponta, sempre fora lento, silencioso — mesmo nos tempos ditosos. Taibele era pequena e bonita, com seus olhos azuis e rosto redondo. Embora punida pelo Todo-Poderoso, o riso ainda lhe vinha fácil, fazendo covinhas nas faces. Não tinha mais para quem cozinhar e, no entanto, acendia o fogão ou o tripé todos os dias e preparava mingau ou sopa para si mesma. Também continuava a tricotar — ora um par de meias, ora uma túnica, ou algo mais que pudesse bordar em cânhamo. Não estava em sua natureza injuriar o destino nem sucumbir ao infortúnio.

Um dia, Chaim Nossen pôs o xale de orações e amuletos, uma muda de roupa de baixo e uma fatia de pão num saco, e saiu de casa. Os vizinhos perguntaram para onde ia. Respondeu: "Para onde os olhos me guiarem".

Quando disseram a Taibele que o marido a deixara, era muito tarde para detê-lo. Ele já atravessara o rio. Descobriram que havia alugado uma carroça para ir a Lublin. Taibele enviou mensageiro em seu encalço, mas nem o marido nem o mensageiro voltaram a ser vistos.

Aos trinta e três anos, Taibele encontrou-se abandonada.

Depois de muito pensar, concluiu que não lhe restavam esperanças. Deus tirara-lhe os filhos e o marido. Jamais seria capaz de casar-se outra vez. Doravante teria de viver só. Ficavam apenas a casa, a loja e objetos pessoais. O povo da cidadezinha condoeu-se, pois tratava-se de mulher quieta, de boa índole e honesta em seus negócios.

Todo mundo inquiria: por que tantas desgraças? Acontece que os desígnios de Deus não se revelam logo ao conhecimento dos homens.
Taibele tinha várias amigas entre as damas da cidade, as quais conhecia desde a infância. Durante o dia as mães de família estavam ocupadas com seus pratos e caçarolas, mas no fim da tarde apareciam para um dedo de prosa. No verão, as amigas sentavam-se num banco, do lado de fora da casa, bisbilhotando e contando casos.

Em uma noite sem lua, no verão, com a cidade tão escura quanto o Egito, Taibele estava sentada no banco, narrando às amigas a história que lera num livro trazido por um mascate. Referia-se a uma jovem mulher judia e a um demônio que a violentara e com ela vivia como se fossem marido e mulher. Taibele recontou a história em todos os detalhes.

As mulheres acotovelaram-se, uniram as mãos, bateram os pés para afugentar o mal e soltaram a espécie de riso que advém do temor. Urna delas perguntou:
— Por que ela não exorcizou o demônio com amuletos?
— Nem todo demônio teme amuletos — respondeu Taibele.
— Por que não foi ver um santo rabi?
— O demônio avisou que a estrangularia caso revelasse o segredo.
— Ai de mim — gemeu uma mulher. — Que o Senhor nos proteja! Que nos livre de semelhantes coisas!
— Agora tenho medo de voltar para casa — disse outra.
— Irei com você — prometeu uma terceira.

Enquanto conversavam, Alchonon, o ajudante de professor que esperava um dia tornar-se palhaço casamenteiro, passou casualmente. Viúvo há cinco anos, Alchonon tinha fama de gaiato e travesso — uma pessoa de parafusos frouxos. Seus passos eram silenciosos porque a sola dos sapatos gastara-se e ele andava de pés nus. Ao ouvir Taibele iniciar a história, parou para escutar. A escuridão estava tão densa e as mulheres de tal forma embebidas no estranho relato que não o viram.

O tal Alchonon era um sujeito velhaco, cheio de artimanhas grosseiras. No mesmo instante esboçou um plano maluco.

Depois que as mulheres partiram, Alchonon entrou furtivamente no quintal de Taibele. Oculto atrás de uma árvore, olhou pela janela. Quando viu Taibele deitar-se e apagar a vela, esgueirou-se para dentro da casa. Taibele não passara a tranca na porta: naquela cidade não se mencionavam ladrões. Na saleta, tirou o cafetã roto, a túnica debruada, as calças — e ficou nu, tão nu como sua mãe o pariu. Em seguida, dirigiu-se na ponta dos pés até a cama de Taibele. Ela estava prestes a adormecer quando, de repente, viu a figura assomando nas trevas. De tão assustada não conseguiu balbuciar uma palavra.

— Quem é? — sussurrou afinal, a tremer. Alchonon respondeu em voz cava:
— Não grite, Taibele. Se gritar, eu a destruirei. Sou o demônio Hurmizah, senhor das trevas, da chuva, do granizo, do trovão e dos animais selvagens. Sou o espírito mau que desposou a jovem mulher de quem você falava esta noite. Você narrou o caso com tal realismo que eu ouvi suas palavras lá no abismo e fiquei cheio de desejo de seu corpo. Não tente resistir, pois eu desterro os que se recusam a fazer minha vontade para além das montanhas da Escuridão — até o monte Sair, lugar deserto onde jamais se viu pegada humana, onde fera alguma ousa pisar, onde a terra é de ferro e o céu de cobre. E eu os envolvo em espinhos e fogo, entre víboras e escorpiões, até que cada osso de seu corpo se transforme em pó, e eles se percam eternamente nas mais baixas profundezas. Mas, se você atender ao meu desejo, nem um só cabelo de sua cabeça será tocado, e eu lhe proporcionarei êxito em todos os empreendimentos...

Ouvindo estas palavras, Taibele jazia imóvel, como num desmaio. O coração inchava e parecia querer parar. Pensou que o seu fim havia chegado. Passado algum tempo, reuniu coragem e murmurou:
— Que pretende de mim? Sou uma mulher casada!
— Seu marido morreu. Eu próprio acompanhei o enterro.
A voz do ajudante de professor estrondou:
— Claro que não posso testemunhar isso em presença do rabi e liberar você para outro casamento. Os rabis não acreditam em gente como nós. Além do mais, não posso traspassar a soleira da câmara do rabi... Tenho pavor dos Sagrados Pergaminhos. Mas não estou mentindo. Seu marido morreu de uma epidemia, os vermes já lhe comeram o nariz. E mesmo estando vivo, você não estaria proibida de dormir comigo, pois as leis do Shulchan Aruch não se aplicam a nós.

Hurmizah, o ajudante de professor, prosseguiu com suas persuasões, umas vezes em tom doce, outras vezes ameaçador. Invocou nomes de anjos e demônios, de animais diabólicos e vampiros. Jurou que Asmodeu, rei dos demônios, era seu tio postiço. Disse que Lilith, rainha dos maus espíritos, dançava para ele em um pé só e fazia tudo para ser-lhe agradável. Shibtah, a diaba que roubava bebês das mulheres, no berço, assava pãezinhos de sementes de papoula para ele, nos fornos do inferno, e fermentava-os com a gordura de bruxos e cães pretos. Argumentou tanto, aduzindo engenhosas parábolas e provérbios, que Taibele se viu afinal forçada a rir em seu desespero. Hurmizah jurou que amava Taibele há longo tempo. Descreveu-lhe os vestidos e xales que ela usara aquele ano e no ano passado; contou os pensamentos secretos que lhe advinham quando misturava farinha, preparava a refeição do Sabbath, lavava-se no banho e satisfazia necessidades na privada externa. Recordou-lhe ainda a manhã em que ela acordou com uma marca preta e azulada no seio.

Ela pensou fosse o beliscão de um vampiro. Mas em verdade a marca fora produzida por um beijo dos lábios de Hurmizah.

Pouco depois, o demônio meteu-se na cama de Taibele e teve o que queria. Disse-lhe que doravante pretendia visitá-la duas vezes por semana, nas noites de quarta-feira e sábado, por serem as noites em que os não sacramentados soltam-se pelo mundo. Advertiu-a, no entanto, a não contar a ninguém o que lhe sucedera, sequer sugerir, sob pena de severo castigo: ele lhe arrancaria os cabelos do crânio, furaria seus olhos, despedaçaria seu umbigo. Por fim, haveria de atirá-la no ermo mais desolado, onde o pão era estéreo e a água sangue, e onde as lamentações de Zalmaveth eram ouvidas dias e noites sem cessar. Exigiu de Taibele que jurasse, pelos ossos de sua mãe, guardar o segredo até o fim de seus dias. Taibele viu que não tinha escapatória. Pôs a mão na coxa e proferiu o juramento; fez tudo o que o monstro lhe ordenara.

Antes de partir, Hurmizah deu-lhe longos e voluptuosos beijos, e, já que ele era demônio e não homem, Taibele devolveu os beijos e umedeceu-lhe a barba com suas lágrimas. Embora sendo espírito mau, ele a tratara com gentileza...

Quando Hurmizah desapareceu, Taibele afundou a cabeça no travesseiro e soluçou até despontar o sol.

Hurmizah voltou todas as noites de quarta e sábado. Taibele tinha medo de engravidar e dar à luz um monstro de cauda e chifres — um duende ou um palerma. Mas Hurmizah prometeu preservá-la da vergonha. Taibele perguntou-lhe se convinha ir ao banho ritual, para limpar-se após os dias impuros, porém Hurmizah garantiu que as leis relativas à menstruação não abrangiam os que se consorciavam com o visitante imundo.

Como diz o ditado, livre-nos Deus de tudo com que possamos nos habituar. Isso se aplicava a Taibele. No começo ela receou que o visitante noturno lhe causasse dano, produzisse furúnculos ou emaranhasse o cabelo, fazendo-a latir como cão ou beber urina, e convocasse contra ela toda sorte de desgraças. Mas Hurmizah não a chicoteava, beliscava ou nela cuspia. Ao contrário, fazia-lhe carinhos, sussurrava agrados, compunha trocadilhos e versos. Às vezes sacava traves-suras tais e babujava tantas asneiras, que ela se via obrigada a rir. Outras vezes puxava-lhe o lobo da orelha e dava-lhe mordidas amorosas no ombro. De manhã ela encontrava a marca dos dentes na pele. Persuadiu-a a deixar crescer o cabelo sob a touca e trançou-o. Ensinou-lhe feitiços e encantos, falou-lhe de seus irmãos noturnais, dos demônios em cuja companhia corria sobre ruínas e campos de cogumelos venenosos, sobre os pântanos salgados de Sodoma e as desoladas superfícies do mar de Gelo. Não negou que tivesse outras esposas; todas, porém, diabas. Taibele era a única esposa humana que possuía. Quando Taibele perguntou os nomes de suas mulheres, enumerou-as: Namah, Machlath, Aff, Chuldah, Zluchah, Nafkah e Cheimah. Sete, ao todo.

Disse-lhe que Namah era preta qual breu e cheia de ira. Quando brigava com ele, cuspia veneno e soprava fogo e fumo pelas ventas.
Machlath tinha o rosto de sanguessuga — e os que ela tocava com a língua ficavam marcados para sempre.

Aff adorava enfeitar-se de prata, esmeraldas e diamantes. Suas trancas eram fios de ouro. Nos tornozelos usava sinos e braceletes. Quando dançava, todos os desertos vibravam com os repiques.

Chuldah tinha forma de gato. Miava em vez de falar. Seus olhos eram verdes quais groselhas espinhosas. Ao copular, mascava sempre fígado de urso.

Zluchah era inimiga das noivas. Roubava a potência dos noivos. Se uma noiva saía sozinha à noite, durante as Sete Bênçãos Nupciais, Zluchah dançava para ela e a noiva perdia a capacidade de falar ou era vítima de doença repentina.

Nafkah era lasciva, traindo-o sempre com outros demônios. Retinha o afeto dele só por causa de seu falar vil e insolente, que lhe deliciava o coração.

Cheimah deveria ser, segundo seu nome, tão viciosa quanto Namah deveria ser meiga, mas o oposto era verdadeiro: Cheimah não passava de uma diaba sem ódio. Estava sempre a fazer ações caridosas, misturando farinha para donas-de-casa doentes, ou levando pão à casa dos pobres.
Assim Hurmizah descreveu suas mulheres e contou a Taibele como se divertia com elas, brincando de pegador nos telhados e metendo-se em todo gênero de travessuras. De hábito, uma mulher tem ciúmes quando um homem se liga a outras mulheres, mas como enciumar-se de uma diaba? Bem ao contrário, os contos de Hurmizah divertiam Taibele, que o importunava freqüentemente com perguntas. Às vezes ele lhe revelava mistérios que mortal algum conhecia — acerca de Deus, seus anjos e serafins, suas mansões celestiais e os sete céus. Dizia-lhe também como os pecadores, homens e mulheres, eram torturados em barris de breu e caldeirões de carvão fumegante, em leitos de pregos e em poços de neve, e como os anjos negros açoitavam os corpos dos pecadores com varas de fogo.

O supremo castigo no inferno consistia em provocar cócegas, disse Hurmizah. Havia um certo diabinho no inferno, por nome Lekish. Quando Lekish cocava uma adúltera na planta dos pés ou nas axilas, o riso torturado ecoava até a ilha de Madagascar.

Dessa maneira, Hurmizah entretinha Taibele a noite inteira, e dentro em pouco ela começou a sentir-lhe a falta quando ele se ausentava. As noites de verão pareciam muito curtas, pois Hurmizah partia cedo, logo após o canto do galo. Até as noites de inverno não eram bastante compridas. Em verdade, ela agora amava Hurmizah, e embora ciente de que uma mulher não deve arder de paixão por um demônio, por ele ansiava, dia e noite.

2

Conquanto viúvo há muitos anos, Alchonon continuava na lista dos contratantes de casamentos. As mulheres que estes propunham tinham origem humilde, viúvas e divorciadas, porque um ajudante de professor não parecia bom partido, e, além disso, Alchonon tinha fama de desastrado e incapaz.

Alchonon recusava as ofertas sob vários pretextos: aquela mulher era feíssima, a outra tinha língua de cobra, a terceira era relaxada. Os casamenteiros pensavam: um ajudante de professor, ganhando nove groschen por semana, estaria em condições de exigir e escolher? Por quanto tempo consegue um homem viver sozinho? Impossível, porém, forçar uma pessoa a convolar núpcias.

Alchonon perambulava pela cidade — comprido, esguio, esfarrapado, com sua desgrenhada barba ruiva, a túnica amarrotada, o pomo-de-adão subindo e descendo. Esperava que o palhaço casamenteiro Reb Zekele morresse, de forma a tomar-lhe o lugar. Mas Reb Zekele não demonstrava pressa de morrer: continuava a estimular casamentos com um inexaurível fluxo de sátiras e rimas, como nos dias de sua mocidade. Alchonon tentava ajeitar-se como professor de principiantes, porém nenhuma dona-de-casa confiava-lhe os filhos. Pela manhã ele levava crianças ao cheder e as recolhia à noite. Durante o dia sentava-se no pátio de Reb Itchele, o professor, a talhar preguiçosamente apontadores de madeira, ou a recortar para decoração papel que era usado somente uma vez por ano, no Pentecostes, ou então a modelar figuras de barro.

Não muito distante do armarinho de Taibele havia um poço, e Alchonon lá ia muitas vezes ao dia, para tirar um balde de água ou beber um pouco, entornando água na barba ruiva. Nessas ocasiões, lançava rápido olhar a Taibele. Taibele apiedava-se dele: como conseguia sobreviver? E Alchonon pensava, por seu turno: "Ai, Taibele, se você conhecesse a verdade!"

Alchonon habitava um sótão na casa de uma viúva entrada em anos, que era surda e meio cega. Muitas vezes a velha admoestava-o por não ir à sinagoga orar, como outros judeus. Assim que deixava as crianças em casa, Alchonon murmurava uma apressada prece noturna e metia-se na cama. Às vezes, a velha julgava ouvir o ajudante de professor erguer-se no meio da noite e sair para algum lugar. Perguntou-lhe por onde vagueava à noite, mas Alchonon dizia-lhe que ela estivera a sonhar. As mulheres que se sentavam nos bancos, ao cair da noite, tricotando meias e trocando bisbilhotices, espalharam o boato segundo o qual Alchonon, depois da meia-noite, transformava-se em lobisomem. Algumas diziam que ele se consorciara com um súcubo. De outra forma, por que um homem permaneceria tantos anos sem mulher? Os ricos já não lhe confiavam a guarda dos filhos. Agora ele só acompanhava os filhos dos pobres e raramente tinha uma colherada de alimento quente, tendo de contentar-se com côdeas secas.

Alchonon tornava-se cada vez mais magro, mas seus pés permaneciam ágeis como sempre. Com as pernas descarnadas, parecia percorrer a rua como se andasse em pernas de pau. Devia sofrer sede constante, pois estava sempre indo ao poço. Às vezes limitava-se a ajudar um vendedor ou um camponês a dar água ao cavalo. Um dia, quando Taibele percebeu, a distância, como seu cafetã estava roto e esfiapado, chamou-o à loja. Ele lançou-lhe um olhar assustado e empalideceu.

— Pelo que vejo, seu cafetã está rasgado — disse Taibele. — Se quiser, fio-lhe alguns metros de pano. Você pagará mais tarde, à base de cinco centavos por semana.
— Não.
— Por que não? — perguntou Taibele, atônita. — Prometo não o denunciar ao rabi se atrasar o pagamento. Pague quando puder.
— Não.

E ele saiu rapidamente do armarinho, temendo que ela lhe reconhecesse a voz.

No verão era fácil visitar Taibele no meio da noite. Alchonon caminhava pelos terrenos planos dos fundos, apertando o cafetã no corpo nu. No inverno, o ato de vestir-se e despir-se na saleta de Taibele tornava-se bem mais doloroso. O pior, no entanto, eram as noites que se seguiam a uma fresca lufada de neve. Alchonon receava que Taibele ou um de seus vizinhos observasse suas pegadas na neve. Apanhou um resfriado e começou a tossir. Uma noite entrou na cama de Taibele com os dentes a castanholarem; custou muito a se aquecer. Com medo de que ela descobrisse o embuste, inventava explicações e desculpas. Mas Taibele não o inquiria nem desejava investigar de muito perto. Já descobrira há algum tempo que um diabo tem todos os hábitos e fraquezas do homem. Hurmizah suava, roncava, soluçava, bocejava. Às vezes seu hálito cheirava a cebola, outras vezes a alho. O corpo dele assemelhava-se ao de seu marido, ossudo e peludo, com um pomo-de-adão e umbigo. Certas vezes Hurmizah mostrava ânimo chistoso, em outras dava para soltar suspiros. Seus pés não eram de ganso, e sim humanos, com unhas e ulcerações causadas pelo frio. Uma ocasião Taibele perguntou-lhe o significado dessas coisas, e Hurmizah explicou:
— Quando um de nós se une a uma fêmea humana, assume a forma de homem. Do contrário ela morreria de medo.

Sim, Taibele habituou-se a ele e amou-o. Já não sentia medo dele ou de seus grotescos gestos malignos. As histórias que ele contava eram inesgotáveis, e Taibele descobria nelas, muitas vezes, contradições. Como todos os mentirosos, tinha memória curta. Dissera-lhe a princípio que os demônios eram imortais, mas uma noite indagou:
— Que fará você se eu morrer?
— Demônios não morrem!
— Eles são levados ao abismo mais profundo... Durante aquele inverno houve uma epidemia na cidade.

Ventos furiosos chegaram do rio, dos bosques, dos pântanos. Não apenas crianças, mas adultos também baixaram ao leito com febre palúdica. Choveu e granizou. As tempestades arrancaram um braço do moinho de vento. Na noite de quarta-feira, quando Hurmizah entrou na cama de Taibele, ela observou que o corpo dele queimava de febre, mas os pés estavam gelados. Ele tremia todo e lamentava-se. Tentou entretê-la com sua conversa sobre diabas, de como elas seduziam rapazes, de como pinoteavam com outros demônios, revolviam-se no banho ritual, atavam a barba dos homens, mas estava fraco e incapaz de possuí-la. Jamais ela o vira em tão lastimável estado. Seu coração sobressaltou-se. Perguntou:
— Quer que lhe traga framboesas com leite?
— Esses remédios não nos convém — respondeu Hurmizah.
— Que costumam fazer quando adoecem?
— Coçamo-nos e nos esfregamos...

Pouco mais disse depois disso. Ao beijar Taibele, exalava um hálito acre. Sempre permanecia com ela até o cantar do galo, mas daquela feita partiu cedo. Taibele ficou silenciosa, ouvindo seus movimentos na saleta. Ele lhe havia jurado que saía pela janela, mesmo quando cerrada e trancada, mas ela ouviu a porta bater. Taibele sabia muito bem que era pecado rezar por demônios; em vez disso, devia-se amaldiçoá-los e varrê-los da memória. Contudo, pediu a Deus por Hurmizah.

— Já existem tantos diabos... Permita que este sobreviva — ela gemeu em sua angústia.

No Sabbath seguinte, Taibele esperou em vão por Hurmizah até a madrugada; ele não voltou mais. Ela convocou-o de todo o coração e murmurou os feitiços que ele lhe ensinara, mas a saleta permaneceu silenciosa. Taibele jazia amortecida. Hurmizah gabara-se uma vez de haver dançado para Tubal-cain e Enoch, de haver sentado no teto da Arca de Noé, de ter lambido o sal do nariz da mulher de Lot, e de ter puxado a barba de Ahasverus. Profetizara que ela reencarnaria cem anos depois como princesa, e que ele, Hurmizah, a seqüestraria com a ajuda de seus escravos Chittim e Tachtim, levando-a então ao palácio de Bashemath, a esposa de Esaú. E no entanto, ei-lo agora, com muita possibilidade, estendido algures, enfermo — um demônio desamparado, um órfão solitário, sem pai nem mãe, sem esposa fiel para dele cuidar. Taibele lembrou-se de como a respiração dele saía sibilante como uma serra quando com ela estivera pela última vez. Ao assoar o nariz, provocou um assovio no ouvido. De domingo a quarta-feira Taibele andou como envolta em sonho. Na quarta-feira mal pôde esperar até que o relógio soasse as pancadas da meia-noite, mas a noite passou e Hurmizah não apareceu. Taibele virou o rosto para a parede.

Começou o dia, escuro como a noite. Neve fina qual poeira tombava do céu sombrio. A fumaça, em vez de subir das chaminés, espalhava-se sobre os telhados, como lençóis esfiapados. As gralhas crocitavam asperamente. Cães latiam. Depois da noite medonha, Taibele não tinha forças para ir ao armarinho. Todavia, vestiu-se e saiu. Viu quatro pessoas carregando uma padiola. Esticando a colcha coberta de neve, os pés azuis de um cadáver. Somente o coveiro acompanhava o morto. Taibele perguntou quem era, e o coveiro respondeu:
— Alchonon, o ajudante de professor.

Uma estranha idéia acudiu a Taibele — acompanhar Alchonon, aquele homem fraco que vivera sozinho e morrera sozinho, em sua última jornada. Quem iria ao armarinho hoje? E que importavam os negócios? Taibele perdera tudo. Afinal, praticaria uma boa ação. Acompanhou o morto pela longa estrada até o cemitério. Ali, aguardou que o coveiro afastasse a neve e cavasse uma sepultura na terra gelada. Enrolaram Alchonon, o ajudante de professor, num xale de orações e num capote, colocaram cacos de louça em seus olhos e entre os dedos espetaram um ramo de murta que ele utilizaria para abrir caminho até a Terra Santa, quando o Messias chegasse. Em seguida, o túmulo foi fechado e o coveiro recitou o Kaddish, Taibele soltou um grito. Alchonon vivera uma existência solitária, como ela. Como ela, não deixara herdeiro. Sim, Alchonon, o ajudante de professor, dançara sua última dança. Pelos contos de Hurmizah, Taibele sabia que os falecidos não iam diretamente para o céu. Cada pecado cria um demônio, e esses demônios são os filhos do homem após sua morte. Os demônios vêm exigir sua parte. Chamam ao morto de pai e o arrastam pela floresta e pelo ermo até que a medida do castigo é preenchida e ele fica pronto para a purificação no inferno...

Daí em diante Taibele permaneceu sozinha, duplamente abandonada — por um asceta e por um demônio. Envelheceu com rapidez. Nada lhe restou do passado, exceto um segredo que nunca seria contado e jamais acreditado por alguém. Existem segredos que o coração não pode revelar aos lábios. São levados para o túmulo. Os salgueiros murmuram-nos, as pedras tumulares conversam a seu respeito silenciosamente, na linguagem da pedra. Os mortos acordarão um dia, mas seus segredos subsistirão com o Todo-Poderoso e Seu julgamento, até o fim de todas as gerações.

Isaac Bashevis Singer - Breve sexta-feira

Wednesday, May 27, 2009

Grande e pequeno

Você dirá: grande, pequeno, qual a diferença? O homem não se mede por fita métrica. O fundamental é a cabeça, não os pés. No entanto, se uma pessoa adquire uma idéia ridícula, nunca se sabe até onde persistirá. Permitam-me contar-lhes uma história. Havia um casal em nossa cidade. Ele chamava-se Pequeno Motie, e ela, Motiekhe. Jamais alguém chamou-a pelo seu nome verdadeiro. Quanto a ele, não era apenas pequeno; dificilmente ultrapassaria um pigmeu. Os ociosos trocistas — e existe sempre uma porção deles por aí — divertiam-se à custa do pobre homem. O assistente de professor, diziam, tomou-o pela mão e conduziu-o à presença de Reb Berish, que ensinava crianças mais novas no cheder. Na Simkhas Torah*, os homens embriagaram-se e convocaram-no, com os meninos pequenos, para a leitura da Tora. Alguém deu-lhe uma bandeira — com uma maçã e uma vela no mastro. Quando uma mulher deu à luz, os gaiatos foram dizer-lhe que precisavam de um menino para a oração junto ao berço, a fim de espantar os maus espíritos. Se ao menos tivesse uma barba decente! Mas não, ela era apenas um tufo — alguns pêlos aqui e ali. Ele não tinha filhos e, para dizer a verdade, parecia-se mesmo com um escolar. Sua esposa, Motiekhe, tampouco era uma beleza, mas impunha-se pelo corpo. Bem, seja como for, os dois viviam juntos, e Motie veio a enriquecer. Comerciava com cereais e possuía um armazém. O proprietário de terras local simpatizou com ele, embora se divertisse, de vez em quando, com o tamanho do homem. Pensando bem, era natural. De que adianta ser grande se o buraco no bolso é maior ainda?

O pior de tudo, porém, foi que Motiekhe (Deus a perdoe!) estava sempre a arreliá-lo. Tampinha faça isto, Tampinha faça aquilo. Sempre com alguma coisa para ele fazer em lugares que não podia alcançar. "Enfie um prego na parede, ali em cima!" "Pegue a caçarola de cobre na prateleira!" Ridicularizava-o em frente de estranhos, também, e as histórias espalhavam-se depois pela cidade. Um dia chegou a dizer (vocês admitem tal declaração de uma honesta esposa judia?) que ele precisava de um banquinho para subir à cama do casal. Não imagina a tagarelice que isso causou! Se alguém aparecia à procura dele, quando estava ausente, ela dizia: "Dê uma olhada embaixo da mesa".

Havia um professor, de língua maldosa, que disse como chegara, certa ocasião, a perder a férula. Olhou em volta — e lá estava Motie, usando a férula como bengala. Naqueles anos as pessoas dispunham de tempo, e nada melhor do que afiar as línguas. O próprio Motie recebia os motejos com um sorriso, como diz o ditado, mas eles feriam. Antes de tudo, que há de tão engraçado assim em ser pequeno? Um homem de pernas compridas valerá mais aos olhos de Deus? Tudo isso, vejam bem, acontecia somente entre a gentalha. Pessoas piedosas evitavam comentários aleivosos.

Motie não era sábio; simplesmente um homem comum. Gostava de ouvir as parábolas de pregadores visitantes na sinagoga. Nas manhãs de sábado cantava salmos com o resto da congregação. Também apreciava um ocasional copo de uísque. Às vezes ia à nossa casa. Meu pai (que ele repouse em paz!) comprava aveia em seu armazém. Ouvia-se então Motie arranhar a aldrava qual gato pedindo para entrar. Nós, moças, éramos pequenas naquele tempo, e o cumprimentávamos com efusões de riso. Papai alcançava-lhe uma cadeira e dirigia-se a ele como Reb Motie, mas nossas cadeiras eram altas e tínhamos dificuldade em subir. Quando o chá era servido, ele impacientava-se e esticava o corpo, incapaz de atingir a beira do copo com os lábios. Línguas cruéis diziam que ele punha calços nos sapatos, e que uma vez caíra dentro de um balde de madeira, desses que se usam à guisa de chuveiro, nas casas de banho. À parte isso tudo, tratava-se de um competente negociante. E Motiekhe tinha em sua companhia vida fácil e confortável. A casa era bonita e as prateleiras do guarda-comida estavam sempre repletas do que havia de melhor.

Agora ouçam bem. Um dia, marido e mulher tiveram uma briga. Uma palavra puxou outra, e dentro em pouco a briga tornou-se feia. Acontece em toda família. Mas, para felicidade, um vizinho estava presente. Motiekhe (que ela não se vingue de mim!) tinha a boca bem azeitada, e quando furiosa esquecia-se até de Deus. Gritou para o marido: "Seu anão! Coisinha nojenta! Que tipo de homem é você? Igual a uma mosca. Tenho vergonha de ser vista, a caminho da sinagoga, ao lado de tamanha insignificância!" E por aí foi, pondo mais lenha na fogueira, até que o sangue fugiu do rosto dele. Ele nada disse, o que a enfureceu ainda mais. Ela gritou: "Que posso fazer com um anãozinho desses? Comprar um banquinho e pô-lo no berço. Se minha mãe me amasse de verdade, teria encontrado um homem para mim, e não uma criança recém-nascida!"

Estava frenética, não sabia mais o que dizia. Ele, que tinha cabelo ruivo e rosto corado, tornara-se branco como giz, e retrucou: "Seu segundo marido será bastante grande para me compensar". E ao dizer isso, entregou os pontos e chorou como uma criancinha. Jamais alguém o vira chorar, sequer no Yom Kippur*. A mulher perdeu imediatamente a fala. Não sei o que aconteceu depois, eu não estava lá. Devem ter ajeitado as coisas. Mas, como diz o provérbio, as feridas cicatrizam e as palavras permanecem.

Antes de transcorrer um mês, os habitantes da cidade tinham novidade. Motie trouxera para casa um ajudante de Lublin. Que pretendia com um ajudante? Até então, dirigira seus negócios sozinho, e bastante bem. O recém-chegado percorreu a rua e todos viraram-se para observá-lo: um gigante, preto como azeviche, com olhos negros e barba negra. Os outros comerciantes perguntaram a Motie: "Para que precisa de um ajudante?" E ele respondeu: "Os negócios prosperam, graças a Deus! Já não consigo suportar sozinho o peso da responsabilidade". Bem, pensaram, ele deve saber o que faz. Mas, numa cidade pequena, todo mundo vê o que o vizinho pôs na caçarola. O homem de Lublin — seu nome era Mendl — não parecia comerciante. Perambulava pelo pátio, a olhar estupidamente e a rolar os olhos negros para cá e para lá. Nos dias de feira punha-se, qual estaca, entre as carroças, sobressaindo entre os camponeses e mascando palha.

Quando apareceu na casa de orações, perguntaram-lhe: "Que fazia em Lublin?" Respondeu: "Sou lenhador". "Tem mulher?" Não", respondeu, era viúvo. Os ociosos da Rua do Tijolo tinham algo acerca de que tagarelar. E, coisa estranha, o homem era tão grande quanto Motie era pequeno. Quando conversavam, o recém-chegado tinha de pender a cabeça até a cintura, e Motie erguer-se na ponta dos pés. Quando desciam a rua juntos, todo mundo corria à janela para vê-los. O sujeito grandalhão disparava à frente, e Motie era obrigado a correr atrás, a trote. Quando levantava o braço, o homem poderia tocar o telhado. Era como aquela história da Bíblia, quando os espiões israelitas pareciam gafanhotos, e os outros, gigantes. O ajudante vivia na casa de Motie e Motiekhe servia-lhe as refeições. As mulheres perguntavam-lhe: "Por que motivo Motie trouxe esse Golias para casa?" E ela respondia: "É o que eu gostaria de saber. Se ao menos fosse bom comerciante... Mas não distingue trigo de centeio. Come como um cavalo e ronca que nem um boi. E, além de tudo, é um imbecil. Economiza palavras como se fossem moedas de ouro".

Motiekhe tinha uma irmã a quem abria o coração magoado. Motie precisava de um ajudante, disse ela, como precisaria abrir um buraco na cabeça. Tomou-o por pura maldade. O homem não levantava uma palha. Acabaria por arruiná-los. Aquelas foram suas palavras. Em nossa cidade não havia segredos. Vizinhos escutavam nas janelas alheias e punham o ouvido no buraco da fechadura. "Por maldade?", perguntou a irmã, e Motiekhe rompeu a chorar: "Porque eu o chamei de bebê prematuro".

A história correu logo a cidade, mas as pessoas acharam difícil acreditar. Que espécie de maldade era aquela? A quem ele pretendia ferir com semelhante sujeira? O dinheiro era dele, não da mulher. Mas quando um homem põe uma idéia falsa na cabeça, Deus tenha piedade dele! Essa é a verdade, tal como está escrito... não me lembro mais onde.

Duas semanas passaram-se antes de Motiekhe procurar em lágrimas o rabi.

"Rabi", disse ela, "meu marido perdeu o juízo. Pôs um preguiçoso glutão dentro de casa. E como se isso não bastasse, dá todo o dinheiro a ele." Acrescentou que o estranho controlava a bolsa, e quando ela, Motiekhe, precisava de alguma coisa, tinha de pedir-lhe. Ele era o caixa. "Santo rabi", gritou a mulher. "Motie fez isso para me pirraçar, porque eu o chamei de fantoche."
O rabi não conseguia perceber o que ela pretendia. Era um santo homem, porém inútil em questões mundanas. Disse apenas: "Não posso interferir nos negócios de seu marido". "Mas, rabi", ela exclamou, "será a nossa ruína!". O rabi mandou chamar Motie, mas este insistiu: "Já carreguei muitas sacas de cereal e agora posso dar-me ao luxo de ter um ajudante". No fim, o rabi despediu a ambos com esta ordem: "Que haja paz!" Que mais podia fazer?

Então, de súbito, o Pequeno Motie caiu doente. Ninguém sabia o que o atormentava, porém foi perdendo a cor. Pequeno como era, encolheu ainda mais. Foi à sinagoga rezar e deixou-se pender num canto qual sombra. No dia de feira não foi visto entre as carroças. A mulher perguntou: "Que tem você, meu marido?" E ele respondeu: "Nada, absolutamente nada". Mandou chamar o médico, mas de que adiantam médicos? Receitou algumas ervas, que em nada ajudaram. No meio do dia, Motie foi para a cama e estirou-se. Motiekhe indagou: "Onde é que dói?" E ele respondeu: "Não sinto dor". "Nesse caso, por que está deitado aí como um enfermo?" E ele disse: "Não tenho mais forças". "Como pode ter forças se come como um passarinho?" Mas ele se limitou a observar: "Não tenho apetite".

Que mais dizer? Todo mundo via que Motie estava na pior. Apagava-se qual vela. Motiekhe queria que ele fosse a Lublin consultar médicos, mas em vão. Ela começou a lamentar-se e gemer: "Que vai ser de mim? Com quem pretende deixar-me?" E ele respondeu: "Você desposará o grandalhão". "Patife! Assassino!", gritou ela. "Você me é muito mais caro do que qualquer gigante. Por que então me atormenta? E se eu me arrepender agora? Falei aquilo por falar. Você é meu marido, meu bebê. Você é tudo que tenho no mundo. Sem você minha vida não vale um grão de poeira." Porém tudo quanto ele disse foi: "Sou um ramo seco. Com ele você terá filhos".

Se eu fosse contar-lhes tudo o que aconteceu, teria de ficar aqui um dia e uma noite. Os cidadãos mais influentes da cidade foram falar-lhe. O rabi visitou o doente. "Que bobagem é essa que meteu na cabeça? O mundo a Deus pertence, não aos homens." Mas Motie fingia não compreender. Quando a esposa viu que as coisas iam de mal a pior, franziu o sobrolho e ordenou ao estranho que partisse. Mas Motie disse: "Não, ele fica. Enquanto respirar, sou o senhor aqui".

Todavia, o homem foi dormir na hospedaria. Mas de manhã estava de volta e encarregou-se dos negócios. Tudo passara agora às suas mãos: o dinheiro, as chaves, a derradeira migalha. Motie jamais tomara nota das despesas, mas o ajudante registrava tudo num livro razão. Além disso, era miserável. Motiekhe pedia dinheiro para o sustento da casa e ele exigia contas de cada copeque. Pesava e media, cobrava até as migalhas. Ela rebelou-se: "Você é um forasteiro! Isso não é de sua conta! Vá para os infernos, seu ladrão, seu assassino, seu salteador de estradas!" A resposta dele era: "Se seu marido me expulsar, irei". Porém, na maioria das vezes, nada respondia, limitando-se a grunhir como urso.

Enquanto o verão permaneceu quente, o Pequeno Motie ainda conseguiu levantar-se alguma vezes. Chegou até a jejuar no Yom Kippur. Mas logo depois do Succoth* começou a definhar rapidamente. Meteu-se na cama e não mais se ergueu. A esposa trouxe o médico de Zamosc, mas o médico nada pôde fazer. Ela consultou feiticeiras, mediu túmulos com um pavio e fez velas para oferendas na sinagoga, enviou mensageiros a rabis santos, mas Motie enfraquecia dia após dia. Deitado de costas, fitava o teto. Era preciso ajudá-lo a vestir o xale de orações e pôr os amuletos pela manhã; já não tinha forças para arranjar-se sozinho. Comia quase nada: uma colherada de aveia de vez em quando. Deixara de benzer o vinho no Sabbath. O altão chegava da sinagoga, abençoava os anjos e recitava a bênção.

Ao ver para onde as coisas se encaminhavam, Motiekhe convocou três judeus e pediu a Bíblia. Lavou as mãos, pegou o Livro Santificado e exclamou: "Todos são testemunhas. Juro pelo Livro Santo e por Deus Todo-Poderoso que não me casarei com este homem, mesmo que fique viúva até os noventa!" Dito o quê, cuspiu no grandalhão — bem no olho. Ele enxugou o rosto com um lenço e saiu. Motie observou: "Não tem importância. Você será absolvida de falso juramento..."

Uma semana depois, Motie agonizava. Não demorou muito e ele cessava de existir. Foi estendido no chão, com velas à cabeceira e os pés apontando a porta. Motiekhe beliscou-lhe as bochechas e gritou: "Assassino! Você nos tirou a vida! Não tem direito a um funeral sagrado! Devia ser enterrado fora da cerca do cemitério!" Ela não estava em seu juízo perfeito.

O grandalhão saiu de casa e permaneceu invisível. A agência funerária pediu dinheiro para o sepultamento, mas Motiekhe não tinha um copeque. Teve de empenhar as próprias jóias. Os que prepararam Motie para o funeral disseram depois que ele estava tão leve como um passarinho. Vi-os transportarem o corpo. Era como se uma criança estivesse embaixo da colcha. Em cima dela, a caneca que ele usara para medir cereais. Pedira que a pusessem ali, como lembrança de que sempre tomara medidas exatas. Cavaram o túmulo e sepultaram-no. De repente, o gigante apareceu, dando a impressão de que emergia da terra. Começou a dizer o Kaddish, mas a viúva guinchou: "Seu Anjo da Morte, foi você quem o tirou deste mundo!" E atirou-se a ele, com os punhos. Foi difícil contê-la.

O dia foi curto. Logo tombou a noite, e Motiekhe sentou-se num banquinho, para iniciar os sete dias de luto. Enquanto isso, o altão entrava no quintal e saía dele, transportando coisas, fazendo isso e aquilo. Mandou um menino entregar dinheiro à viúva para suas necessidades. Assim se repetiu, dia após dia. Finalmente, a comunidade resolveu interferir e chamou o homem à presença do rabi. "Que história é essa?", exigiram. "Por que se agarra àquela casa?" A princípio, permaneceu silencioso, como se julgasse que as palavras não lhe diziam respeito. Em seguida, tirou um papel do bolso e mostrou-o: Motie fizera-o guardião de todos os seus bens terrenos. Pará a esposa, deixara somente os pertences caseiros. Os habitantes da cidade leram o testamento e quedaram-se atônitos. "Como pôde ele fazer isso?", perguntou o rabi. Bem, fora bastante simples: Motie viajara a Lublin, procurara o maior homem que pudesse encontrar e tornara-o seu herdeiro e testamenteiro. Antes disso, o homem não passava de um capataz de um grupo de madeireiros.

O rabi deu suas instruções: "A viúva fez promessa e jurou, portanto você não deve entrar na casa. Devolva-lhe a propriedade, este caso é absurdo". Mas o gigante ponderou: "Não se alteram disposições mortuárias". Foram estas suas palavras. Os líderes da comunidade insultaram-no, ameaçaram-no com as três letras de excomunhão e com uma surra. Mas ele não se assustava facilmente. Era alto como um carvalho, e quando falava sua voz parecia sair, abafada, de um barril.

Nesse ínterim, Motiekhe mantinha o voto. Sempre que um visitante aparecia com suas condolências, ela renovava o juramento... com velas, livros de orações, qualquer coisa de que lançasse mão. No Sabbath, um grupo de homens chegou para orar. Ela correu aos Sagrados Pergaminhos e jurou também por eles. Não faria a vontade de Motie, gritou. Ele não teria sua vingança.

E soluçou com tanta amargura que todos choraram com ela.

Bem, ela acabou desposando-o. Não me lembro quanto tempo resistiu, se seis meses ou nove... De qualquer maneira, durou menos de um ano. O grandalhão tinha tudo e ela nada possuía. Pôs o orgulho de banda e procurou o rabi. "Santo rabi, que posso fazer? Motie assim quis, Ele assombra meus sonhos. Ele me belisca. Grita em meu ouvido que haverá de me estrangular." Arregaçou a manga, ali mesmo na sala do rabi, e mostrou-lhe um braço coberto de marcas pretas e azuis. O rabi não queria tomar sozinho a decisão e escreveu a Lublin. Três rabis chegaram e debruçaram-se sobre o Talmude durante três dias. Por fim, concederam-lhe — como é mesmo que se chama? — a licença.

O casamento foi uma festa tranqüila, mas a multidão fez bastante barulho para compensar. Imaginem só todas as zombadas e apupos! Antes do casamento, Motiekhe estava achatada qual tábua e parecia verde e amarela. Mas logo após as bodas, começou a florescer como uma rosa. Já não era jovem, e no entanto engravidou. A cidade ardia de curiosidade. Tal como chamara o primeiro marido de "tampinha", passou a chamar o segundo de "o alto". Era "o alto para cá", "o alto para lá". Vivia a atirar-lhe olhares babosos e condoia-se de suas asneiras. Ao cabo de nove meses, deu à luz um menino. A criança era tão grande que ela sofreu três dias as dores do parto. Pensaram que fosse morrer, mas ela resistiu. Metade da cidade foi ver a circuncisão. Alguns apresentaram cumprimentos festivos, outros riram. Foi um espetáculo.

A princípio, tudo parecia bem. Antes de mais nada, não faltava motivo: um filho em idade madura! Mas, se Motie tivera sorte em todos os empreendimentos, Mendl era um desastrado. O senhorio antipatizou com ele. Os outros comerciantes evitaram-no. O armazém foi invadido por ratos grandes como gatos, que devoraram os grãos. Todo mundo dizia ser castigo do Alto, e não demorou muito para Mendl arruinar-se como comerciante. Voltou a ser capataz nos bosques. Agora, ouçam isto: ele sobe a uma árvore e bate de leve na casca com o malho. E a árvore tomba bem em cima dele. O vento não soprava. O sol brilhava firme. Ele não teve tempo de soltar um grito.

Motiekhe durou mais, porém parecia fora de seu juízo. Tudo o que fazia era murmurar infindavelmente: baixo, alto, baixo, alto... Todos os dias ia ao cemitério lamentar-se sobre as sepulturas, corria de uma para outra. Quando morreu, eu já deixara a cidade. Fui morar com os pais de meu marido.

Como eu estava dizendo, o ódio... Ninguém deve caçoar do próximo. Pequeno é pequeno, grande é grande. Este mundo não nos pertence. Não o fizemos. Mas um homem arquitetar uma coisa tão desnaturada! Já ouviram coisa igual? Olhem, o mal deve ter-se apoderado dele. Estremeço todas as vezes que penso nisso.

* Festa comemorativa do dia em que o povo de Israel recebeu a Tora. (N. do T.)

* Dia do Perdão, feriado religioso. (N. do T.)

* Literalmente: "barraca", "choça". Data religiosa celebrada durante a colheita do outono e relativa ao refúgio encontrado pelos judeus quando erravam pelo deserto. (N. do T.)

Título do original: Short Friday - Copyright © by Isaac Bashevis Singer

Tradução: Hélio Pólvora (Breve Sexta-Feira)

Não confio em ninguém

A partir do dia em que começaram a falar que ele se tornaria o rabi de Yavrov, o Rabi Jonathan Danziger, de Yampol, não teve mais um minuto de descanso. Seus inimigos de Yampol invejavam-lhe a partida para uma cidade maior, embora não desejassem sua permanência lá, já que um outro lhe tomara o lugar. Os anciãos queriam que o rabi deixasse a cidade sem, também, poder ir para Yavrov. Tentaram arruinar suas oportunidades de partir, com rumores sórdidos. Pretendiam tratá-lo como haviam tratado o rabi anterior: teria de abandonar a cidade vilipendiado, em carroça puxada por bois. Mas por quê? Que mal ele fizera? Não ofendera a honra de ninguém; portara-se, invariavelmente, como amigo de todos. No entanto, todos guardavam surdos rancores contra ele. Um dizia que o rabi dera interpretação errada ao Talmude; outro tinha um cunhado que desejava o lugar do rabi; um terceiro julgava que o Rabi Jonathan devia seguir um líder hassídico. Os açougueiros queixavam-se de que o rabi declarava muitas vacas não-kosher; o abatedor ritual, que o rabi examinava-lhe a faca duas vezes por semana. A atendente da casa de banhos queixara-se porque, uma ocasião, na véspera de um dia santo, o rabi considerara impuro o banho ritual, e assim as mulheres não puderam copular com os maridos.

Na Rua da Ponte, a ralé insistia que o rabi desperdiçava muito tempo com livros, que não prestava atenção às pessoas comuns. Nas tavernas, rufiões divertiam-se, aos gritos, imitando a maneira de o rabi recitar "Escutai, ó Israel", e sua forma de cuspir quando mencionava ídolos. Os cultos provavam que o rabi cometia erros em gramática hebraica. A mulher do rabi era escarnecida pelas senhoras porque falava com sotaque da Grande Polônia e porque bebia chicória e café sem açúcar. Zombavam de tudo. Não admitiam que a mulher do rabi assasse pão toda quinta-feira, ao invés de uma vez de três em três semanas. Olhavam com desconfiança a filha do rabi, a viúva Yentl, que, segundo comentavam, passava tempo demais tricotando e bordando. Antes de cada Páscoa formava-se fila para os matzohs, e os inimigos do rabi corriam à sua casa para quebrar as janelas. Depois do Succoth, quando muitas crianças caíram doentes, as matronas piedosas proclamaram que o rabi não limpara a cidade de pecados, que permitira às moças saírem com o cabelo à mostra, e que o Anjo da Morte punira, por causa disso, as inocentes crianças com sua espada. De uma ou de outra forma, cada grupo carpia queixas e encontrava faltas. E com tudo isso, o rabi recebia o baixíssimo salário de cinco gulden por semana, vivendo quase à míngua.

Como se não lhe bastassem todos os inimigos, os amigos comportavam-se com hostilidade. Comunicavam-lhe acusações mínimas. O rabi advertiu-os de que aquilo constituía pecado, citando o Talmude, segundo o qual o boato atinge três partes: o boateiro, a vítima do boato e o que ouve o boato. O boato alimenta a raiva, o ódio, dessacraliza o Santo Nome. O rabi suplicava aos fiéis que não o atormentassem com calúnias; no entanto, qualquer palavra de seus inimigos lhe era transmitida. Se o rabi exprimia sua desaprovação ao mensageiro da calúnia, então essa pessoa passava logo ao campo hostil. O rabi já não conseguia rezar e estudar em paz. Rogava a Deus: "Até quando suportarei esta geena? Até os condenados não sofrem mais de doze meses..." Agora que o Rabi Jonathan estava prestes a assumir o posto em Yavrov, percebia que a situação tendia a repetir-se. Já notava oposição em Yavrov. Também ali, a exemplo de Yampol, havia um ricaço cujo cunhado cobiçava o lugar do rabi. Além disso, embora o rabi de Yavrov ganhasse a vida vendendo velas e fermento, alguns mercadores haviam levado a mercadoria proibida para suas lojas, ainda que sob ameaça de excomunhão.

O rabi ainda não completara os cinqüenta, mas já estava grisalho. De alto porte, tinha os ombros caídos. A barba outrora cor de palha tornara-se branca e esparsa como a de um velho. De sob as sobrancelhas espessas e dos olhos pendiam bolsas musgosas, de um azul acastanhado. Sofria de todos os tipos de indisposição. Tossia, fosse inverno ou verão. O corpo era só ossos; estava tão magro que, ao andar, o vento inflava a cauda do casaco, quase erguendo-o no ar. A esposa queixava-se de que ele não comia bem, não bebia bem, não dormia o bastante. Acossado por pesadelos, acordava com estremeções. Sonhava com perseguições e pogroms, e por isso tinha de jejuar com freqüência. O rabi julgava-se punido por seus pecados. Às vezes dizia palavras duras contra seus torturadores; questionava os caminhos de Deus e chegava a duvidar de Sua misericórdia. Punha o xale de orações e os amuletos e, de súbito, um pensamento cintilava na mente: e se não houver Criador? Após semelhante blasfêmia, o rabi condenava-se a não provar comida o dia inteiro, até as estrelas apagarem-se no céu. "Ai de mim, para onde vou?", suspirava o rabi. "Sou um homem perdido."

Na cozinha sentavam-se mãe e filha e cada uma defendia suas intenções. Ziporah, a mulher do rabi, procedia de família rica. Quando moça fora julgada bela, mas os anos de pobreza arruinaram-lhe a aparência. Em seu gorro antiquado, que lhe caía mal, e vestido do tempo do Rei Sobieski, parecia vergada e macilenta; o rosto enrugado adquirira a ferrugem de uma pêra que não amadurece. As mãos eram grandes e cheias de veias, como as de um homem. Mas Ziporah encontrava um consolo em toda a sua miséria: o trabalho. Lavava, cortava lenha, carregava água do poço, encerava o chão. Em Yampol diziam que, de tanto esfregar os pratos, ela fazia buracos na louça. Esfregava as toalhas de mesa e os lençóis com tal esmero que não ficava um fio do tecido original. Ela própria consertava as sandálias do rabi. Das seis crianças que dera à luz, somente Yentl sobrevivera.

Yentl saiu ao pai: tinha o cabelo amarelado, era alta, de pele lisa, sardenta e busto chato. Yentl não era menos diligente que a mãe, mas a mãe não lhe permitia tocar em trabalho caseiro. O marido de Yentl, Ozer, um estudante de yeshiva, morrera de fraqueza causada por doença. Yentl agora costurava, tricotava, lia livros que pedia de empréstimo a mascates. A princípio havia recebido muitas ofertas de casamento, porém conseguiu desencorajar os contratantes. Nunca deixou de prantear o marido. Assim que alguém começava a arranjar-lhe compromisso, Yentl começava a sentir eólicas. Os habitantes de Yampol espalharam o rumor segundo o qual ela fizera a Ozer juramento à beira do seu leito de morte de jamais voltar a casar-se. Não tinha uma só amiga em Yampol. No verão pegava um cesto, uma corda e penetrava nos bosques para apanhar bagas e cogumelos. Semelhante conduta era considerada das mais impróprias a uma filha de rabi.

A mudança para Yavrov parecia boa perspectiva, mas a mulher do rabi e Yentl preocuparam-se muito mais do que se alegraram. Nem mãe nem filha tinham uma peça decente de roupa ou uma jóia. Durante os anos em Yampol ficaram tão isoladas que a mulher do rabi queixou-se ao marido de não saber mais dirigir-se às pessoas. Orava em casa, evitava escoltar noivas à sinagoga ou participar de cerimônias de circuncisão. Yavrov, no entanto, era diferente. Ali, as senhoras enfeitavam-se com vestidos da moda, peles caras, perucas de seda, sapatos de salto alto e bicos pontudos. As moças casadas iam à sinagoga com chapéus de plumas. Todas tinham uma corrente de ouro ou um broche. Como chegar a um lugar desses envergando farrapos, com móveis quebrados e linho esfiapado? Yentl não quis mudar-se. Que faria em Yavrov? Não era moça nem mulher casada; em Yampol tinha ao menos um pedaço de terra e um túmulo.

O Rabi Jonathan ouviu e sacudiu a cabeça. Recebera um contrato de Yavrov, mas nenhum adiantamento ainda. Seria assim mesmo ou julgavam-no ingênuo? Teve vergonha de pedir dinheiro. Era contra sua natureza usar a Tora para obter lucro. O rabi andava para cá e para lá em seu gabinete. "Pai do Céu, salvai-me. Entrei em águas profundas, estou prestes a submergir!"

2

Era hábito do rabi rezar na sinagoga e não na casa de orações, porque entre os judeus pobres tinha menos inimigos. Orava ao romper do dia, assim que se formava o primeiro quorum. O Pentecostes acabara de passar. Às três e meia a estrela matutina aparecia. Às quatro o sol já brilhava. O rabi gostava da quietude da manhã, quando a maior parte dos habitantes ainda dormia atrás dos postigos cerrados. Jamais se cansava de observar o sol surgir: púrpura, dourado, lavado pelas águas do Grande Mar. O sol nascente sempre lhe trazia o mesmo pensamento: ao contrário do sol, o filho do homem jamais renasce; por isso está condenado à morte. O homem tem lembranças, culpas, ressentimentos. Eles se amontoam como pó, impedindo-o de receber a luz e a vida que desce do firmamento. Mas a criação de Deus, esta se renova constantemente. Se o céu se torna nevoento, volta logo a clarear. O sol se põe, mas renasce todas as manhãs. Não há marca do passado na lua ou nas estrelas. A incessante recriação da natureza é óbvia, sobretudo na aurora. O orvalho cai, os pássaros trinam, o rio reflete luminosidade, a grama está úmida e fresca. Feliz o homem capaz de se renovar sempre ao lado da criação, "quando todas as estrelas da manhã cantam juntas".

Aquela manhã era igual a outras. O rabi levantou-se cedo a fim de ser o primeiro a chegar à sinagoga. Bateu à porta de carvalho para advertir os espíritos que ali oravam de sua chegada. Em seguida, entrou na antecâmara escura. A sinagoga tinha centenas de anos, mas permanecia quase como no dia em que fora erguida. Tudo exsudava eternidade: as paredes cinzentas, o teto alto, os candelabros de latão, a pia de cobre, a estante com os quatro pilares, a Arca esculpida com as tábuas dos mandamentos e os dois leões dourados. Raios de sol penetravam pelas janelas ovaladas, de vidros manchados. Até os fantasmas que ali oravam geralmente saíam ao cantar do galo, abrindo lugar para os vivos, porém deixando atrás de si uma tranqüilidade e um repouso completos. O rabi começou a andar para cima e para baixo e a recitar o "Senhor do universo". Repetia as palavras: "E após todas as coisas chegarem ao seu termo, Ele reinará sozinho", várias vezes. O rabi imaginou a família humana perecendo, casas ruindo, tudo o que era mau desfazendo-se e a luz de Deus voltando a ocupar o espaço inteiro. A retração de Seu poder, as forças demoníacas, tudo o que era mesquinho e sórdido cessaria. Tempo, acidentes, paixões e lutas desapareceriam, pois que não passavam de ilusão e logro. A verdade real estava na bondade absoluta.

O rabi disse suas preces, contemplando o significado íntimo das palavras. Pouco a pouco os fiéis começaram a chegar: o primeiro quorum foi composto de trabalhadores manuais que acordavam com os galos — Leibush, o carteiro, Chaim Jonah, o vendedor de peixe, Avrom, o seleiro, Shloime Meyer, que cultivava pomares nos arredores de Yampol. Cumprimentaram o rabi, depois puseram os amuletos e xales. Ocorreu ao rabi que seus inimigos da cidade ou eram ricos ou indolentes. Os pobres e trabalhadores, estes viviam vida honesta, estavam ao seu lado. "Por que não pensei nisso antes?", o rabi perguntou-se. "Por que isso não me ocorreu antes?" Sentiu amor repentino por aqueles judeus que não enganavam ninguém, que não sabiam defraudar e roubar, limitando-se a cumprir a sentença de Deus: "Comerás o pão com o suor do teu rosto..." Ei-los agora a enrolar os amuletos em volta dos braços, a beijar os debruns dos xales de orações, aceitando o jugo do reino dos céus. A tranqüilidade matinal banhava-lhes o rosto e a barba. Seus olhos brilhavam com a doçura dos que desde a infância suportam o fardo.

Era segunda-feira. Após a confissão o pergaminho foi retirado da Arca, enquanto o rabi entoava "Abençoado seja Teu nome". A abertura da Arca Sagrada sempre o comovia. Lá estavam os Santos Pergaminhos, a Tora de Moisés, costurada em seda e decorada com correntes, coroas, lâminas prateadas — tudo idêntico, mas cada um com seu destino. Alguns pergaminhos eram lidos em dias úteis, outros apenas no Sabbath, outros ainda retirados apenas no Dia do Júbilo da Lei. Também havia muitos livros usados da Lei, com letras esmaecidas e papel de luto. Sempre que pensava naquelas ruínas santas, o rabi sentia dor no coração. Oscilou para a frente e para trás, murmurando as palavras aramaicas: "Reinarás sobre tudo... Eu, o servidor do Santíssimo, abençoado seja Ele, inclino-me diante Dele e do esplendor de Sua lei..." Ao chegar às palavras "Não confio em ninguém", o rabi parou. As palavras ficaram presas na garganta.

Pela primeira vez percebeu que mentia. Ninguém confiava mais nos outros do que ele. A cidade inteira dava-lhe ordens, ele dependia de todo mundo. Qualquer um podia prejudicá-lo. Hoje era em Yampol, amanhã seria em Yavrov. Ele, o rabi, tornara-se escravo dos poderosos da comunidade. Devia esperar presentes, favores e buscar eterno apoio. O rabi começou a examinar os outros fiéis. Nenhum precisava de aliados. Nenhum se preocupava com quem lhe era simpático ou não. Ninguém dava um tostão por boatos. "Então, de que vale a mentira?", pensou o rabi. "A quem estou iludindo? Ao Todo-Poderoso?" O rabi estremeceu e cobriu o rosto, envergonhado. Seus joelhos dobraram-se. Já havia posto o pergaminho na mesa de leitura, mas não o percebeu. De súbito, alguma coisa dentro dele começou a rir. Ergueu a mão, como se proferindo juramento. Um júbilo de há muito esquecido dominou-o e ele sentiu uma determinação inesperada. Num átimo tudo se lhe tornou claro...

Chamaram o rabi para a leitura e ele subiu os degraus da estante. Colocou uma franja no pergaminho, levou-o à testa e depois beijou-o. Recitou a bênção em voz alta. Em seguida, fez-se a leitura. Era o capítulo "Envia teus homens..." Referia-se aos espiões que saíram em busca da terra de Canaã e que retornaram assustados pelos filhos de Anak. "A covardia destruiu a geração do deserto", disse o Rabi Jonathan a si mesmo. "E se não temiam gigantes, por que devo tremer diante de pigmeus? Isso é pior do que covardia; não passa de orgulho. Tenho medo de perder os paramentos rabínicos." Os fiéis fitaram boquiabertos o rabi. Parecia transformado. Dele emanava força misteriosa. "Provavelmente porque está de partida para Yavrov", explicaram entre si.

Após a oração, os homens começaram a se dispersar. Shloime Meyer pegou o xale, pronto a partir. Era um homem pequeno, de forte ossatura, barba amarela, olhos amarelos, sardas amarelas. Seu gorro de lona, seu sobretudo de gabardina e as botas grosseiras recebiam raios amarelos de sol. O rabi fez-lhe um sinal.

— Shloime Meyer, espere um pouco, por favor.

— Sim, rabi.

— Como vão os pomares? — perguntou. — A colheita promete?

— Graças a Deus. Se não ventar muito, tudo correrá bem.

— Tem homens para a colheita?

Shloime Meyer pensou um minuto.

— É difícil, mas nós nos arranjaremos.

— Por que é difícil obter trabalhadores?

— O trabalho não é fácil. Passam o dia em cima de escadas e à noite têm de dormir no celeiro.

— Quanto você paga?

— Não muito.

— Dá para a subsistência?

— A comida é por minha conta.

— Shloime Meyer, contrate-me. Apanharei frutas para você.

Os olhos de Shloime Meyer brilharam, divertidos.

— Por que não?

— Não estou brincando.

Os olhos de Shloime Meyer entristeceram-se.

— Não sei o que o rabi pretende.

— Não sou mais rabi.

— O quê? Qual o motivo?

— Se me conceder um minuto, eu lhe direi.

Shloime Meyer escutou com atenção. A assembléia partira e os dois estavam sozinhos. Conversavam em pé, perto do púlpito. Embora o rabi falasse com calma, cada palavra ecoava como se alguém invisível as repetisse.

— Que me diz agora, Shloime Meyer? — perguntou por fim o rabi.

Shloime Meyer fez uma cara de quem acabara de engolir alguma coisa azeda. Sacudiu a cabeça.

— Que posso dizer? Tenho medo de ser excomungado.

— Você não deve temer ninguém. "Não temerás o rosto do homem." Esta é a essência do judaísmo.

— Que dirá sua esposa?

— Ela me ajudará no trabalho.

— Nosso trabalho não foi feito para pessoas de sua posição.

— Os que confiam no Senhor redobram forças.

— Bem, bem...

— Concorda, então?

— Se o rabi deseja...

— Não me chame mais de rabi. Doravante sou seu empregado. E prometo ser trabalhador honesto.

— Não estou preocupado com isso.

— Quando parte para os pomares?

— Dentro de umas duas horas.

— Passe lá em casa com sua carroça. Estarei à espera.

— Sim, rabi.

Shloime Meyer demorou-se mais um pouco e depois saiu. Perto da porta da antecâmara, relanceou os olhos para trás. O rabi continuava só, as mãos apertadas, o olhar errando de parede a parede. Despedia-se da sinagoga onde rezara durante tantos anos. Tudo tão familiar! Os doze signos do zodíaco, as sete estrelas, as figuras do leão, o gamo, o leopardo e a águia, o inexprimível nome de Deus pintado em vermelho. Os leões dourados no topo da Arca encaravam o rabi com olhos ambarinos, enquanto suas línguas recurvas sustentavam as tábuas com os dez mandamentos. Parecia ao rabi que aquelas bestas sagradas perguntavam: "Por que esperou tanto? Não podia ver logo que não se pode servir a Deus e ao homem ao mesmo tempo?" Suas bocas abertas pareciam rir com benigna ferocidade. O rabi repuxou a barba. "Bem, nunca é tarde demais. A eternidade está à minha disposição..." Andou na direção dos fundos, até chegar ao pórtico. Não existe mezuzah numa sinagoga, mas o rabi tocou o umbral com o dedo indicador e depois com os lábios.

Em Yampol, em Yavrov, a notícia estranha não tardou a se espalhar. O Rabi Jonathan, sua esposa e a filha Yentl tinham ido colher frutas nos pomares de Shloime Meyer.

Título do original: Short Friday - Copyright © by Isaac Bashevis Singer

Tradução: Hélio Pólvora (Breve Sexta-Feira)


Sunday, May 24, 2009

Joseph Shapiro

- Eu ainda não sei o seu nome.

- Meu nome por acaso é Joseph. Joseph Shapiro.

- Um bom nome judeu. Onde nos encontramos?

- Onde não? Sempre que você fez conferências, em Nova Iorque, eu estava na platéia. Era um fervoroso discípulo seu. Verdade, você não me conhece. Tive de me apresentar toda vez novamente. Mas eu o conhecia. Li tudo que você escreveu. Aqui parei de ler todas estas coisas mundanas. Mas eventualmente ainda dou uma olhada num jornal iídiche e vejo seu nome. Na minha idade, tornei-me um estudante yeshiva aqui. Estudamos o Gemara, o Tosaphot, outros comentários. Somente agora, que estou estudando o Tora, vejo que estive perdendo todos esses anos. Bem, louvado seja Deus por nos encontrarmos. Quanto tempo você ficará em Jerusalém? Onde está hospedado? Você uma vez escreveu que gosta de ouvir histórias. Tenho uma história para você, de certo modo incomum.

Isaac Bashevis Singer - O Penitente

Marc Chagall - A Crucificação Branca