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Sunday, April 01, 2012

[...] o autoerotismo ainda não é igual ao narcisismo do eu: um novo ato psíquico deve ocorrer para que a tal unidade primitiva se forme e para que a criança se identifique com ela, ou seja, com seu próprio eu. Além da satisfação libidinal autoerótica, o infans haverá de identificar-se com o objeto privilegiado que ele representa frente ao amor e ao desejo de seus pais. A partir desse ponto, está estabelecida a base para a formação do ego freudiano, fonte de investimento libidinal (a partir de 1915, diremos: pulsional) e dessa forma particular de amor a que chamamos narcisista. Nesse ponto da constituição psíquica, Freud haverá de encontrar, em 1915, a relação narcísica com um objeto frustrante que marca a estrutura da melancolia.

O narcisismo primário forma a base para o narcisismo secundário, vulgarmente conhecido como a dose essencial de estima que o ego dedica a si mesmo. O qual, por sua vez, é tributário das desilusões sofridas pelos pais em relação às suas próprias fantasias narcisistas: os filhos representam uma renovação das velhas esperanças infantis dos adultos, contrariadas pela realidade da vida. Outra parte do narcisismo secundário resulta de suas eventuais experiências exitosas - tanto no sentido dos investimentos em direção aos ideais do ego quanto na busca de satisfação da libido objetal. O maior ou menor êxito na constituição do narcisismo secundário varia, a depender de que os investimentos objetais estejam ou não em sintonia com os ideais do ego - caso contrário, estes ficarão sujeitos ao recalque. A vicissitude bastante comum de se desejar o que não se deve, o que não se pode, o que não contribui para a valorização do ego, contribui decisivamente para a diminuição da autoestima dos neuróticos, quando não conduz a inibições que impedem os caminhos do desenvolvimento do ego, ou a soluções de compromisso sintomáticas.

Maria Rita Kehl - Melancolia e Criação. Luto e Melancolia - Sigmund Freud

Wednesday, March 28, 2012

O homem, o ser falante, se constitui pelo rompimento de sua harmonia com a natureza e, ao ter de abdicar de um destino guiado pela força instintiva, é impelido  a tecer a singular trama pulsional de sua vida. A criança chega ao mundo expulsa de seu acolhimento natural. Ao nascer, ao perder o envoltório protetor da placenta, ela perde - perda materializada pelo corte do cordão umbilical; ao enfrentar o desmame, outra perda. E não é difícil acompanharmos as sucessivas perdas que a inserção  no universo simbólico impõe e, em consequência, verificarmos o lugar do luto e seu trabalho ao longo de nossas vidas.

O que de fato é perdido quando todas essas perdas acontecem? Arriscaríamos dizer que luto e melancolia muitas vezes partilham uma mesma indagação, e que essas perdas que acontecem ao longo da vida poderão ou não ser significadas, simbolizadas, e receber um sentido que as farão caminhar na direção de um luto; em contrapartida, outra vicissitude poderá também ter lugar, e a perda ou as perdas permanecerem no vazio da falta de sentido, questão central da melancolia, materializada na dor da existência. Nessa direção, a procura do sentido da vida, a interrogação sobre a própria identidade ("Quem sou?") e o questionamento da existência ("Como existo?") justificam a relação entre a genialidade e a melancolia, tão presente na Antiguidade.

Por que razão todos os homens que foram homens de exceção, no que concerne à filosofia, à ciência do Estado, à poesia ou às artes, são manifestamente melancólicos, e alguns a ponto de serem tomados por males dos quais a bile negra é a origem, como contam, entre os relatos relativos aos heróis, os que são consagrados a Hércules?

Será o melancólico um enlutado na vida, aquele que não consegue uma resolução para suas perdas?

Freud insiste no que denomina "trabalho de luto". Ele não menciona os rituais através dos quais, ao longo da história, o homem pranteia seus mortos, porém, ao marcar o luto como ato, o luto como trabalho do eu (ego), chama a atenção para as consequências do abandono e do esquecimento desses rituais como processos de simbolização da dor.

Urania Tourinho Peres - Uma Ferida a Sangrar-lhe a Alma (posfácio à Luto e Melancolia - Sigmund Freud, tradução, introdução e notas por Marilene Carone)

Sunday, March 25, 2012

Então, em que consiste o trabalho realizado pelo luto? Creio que não é forçado descrevê-lo da seguinte maneira: a prova de realidade mostrou que o objeto amado já não existe mais e agora exige que toda a libido seja retirada de suas ligações com esse objeto. Contra isso se levanta uma compreensível oposição; em geral se observa que o homem não abandona de bom grado uma posição da libido, nem mesmo quando um substituto já se lhe acena. Essa oposição pode ser tão intensa que ocorre um afastamento da realidade e uma adesão ao objeto por meio de uma psicose alucinatória de desejo*. O normal é que vença o respeito à realidade. Mas sua incumbência não pode ser imediatamente atendida. Ela será cumprida pouco a pouco com grande dispêndio de tempo e energia de investimento, e enquanto isso a existência do objeto de investimento é psiquicamente prolongada. Uma a uma, as lembranças e expectativas pelas quais a libido se ligava ao objeto são focalizadas e superinvestidas e nelas se realiza o desligamento da libido.

* Complemento metapsicológico à doutrina dos sonhos (1917d)

Sigmund Freud - Luto e Melancolia. Tradução de Marilene Carone

Saturday, March 24, 2012

- Por quê? O que você quer fazer? - ela perguntou, embora soubesse a resposta. Dexter colocou a mão no pescoço dela, ao mesmo tempo que Emma tocava de leve no quadril dele, e os dois se beijaram no meio da rua, rodeados de pessoas que corriam para casa sob os últimos raios do sol de verão, e foi o beijo mais doce que já tinham sentido.

É onde tudo começa. Tudo começa aqui, hoje.

E logo depois termina.

- Bom, a gente se vê por aí - disse Dexter, começando a se afastar.

- Espero que sim - ela sorriu.

- Eu também. Tchau, Em.

- Tchau, Dex.

- Até mais.

- Até mais. Até mais.

David Nicholls - Um Dia

Sunday, March 18, 2012


Texto de Freud de 1917 explicita a natureza de nossas identidades

Reedição de tradução pioneira de Marilene Carone para Luto e Melancolia traz belos estudos introdutórios

VLADIMIR SAFATLE

Uma das inovações de Freud encontra-se na sua maneira de repensar as relações entre normalidade e patologia. Freud dizia que um cristal, quando se quebra, respeita os sulcos que existiam antes, mas que eram invisíveis ao olho humano. Assim, se quisermos entender a estrutura do cristal, devemos partir de seu estado quebrado.

Da mesma forma, se quisermos entender a estrutura da normalidade, devemos partir deste no qual a normalidade se quebra. Nada do que é patológico nos é estranho, pois ele diz em voz alta o que sentimos em silêncio.

Poucos são os textos de Freud em que vemos esse pressuposto em operação com tanta radicalidade quanto em Luto e Melancolia.

A nova edição da tradução (a primeira digna desse nome em língua portuguesa) de Marilene Carone (1942-1987), traz dois belos estudos escritos por Maria Rita Kehl e Urania Tourinho, além de uma introdução à tradução.

Um dos méritos do texto está em sua capacidade de inserir a etiologia da melancolia no interior de uma reflexão mais ampla sobre as relações amorosas.

Freud sabe que o amor não é apenas o nome que damos para uma escolha afetiva de objeto. Ele é a base dos processos de formação da identidade subjetiva. Esta é uma maneira de dizer que as verdadeiras relações amorosas colocam em circulação dinâmicas de formação da identidade, já que tais relações fornecem o modelo elementar de laços sociais capazes de socializar o desejo.

Isto talvez explique por que Freud aproxima luto e melancolia a fim de lembrar que se tratam de duas modalidades de perda de objeto amado.

Um objeto de amor foi perdido e nada parece poder substituí-lo. No entanto, o melancólico mostraria algo ausente no luto: o rebaixamento brutal do sentimento de autoestima. Como se, na melancolia, uma parte do Eu se voltasse contra si próprio, através de autorrecriminações e acusações.

A tese fundamental de Freud consiste em dizer que ocorreu, na verdade, uma identificação do Eu com o objeto abandonado de amor.

Tudo se passa como se a sombra desse objeto fosse internalizada, como se a melancolia fosse a continuação desesperada de um amor que não pode lidar com a situação da perda.

Incapacidade vinda do fato de a perda do objeto que amo colocar em questão o próprio fundamento da minha identidade. Mais fácil mostrar que a voz do objeto ainda permanece em mim, isto através da autoacusação patológica contra aquilo que, em mim, parece ter fracassado.

Essa é uma maneira de dizer que a melancolia é o cristal quebrado que nos mostra a natureza radicalmente relacional de nossas identidades. Conhecer tal natureza sempre foi a melhor forma de lidar com seus desafios.