[...] o autoerotismo ainda não é igual ao narcisismo do eu: um novo ato psíquico deve ocorrer para que a tal unidade primitiva se forme e para que a criança se identifique com ela, ou seja, com seu próprio eu. Além da satisfação libidinal autoerótica, o infans haverá de identificar-se com o objeto privilegiado que ele representa frente ao amor e ao desejo de seus pais. A partir desse ponto, está estabelecida a base para a formação do ego freudiano, fonte de investimento libidinal (a partir de 1915, diremos: pulsional) e dessa forma particular de amor a que chamamos narcisista. Nesse ponto da constituição psíquica, Freud haverá de encontrar, em 1915, a relação narcísica com um objeto frustrante que marca a estrutura da melancolia.
O narcisismo primário forma a base para o narcisismo secundário, vulgarmente conhecido como a dose essencial de estima que o ego dedica a si mesmo. O qual, por sua vez, é tributário das desilusões sofridas pelos pais em relação às suas próprias fantasias narcisistas: os filhos representam uma renovação das velhas esperanças infantis dos adultos, contrariadas pela realidade da vida. Outra parte do narcisismo secundário resulta de suas eventuais experiências exitosas - tanto no sentido dos investimentos em direção aos ideais do ego quanto na busca de satisfação da libido objetal. O maior ou menor êxito na constituição do narcisismo secundário varia, a depender de que os investimentos objetais estejam ou não em sintonia com os ideais do ego - caso contrário, estes ficarão sujeitos ao recalque. A vicissitude bastante comum de se desejar o que não se deve, o que não se pode, o que não contribui para a valorização do ego, contribui decisivamente para a diminuição da autoestima dos neuróticos, quando não conduz a inibições que impedem os caminhos do desenvolvimento do ego, ou a soluções de compromisso sintomáticas.
Maria Rita Kehl - Melancolia e Criação. Luto e Melancolia - Sigmund Freud