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Saturday, August 21, 2010

Os dias iam passando sem serem contados ou marcados em calendário. Pela rodovia interestadual à distância longas filas de carros carbonizados e enferrujados. Aros nus das rodas caídos numa espécie de lama dura e cinzenta de borracha derretida, em anéis enegrecidos de metal. Os cadáveres incinerados reduzidos ao tamanho de crianças e apoiados nas molas expostas dos assentos. Dez mil sonhos sepultados dentro de seus corações queimados. Seguiram em frente. Caminhando no mundo dos mortos como ratos numa esteira. As noites de um silêncio mortal e de uma escuridão ainda mais mortal. Tão frias. Mal conversavam. Ele tossia o tempo todo e o menino o observava cuspir sangue. Seguindo em frente cada vez pior. Imundos, esfarrapados, sem esperanças. Ele parava e se apoiava no carrinho e o menino seguia em frente e então parava e olhava para trás, erguia os olhos cheios de lágrimas para vê-lo parado ali na estrada, fitando-o de algum futuro inimaginável, luzindo na desolação como um tabernáculo.

[...] Antes havia trutas nos riachos das montanhas. Você podia vê-las paradas na correnteza âmbar onde as extremidades brancas de suas barbatanas encrespavam de leve a superfície. Tinham cheiro de musgo na mão. Polidas e musculosas se retorcendo. Em suas costas havia padrões sinuosos que eram mapas do mundo em seu princípio. Mapas e labirintos. De algo que não podia ser resgatado. Não podia ser endireitado. Nos vales estreitos e profundos em que eles viviam todas as coisas eram mais antigas do que o homem e num murmúrio contínuo falavam de mistério.

Cormac McCarthy - A Estrada

Thursday, August 19, 2010

Estava com febre e ficaram na floresta como fugitivos. Nenhum lugar onde fazer uma fogueira. Nenhum lugar seguro. O menino ficava sentado nas folhas observando-o. As lágrimas transbordando de seus olhos. Você vai morrer, Papai?
Não. Só estou doente.
Estou com muito medo.
Eu sei. Está tudo bem. Vou melhorar. Você vai ver.

[...] Três dias. Quatro. Ele dormia pouco. A tosse torturante o acordava. Sugando o ar com um som áspero. Me desculpe, ele dizia para a escuridão impiedosa. Está tudo bem, dizia o menino.

Cormac McCarthy -  A Estrada

Monday, August 16, 2010

Podíamos pegar os dois, o menino disse.
Não.
Eu poderia empurrar um.
Você é o observador. Preciso que seja nosso vigia.
O que a gente vai fazer com tudo aquilo?
Vamos simplesmente ter que levar o que pudermos.
Você acha que alguém vai vir?
Sim. Em algum momento.
Você disse que não ia vir ninguém.
Não quis dizer nunca.
Eu gostaria que a gente pudesse morar aqui.
Eu sei.
Podíamos ficar de vigia.
Estamos de vigia.
E se alguns dos caras do bem vierem?
Bem, eu não acho que a gente é capaz de encontrar os caras do bem na estrada.
Nós estamos na estrada.
Eu sei.
Se você fica de vigia o tempo todo isso não significa que está o tempo todo com medo?
Bem, acho que você precisa estar com medo suficiente para ficar de vigia, em primeiro lugar. Para ser cuidadoso. Vigilante.
Mas no resto do tempo não fica assustado?
No resto do tempo.
Sim.
Não sei. Talvez a gente devesse ficar sempre de vigia. Se aparece algum problema quando você menos espera talvez a coisa certa a fazer seja sempre esperar.
Você sempre espera? Papai?
Espero. Mas às vezes eu posso esquecer que estou de vigia.

Cormac McCarthy - A Estrada

Sunday, August 15, 2010

Ele sentou o menino no baú sob o lampião e com uma escova de plástico e um par de tesouras se pôs a cortar seu cabelo. Tentou fazer direito e levou um tempo. Quando terminou tirou a toalha de cima dos ombros e pegou o cabelo dourado do chão e limpou o rosto e os ombros do menino com um pano úmido e segurou um espelho para que ele visse.
Você fez um bom trabalho, Papai.
Bom.
Eu pareço mesmo magrelo.
Você está mesmo magrelo.
Ele cortou seu próprio cabelo mas não ficou tão bom. Aparou a barba com a tesoura enquanto uma panela de água esquentava e depois se barbeou com um barbeador de plástico. O menino observava. Quando ele terminou olhou-se no espelho. Parecia não ter queixo. Virou-se para o menino. Como é que estou? O menino esticou o pescoço. Não sei, ele disse. Você vai ficar com frio?

* * *

Comeram uma refeição suntuosa à luz de velas. Presunto e feijão verde e purê de batatas com biscoitos e molho. Ele tinha encontrado quatro garrafas de 250ml de uísque puro malte [...] bebeu um pouco num copo com água. [...] Comeram pêssegos e creme [...] beberam café. [...] Os pratos de papel e os talheres de plástico ele jogou numa sacola de lixo. Jogaram xadrez e depois ele pôs o menino na cama.

[...] Durante a noite foi acordado pelo ruído abafado da chuva caindo sobre o colchão (que camuflava a) na porta acima deles. [...] Havia vazado água que gotejava escada abaixo mas ele achava que o abrigo em si era bastante à prova d'água. [...] Foi ver como estava o menino. Estava úmido de suor e o homem puxou para baixo um dos cobertores e abanou seu rosto e depois diminuiu o aquecedor e voltou para a cama.

Quando acordou novamente achou que a chuva tinha parado. Mas não foi isso que o acordou. Ele tinha sido visitado num sonho por criaturas de um tipo que nunca tinha visto antes. Não falavam. Ele achou que tinham estado agachadas ao lado do seu catre enquanto dormia e que tinham escapulido quando ele acordou. Virou-se e olhou para o menino. Talvez compreendesse pela primeira vez que, para o menino, ele próprio era um alienígena. Um ser de um planeta que já não existia. Cujas histórias eram suspeitas. Ele não tinha como construir para o prazer da criança o mundo que tinha perdido sem construir também a perda e achava que talvez o menino soubesse disso melhor do que ele. Tentou se lembrar do sonho mas não conseguiu. Tudo o que restava era a sensação. Pensou que talvez eles tivessem vindo avisá-lo. De quê? De que ele não podia acender no coração da criança o que eram cinzas no seu próprio. Mesmo agora alguma parte dele desejava que nunca tivessem encontrado aquele refúgio. Alguma parte dele desejava que tudo tivesse terminado.

Cormac McCarthy - A Estrada

Friday, August 13, 2010

Vasculhavam as ruínas carbonizadas de casas em que não teriam entrado antes. Um cadáver flutuando na água preta de um porão entre lixo e canos enferrujados. Estava numa sala de estar parcialmente queimada e aberta para o céu. As tábuas empenadas por causa da água inclinadas sobre o quintal. Livros ensopados numa estante. Apanhou um e abriu-o e colocou-o de volta. Tudo úmido. Apodrecendo. Numa gaveta encontrou uma vela. Não havia como acendê-la. Colocou-a no bolso. Caminhou para a luz cinzenta lá fora e ficou parado de pé e viu por um breve momento a verdade absoluta do mundo. As voltas frias e incansáveis da terra morta e abandonada. Escuridão implacável. Os cães cegos do sol em sua corrida. O vácuo preto e esmagador do universo. E em algum lugar dois animais caçados tremendo como marmotas em seu abrigo. Tempo usurpado e mundo usurpado e olhos usurpados com os quais lamentá-lo.

[...] Caminharam pelas ruas envolvidos nos cobertores imundos. Ele levava o revólver na cintura e segurava o menino pela mão. No outro lado da cidade encontraram uma casa solitária num campo e atravessaram e entraram e caminharam pelos quartos. Depararam-se consigo num espelho e ele quase sacou o revólver. Somos nós, Papai, o menino sussurrou. Somos nós.

Cormac McCarthy - A Estrada

Thursday, August 12, 2010

Naqueles primeiros anos as estradas estavam povoadas por refugiados amortalhados em suas roupas. Usando máscaras e óculos de proteção, sentados em seus trapos na beira da estrada como aviadores arruinados. Seus carrinhos de mão com pilhas de quinquilharia. Arrastando carrinhos. Os olhos brilhando no crânio. Cascas incrédulas de homens cambaleando pelas estradas como migrantes numa terra febril. A fragilidade de todas as coisas finalmente revelada. Questões antigas e perturbadoras solucionadas para se transformar em nada e noite. A última instância de uma coisa leva a categoria consigo. Apaga a luz e vai embora. Olhe ao seu redor. Para sempre é muito tempo. Mas o menino sabia o que sabia. Que para sempre não é tempo algum.

Cormac McCarthy - A Estrada

Wednesday, July 28, 2010

7/07/2010
André Barcinski

O maior escritor vivo?

Harold Bloom sabe o que fala. O grande crítico literário escreveu o seguinte sobre Meridiano de Sangue, de Cormac McCarthy: “É o maior feito literário de qualquer escritor americano vivo (...) nem mesmo Pynchon nos deu um livro tão forte e memorável”.

Nos últimos anos, o nome de McCarthy se popularizou, especialmente depois de duas adaptações, para as telas, de seus romances: Onde os Velhos Não Têm Vez, que os Irmãos Coen transformaram no ótimo Onde os Fracos Não Têm Vez, e o mais recente A Estrada, que não conseguiu levar às telas todo o poder do livro.

McCarthy escreveu dez livros. Já li seis, e nenhum se mostrou menos que brilhante. Meu favorito é Meridiano de Sangue, lançado em 2009 no Brasil pela Alfaguara (e em 1991 pela Nova Fronteira, com o nome de Meridiano Sangrento).

O livro conta a história de um grupo de mercenários que vivem de escalpelar índios na fronteira do Texas com o México, na metade do século 19. Algumas passagens são assombrosas. O livro todo tem um clima de delírio surrealista e pesadelo gótico. É uma das experiências mais intensas e inesquecíveis. Meridiano de Sangue é o único livro que comecei a reler imediatamente depois de terminá-lo.

Para quem não está familiarizado com a obra de McCarthy, recomendo começar por A Estrada, inacreditável história de pai e filho andando por um cenário pós-apocalíptico, ou pelo faroeste “noir” Onde os Velhos Não Têm Vez.

Menos intensos, porém igualmente memoráveis, são os livros que formam a “Trilogia da Fronteira”: Todos os Cavalos Bonitos, A Travessia e Cidades da Planície. São histórias passadas no Oeste americano na metade do século 20, envolvendo longas e perigosas travessias para lugares desconhecidos (especialmente o México). Ler os três na sequência é uma experiência inesquecível.

Depois de Onde os Fracos Nâo Têm Vez e A Estrada, outros dois livros de McCarthy estão sendo adaptados para o cinema: Cidades da Planície e Meridiano de Sangue. Tomara que não estraguem as histórias.