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Sunday, July 06, 2008

II

[...] Ora, toda Forma é também um Valor: por isso, entre a língua e o estilo, há lugar para outra realidade formal: a escritura. Em toda e qualquer forma literária, existe a escolha geral de um tom, de um etos, por assim dizer, e é precisamente nisso que o escritor se individualiza claramente porque é nisso que ele se engaja. Língua e estilo são dados antecedentes a toda problemática da linguagem, língua e estilo constituem o produto natural do Tempo e da pessoa biológica; mas a identidade formal do escritor só se estabelece realmente fora da instalação das normas da gramática e das constantes do estilo, no ponto em que o contínuo escrito, reunido e encerrado de início numa natureza linguística perfeitamente inocente, vai tornar-se enfim um signo total, a escolha de um comportamento humano, a afirmação de um certo Bem, engajando assim o escritor na evidência e na comunicação de uma felicidade ou de um mal-estar, e ligando a forma ao mesmo tempo normal e singular de sua fala à ampla História de outrem. Língua e estilo são forças cegas; a escritura é um ato de solidariedade histórica. Língua e estilo são objetos; a escritura é uma função: é a relação entre a criação e a sociedade, é a linguagem literária transformada por sua destinação social, é a forma apreendida na sua intenção humana e ligada assim às grandes crises da História.

[...] Colocada no âmago da problemática literária, que só começa com ela, a escritura portanto é, essencialmente, a moral da forma, a escolha da área social no seio da qual o escritor decide situar a Natureza de sua linguagem. Mas esta área social não é a de um consumo efetivo. Para o escritor, não se trata de escolher o grupo social para que escreve: ele sabe perfeitamente que, a menos que se conte com uma Revolução, será sempre a mesma sociedade. Sua escolha é uma escolha de consciência, não de eficácia. Sua escritura constitui uma maneira de pensar a Literatura, não de difundi-la. Ou melhor ainda: o escritor não pode modificar em nada os dados objetivos do consumo literário (tais dados puramente históricos lhe escapam, mesmo que ele tenha consciência deles) e é por isso que transporta propositadamente a exigência de uma linguagem livre para as fontes desta linguagem e não para o termo de seu consumo. Desse modo, a escritura é uma realidade ambígua: de um lado, nasce incontestavelmente de uma confrontação do escritor com a sociedade; de outro lado, por uma espécie de transferência mágica, ela remete o escritor, dessa finalidade social, para as fontes instrumentais de sua criação. Por não poder fornecer-lhe uma linguagem livremente consumida, a História lhe propõe a exigência de uma linguagem livremente produzida.

Assim, a escolha e, depois, a responsabilidade de uma escritura, designam uma Liberdade, mas tal Liberdade não tem os mesmos limites conforme os diferentes momentos da História. Não é dado ao escritor escolher sua escritura numa espécie de arsenal intemporal das formas literárias. É sob a pressão da História e da Tradição que se estabelecem as escrituras possíveis de um determinado escritor: existe uma História da Escritura; mas essa História é dupla: no exato momento em que a História geral propõe - ou impõe - uma nova problemática da linguagem literária, a escritura continua ainda cheia da lembrança de seus usos anteriores, porque a linguagem nunca é inocente: as palavras têm uma memória segunda que se prolonga misteriosamente em meio às significações novas. A escritura é precisamente esse compromisso entre uma liberdade no gesto da escolha, mas já não o é mais na sua duração. Hoje, posso sem dúvida escolher para mim esta ou aquela escritura, e nesse gesto afirmar minha liberdade, pretender um frescor ou uma tradição; já não posso mais desenvolvê-la numa duração sem tornar-me pouco a pouco prisioneiro das palavras de outrem e até de minhas próprias palavras. Uma remanência obstinada, vinda de todas as escrituras precedentes e do passado mesmo da minha própria escritura, cobre a voz presente de minhas palavras. Todo vestígio escrito precipita-se como um elemento químico a princípio transparente, inocente e neutro, no qual a simples duração faz aparecer, aos poucos, todo um passado em suspensão, toda uma criptografia cada vez mais densa.

Como Liberdade, a escritura é, portanto, apenas um momento. Mas este momento é um dos mais explícitos da História, já que a História é sempre e antes de tudo uma escolha e os limites dessa escolha. Porque deriva de um gesto significativo do escritor, a escritura aflora a História, muito mais sensivelmente do que qualquer outro corte da literatura. A unidade da escritura clássica, homogênea durante séculos, a pluralidade das escrituras modernas, multiplicadas desde há cem anos até o próprio limite do fato literário - essa espécie de explosão da escritura francesa corresponde em verdade a uma grande crise da História total, visível de maneira muito mais confusa na História literária propriamente dita. O que separa o "pensamento" de um Balzac e o de um Flaubert, é uma variação de escola; o que opõe a escritura de ambos, é uma ruptura essencial, no momento exato em em que duas estruturas econômicas formam uma charneira*, acarretando, na sua articulação, modificações decisivas de mentalidade e consciência.

Roland Barthes - O Grau Zero da Escritura

* Charneira

Acepções
substantivo feminino
1 dispositivo de rotação constituído de duas pequenas peças articuladas de metal, madeira etc. unidas por um eixo comum que possibilita fechar, abrir, sobrepor, baixar, levantar duas partes de um objeto
1.1 m.q. dobradiça ('utensílio')
2 Derivação: sentido figurado.
pessoa ou coisa que serve de ponto de união ou de apoio entre dois ou mais elementos que se encontram
Ex.: Portugal é a c. entre África e Europa