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Sunday, September 27, 2009

O Gigante de Barro
Carlos Heitor Cony

A ideia de uma ponte aérea entre os aeroportos de Campo de Marte (SP) e Jacarepaguá (RJ) não é má, embora não seja boa. Desafogaria o terminal de Congonhas, que está no limite de saturação, e aliviaria o Santos Dumont, que não está nas mesmas condições, mas começa a criar caso com o barulho que perturba quem vive ou trabalha em suas imediações.

A melhor alternativa para descongestionar o tráfego entre as duas grandes cidades talvez não seja mais uma ponte aérea, mas o trem-bala, cujos estudos e implantação volta e meia ressuscitam e falecem. Rio e São Paulo, mais cedo ou mais tarde, formarão fisicamente uma nova e gigantesca cidade, e a união ferroviária nos níveis tecnológicos do presente e do futuro será a espinha dorsal da colossal metrópole do Sudeste brasileiro.

Culpa-se JK - e com razão - pela deterioração da rede ferroviária, uma vez que foi dada absoluta prioridade às estradas de rodagem. Há muito de verdade nisso, mas a realidade é que os governos posteriores agravaram a situação.

Nada mais melancólico do que ver antigas estações apodrecendo ao tempo em quase todos os quadrantes do nosso território, e os trilhos enferrujados, cobertos de capim, lembrando que "aqui outrora ressoaram hinos."

Sei, o problema vai requerer muito dinheiro e trabalho. Mas o Brasil está começando a ficar arrogante com o seu novo status de gigante emergente, alinhado a potências nucleares como a China, a Índia e a Rússia, o decantado Bric.

Com a nossa rede ferroviária em decomposição cadavérica, e sem um projeto tecnologicamente moderno e eficiente para recuperá-la e ampliá-la, manteremos o nosso imenso interior ilhado, de difícil acesso, com rodovias congestionadas mostrando que o gigante continua com pés de barro.

Friday, June 06, 2008

Esse é um daqueles textos que fatalmente vão acabar rodando a internet, "assinados" pelo Jabor, pelo Veríssimo, ou sabe-se lá quem! Então, me adiantando, mando: é do Carlos Heitor Cony, saiu na Folha hoje, 6 de junho de 2008 e é uma versão revista e ampliada de um outro texto que ele já publicara em 2004. Ah, e é genial! O que há de mais fino em matéria de sarcasmo (se é que isso pode ser possível).

Chá das peruas

Não sei se por sorte ou azar, encontrei um amigo dos tempos de jornal, agora dedicado à divulgação de vídeos, depois de ter morado dez anos em Londres.
Ele se habituara ao chá das cinco e justo naquele momento estava se dirigindo à pérgula do Copacabana, onde se inaugurava novo e eficiente serviço.
Bastou atravessarmos o calçadão, a hora era aquela. Primeira sensação: a de entrar num galinheiro, ou melhor, num perueiro: as mesas estavam tomadas por estranhíssima população de peruas, senhoras de 50 e 70 anos, maquiadas para a ocasião, vestidas e calçadas para a ocasião, compenetradas e penetradas pela ocasião.
E a ocasião era o chá - não a bebida em si, mas a solenidade, o ritual, a liturgia. O serviço era impecável, excelente mesa de doces e salgadinhos, variedades de chás e sucos.
Poucas vezes, em andanças por aí, enfrentei tamanho e tão rico sortimento de geléias, bolos, bolinhos, brioches - um festim. E o festim seria mais confortável não fossem o alarido, o grasnar das peruas.
Aliás (e em sã consciência o admito), ignoro se as peruas grasnam. Parece que os patos é que grasnam. Não sou entendido na matéria, mas sei que cada bicho tem linguajar próprio: o cachorro late, o gato mia, o cavalo relincha, o boi muge, parece que o lobo uiva, há bichos (não sei quais) que chilreiam e outros que pipilam.
Bem, as peruas devem emitir som específico, cuja designação, honestamente não me interessa investigar. Fiquemos com o grasnar, pode não ser tecnicamente o certo, mas na prática é o mais apropriado.
O que elas grasnam não é mole, o que se enchem de bolos e geléias, o que entopem as bochechas de salgadinhos e brioches, o que falam alto e não escutam nada - enfim, são peruas de alto coturno. Peruas cinco estrelas.
Contudo, não são o grasnado e a esganação que marcam e definem o gênero perual. Evidente que todas grasnam e todas são esganadas, mas o que as distingue dos mortais é um quê indefinível, uma aura transcendental, um halo sobrenatural que vem talvez do modo de vestir, de pensar, de usar adereços. Talvez a forma de se pentear e maquilar.
Sem esquecer o cheiro: toda perua que se presa usa dois ou três tipos de perfumes da moda que, por isso mesmo, por serem da moda, tornam-se ostensivamente peruais.
É assombroso como elas conseguem a unidade na variedade ou - o que é mais difícil - a variedade na unidade, desafio mental que os filósofos, políticos e artistas enfrentam há séculos.
Não há duas peruas iguais, mas todas são iguais entre si. É o tafetá, o veludo, a seda, o corte do vestido ou do casaco, o tipo do sapato, a meia, os broches e brincos, os anéis e colares e - sobretudo - as bolsas. Ah, as bolsas! São esclarecedoras, são definidoras na exata conceituação de Aristóteles: "Indivisum in se et divisum a quolibet alium". Perdoem o latim, mas em se tratando de peruas, a tendência é absorver alguma coisa de perual, como a erudição de almanaque. O fato é que, com ou sem a ajuda de Aristóteles, a léguas de distância se percebe uma perua pela bolsa que usa e pelo modo como a carrega. É como um distintivo na lapela, um estandarte, uma camisa de clube de futebol: pode-se distribuir as peruas em primeira, segunda e até terceiras divisões.
Pode-se fazer uma espécie de combinado de seleção perual através das bolsas. Agora, mais esclarecedoras do que as bolsas são os adereços - mas isso transcende ao espaço e à intenção de uma crônica. Seria necessário um tratado, em 12 nutridos tomos, para catalogar e definir esses adereços - tarefa que realmente não me oferece atrativos.
O chá foi agradável, junto à piscina, atendidos pela própria gerente, uma antiperua, insuperável em seu papel e lugar. Só ela, em si e em seu labor, redimia a paisagem e valorizava o aroma do chá e o sabor das geléias. No fundo, ela se divertia com as peruas e ganhava dinheiro à custa delas: estava trabalhando, feia ação que uma perua prefere morrer a praticar.
Uma perua, antes de ser perua por fora (na bolsa, no cabelo ou no sapato), é uma perua por dentro.

(Leitoras do Leblon me pediram uma transcrição revista e ampliada de uma crônica que escrevi em 2004 na página A2.)

Carlos Heitor Cony - Folha de São Paulo