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Saturday, July 09, 2011

[...] A palavra é "filisteísmo". Sua origem, um pouco mais antiga que seu emprego específico, não possui grande importância; ela foi utilizada a princípio, no jargão universitário alemão, para distinguir burgueses de togados; a associação bíblica já indicava, porém, um inimigo numericamente superior e em cujas mãos se pode cair. Quando foi usado pela primeira vez como termo [...] designava uma mentalidade que julgava todas as coisas em termos de utilidade imediata e de "valores" materiais, e que, por conseguinte, não tinha consideração alguma por objetos e ocupações inúteis tais como os implícitos na cultura e na arte.

[...] o status objetivo do mundo cultural, na medida em que contém coisas tangíveis - livros e pinturas, estátuas, edifícios e música - compreende e testemunha todo o passado registrado de países, nações e, por fim, da humanidade. Como tais, o único critério não-social e autêntico para o julgamento desses objetos especificamente culturais é sua permanência relativa e mesmo sua eventual imortalidade. Somente o que durará através dos séculos pode se pretender em última instância um objeto cultural. O ponto crucial da questão é que tão logo as obras imortais do passado se tornam objeto de refinamento social e individual e do status correspondente, perdem sua qualidade mais importante e elementar, qual seja, a de apoderar-se do leitor ou espectador, comovendo-o durante os séculos.

[..] O que irritava no filisteu educado não era que lesse os clássicos, mas que ele o fizesse movido pelo desejo dissimulado de auto-aprimoramento, continuando completamente alheio ao fato de que Shakespeare ou Platão pudessem ter a dizer-lhes coisas mais importantes do que a maneira de se educar; o lamentável era que ele escapasse para uma região de "pura poesia" para manter a realidade fora de sua vida - coisas "prosaicas" como uma crise das batatas, por exemplo - ou para contemplá-la através de um véu de "doçura e luz".

Hannah Arendt - A Crise na Cultura: Sua Importância Social e Política - Entre o Passado e o Futuro

Thursday, July 07, 2011

Quando voltamos a pensar nos padrões e regras objetivos de comportamento segundo os quais agimos na vida cotidiana, sem pensar muito e sem julgar muito no sentido de Kant, isto é, quando de fato subordinamos os casos particulares às regras gerais sem jamais questioná-las, surge a questão de saber se não há realmente nada a que se agarrar quando somos solicitados a decidir que isto é certo e isto é errado, assim como decidimos que isto é belo e isto é feio. E a resposta a essa questão é sim e não. Sim - se com isso queremos dizer padrões geralmente aceitos como existentes em toda comunidade com respeito a maneiras e convenções, isto é, com respeito aos mores da moralidade. As questões de certo e errado não são decididas como as maneiras à mesa, como se não estivesse em jogo senão uma conduta aceitável. Mas há realmente algo a que o senso comum, quando se eleva ao nível de julgar, pode se agarrar e na verdade se agarra, e esse elemento é o exemplo. Kant disse: "Os exemplos são o andador do julgamento" (Crítica da Razão Pura, B174), e ele também chamou o "pensamento representativo" presente no julgamento em que os elementos particulares não podem ser subsumidos a algo geral pelo nome de "pensamento exemplar". Não podemos nos agarrar a nada geral, mas a algum elemento particular que se tornou um exemplo. De certo modo, esse exemplo lembra o edifício esquemático que trago no espírito para reconhecer como edifícios todas as estruturas que abrigam algo ou alguém. Mas o exemplo em contraposição ao esquema, deve nos dar uma diferença de qualidade. Deixem-me ilustrar essa diferença com um exemplo exterior à esfera moral. Perguntamos: O que é uma mesa? Em resposta a essa questão, invocamos a forma ou o esquema (kantiano) de uma mesa presente em nossa imaginação, com relação à qual toda mesa deve se conformar para ser uma mesa. Vamos chamar isso de a mesa esquemática (que, aliás, é mais ou menos a mesma coisa que a mesa "ideal", a ideia de mesa em Platão). Ou podemos reunir todos os tipos de mesa, despojá-los de suas qualidades secundárias, como cor, número de pernas, material etc., até chegarmos às qualidades mínimas comuns a todas. Vamos chamar esse objeto de a mesa abstrata. Ou podemos finalmente escolher entre as melhores dentre todas as mesas que conhecemos ou podemos imaginar, e dizer: este é um exemplo de como as mesas deveriam ser construídas e como deveria ser o seu aspecto. Vamos chamar isso de mesa exemplar. O que fizemos foi escolher, eximere, um caso particular que então se torna  válido para outros casos particulares. A maioria das virtudes e vícios políticos são pensados em termos de indivíduos exemplares: Aquiles para coragem, Sólon para perspicácia (sabedoria) etc. Ou tome-se o exemplo do cesarismo ou bonapartismo: tomamos Napoleão ou César como um exemplo, isto é, como uma pessoa particular que exibe qualidades que são válidas para outros casos. Sem dúvida, aqueles que não sabem quem foram César ou Napoleão não podem compreender do que estamos falando se mencionamos o cesarismo ou o bonapartismo. Por isso a validade do conceito é restrita, mas dentro de suas restrições, ele é ainda assim válido.

Os exemplos, que são realmente o "andador" (go-cart) de todas as atividades de julgamento, constituem também, e de maneira especial, os sinais de orientação de todo pensamento moral. A amplitude com que a antiga afirmação, outrora muito paradoxal - é melhor sofrer o mal do que fazer o mal -, tem conquistado a concordância dos homens civilizados deve-se primariamente ao fato de que Sócrates deu um exemplo, e, assim, tornou-se exemplo para um certo modo de conduta e um certo modo de decidir entre o certo e o errado. Esta posição é recapitulada por Nietzsche - o último filósofo, somos tentados a pensar, que levou a sério as questões morais e que, portanto, analisou e pensou até o limite todas as posições morais anteriores. Ele disse o seguinte: "É uma desnaturação da moralidade separar o ato do agente, dirigir o ódio ou o desprezo contra o 'pecado' [o ato em vez do agente], acreditar que uma ação poderia ser boa ou má em si mesma. [... Em toda ação] tudo depende de quem a pratica, o mesmo 'crime' pode ser, num caso, o privilégio mais elevado e, noutro caso, o estigma [do mal]. Na verdade, é o apego a si daquele que julga que interpreta uma ação, ou melhor, o seu autor, com respeito à [...] semelhança ou 'não-afinidade' entre o agente e o juiz" (Vontade de poder, nº 292). Julgamos e distinguimos o certo do errado por termos presentes em nosso espírito algum incidente e alguma pessoa, ausentes no tempo ou no espaço, os quais se tornaram exemplos. Há muitos desses exemplos. Podem estar no passado remoto ou entre os vivos. Não precisam ser realidade histórica; como Jefferson certa vez observou: "O assassinato fictício de Duncan por Macbeth" provoca em nós "um horror tão grande da vilania quanto o assassinato real de Henrique IV", e um "senso vivo e duradouro de dever filial é incutido com mais eficácia num filho ou numa filha pela leitura de Rei Lear do que por todos os volumes áridos de ética e divindade que já foram escritos". (Isso é o que diz todo professor de ética e o que nenhum outro professor jamais deveria dizer).

Bem , obviamente não tenho nem o tempo nem provavelmente a capacidade de analisar todos os detalhes, isto é, de responder, mesmo da forma mais breve, a todas as perguntas que eu própria fiz durante essas quatro palestras. Só posso esperar que ao menos alguma indicação de como podemos pensar e nos mover nesses assuntos difíceis e urgentes tenha se tornado aparente. Como conclusão, permitam-me apenas mais dois comentários. De nossa discussão de hoje sobre Kant, espero que tenha se tornado mais claro porque propus, por meio de Cícero e Meister Eckhart, a questão de determinar com quem desejamos estar juntos. Tentei mostrar que as nossas decisões sobre o certo e o errado vão depender de nossa escolha da companhia, daqueles com quem desejamos passar a nossa vida. Uma vez mais, essa companhia é escolhida ao pensarmos em exemplos, em exemplos de pessoas mortas ou vivas, reais ou fictícias, e em exemplos de incidentes passados ou presentes. No caso improvável de que alguém venha nos dizer que preferiria o Barba Azul por companhia, tomando-o assim como seu exemplo, a única coisa que poderíamos fazer é nos assegurarmos de que ele jamais chegasse perto de nós. Mas receio que seja muito maior a probabilidade de que alguém venha nos dizer que não se importa com a questão e que qualquer companhia lhe será satisfatória. Em termos morais e até políticos, essa indiferença, embora bastante comum, é o maior perigo. Em conexão com isso, sendo apenas um pouco menos perigoso, está outro fenômeno moderno muito comum, a tendência difundida da recusa a julgar. A partir da recusa ou da incapacidade de estabelecer uma relação com os outros pelo julgamento surgem os skandala reais, os obstáculos reais que os poderes humanos não podem remover porque não foram causados por motivos humanos ou humanamente compreensíveis. Nisso reside o horror e, ao mesmo tempo, a banalidade do mal.

1965-6

Hannah Arendt - Algumas questões de filosofia moral* - Responsabilidade e Julgamento


* Curso ministrado por Hannah Arendt na New School for Social Research em 1965. No ano seguinte, Arendt ministrou um curso semelhante na Universidade de Chicago, intitulado "Questões morais básicas"

A reconstrução do tema dos direitos humanos elaborada com base em desenvolvimento ou sugestões contidas na obra de Hannah Arendt não leva a um sistema. Permite, no entanto, identificar problemas que são importantes e se tornaram relevantes em virtude da ruptura totalitária e dos seus desdobramentos. A identificação de tais problemas resulta de um juízo, uma faculdade da mente com que Hannah Arendt se preocupou – é, na verdade, um tema recorrente de sua reflexão – mas sobre a qual não chegou a escrever, e que seria o fecho de The Life of the Mind, seu último livro, publicado postumamente.

O juízo, entendido kantianamente como a faculdade de pensar o particular contido no geral, é um dos temas fundamentais do Direito, por ser uma das características da experiência jurídica moderna o processo através do qual o caso concreto é qualificado e subsumido pela norma geral. A lógica do razoável no pensamento jurídico explorou amplamente, em matéria de hermenêutica jurídica, as dificuldades da subsunção. Entretanto, sempre partiu do pressuposto de existir um geral, ao qual se possa razoavelmente recorrer por meio de interpretação. 

Precisamente porque articulou [...] a ruptura que dissolveu o geral, Hannah Arendt se deu conta da inexistência de um sistema de universais para aquilo que desborda da lógica do razoável. Por isso, toda a sua reflexão tem como horizonte o problema de como julgar um particular, para o qual não existe previamente o dado de um universal. Foi por essa razão que, diante das dificuldades do juízo determinante em situações-limite provenientes da impossibilidade de se aplicar uma regra universal de entendimento a um caso particular, ela explorou o campo dos juízos reflexivos e raciocinantes. Estes entreabrem a faculdade de pensar o particular, através de sua validade exemplar, que pode ser realçada e comunicada. 

O juízo reflexivo e raciocinante – que Kant examina na Crítica do Juízo – na análise da estética foi o ponto de partida heurístico de Hannah Arendt para unir a teoria à prática na sua proposta de reconstrução, como se vislumbra nas suas Lectures on Kant’s Political Philosophy, também publicadas postumamente sob os cuidados de Ronald Beiner. 

Tal proposta harmoniza-se com a sua visão [...] perante um mundo percebido centrifugamente, pois a importância dos juízos reflexivos e raciocinantes deriva da relação problemática entre o universal e o particular que a ruptura tornou evidente. Em síntese: precisamente porque o juízo, no mundo contemporâneo, não pode ser reduzido a uma fórmula inequívoca de subsunção é que se pode falar no seu peso e na sua responsabilidade. 

Hannah Arendt assumiu, com a sua obra, o ônus e a responsabilidade de juízos reflexivos e raciocinantes, que são esforços de mediação entre o particular e um universal fugidio. Ela nos convida a fazer a mesma coisa. Não é fácil aceitar tal convite, inclusive por força das limitações teóricas e práticas ao que se pode fazer com as indicações por ela deixadas a propósito do juízo. Estas indicações, no entanto, são suficientes para fundamentar por que uma reconstrução pós-totalitarismo do tema dos direitos humanos inspirada em Hannah Arendt só poderia ser tópica – e não sistemática –, mas que existe indiscutível validade nos problemas investigados com base em sua reflexão. 

Com efeito, e resumindo para a seguir concluir, quais são os temas de direitos humanos discutidos neste texto*, voltados para impedir a reemergência de um novo estado totalitário de natureza, e heuristicamente inspirados por um diálogo livre com o pensamento de Hannah Arendt? São eles: 

• a cidadania concebida com o “direito a ter direitos”, pois sem ela não se trabalha a igualdade que requer o acesso ao espaço público, pois os direitos – todos os direitos – não são dados (physei) mas construídos (nomoi) no âmbito de uma comunidade política; 

• a repressão ao genocídio concebido como um crime contra a humanidade e fundamentado na tutela da condição humana da pluralidade e da diversidade que o genocídio visa destruir;

• o estudo da obrigação política em conexão: com o direito de associação como a base do agir conjunto e condição de possibilidade da geração de poder; com a dimensão de autoridade e legitimidade da fundação do nós de uma comunidade política e a sua relação com o direito à autodeterminação dos povos; com o poder da promessa e conseqüentemente com o pacta sunt servanda enquanto base da obediência ao Direito; com a resistência à opressão, através da desobediência civil, que em situações-limite pode resgatar a obrigação política da destrutividade da violência; 

• o direito à informação, como condição essencial para a manutenção de um espaço público democrático, e o direito à intimidade, indispensável para a preservação do calor da vida humana na esfera privada. 

Todos estes temas são, penso eu, uma eloqüente e pertinente indicação da capacidade arendtiana de indicar caminhos teóricos a partir de problemas concretos. Daí os fermenta cognitionis dos tópicos abordados, derivados da experiência de ruptura, que revelam, pela sua validade exemplar, uma generalidade que de outra forma não poderia ser percebida.

ESTUDOS AVANÇADOS 11 (30), 1997

Celso Lafer, professor titular de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP, é chefe da missão do Brasil junto à ONU em Genebra e ex-ministro das Relações Exteriores do Brasil.


* A Reconstrução dos direitos humanos: a contribuição de Hannah Arendt. Hannah Arendt: Pensamento, Persuasão e Poder

Saturday, June 25, 2011

4.


3.

[...] Pensar e lembrar, dissemos, é o modo humano de deitar raízes, de cada um tomar seu lugar no mundo a que todos chegamos como estranhos. O que em geral chamamos de uma pessoa ou uma personalidade, distinta de um mero ser humano ou de um ninguém, nasce realmente desse processo que deita raízes. Nesse sentido, afirmei que é quase uma redundância falar de uma personalidade moral; sem dúvida, uma pessoa ainda pode ser de boa ou má índole, as suas inclinações podem ser generosas ou mesquinhas, ela pode ser agressiva ou dócil, franca ou dissimulada; pode ser dada a todos os tipos de vícios, assim como pode nascer inteligente ou estúpida, bela ou feia, amável ou um tanto rude. Tudo isso tem pouco a ver com as questões que nos preocupam nesse momento. Caso se trate de um ser pensante, arraigado em seus pensamentos e lembranças e, assim, conhecedor de que tem de viver consigo mesmo, haverá limites para o que se pode permitir fazer, e esses limites não lhe serão impostos de fora, mas auto-estabelecidos. Esses limites podem mudar de maneira considerável e desconfortavelmente de pessoa para pessoa, de país para país, de século para século: mas o mal ilimitado e extremo só é possível quando essas raízes cultivadas a partir do eu, que automaticamente limitam as possibilidades, estão inteiramente ausentes. Elas estão ausentes quando os homens apenas deslizam sobre a superfície dos acontecimentos, quando se deixam levar adiante sem jamais penetrarem em qualquer profundidade de que possam ser capazes. Certamente, essa profundidade também muda de pessoa para pessoa, de século para século, tanto na sua qualidade específica quanto nas suas dimensões. Sócrates acreditava que ensinando as pessoas como  pensar, como falar consigo mesmas, uma ação distinta da arte oratória de como persuadir e da ambição do sábio de ensinar o que  pensar e como aprender, ele melhoraria seus concidadãos; mas se aceitamos esse pressuposto e perguntamos a Sócrates quais seriam as sanções para aquele famoso crime oculto dos olhos dos deuses e dos homens, a sua resposta só poderia ter sido: a perda dessa capacidade, a perda de estar só, e, como tentei ilustrar, com ela a perda da criatividade - em outras palavras, a perda do eu que constitui a pessoa.

Hanna Arendt - Algumas questões de filosofia moral III - Responsabilidade e Julgamento

2.

Por fim, permitam-me lembrar-lhes um dos fenômenos mais assustadores em nossas experiências morais mais recentes. Suponho que todos os senhores já ouviram falar ao menos daqueles assassinos do Terceiro Reich que não só levavam uma impecável vida familiar, como gostavam de passar o seu tempo de lazer lendo Hölderlin e escutando Bach, provando (como se houvesse falta de provas a esse respeito) que os intelectuais podem ser tão facilmente induzidos ao crime quanto qualquer outra pessoa. Mas a sensibilidade e um gosto pelas assim chamadas coisas elevadas da vida não são capacidades do espírito? Sem dúvida, mas a capacidade de apreciação não tem nada a ver com o pensamento, que, devemos lembrar, é uma atividade, e não o desfrute passivo de algo. Na medida em que o pensamento é uma atividade, ele pode ser traduzido em produtos, em coisas como poemas, música ou pinturas. Todas as coisas desse tipo são realmente coisas do pensamento, assim como a mobília e os objetos de nosso uso diário são corretamente chamados objetos de uso: uns são inspirados pelo pensamento e os outros são inspirados pelo uso, por alguma necessidade e carência humana. O ponto importante sobre esses assassinos altamente cultos é que nem um único deles compôs um poema digno de ser lembrado, uma música digna de ser escutada, ou pintou um quadro que alguém gostaria de dependurar nas suas paredes. Sem dúvida, é necessário mais do que o pleno exercício da capacidade de pensar (thoughtfulness) para compor um bom poema, uma música ou pintar um quadro - é necessário um talento especial. Mas nenhum talento suportará a perda de integridade que experimentamos quando perdemos essa capacidade muito comum de pensar e lembrar.

Hannah Arendt - Algumas questões de filosofia moral II - Responsabilidade e Julgamento

1.

A primeira coisa que nos chama a atenção nos diálogos socráticos de Platão é que são todos aporéticos. A argumentação ou não leva a lugar nenhum ou anda em círculos.

[...] Nenhum dos logoi, os argumentos, jamais fica parado; movem-se ao redor porque Sócrates, ao fazer perguntas para as quais ele não sabe as respostas, coloca-os em movimento. E quando as afirmações perfazem o círculo completo é em geral Sócrates que, com prazer, propõe começar tudo de novo [...]

[...] Entretanto, Sócrates, de quem comumente se diz que teria acreditado na possibilidade de ensinar a virtude, parece ter sustentado de fato que falar e pensar sobre a piedade, a justiça, a coragem e tudo o mais, poderia tornar os homens mais piedosos, mais justos, mais corajosos, mesmo que não lhes fossem dadas definições ou "valores" para orientar a sua conduta posterior. Aquilo em que Sócrates realmente acreditava a respeito dessas questões pode ser mais bem ilustrado pelas comparações que aplicava a si mesmo. Ele se chamava de moscardo e parteira, e, segundo Platão, foi chamado por outra pessoa de "arraia-elétrica", um peixe que paralisa e entorpece pelo contato, uma semelhança cuja propriedade ele reconheceu sob condição de que fosse compreendido que "a arraia-elétrica só paralisa os outros por estar ela própria paralisada. Não é que, sabendo eu próprio as respostas, deixe perplexas as outras pessoas. A verdade é, antes, que também as infecto com a perplexidade que eu próprio sinto". O que, sem dúvida, resume com muita clareza a única maneira em que o pensamento pode ser ensinado - exceto que Sócrates, como ele disse repetidas vezes, não ensinava nada pela simples razão de que nada tinha para ensinar; ele era "estéril" como as parteiras na Grécia, que já tinham passado da idade de dar à luz.

[...] Sócrates (comparado a) um moscardo [...] sabe como provocar os cidadãos que, sem ele, "continuarão a dormir calmamente pelo resto da vida", a menos que apareça outra pessoa para voltar a despertá-los. E a que ele os provoca? A pensar, a examinar as questões, uma atividade sem a qual a vida, segundo ele, não só não valia muito a pena como não era plenamente viva.

[..] Parece que ele, ao contrário dos filósofos profissionais, sentia-se impelido a verificar se os seus semelhantes partilhavam as suas perplexidades - e esse impulso é totalmente diferente da inclinação a encontrar soluções para enigmas para então demonstrá-las aos outros.

Hannah Arendt - Pensamento e considerações morais - Responsabilidade e Julgamento