Friday, October 09, 2020

Barra 69

Quando penso no número de pessoas que morreram em prisões brasileiras a partir de 68 (e que foi pequeno se comparado ao número de vítimas argentinas ou chilenas da década seguinte); quando penso os que sofreram tortura física, ou nos que foram expulsos do país em 64 e só puderam voltar na anistia em 79, concluo que minha prisão de dois meses foi um episódio que nem sequer mereceria referência. Muitos dos que sofreram maiores maus-tratos - ou que foram presos mais vezes e por mais tempo - passam rápido pelo assunto, muitas vezes em tom de descaso. O próprio Gil não tem dos dias de cela e xadrez uma lembrança tão amarga ou tão recorrente quanto a minha. Tendo percebido cedo que algo assim poderia acontecer, e em tudo mais adulto do que eu, em vez de simplesmente se sentir aniquilado, pôde ao menos tentar transformar a experiência em algo produtivo para sua formação. Na cadeia ele achou oportunidade para exercitar uma espécie de ascetismo, deixou de comer carne, adivinhou sabedorias orientais que o levaram a estudos posteriores e à alimentação macrobiótica. Esta última, literalmente, mudou sua vida: seu corpo, sua pele, seu temperamento mudaram para melhor e para sempre. Enquanto eu apenas descobria que o sofrimento não serve para absolutamente nada. As muitas páginas que aqui dediquei ao episódio da prisão se explicam por ser este um livro sobre a experiência tropicalista vista de um ângulo muito pessoal meu. E se justificam por revelar o quanto eu era psicológica e, sobretudo, politicamente imaturo.

Caetano Veloso. Parte IV. Barra 69. Verdade Tropical, 1997.

A Tortura Política

A tortura política em nenhum caso é mero procedimento técnico, crispação de urgência numa corrida contra o tempo, destinada à coleta fulminante de informações.

 Expressão tenebrosa da patologia de todo um sistema social e político, ela visa à destruição do sujeito humano, na essência de sua carnalidade mais concreta. 

A tortura reivindica, em sua empreitada nefanda, uma rendição do sujeito na qual estejam empenhados nervos, carne, sangue, ossos e tendões: cabeça, tronco e membros.

Para tanto, a tortura busca, à custa do sofrimento corporal insuportável, introduzir uma cunha que leve à cisão entre o corpo e a mente. E, mais do que isto: ela procura, a todo preço, semear a discórdia e a guerra entre o corpo e a mente. Através da tortura, o corpo se torna nosso inimigo, e nos persegue. É este o modelo básico no qual se apoia a ação de qualquer torturador. 

O corpo é a nossa casa, pela qual nos plantamos no mundo. Ao mesmo tempo que a habitamos, suas vigas, paredes, tubulações e aposentos fazem parte de nós, e nos constituem. Sem um mínimo de solidariedade do corpo próprio para conosco, ficamos não apenas desabrigados, expostos a um duro e frio relento, mas literalmente sem chão, sem apoio elementar, entregues às ansiedades inconscientes mais primitivas.

A tortura destrói a totalidade constituída por corpo e mente, ao mesmo tempo que joga o corpo contra nós, sob forma de um adversário do qual não podemos fugir, a não ser pela morte. A tortura transforma nosso corpo - aquilo que temos de mais íntimo - em nosso torturador, aliado aos miseráveis que nos torturam. 

Esta é a monstruosa subversão pretendida pela tortura. Ela nos racha ao meio e, no centro desta esquizofrenia, produzida em dor e sangue, crava a sua bandeira de desintegração, terror e discórdia.

O corpo, na tortura, nos acua, para que nos neguemos enquanto sujeitos humanos, fiéis aos valores que compõem nosso sistema de crenças. Ele se volta contra nós, na medida em que exige de nós uma capitulação que, uma vez consumada, nos degradaria. É esta, não obstante, a primitiva, a destrutiva e desesperada demanda que o corpo nos faz. O corpo, sob tortura, nos tortura, exigindo de nós que o libertemos da tortura, seja a que preço for. Ele se torna, portanto, aquém de quaisquer valores, numa faixa de realidade psíquica anterior às mais mínimas exigências da ética e da honra, o porta-voz dos torturadores, aliado destes na sinistra empreitada que nos quer anular enquanto dação e da violência (sic), é a palavra aviltada de um sujeito que, nas mãos do torturador, se transforma em objeto.

Ao quebrar-se frente à tortura, o torturado consuma - e assume - uma cisão que lhe rouba o uso e o gozo pacíficos do seu corpo . A ausência de sofrimento corporal, ao preço da confissão que lhe foi extorquida, lhe custa a amargura de sentir-se traidor, traído pelo próprio corpo. Sua carne apaziguada testemunha e denuncia a negação de si mesmo, enquanto pessoa.

A tortura, quando vitoriosa, opera no sentido de transformar sua vítima numa desgraçada - e degradada - espectadora de sua própria ruína.

Por isto, o torturado não pode falar, embora esta seja uma exigência quase sobre-humana. Sua não-fala, ou a fala do despistamento, constituem, na tortura, o discurso do herói. Um tal silêncio, no entanto, vai provocar o recrudescimento da violência e o risco da morte física. 

Se o torturado não fala, pode morrer fisicamente. Se fala, e confessa, sucumbe a uma discórdia fundamental e morre como pessoa. Ao torturado, na tortura, só resta a saída - inimaginavelmente difícil - do silêncio. Através dela, garante e afirma, em grau heróico, a sua integridade de pessoa, pela realização de um valor supremo.

O torturador, este não tem saída nenhuma. Quando consegue êxito - e esta é a sua melhor hipótese -, o torturador, à semelhança da hiena, passa a alimentar-se de um cadáver. A confissão do torturado significa o seu assassinato enquanto pessoa. O torturador vitorioso tem, portanto, nas garras e nos dentes, os despojos massacrados de um sujeito humano. Ele vive da morte - e na morte. Sem interlocução, ausente de qualquer diálogo vivo, o torturador determina sua essência a partir do supremo aviltamento do Próximo e, nesta medida, ao constituir-se, se avilta. Para que se afirme, o torturador tem que negar, radicalmente, a pessoa do torturado. Ele cresce, e passa a existir, na exata proporção em que sua vítima se anula. Sem alteridade genuína, o ser humano não se funda enquanto tal. É este o caso do torturador, mesmo na melhor de suas hipóteses, isto é: quando o torturado fala. Na pior delas, frente ao silêncio do torturado, o torturador se reduz a nada. Necrófilo, a ereção da pessoa, nele, tem como pedra fundamental a morte do Outro. Se este se nega a morrer, morre o torturador. Sua afirmação depende, de maneira absoluta, da negação de sua vítima.”

Hélio Pellegrino - A Burrice do Demônio. Ed. Rocco, 1989.