Showing posts with label Sobre leituras. Show all posts
Showing posts with label Sobre leituras. Show all posts

Saturday, August 06, 2011

Eis o que aconteceu a ele. Quando foi almoçar, passou por um prédio de escritórios que estava em construção, só havia o esqueleto. Uma viga ou algo assim despencou de oito ou dez andares e veio se estatelar na calçada, bem ao lado de Flitcraft. Passou raspando por ele, mas não o tocou, embora uma lasca da calçada tenha se soltado e voado de encontro à sua bochecha. Só tirou um pedacinho de pele mas ele ainda trazia a cicatriz, quando o vi. Ele a esfregou com o dedo, digamos assim, carinhosamente, enquanto me contava a história. Ficou paralisado de medo, na hora, disse ele, mas na verdade ficou mais chocado do que propriamente assustado. Sentia-se como se alguém tivesse levantado a tampa da vida e tivesse deixado que ele visse o seu mecanismo interno.

Flitcraft fora um bom cidadão, um bom marido e um bom pai, não por pressão externa, mas simplesmente porque era um homem que se sentia plenamente à vontade quando estava em harmonia com seu ambiente. Tinha sido criado assim. As pessoas que ele conhecia eram assim, também. A vida que ele conhecia era uma coisa limpa, sadia, ordeira e responsável. De repente, uma viga que havia despencado lhe mostrou que a vida não era, no fundo, nenhuma dessas coisas. Ele, o bom cidadão, marido e pai, podia ser varrido do mundo, no caminho entre o escritório e o restaurante, por conta de um acidente com uma viga que cai. Compreendeu então que os homens morriam aleatoriamente, sem mais nem menos, e só se mantinham vivos enquanto o acaso cego os poupava.

Não foi, em princípio, a injustiça dessa situação que o perturbou: ele aceitou o fato após o primeiro choque. O que o perturbou foi a descoberta de que, ao organizar suas coisas de maneira sensata, perdera o compasso da vida, em vez de acertar o passo com ela. Flitcraft contou que, antes de se afastar vinte passos da viga tombada, já havia entendido que nunca mais teria paz, a menos que se adaptasse a essa nova maneira de ver a vida. Quando terminou de almoçar, já havia descoberto os meios para levar a efeito essa adaptação. A vida, para ele, podia chegar ao fim aleatoriamente, graças à queda de uma viga: já que era assim, mudaria de vida aleatoriamente, simplesmente indo embora dali. Flitcraft amava sua família, disse ele, tanto quanto julgava ser o normal, mas sabia que os estava deixando bem amparados e seu amor por eles não era do tipo que tornasse sua ausência algo doloroso.

- Ele partiu para Seattle, naquela tarde - disse Spade - e dali, de barco, foi para San Francisco. Durante alguns poucos anos, perambulou por vários lugares e acabou voltando para o noroeste, fixou residência em Spokane e se casou. Sua segunda esposa não se parecia com a primeira, mas tinham mais semelhanças do que diferenças. Você sabe, o tipo de mulher que joga golfe e bridge sem trapacear e que gosta de colecionar receitas de salada. Flitcraft não lamentava o que tinha feito. Parecia bastante razoável, para ele. Creio que nem sequer tinha ideia de que voltara naturalmente para a mesma rotina da qual havia escapulido, em Tacoma. Mas essa é a parte da história de que sempre gostei. Ele se adaptou a vigas que caem do nada, mas depois não caiu mais viga nenhuma, e ele se adaptou às circunstâncias de elas não caírem mais.

Dashiell Hammett - O Falcão Maltês

Wednesday, July 27, 2011

Pilha de livros de julho - consultas e leituras

M. A. Moreira e E. S. Masini - Aprendizagem Significativa: A Teoria de David Ausubel

Hannah Arendt - Responsabilidade e Julgamento

Celso Lafer - Hannah Arendt: Pensamento, Persuasão e Poder

James Joyce - Retrato do Artista Quando Jovem

Maurice Merleau-Ponty - Fenomenologia da Percepção / O Visível e o Invisível

Clement Greenberg - Estética Doméstica

Ricardo Alexandre - Nem Vem que Não Tem: A Vida e o Veneno de Wilson Simonal

Gay Talese - Vida de Escritor

Lorenzo Mammì - Espaços da Arte Brasileira / Volpi

Dashiel Hammett - O Falcão Maltês (para Agosto)

Herman Melville - Billy Budd (para Agosto)

Sunday, July 24, 2011

6.

Em consideração às deficiências de minha mãe na cozinha, meu pai muitas noites nos levava ao restaurante de um pequeno hotel em nossa comunidade, a uma pousada do outro lado da baía ou a um de seus restaurantes italianos preferidos em Atlantic City, onde normalmente éramos recebidos, atendidos e servidos de uma maneira que encerrava agradavelmente o dia.

[...] Nos restaurantes ele se tornava outra pessoa, era menos distante, menos tenso, mais amável e comunicativo do que em qualquer outra ocasião, fosse em nosso apartamento ou quando trabalhava nos fundos da butique de minha mãe, na sala de consertos, onde ele passava os dias encompridando ou encurtando vestidos, ou fazendo um terno para alguns dos homens, cada vez mais raros, que valorizavam sua competência e se dispunham a pagar o alto preço de uma roupa feita sob medida.

[...] Nesse período de minha vida eu tive dois pais: um pai de casa e um pai de restaurante. Só com este eu era feliz como filho. E durante meus anos escolares, sobretudo quando me sentia um péssimo estudante, eu me via entrando para o ramo de restaurantes algum dia, dono de um restaurante italiano que atrairia homens como meu pai e poria risos na vida deles [...].

[...] Pelo que eu li nas colunas de jornal de Walter Winchell e Leonard Lyons, ter um restaurante de sucesso era um caminho fácil e seguro para conquistar reconhecimento e prosperidade, uma oportunidade de se tornar uma celebridade entre as celebridades, como fora Toots Shor para os heróis do esporte nos Estados Unidos, Vincenti Sardi para as principais estrelas da Broadway e o que eram os gerentes do Club "21" para os magnatas da nação e suas esposas, exibidas como troféus.

Muito tempo depois que meus sonhos de ser restaurateur se desfizeram e eu me transformei num escritor que ia a restaurantes como meio de fuga da solidão - meu pai certamente sofria do mesmo mal quando costurava - tornei-me um frequentador noturno não só dos lugares da vizinhança, mas de estabelecimentos renomados, como o Club "21", onde logo me habituei aos apertos de mãos e tapinhas nas costas dos proprietários toda vez que eu entrava, pois esse é, sem dúvida, um dos lugares de Nova York onde se cumprimenta com maior efusão. O cliente fiel é acolhido não somente por um simples recepcionista, mas por uma verdadeira comitiva de recepção, integrada por cavalheiros reverentes e bajuladores, que em outros tempos poderiam ter servido ao Rei Sol em Versalhes. No começo eu pensava que o corredor do Club "21" estava sempre povoado de recepcionistas e aduladores, mas logo me ocorreu que esse restaurante não havia prosperado por mais de sessenta anos subestimando a insegurança de seus principais clientes. Na verdade, era provável que seus donos bem soubessem que muitos dos clientes que pagavam contas altas com verbas de representação sentiam que de um momento para outro poderiam perder seus altos postos em grandes empresas, e quando isso acontecesse perderiam sua disputada mesa ao lado da parede esquerda do salão. Mas enquanto  isso não acontecia, eles e os recepcionistas transmitiam segurança recíproca com seus apertos de mãos e abraços, que vinculavam a administração do restaurante à administração do poder e da riqueza da nação.

Assim, no Club "21", eu via em grande escala aquilo que já tinha vislumbrado quando menino em Nova Jersey: restaurantes como salões de deferências, honrarias e autoafirmação. E me abandonei ao prazer do que eles tinham a oferecer, que para mim não era o que aparecia no cardápio, e sim as imagens e sons circundantes, que me transportavam para fora de mim mesmo, o salpico mágico de certa especiaria na gestalt que me elevava a níveis de resposta e fruição que eu muitas vezes experimentava quando ia ao teatro.

Gay Talese - Vida de Escritor

Saturday, July 09, 2011

[...] A palavra é "filisteísmo". Sua origem, um pouco mais antiga que seu emprego específico, não possui grande importância; ela foi utilizada a princípio, no jargão universitário alemão, para distinguir burgueses de togados; a associação bíblica já indicava, porém, um inimigo numericamente superior e em cujas mãos se pode cair. Quando foi usado pela primeira vez como termo [...] designava uma mentalidade que julgava todas as coisas em termos de utilidade imediata e de "valores" materiais, e que, por conseguinte, não tinha consideração alguma por objetos e ocupações inúteis tais como os implícitos na cultura e na arte.

[...] o status objetivo do mundo cultural, na medida em que contém coisas tangíveis - livros e pinturas, estátuas, edifícios e música - compreende e testemunha todo o passado registrado de países, nações e, por fim, da humanidade. Como tais, o único critério não-social e autêntico para o julgamento desses objetos especificamente culturais é sua permanência relativa e mesmo sua eventual imortalidade. Somente o que durará através dos séculos pode se pretender em última instância um objeto cultural. O ponto crucial da questão é que tão logo as obras imortais do passado se tornam objeto de refinamento social e individual e do status correspondente, perdem sua qualidade mais importante e elementar, qual seja, a de apoderar-se do leitor ou espectador, comovendo-o durante os séculos.

[..] O que irritava no filisteu educado não era que lesse os clássicos, mas que ele o fizesse movido pelo desejo dissimulado de auto-aprimoramento, continuando completamente alheio ao fato de que Shakespeare ou Platão pudessem ter a dizer-lhes coisas mais importantes do que a maneira de se educar; o lamentável era que ele escapasse para uma região de "pura poesia" para manter a realidade fora de sua vida - coisas "prosaicas" como uma crise das batatas, por exemplo - ou para contemplá-la através de um véu de "doçura e luz".

Hannah Arendt - A Crise na Cultura: Sua Importância Social e Política - Entre o Passado e o Futuro

Thursday, July 07, 2011

Quando voltamos a pensar nos padrões e regras objetivos de comportamento segundo os quais agimos na vida cotidiana, sem pensar muito e sem julgar muito no sentido de Kant, isto é, quando de fato subordinamos os casos particulares às regras gerais sem jamais questioná-las, surge a questão de saber se não há realmente nada a que se agarrar quando somos solicitados a decidir que isto é certo e isto é errado, assim como decidimos que isto é belo e isto é feio. E a resposta a essa questão é sim e não. Sim - se com isso queremos dizer padrões geralmente aceitos como existentes em toda comunidade com respeito a maneiras e convenções, isto é, com respeito aos mores da moralidade. As questões de certo e errado não são decididas como as maneiras à mesa, como se não estivesse em jogo senão uma conduta aceitável. Mas há realmente algo a que o senso comum, quando se eleva ao nível de julgar, pode se agarrar e na verdade se agarra, e esse elemento é o exemplo. Kant disse: "Os exemplos são o andador do julgamento" (Crítica da Razão Pura, B174), e ele também chamou o "pensamento representativo" presente no julgamento em que os elementos particulares não podem ser subsumidos a algo geral pelo nome de "pensamento exemplar". Não podemos nos agarrar a nada geral, mas a algum elemento particular que se tornou um exemplo. De certo modo, esse exemplo lembra o edifício esquemático que trago no espírito para reconhecer como edifícios todas as estruturas que abrigam algo ou alguém. Mas o exemplo em contraposição ao esquema, deve nos dar uma diferença de qualidade. Deixem-me ilustrar essa diferença com um exemplo exterior à esfera moral. Perguntamos: O que é uma mesa? Em resposta a essa questão, invocamos a forma ou o esquema (kantiano) de uma mesa presente em nossa imaginação, com relação à qual toda mesa deve se conformar para ser uma mesa. Vamos chamar isso de a mesa esquemática (que, aliás, é mais ou menos a mesma coisa que a mesa "ideal", a ideia de mesa em Platão). Ou podemos reunir todos os tipos de mesa, despojá-los de suas qualidades secundárias, como cor, número de pernas, material etc., até chegarmos às qualidades mínimas comuns a todas. Vamos chamar esse objeto de a mesa abstrata. Ou podemos finalmente escolher entre as melhores dentre todas as mesas que conhecemos ou podemos imaginar, e dizer: este é um exemplo de como as mesas deveriam ser construídas e como deveria ser o seu aspecto. Vamos chamar isso de mesa exemplar. O que fizemos foi escolher, eximere, um caso particular que então se torna  válido para outros casos particulares. A maioria das virtudes e vícios políticos são pensados em termos de indivíduos exemplares: Aquiles para coragem, Sólon para perspicácia (sabedoria) etc. Ou tome-se o exemplo do cesarismo ou bonapartismo: tomamos Napoleão ou César como um exemplo, isto é, como uma pessoa particular que exibe qualidades que são válidas para outros casos. Sem dúvida, aqueles que não sabem quem foram César ou Napoleão não podem compreender do que estamos falando se mencionamos o cesarismo ou o bonapartismo. Por isso a validade do conceito é restrita, mas dentro de suas restrições, ele é ainda assim válido.

Os exemplos, que são realmente o "andador" (go-cart) de todas as atividades de julgamento, constituem também, e de maneira especial, os sinais de orientação de todo pensamento moral. A amplitude com que a antiga afirmação, outrora muito paradoxal - é melhor sofrer o mal do que fazer o mal -, tem conquistado a concordância dos homens civilizados deve-se primariamente ao fato de que Sócrates deu um exemplo, e, assim, tornou-se exemplo para um certo modo de conduta e um certo modo de decidir entre o certo e o errado. Esta posição é recapitulada por Nietzsche - o último filósofo, somos tentados a pensar, que levou a sério as questões morais e que, portanto, analisou e pensou até o limite todas as posições morais anteriores. Ele disse o seguinte: "É uma desnaturação da moralidade separar o ato do agente, dirigir o ódio ou o desprezo contra o 'pecado' [o ato em vez do agente], acreditar que uma ação poderia ser boa ou má em si mesma. [... Em toda ação] tudo depende de quem a pratica, o mesmo 'crime' pode ser, num caso, o privilégio mais elevado e, noutro caso, o estigma [do mal]. Na verdade, é o apego a si daquele que julga que interpreta uma ação, ou melhor, o seu autor, com respeito à [...] semelhança ou 'não-afinidade' entre o agente e o juiz" (Vontade de poder, nº 292). Julgamos e distinguimos o certo do errado por termos presentes em nosso espírito algum incidente e alguma pessoa, ausentes no tempo ou no espaço, os quais se tornaram exemplos. Há muitos desses exemplos. Podem estar no passado remoto ou entre os vivos. Não precisam ser realidade histórica; como Jefferson certa vez observou: "O assassinato fictício de Duncan por Macbeth" provoca em nós "um horror tão grande da vilania quanto o assassinato real de Henrique IV", e um "senso vivo e duradouro de dever filial é incutido com mais eficácia num filho ou numa filha pela leitura de Rei Lear do que por todos os volumes áridos de ética e divindade que já foram escritos". (Isso é o que diz todo professor de ética e o que nenhum outro professor jamais deveria dizer).

Bem , obviamente não tenho nem o tempo nem provavelmente a capacidade de analisar todos os detalhes, isto é, de responder, mesmo da forma mais breve, a todas as perguntas que eu própria fiz durante essas quatro palestras. Só posso esperar que ao menos alguma indicação de como podemos pensar e nos mover nesses assuntos difíceis e urgentes tenha se tornado aparente. Como conclusão, permitam-me apenas mais dois comentários. De nossa discussão de hoje sobre Kant, espero que tenha se tornado mais claro porque propus, por meio de Cícero e Meister Eckhart, a questão de determinar com quem desejamos estar juntos. Tentei mostrar que as nossas decisões sobre o certo e o errado vão depender de nossa escolha da companhia, daqueles com quem desejamos passar a nossa vida. Uma vez mais, essa companhia é escolhida ao pensarmos em exemplos, em exemplos de pessoas mortas ou vivas, reais ou fictícias, e em exemplos de incidentes passados ou presentes. No caso improvável de que alguém venha nos dizer que preferiria o Barba Azul por companhia, tomando-o assim como seu exemplo, a única coisa que poderíamos fazer é nos assegurarmos de que ele jamais chegasse perto de nós. Mas receio que seja muito maior a probabilidade de que alguém venha nos dizer que não se importa com a questão e que qualquer companhia lhe será satisfatória. Em termos morais e até políticos, essa indiferença, embora bastante comum, é o maior perigo. Em conexão com isso, sendo apenas um pouco menos perigoso, está outro fenômeno moderno muito comum, a tendência difundida da recusa a julgar. A partir da recusa ou da incapacidade de estabelecer uma relação com os outros pelo julgamento surgem os skandala reais, os obstáculos reais que os poderes humanos não podem remover porque não foram causados por motivos humanos ou humanamente compreensíveis. Nisso reside o horror e, ao mesmo tempo, a banalidade do mal.

1965-6

Hannah Arendt - Algumas questões de filosofia moral* - Responsabilidade e Julgamento


* Curso ministrado por Hannah Arendt na New School for Social Research em 1965. No ano seguinte, Arendt ministrou um curso semelhante na Universidade de Chicago, intitulado "Questões morais básicas"

Monday, July 04, 2011

Nos seus comentários, Arendt indicou que "o caráter imperecível" das obras de arte aplicada, o fato de que podemos julgá-las e realmente as julgamos belas depois de centenas ou milhares de anos, introduz a durabilidade do passado e com isso a estabilidade do mundo em nossa experiência. Mas, ao contrário das artes aplicadas que sustentam a estrutura do mundo, a ação, sem nenhum plano ou paradigma, o modifica. A ação, como testemunha o século XX, demonstra a fragilidade e a maleabilidade do mundo que ronda a liberdade abissal da vontade. No entanto, segundo Arendt, apesar de sua contingência "acidental" e "caótica", depois de terminada, pode-se contar uma história que "dá sentido" à ação. Como, perguntava ela, isso é possível? Em oposição aos filósofos da história, que tipicamente lêem progresso ou declínio nos resultados da ação, o interesse de Arendt era pela ação livre, cujos resultados são desconhecidos enquanto está sendo desempenhada. Se a faculdade de julgamento se mantém afastada da ação para adaptá-la a uma história, deve operar também naquele que age, que Arendt gostava de comparar a um ator, um artista. Embora a interpretação do agente desapareça assim que termina, enquanto perdura ela "ilumina" o princípio que a inspira. Espontaneamente, aquele que age julga esse princípio adequado para aparecer no mundo: ele lhe agrada, e sua ação é um apelo a outros, um pedido de que também lhes agrade. O agente, ocupado demais para pensar enquanto está agindo, não é irracional, e toda a atividade mental, segundo Arendt, torna a refletir sobre si mesma. Ao contrário do pensar e do querer, entretanto, o julgar está estreitamente ligado ao sentido que lhe corresponde, isto é, ao gosto. A reflexividade do julgar é qualificada pelo "agrada" ou "não agrada" do gosto, e quando o julgamento reflete o gosto de outros que julgam, transcende-se o imediatismo do próprio gosto daquele que julga. O ato de julgar transforma o gosto, o mais subjetivo de nossos sentidos, no senso comum especificamente humano que orienta os homens, homens que julgam, no mundo.

O julgamento, portanto, é uma espécie de atividade de equilíbrio, "congelada" na figura das balanças da justiça que pesam a estabilidade do mundo, em que o seu passado é presente, contra a renovação do mundo, a sua abertura à ação, mesmo que ela possa abalar a própria estrutura do mundo. [...] Com algum grau de confiança, pode-se dizer que a capacidade de pensar [...] é a precondição do julgar, e que a recusa e a incapacidade de julgar, de imaginar diante dos olhos os outros a quem o julgamento representa e reage, convidam o mal a entrar e infeccionar o mundo. Também se pode dizer que a faculdade de julgamento, ao contrário da vontade, não contradiz a si mesma: a capacidade de formular um julgamento não está separada de sua expressão, de fato são virtualmente a mesma coisa no discurso e na ação. [...] Seria possível dizer que o fenômeno da consciência é verdadeiro ao dar ouvidos e prestar atenção às vozes dos vivos, e dos que já não são ou ainda não são vivos, que partilham em comum um mundo duradouro e mutuamente agradável, cuja possibilidade tanto instiga o julgamento como é o seu resultado. Também se poderia dizer que a capacidade de reagir julgando imparcialmente - apreciando e tratando com consideração todos os pontos de vista possíveis - a adequação ou inadequação de certos fenômenos particulares que aparecerem no mundo une de forma inconsútil a política e a moralidade na esfera da ação. [...] Finalmente, talvez se possa perguntar: Arendt não estava se referindo ao poder estritamente moral do julgamento, quando [...] escreveu que julgar "pode realmente impedir catástrofes, pelo mesmo para mim mesma, nos raros momentos em que as cartas estão abertas sobre a mesa"?

Jerome Kohn, professor da New School for Social Research e diretor do Centro Hannah Arendt, na mesma instituição. Assistente de pesquisa de Hannah Arendt na New School. Responsável pela edição e publicação de seus inéditos. Introdução à edição americana - Responsabilidade e Julgamento,  pgs. 27, 28 e 29.

Saturday, July 02, 2011

Mencionei o colapso total dos padrões morais e religiosos entre pessoas que, segundo todas as aparências, sempre tinham acreditado firmemente nesses padrões, e também mencionei o fato inegável de que os poucos que conseguiram não ser tragados pelo redemoinho não foram de modo algum os "moralistas", pessoas que sempre apoiaram as regras da conduta certa, mas, ao contrário, foram muito frequentemente aqueles que tinham sido convencidos, mesmo antes da débâcle, da não-validade objetiva desses padrões per se. Assim, teoricamente, nós nos descobrimos hoje na mesma situação em que o século XVIII se descobriu com respeito aos meros julgamentos de gosto. Kant se indignava que a questão da beleza fosse decidida arbitrariamente, sem possibilidade de discussão e acordo mútuo, no espírito do  de gustibus non disputandum est. De maneira bastante frequente, mesmo em circunstâncias que estão muito longe de qualquer indicação catastrófica, nos descobrimos hoje exatamente na mesma posição no que diz respeito às discussões de questões morais. Assim, vamos retornar a Kant.

1.

O senso comum para Kant não significava um sentido comum para todos nós, mas, estritamente, aquele sentido que nos ajusta a uma comunidade formada com os outros, que nos torna seus membros e capacita-nos a comunicar as coisas dadas pelos nossos cinco sentidos. Ele cumpre essa tarefa com a ajuda de outra faculdade, a faculdade da imaginação (para Kant a faculdade mais misteriosa). A imaginação ou representação designa a minha capacidade de ter no espírito a imagem de algo que não está presente. A representação torna presente o que está ausente - por exemplo, a ponte George Washington. Mas embora eu possa evocar a ponte que está distante do olho de meu espírito, tenho realmente duas imaginações ou representações no espírito: primeiro, essa ponte particular que já vi muitas vezes, e segundo, uma imagem esquemática de ponte pela qual posso reconhecer e identificar qualquer ponte, inclusive a mencionada, como sendo uma ponte. Essa segunda ponte esquemática nunca aparece diante de meus olhos corpóreos; no momento em que a coloco no papel torna-se uma ponte particular, deixa de ser um mero esquema. Ora, a mesma capacidade representativa sem a qual nenhum conhecimento seria possível estende-se às outras pessoas, e os esquemas que aparecem no conhecimento se tornam exemplos no julgamento. O senso comum, em virtude de sua capacidade imaginativa, pode ter presente em si mesmo todos aqueles que de fato estão ausentes. Pode pensar, como diz Kant, no lugar de todos os outros, de modo que quando alguém faz um julgamento - isto é belo - ele não quer dizer meramente que isso me agrada (como se, por exemplo, sopa de galinha pudesse ser do meu gosto, mas não ser do gosto de outros), mas ele reivindica a aprovação dos outros porque no ato de julgar já os levou em consideração e, por isso, espera que seus julgamentos venham conter uma certa validade geral, ainda que talvez não universal. A validade vai se estender a toda a comunidade da qual o meu senso comum se torna membro - Kant, que se julgava um cidadão do mundo, esperava que se estendesse à comunidade de toda a humanidade. Kant dá a isso o nome de "mentalidade alargada", querendo dizer que sem esse acordo o homem não está preparado para a interação civilizada. O aspecto importante da questão é que meu julgamento de um caso particular não depende meramente da minha percepção, mas de representar para mim mesmo algo que não percebo. Deixem-me ilustrar esse ponto: vamos supor que eu veja uma moradia específica na favela e perceba nessa construção particular a noção geral que ela não exibe diretamente, a noção de pobreza e miséria. Chego a essa noção ao representar para mim mesmo como me sentiria se tivesse de viver ali, isto é, tento pensar no lugar do morador da favela. O julgamento a que vou chegar não será necessariamente igual ao dos habitantes, a quem o tempo e a falta de esperança podem ter embotado qualquer sensibilidade à afronta de sua condição, mas vai se tornar um exemplo marcante para os meus julgamentos posteriores dessas questões. Além disso, embora ao julgar eu leve em consideração os outros, isso não significa que me adapte em meu julgamento ao julgamentos dos outros. Ainda falo com a minha própria voz e não conto votos para chegar ao que penso ser certo. Mas o meu julgamento já não é subjetivo, no sentido de que chegaria às minhas conclusões levando apenas a mim mesma em consideração.

Hannah Arendt - Algumas questões de filosofia moral (1965 - 6) - Responsabilidade e Julgamento

Saturday, June 25, 2011

4.


3.

[...] Pensar e lembrar, dissemos, é o modo humano de deitar raízes, de cada um tomar seu lugar no mundo a que todos chegamos como estranhos. O que em geral chamamos de uma pessoa ou uma personalidade, distinta de um mero ser humano ou de um ninguém, nasce realmente desse processo que deita raízes. Nesse sentido, afirmei que é quase uma redundância falar de uma personalidade moral; sem dúvida, uma pessoa ainda pode ser de boa ou má índole, as suas inclinações podem ser generosas ou mesquinhas, ela pode ser agressiva ou dócil, franca ou dissimulada; pode ser dada a todos os tipos de vícios, assim como pode nascer inteligente ou estúpida, bela ou feia, amável ou um tanto rude. Tudo isso tem pouco a ver com as questões que nos preocupam nesse momento. Caso se trate de um ser pensante, arraigado em seus pensamentos e lembranças e, assim, conhecedor de que tem de viver consigo mesmo, haverá limites para o que se pode permitir fazer, e esses limites não lhe serão impostos de fora, mas auto-estabelecidos. Esses limites podem mudar de maneira considerável e desconfortavelmente de pessoa para pessoa, de país para país, de século para século: mas o mal ilimitado e extremo só é possível quando essas raízes cultivadas a partir do eu, que automaticamente limitam as possibilidades, estão inteiramente ausentes. Elas estão ausentes quando os homens apenas deslizam sobre a superfície dos acontecimentos, quando se deixam levar adiante sem jamais penetrarem em qualquer profundidade de que possam ser capazes. Certamente, essa profundidade também muda de pessoa para pessoa, de século para século, tanto na sua qualidade específica quanto nas suas dimensões. Sócrates acreditava que ensinando as pessoas como  pensar, como falar consigo mesmas, uma ação distinta da arte oratória de como persuadir e da ambição do sábio de ensinar o que  pensar e como aprender, ele melhoraria seus concidadãos; mas se aceitamos esse pressuposto e perguntamos a Sócrates quais seriam as sanções para aquele famoso crime oculto dos olhos dos deuses e dos homens, a sua resposta só poderia ter sido: a perda dessa capacidade, a perda de estar só, e, como tentei ilustrar, com ela a perda da criatividade - em outras palavras, a perda do eu que constitui a pessoa.

Hanna Arendt - Algumas questões de filosofia moral III - Responsabilidade e Julgamento

2.

Por fim, permitam-me lembrar-lhes um dos fenômenos mais assustadores em nossas experiências morais mais recentes. Suponho que todos os senhores já ouviram falar ao menos daqueles assassinos do Terceiro Reich que não só levavam uma impecável vida familiar, como gostavam de passar o seu tempo de lazer lendo Hölderlin e escutando Bach, provando (como se houvesse falta de provas a esse respeito) que os intelectuais podem ser tão facilmente induzidos ao crime quanto qualquer outra pessoa. Mas a sensibilidade e um gosto pelas assim chamadas coisas elevadas da vida não são capacidades do espírito? Sem dúvida, mas a capacidade de apreciação não tem nada a ver com o pensamento, que, devemos lembrar, é uma atividade, e não o desfrute passivo de algo. Na medida em que o pensamento é uma atividade, ele pode ser traduzido em produtos, em coisas como poemas, música ou pinturas. Todas as coisas desse tipo são realmente coisas do pensamento, assim como a mobília e os objetos de nosso uso diário são corretamente chamados objetos de uso: uns são inspirados pelo pensamento e os outros são inspirados pelo uso, por alguma necessidade e carência humana. O ponto importante sobre esses assassinos altamente cultos é que nem um único deles compôs um poema digno de ser lembrado, uma música digna de ser escutada, ou pintou um quadro que alguém gostaria de dependurar nas suas paredes. Sem dúvida, é necessário mais do que o pleno exercício da capacidade de pensar (thoughtfulness) para compor um bom poema, uma música ou pintar um quadro - é necessário um talento especial. Mas nenhum talento suportará a perda de integridade que experimentamos quando perdemos essa capacidade muito comum de pensar e lembrar.

Hannah Arendt - Algumas questões de filosofia moral II - Responsabilidade e Julgamento

1.

A primeira coisa que nos chama a atenção nos diálogos socráticos de Platão é que são todos aporéticos. A argumentação ou não leva a lugar nenhum ou anda em círculos.

[...] Nenhum dos logoi, os argumentos, jamais fica parado; movem-se ao redor porque Sócrates, ao fazer perguntas para as quais ele não sabe as respostas, coloca-os em movimento. E quando as afirmações perfazem o círculo completo é em geral Sócrates que, com prazer, propõe começar tudo de novo [...]

[...] Entretanto, Sócrates, de quem comumente se diz que teria acreditado na possibilidade de ensinar a virtude, parece ter sustentado de fato que falar e pensar sobre a piedade, a justiça, a coragem e tudo o mais, poderia tornar os homens mais piedosos, mais justos, mais corajosos, mesmo que não lhes fossem dadas definições ou "valores" para orientar a sua conduta posterior. Aquilo em que Sócrates realmente acreditava a respeito dessas questões pode ser mais bem ilustrado pelas comparações que aplicava a si mesmo. Ele se chamava de moscardo e parteira, e, segundo Platão, foi chamado por outra pessoa de "arraia-elétrica", um peixe que paralisa e entorpece pelo contato, uma semelhança cuja propriedade ele reconheceu sob condição de que fosse compreendido que "a arraia-elétrica só paralisa os outros por estar ela própria paralisada. Não é que, sabendo eu próprio as respostas, deixe perplexas as outras pessoas. A verdade é, antes, que também as infecto com a perplexidade que eu próprio sinto". O que, sem dúvida, resume com muita clareza a única maneira em que o pensamento pode ser ensinado - exceto que Sócrates, como ele disse repetidas vezes, não ensinava nada pela simples razão de que nada tinha para ensinar; ele era "estéril" como as parteiras na Grécia, que já tinham passado da idade de dar à luz.

[...] Sócrates (comparado a) um moscardo [...] sabe como provocar os cidadãos que, sem ele, "continuarão a dormir calmamente pelo resto da vida", a menos que apareça outra pessoa para voltar a despertá-los. E a que ele os provoca? A pensar, a examinar as questões, uma atividade sem a qual a vida, segundo ele, não só não valia muito a pena como não era plenamente viva.

[..] Parece que ele, ao contrário dos filósofos profissionais, sentia-se impelido a verificar se os seus semelhantes partilhavam as suas perplexidades - e esse impulso é totalmente diferente da inclinação a encontrar soluções para enigmas para então demonstrá-las aos outros.

Hannah Arendt - Pensamento e considerações morais - Responsabilidade e Julgamento

Sunday, June 05, 2011

Reflexos de uma vocação libertária

Lançado em 1963, Sobre a Revolução, de Hannah Arendt, que ganha nova edição no País, permanece atual ao tratar da busca da felicidade pública por meio do fim da opressão - algo verificado, por exemplo, na primavera árabe de 2011

Celso Lafer - O Estado de S.Paulo

O que é uma Revolução? O que distingue um revolucionário de um revoltado - que é um insatisfeito - e de um rebelde - que se levanta contra a autoridade? Por que um golpe de Estado, que provoca uma mudança de governo e uma ruptura da ordem jurídica, não é a expressão de uma Revolução? O que separa um reformista de um revolucionário? Por que uma mudança radical como a representada pela Revolução Industrial, que transformou a economia, ou a Revolução Feminina, que alterou os costumes da sociedade, não tem a aura da Revolução Francesa ou da Revolução Russa que foram precedidas pela violência de um movimento revolucionário?

Estas perguntas permanecem na agenda da discussão pública. Delas trata, esclarecendo, Hannah Arendt em Sobre a Revolução. Daí uma razão do interesse do seu livro que, em nova e cuidadosa tradução para o português de Denise Bottmann, acaba de ser publicado pela Companhia das Letras.

A primeira edição do livro, publicada pela Viking Press de Nova York, é de 1963; a segunda, revista pela autora, é de 1965. A edição de 2006, inserida nos clássicos da Penguin, contém uma importante apresentação de Jonathan Schell que integra, igualmente, esta edição da Companhia das Letras. Schell destaca a atualidade do livro sublinhando a pertinência da reflexão arendtiana para a análise da onda das revoluções democráticas posteriores à redação do livro - da Revolução dos Cravos, de Portugal, às do Leste Europeu, nos processos que levaram à derrocada da União Soviética. A elas pode-se acrescentar as da primavera árabe de 2011. Por isso, Sobre a Revolução tem uma das características de um livro "clássico" - e como tal foi qualificado pela Penguin. Com efeito, continua propiciando caminhos para o entendimento do mundo atual, não obstante ter sido concebido e redigido no distinto contexto histórico da década de 1960, caracterizado pelo confronto entre os EUA - herdeiros do legado da Revolução Americana - e a URSS - herdeira, na época, do legado da Revolução Russa.

Hannah Arendt abre o seu livro explicando que a guerra tem em comum com a revolução a presença da violência e, portanto, o problema da sua justificativa. Esta, no caso de uma Revolução, diz respeito à possibilidade de um novo início, fruto de uma aspiração trazida pelo potencial da convergência entre libertação e liberdade. Revolução não se confunde, portanto, como ela diz, com rebelião e revolta que não apontam para a instauração de uma nova liberdade. Tampouco se identifica com o golpe de Estado, que não carrega o pathos da novidade, tem a sua origem no palácio e não na praça, que é o espaço político do exercício da liberdade motivador da Revolução. A Revolução não se assemelha ao reformismo nem às mudanças substantivas mas aluvionais como as trazidas pela Revolução Industrial ou pela Revolução Feminina, pois tem como nota distintiva não apenas a mudança mas o movimento da tempestade revolucionária, de que falava Robespierre.

A Revolução vem à tona por meio da violência. Esta não a explica, assim como a mudança que não dá conta do seu significado. O fenômeno da Revolução, aponta Hannah Arendt, tem como característica "quando a mudança ocorre no sentido de criar um novo início; quando a violência é empregada para constituir uma forma de governo totalmente diferente e para gerar a formação de um novo corpo político", e "quando a libertação da opressão visa pelo menos à constituição da liberdade".

Foi a aura da Revolução Francesa que incendiou o mundo, aponta Hannah Arendt ao propor a "ideia a realizar" da coincidência entre liberdade e um novo início. Não teve precedentes históricos, pois não foi entendida e historicamente recepcionada como uma indiferenciada expressão da mudança política mas sim como algo radicalmente novo: a fundação do novus ordo saeclorum, instaurador da legitimidade do poder. O impacto da Revolução Francesa, no campo das ideias, trouxe um novo conceito de História na filosofia de Hegel. Este conceito, por sua vez, exerceu uma influência direta sobre os revolucionários dos séculos 19 e 20, que absorveram o conceito nas lições de Marx e que passaram a enxergar a Revolução com base nas categorias hegelianas, como um libertário desenlace histórico da convergência entre necessidade e violência.

O tema recorrente do livro é uma grande reflexão sobre, de um lado, a validade das aspirações de liberdade que motivaram, no mundo moderno, o fenômeno revolucionário e, de outro, as razões dos descaminhos das Revoluções. Estes descaminhos integram o tema arendtiano da ruptura - vale dizer o das descontinuidades entre o passado e o futuro, assinaladores dos desdobramentos da modernidade - pois não trouxeram a constituição da liberdade. Explicam, ao mesmo tempo, a relevância do que Hannah Arendt considera o tesouro perdido da tradição revolucionária - a da autogestão dos townhalls, dos conselhos, dos Räte, dos sovietes - pela qual, com sua vocação libertária e empenho na construção de uma comunidade política criativa e criadora, tinha apreço e afinidade

Hannah Arendt traz à colação, neste livro, a importância da Revolução Americana. Destaca que o espírito da Revolução Americana não teve o mesmo impacto no imaginário político que caracterizou a Revolução Francesa, mas realça tanto o significado desta experiência na criação de uma nova ordem quanto à densidade das teorias políticas dos seus pais fundadores, que estão na origem da República norte-americana. Esta não nasceu de uma necessidade histórica nem de um desenvolvimento orgânico, mas "de um ato deliberado empenhado na fundação da liberdade". Por isso as reflexões e as ações de John Adams, Jefferson, Hamilton, Madison ecoam nas páginas deste livro assim como as de Robespierre, Saint-Just, Condorcet, Marx e Lenin. A comparação e o contraste entre as Revoluções Americana e a Francesa tem como horizonte a preocupação arendtiana de examinar as condições da possibilidade de um mundo comum, livre da opressão e ensejador da liberdade política de participação no governo e nos assuntos públicos.

O pensamento de Hannah Arendt é denso e abrangente. Daí os riscos da simplificação da sua análise. Ciente destes riscos diria que o fulcro de Sobre a Revolução é a tese de que a busca da felicidade pública (à que não têm acesso os Homens em Tempos Sombrios para os quais o espaço público desapareceu ou encolheu) através da liberação da opressão - econômica, social, política, colonial - não leva, necessária ou automaticamente, à liberdade. Esta requer instituições políticas apropriadas, a constitutio libertatis. Sem estas instituições não se efetiva a motivação revolucionária de uma nova ordem que assegure a permanência do espaço público para o exercício da liberdade. Daí a especificidade e a autonomia da política, que não se reduz à questão social e que Hannah Arendt ilumina no seu livro através da dicotomia liberação da opressão/construção da liberdade.

Na discussão da criação de instituições políticas, Hannah Arendt elaborou, com muito engenho, o significado fundacional do poder constituinte originário e explora o papel da Constituição como a convenção que enseja a gramática da ação e a sintaxe do poder. Na análise da experiência da Revolução Americana e dos desdobramentos no tempo de sua construção institucional chama atenção para o vínculo virtuoso entre República e Federação e mostra o significado da Suprema Corte e do Senado como instâncias de autoridade distintas do exercício da ação conjunta do poder.

Tanto no mando quanto no desmando, na política sempre ocorre o enlace, entre as forças impessoais e históricas e o bom e o mau das paixões e dos sentimentos humanos. Numa Revolução, que é uma situação-limite, este enlace adquire uma intensidade própria, à qual Hannah Arendt dedica páginas de grande acuidade.

No trato das motivações que levam aos movimentos revolucionários, destaca os efeitos da hipocrisia dos governantes de regimes corruptos e prepotentes que instiga a violência dos governados. Na análise do que leva aos descaminhos revolucionários, realça a obsessão jacobina com a pureza da virtude que induz o terror revolucionário e destaca os riscos do voluntarismo na política que não leva em conta a pluralidade e a diversidade da condição humana.

Em Sobre a Revolução Hannah Arendt discute os equívocos da piedade e da compaixão promovidos pela contemplação da miséria dos deserdados. A compaixão e a piedade são incapazes de argumentação. Por isso, não dizem respeito à política e a sua intrusão neste âmbito acaba levando à destrutividade da violência. A compaixão e a piedade são sentimentos. Não são um princípio da ação como a solidariedade, que pode orientar o juízo político.

O bom e o mau que caracteriza os seres humanos - da generosidade ao ressentimento - estão presentes na vida política. Na análise desta dimensão da política, Hannah Arendt com frequência valeu-se, na sua obra, da literatura que nos dá acesso, como ela dizia citando Shakespeare, "às trevas do coração humano". Do mal absoluto na política ela tratou em Origens do Totalitarismo e em Eichmann em Jerusalém. Em Sobre a Revolução, avaliou as consequências da bondade absoluta. Instigada pela leitura de O Grande Inquisidor de Dostoievski e do Billy Budd de Melville, discute os riscos para a política da bondade absoluta - a bondade além da virtude e o mal além do vício - capaz de buscar impor, pelo terror, a virtude revolucionária. Mostra, assim, como é fundamental, na discussão do fenômeno e da motivação revolucionária, a percepção da atuação concreta dos atores políticos que os ideólogos, com as suas paixões e sentimentos e as ideologias, nas suas abstrações, não alcançam.

CELSO LAFER É PROFESSOR TITULAR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS E DA ABL. PRESIDENTE DA FAPESP, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES DO GOVERNO FERNANDO HENRIQUE

Saturday, April 16, 2011

- Como foi que a senhora ficou sabendo que éramos casados? - perguntou Dinah.

Miss Marple esboçou um sorriso suplicante.

- Oh, querida! - disse ela.

Dinah insistiu.

- Como foi que a senhora soube? A senhora não foi... não foi à Somerset House?

Os olhos de Miss Marple cintilaram momentaneamente.

- Somerset House? Oh, não. Mas era muito fácil de se imaginar. Tudo corre pela aldeia, sabe. A espécie de brigas que vocês têm... típicas dos primeiros dias do casamento. Muito... muito diferente das relações ilícitas. Já se disse, a senhora sabe, (e eu acho que é uma verdade), que um casal só pode brigar de verdade quando é realmente casado. Quando não há nenhum vínculo legal, as pessoas são muito mais cuidadosas, têm que se convencer de que tudo é feliz e sereno. Elas têm, sabe, de se justificar. Não ousam discutir. As pessoas casadas, já notei, gostam muito de brigar e também das reconciliações.

Fez uma pausa, piscando os olhos benignamente.

- Bem, eu... - Dinah parou e deu uma risada. Assentou-se e acendeu um cigarro. - A senhora é maravilhosa.

E continuou:

- Mas, por que a senhora quer que confessemos a verdade e aceitemos a respeitabilidade?

A expressão de Miss Marple tornou-se sombria.

- Porque, a a qualquer momento, seu marido poderá ser preso por assassinato.

Agatha Christie - Um Corpo na Biblioteca

Sunday, January 02, 2011

LEITURAS - Carta de Princípios

Crítica (não só) literária
Nelson Ascher

Já caminharam sobre a Terra, gravando caracteres em algum tipo de material, pelo menos 150 gerações de escritores. Dizem que tudo começou 5.000 ou 6.000 anos atrás no sul do Iraque atual, a antiga terra dos sumérios. Foi lá que se teria inventado pela primeira vez um modo de, às emissões sonoras chamadas de linguagem verbal, fazer corresponder sinais visíveis, transmissíveis sem o auxílio de memórias individuais e, conseqüentemente, duráveis.
Os mortos se tornaram, desde então, capazes de falar com os vivos. "Escucho com mis ojos a los muertos", constatou o poeta espanhol Quevedo. E, com o passar do tempo, multiplica-se o total de mortos falantes (Quevedo entre eles) que competem com os vivos que, por seu turno, competem entre si pela atenção de um número limitado de olhos ouvintes.
Por isso existe a crítica literária: porque nem mesmo a vida de um leitor voraz, dedicado e longevo bastaria para dar conta sequer dos romances publicados ano passado no mundo. Talvez uma existência inteira não seja mesmo suficiente para ler quanto há para ser lido em, digamos, A Montanha Mágica. E, no entanto, o desejo de ler tudo é, para os verdadeiros leitores, tão natural como o da imortalidade para quem, após compreender os tempos verbais, não ignore mais a ameaça presente no futuro da primeira pessoa do singular.
A crítica literária existe, sobretudo, para triar obras recentes, apontando quais merecem atenção, e para retriar, a cada geração, aquelas previamente avaliadas, de modo a questionar juízos passados. Chamar a atenção para certa obra, uma atividade generosa, envolve a crueldade necessária de pôr outras de lado. A vida é curta, a paciência dos leitores, mais ainda - e "triagem" é um galicismo de origem sinistra. Durante a Primeira Guerra, a escala industrial da sangueira (decorrente da fartura combinada de soldados e metralhadoras) sobrecarregou os serviços médicos nas frentes de batalha. O Exército francês se viu então forçado a "triar", ou seja, repartir seus feridos em três categorias: os que podiam ser medicados no local, os que valia a pena levar aos hospitais na retaguarda e os que estariam tirando o lugar de gente com chances melhores. Estes eram entregues aos sedativos e sacerdotes.
Se a atividade crítica parece impiedosa, talvez seja o caso de lembrar que, diferentemente dos seres humanos, obras literárias não têm direito automático nem sequer à vida (ao de serem lidas). Nenhum livro é obrigatório, exceto para estudantes, professores e críticos profissionais que, geralmente, são os que não os lêem. O público não tem deveres para com escritores vivos, mortos ou mortos-vivos e, quando lê, está lhes fazendo um favor, uma gentileza. É aos autores que cabe estar à altura de tal deferência, pois toda obra é culpada até prova em contrário. O crítico, assim, também pode ser considerado seu advogado. Mesmo que esteja disposto a mentir ou trapacear, o processo é tão aberto que alguma verdade acaba se estabelecendo. Daí a dificuldade, em qualquer arte, de alterar os cânones vigentes e colocar, por exemplo, Salieri no lugar de Mozart.
Um advogado é tanto melhor quanto mais a fundo conhecer seu caso, e, como a literatura diz respeito a tudo, não resta ao crítico outra opção que a de buscar se familiarizar com tudo, algo impossível. Bom, existe outra opção, que esteve em moda por anos e anos. Trata-se, no sentido tacanho do termo, da abordagem estritamente "literária" para a qual um poema, um conto, um romance se reduzem a um amontoado organizado de palavras. Discorrer sobre Guerra e Paz ou A Cartuxa de Parma ignorando os detalhes das guerras napoleônicas e os tipos de armamentos à disposição dos contendores, examinar Os Lusíadas sem pensar na expansão do império português ou na arte da navegação ou analisar Ulisses sem refletir sobre as relações entre Irlanda e Inglaterra equivalem a perder de vista muito da razão de ser desses livros - se bem que julgá-los somente através de um desses prismas tampouco seja inteligente.
Em outras palavras, quem escrevesse algo intitulado Auschwitz: Uma Abordagem Contábil e concluísse que o comandante Rudolf Höss era inocente, pois administrou direito seu campo, ou (o que dá na mesma) culpado, porque revendeu, sem registrar a transação, várias latas de Zyklon B a seu colega Franz Stangl, de Treblinka, quem chegasse a tais conclusões sem se perguntar para que serviam as latas seria antes parte do problema do que da solução. Mas quem quer que ostente indignação moral sem dominar os dados e fatos relevantes nada acrescenta à discussão, pois, caso queira que seus sentimentos prevaleçam, convém-lhe saber tudo o que o contador acima sabe e mais.
O interesse pela literatura ou é onívoro ou não é. O leitor autêntico deseja saber de tudo, truísmo que se aplica dupla ou triplamente aos críticos de verdade. Autores de best-sellers, atentos à curiosidade da audiência, estão cientes disso e, coerentemente, recheiam seus calhamaços com informações variadas sobre como se desmonta uma bomba, o que é que socialites comem, bebem ou cheiram, como se pilota um Spitfire, quais as posições sexuais favoritas de um samurai do século 16.
Quando Mallarmé observou que o mundo existe para acabar num livro, ele não estava aviltando o primeiro, mas, sim, afirmando quão abrangente e ambicioso era seu programa para o segundo. Seu discípulo, Paul Valéry, disse que um homem que nunca quis ser um deus é menos do que um homem. Um crítico que seja apenas literário é, portanto, menos do que um crítico literário. E não há meio termo.


Postado originalmente em 31 de julho de 2006

LEITURAS - os 50 da Década


V. S. Naipaul - Uma Casa Para o Sr. Biswas

J. D. Salinger - Nove Histórias

Manoel de Barros - Ensaios Fotográficos

Miguel Torga - Rua / Pedras Lavradas

Zuenir Ventura - Inveja, o Mal Secreto

Joseph Conrad - O Coração das Trevas

Braulio Tavares - Mundo Fantasmo / A Espinha Dorsal da Memória / Os Martelos de Trupizupe

Antônio MariaCom Vocês, Antônio Maria

Chico Buarque - Budapeste

Gabriel García Márquez - O Amor nos Tempos do Cólera

Cormac Mcarthy - Meridiano de SangueOnde os Velhos Não Têm Vez / A Estrada

Brassaï - Conversas com Picasso

François Truffaut & Alfred HitchcockHitchcok Truffaut Entrevistas

Jorge Luis Borges - Esse Ofício de Escrever

Hanna Segal - Sonho, Fantasia e Arte

Donald Meltzer & Meg Harris Williams - A Apreensão do Belo

Benedetto Croce - Breviário de Estética / Aesthetica in Nuce

D. W. Winnicott - O Brincar e a Realidade

Chico Buarque & Paulo Pontes - Apresentação de Gota D'Água

Drauzio Varella - Folha Explica: Macacos

Nelson Ascher - Pomos da Discórdia

Sergio Buarque de Holanda - Visão do Paraíso

Fernando Savater - Ética Como Amor-Próprio

Contardo Calligaris - Folha Explica: A Adolescência

Bernard Charlot - Relação com o Saber, Formação dos Professores e Globalização

Phillipe Perrenoud - A Prática Reflexiva no Ofício de Professor

Rosa Maria Torres - Que (e Como) É Necessário Aprender?

Yves de La TailleLimites: Três Dimensões Educacionais

André Comte-Sponville - Bom Dia, Angústia / Pequeno Tratado das Grandes Virtudes / A Felicidade, Desesperadamente

Lino de Macedo - Ensaios Pedagógicos

Melanie KleinAmor, Culpa e Reparação / Inveja e Gratidão

Maria Rita KehlO Tempo e o Cão

W. R. BionExperiências com Grupos / O Aprender com Experiência

Hannah Arendt - Entre o Passado e o Futuro / A Condição Humana / A Vida do Espírito / Eichmann em Jerusalém / Origens do Totalitarismo / Homens em Tempos Sombrios

Hajo Banzhaf - Manual do Tarô

Friday, December 31, 2010

Dizei-me o que ledes e eu vos direi quem sois

Meu criado-mudo repleto de livros 2010

José Castello - João Cabral de Melo Neto: O Homem Sem Alma

Zuenir Ventura - Cidade Partida

Laure Adler - Nos Passos de Hannah Arendt

Norberto Bobbio - A Era dos Direitos

Sigmund Freud - O Mal-Estar na Cultura

Gustave Flaubert - Madame Bovary

Marcelo Leite - Folha Explica Darwin

Hunter S. Thompson -  Medo e Delírio em Las Vegas

Guilherme Fiuza - Bussunda: a vida do casseta

João Cabral de Melo Neto - Morte e Vida Severina

Leonardo Cortez - Trilogia Canalha

Cormac McCarthy - A Estrada

Cormac McCarthy - Onde os Velhos Não Têm Vez / Meridiano de Sangue ou O Rubor Crepuscular no Oeste / Todos os Belos Cavalos / A Travessia / Cidades da Planície

Hugh Laurie - O Vendedor de Armas

Hervé Bourhis - O Pequeno Livro do Rock

Gay Talese - Fama e Anonimato

John Hersey - Hiroshima

Jon Krakauer - Na Natureza Selvagem / No Ar Rarefeito

Ryszard Kapuscinski - O Imperador

Helen Fielding - O Diário de Bridget Jones

Meu criado-mudo repleto de livros para as férias

Keith Richards (com James Fox) - Vida

Fernando Lichti Barros - Casé: como toca esse rapaz!

Jean-Claude Carrière e Milos Forman - Os Fantasmas de Goya

Lobão (com Claudio Tognoli) - 50 Anos a Mil

Dennis Lehane - Sobre Meninos e Lobos (Mystic River)

Truman Capote - A Sangue Frio

Sites do Ano



Monday, December 20, 2010

1. O último filme-cabeça que fui ao cinema pra ver foi Fale com Ela, do Almodóvar. Saí da sessão com uma vontade enorme de ler o filme. Explico: o mood da história, os personagens, a linha da direção me convidavam a um tipo de introspecção que não consigo mais preservar tendo que enfrentar fila, compra de ingressos, barulho de pipoca. Mentem aqueles que dizem frequentar cinemas em que a plateia não mastiga sem parar, não atende o telefone sem parar, não põe o pé nas costas do seu assento. Eu sou capaz de aguentar isso tudo. Mas alguma coisa na tela precisa explodir. E não estou falando do final de Zabriskie Point. Já cumpri minha cota de filmes-com-mensagem. Aquele cara bacana que passava horas de sua juventude ouvindo línguas exóticas em montagens arrastadíssimas ainda vive dentro de mim. Mas, hoje em dia, ele lê.

Fale com Ela é um filme bonito? Sem dúvida. Tem momentos antologicamente duvidosos? Sem sombra de dúvida. Mas isso não é exclusivo do Almodóvar ou de Fale com Ela. Toda grande obra de arte padece dessa ambiguidade entre plenitude e carência. O que incomoda é a possibilidade de, quase sem esforço, a pessoa sair do cinema com a sensação garantida de que acabou de participar de uma experiência fundante, fundamental. E ainda sobrar espaço pra um jantarzinho, depois.

Tenho a impressão de que o Almodóvar é um romancista que não teve culhões pra escrever romance. Que encontrou naquela bizarrice de cores, humores e tipos sobre, ou sub humanos, um jeito mais cômodo de dar vazão a seu projeto de artista. Um processo semelhante ao de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Cuidaram tanto do contexto em que estavam inseridos que acabaram deixando de lado o principal, o rigor na construção da obra, que é - sempre - pessoal e intransferível.

2. Ler filmes não significa o mesmo que uma outra experiência minha dos últimos meses: li O Vendedor de Armas, escrito por Hugh Laurie, o ator/criador do Doutor House da série de TV. Li, em seguida, O Diário de Bridget Jones.

Laurie escreveu um filme. A narrativa é devedora direta da narrativa clássica comercial de Hollywood. É, literalmente, um filme.

Não há nenhuma intenção reflexiva na escolha do estilo. O livro de Laurie é apenas um reflexo de nosso tempo. E não passa disso. Diferente do House, uma sacada de gênio.

Já o Diário de Bridget Jones, saído em 1996, é como ler, pior, um sitcom... brasileiro!

Ouço dizer que o filme é uma delícia. Que Renée Zellweger rouba a cena. Tomara. Lido, o Diário de Bridget Jones faz lembrar os piores momentos de Débora Bloch ou Fernanda Torres em seus sketchs didaticamente engraçados. Ou explica de quem as brasileiras andaram copiando.

3. Outras adaptações que vêm à lembrança: Na Natureza Selvagem e os toques moderninhos que Sean Penn quis dar à edição. O livro, jornalístico, abre mais portas para entender o moço que se "enterra" no Alaska selvagem; o filme escolhe menos recortes, é menos profundo, menos dialético. E é mais tocante. Talvez seja isso: quem quer ser tocado, vai ao cinema. Quem quer tocar a questão, lê o livro. As duas necessidades são humanas. Diferentes e complementares. Duro é o esforço de vencer trezentas páginas do humor espertinho de Helen Fielding e dar com os cornos em nada.

4. Onde Os Fracos Não Têm Vez. Espantoso ver o filme e ler o livro. O filme é o livro. Os Coen pegaram um filme pronto e, reverentemente, mexeram o mínimo. Dois socos no estômago é o que você leva quando se mete com eles. Mcarthy escreve filmes. Mas, há, em sua escolha, um propósito de estilo. Porque não é vantagem ser um homem de seu tempo. Qualquer trabalhador da construção civil que despenca do andaime é um homem do seu tempo.

Sunday, December 12, 2010

Jornalismo Literário - Novembro / Dezembro

John Hersey - Hiroshima

Jon Krakauer - Na Natureza Selvagem / No Ar Rarefeito

Ryszard Kapuscinski - O Imperador

Tuesday, November 02, 2010

Saldo Médio

Meu criado mudo repleto de livros

De setembro a outubro:

Onde os Velhos Não Têm Vez (2005), Meridiano de Sangue ou O Rubor Crepuscular no Oeste (1985), Todos os Belos Cavalos (1992), A Travessia (1994) e Cidades da Planície (1998) de Cormac McCarthy;

O Vendedor de Armas (1996) de Hugh Laurie;

O Pequeno Livro do Rock (2007) de Hervé Bourhis;

e cerca de 250 das 535 páginas de Fama e Anonimato (edição revista de 1992) de Gay Talese.

2417 páginas, aproximadamente (O Pequeno Livro do Rock  não numera as páginas). Mais ou menos 40 páginas de ficção (ou new journalism) ao dia.

Incontáveis visitas ao tema "Eleições" em ig, terra, uol, folha.com, estadao, i-piauiherald, luisnassifonline, entre outros.

Leituras atentas, ainda que indisciplinadas, por indicação de fontes confiabilíssimas.

39 postagens neste blog, praticamente todas dedicadas à disputa presidencial, exceções feitas ao aniversário de 70  anos de John Lennon e à espera pelo resgate dos mineiros do deserto do Atacama. 

Atividade (um tanto temerosa) no facebook, meia-dúzia de notes e wall photos.

Acompanhamento diário dos blogs amigos isto me faz bem, a estrovenga dos corsários efêmeros fotografei você na minha rolleyflex. Visitas esporádicas a pé na áfrica e diário do minotauro.

Episódios semanais de WeedsHouseFringe e In Treatment (obrigado, senhor, a série voltou).

Início de releitura, por motivos de trabalho, de A Arte Cavalheiresca do Arqueiro-Zen de Eugen Herrigel, clássico da minha entrada na idade adulta.

10 quilos de sobre-peso e dores leves, mas persistentes, nos dois joelhos e no calcanhar esquerdo.

Thursday, July 29, 2010

Eleições.com

Pesquisa Datafolha mostra que para eleitor brasileiro a internet tem papel modesto na busca por informações, atrás da TV e dos jornais 

Falou-se muito sobre o papel relevante da internet na eleição do presidente norte-americano, Barack Obama, fenômeno que poderia se repetir no pleito brasileiro. A rede mundial de computadores ganha cada vez mais adeptos no país, que é o quinto do mundo em número de conexões. Embora pouco precisas, as estatísticas indicam que cerca de 67 milhões de pessoas com mais de 16 anos têm acesso ao mundo on-line.

A mais recente pesquisa de intenção de voto do Datafolha mostrou no entanto que o eleitorado reserva um lugar modesto para a internet na busca por informações sobre a disputa. A TV (65%) e os jornais (12%) são os meios mais citados. A rede e o rádio vêm em terceiro, com 7% cada um.

Quando o Datafolha solicita aos entrevistados que enumerem três meios de comunicação que usam para se informar sobre o pleito, 27% mencionam a internet - atrás de conversas com amigos e familiares (citadas por 32%). Já a TV é mencionada por 88%, seguida dos jornais (54%) e do rádio (52%).

A TV tem mais força entre habitantes da região Nordeste e setores de renda mais baixa, diferentemente dos jornais, que se destacam nos segmentos com mais poder aquisitivo. Os mais ricos também são mais ligados à internet, assim como os mais escolarizados e mais jovens.

As comparações com os Estados Unidos devem levar em conta não apenas o fato de que lá parcela mais ampla da população está ligada à rede. Há outros fatores a considerar, a começar pelo sistema eleitoral dos dois países.

Não existe horário eleitoral gratuito na TV norte-americana, algo que, no Brasil, faz desse veículo uma referência praticamente incontornável para os eleitores. O "comício eletrônico" invade os lares do país, em meio à programação diária das emissoras, nas faixas com audiência mais elevada.

Além disso, nos EUA, comparecer às urnas não é obrigatório e a maioria dos que votam tem registro em um dos principais partidos. Com o voto facultativo, a mobilização do eleitor pode ser decisiva para o resultado. É fundamental para partidos e candidatos convencer o cidadão a sair de casa para fazer sua escolha. Nessa tarefa, a internet revelou-se um instrumento valioso.

Um outro aspecto diz respeito às contribuições individuais para campanhas, que nos EUA se beneficiam da rede de computadores, enquanto aqui mal engatinham.

Um estudo sobre as relações entre eleições (no caso, as de 2006 e 2008) e internet, realizado pelos professores Vladimir Safatle e Marcelo Coutinho, da USP e da Fundação Getulio Vargas, verificou que o espaço virtual no Brasil é mais usado para alimentar sectarismos do que para buscar e trocar informações.

Como não é difícil constatar, internautas atuam em blogs e redes sociais para reforçar opiniões já formadas, oferecer material de campanha a militantes e tentar influenciar os veículos tradicionais. Esse tipo de atuação contribui para reforçar mais um problema: a facilidade com que, no mundo on-line, circulam boatos, notícias forjadas e opiniões comprometidas.

Não se trata de subestimar o potencial da internet na conquista do eleitor, que deve aumentar no Brasil. Mas fenômenos eleitorais como o de Obama não se reproduzem com base em receitas.

editoriais@uol.com.br