Tuesday, August 04, 2020

Vida precária, vida passível de luto

[...] não há nenhuma condição que possa 'resolver' completamente o problema da precariedade humana. Os corpos passam a existir e deixam de existir: como organismos fisicamente persistentes, estão sujeitos a ataques e a doenças que colocam em risco a possibilidade de simplesmente sobreviver. São características necessárias dos corpos - não podem 'ser' pensados sem sua finitude e dependem do que está 'fora deles' para serem mantidos - características que são próprias da estrutura fenomenológica da vida corporal. Viver é sempre viver uma vida que é vulnerável desde o início e que pode ser colocada em risco ou eliminada de uma hora para outra a partir do exterior e por motivos que nem sempre estão sob nosso controle.

[...] Nenhuma quantidade de vontade ou riqueza pode eliminar as possibilidades de doença ou de acidente para um corpo vivo, embora ambas possam ser mobilizadas a serviço dessa ilusão. Esses riscos estão embutidos na própria concepção da vida corporal considerada finita e precária, o que implica que o corpo está sempre à mercê de formas de sociabilidade e de ambientes que limitam sua autonomia individual. A condição compartilhada de precariedade significa que o corpo é constitutivamente social e interdependente [...]. Todavia, precisamente porque cada corpo se encontra potencialmente ameaçado por outros corpos que são, por definição, igualmente precários, produzem-se formas de dominação.

Todavia, precisamente porque cada corpo se encontra potencialmente ameaçado por outros corpos que são, por definição, igualmente precários, produzem-se formas de dominação.

Essa máxima hegeliana assume significados específicos nas condições bélicas contemporâneas: a condição compartilhada de precariedade conduz não ao reconhecimento recíproco, mas sim a uma exploração específica de populações-alvo, de vidas que não são exatamente vidas, que são consideradas 'destrutíveis' e 'não passíveis de luto'. Essas populações são 'perdíveis', ou podem ser sacrificadas, precisamente porque foram enquadradas como já tendo sido perdidas ou sacrificadas; são consideradas como ameaças à vida humana como a conhecemos, e não como populações vivas que necessitam de proteção contra a violência ilegítima do Estado, a fome e as pandemias. Consequentemente, quando essas vidas são perdidas, não são objeto de lamentação, uma vez que, na lógica distorcida que racionaliza sua morte, a perda dessas populações é considerada necessária para proteger a vida dos 'vivos'.

Judith Butler - Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto? tradução de Sérgio Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. 2009 - 2015