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Saturday, November 15, 2008

Julio Cortázar - Bestiario
(1951)

Bestiario es la primera obra en la que Julio Cortázar dice sentirse "realmente seguro de lo que quería decir".
Se trata de ocho cuentos, en los que aparecen perfectamente entrelazados algunas características esenciales de la narrativa de Cortázar: el humor, el absurdo y lo fantástico.
Los cuentos de Bestiario son, según el propio autor, estructuras cerradas que no problematizan más allá de la literatura.
De Bestiario dice Cortázar: "Varios de los cuentos de Bestiario fueron, sin que yo lo supiera (de eso me di cuenta después) autoterapias de tipo psicoanalítico. Yo escribí esos cuentos sintiendo síntomas neuróticos que me molestaban.
En el caso concreto de uno de ellos "Circe", lo escribí en un momento en que estaba excedido por los estudios que estaba haciendo para recibirme de traductor público en seis meses, cuando todo el mundo se recibe en tres años. Y lo hice. Pero a costa, evidentemente, de un desequilibrio psíquico que se traducía en neurosis muy extrañas, como la que dio origen al cuento.
Yo vivía con mi madre en esa época. Mi madre cocinaba, siempre me encantó la cocina de mi madre, que merecía toda mi confianza. Y de golpe, empecé a notar que al comer, antes de llevarme un bocado a la boca, lo miraba cuidadosamente porque temía que se hubiera caído una mosca. Eso me molestaba profundamente porque se repetía de manera malsana. Pero ¿cómo salir de eso? Claro, cada vez que iba a comer a un restaurante era peor. Y de golpe, un día, me acuerdo muy bien, era de noche, había vuelto del trabajo, me cayó encima la noción de una cosa que sucedía en Buenos Aires, en el barrio de Medrano: una mujer muy linda, muy joven, pero de la que todo el mundo desconfiaba porque la creían una especie de bruja porque dos de sus novios se habían suicidado.
Entonces empecé a escribir un cuento sin saber el final, como de costumbre. Avancé en el cuento y lo terminé. Lo terminé y pasaron cuatro o cinco días y de pronto me descubro a mí mismo comiéndome un puchero en mi casa y cortando una tortilla y comiendo todo como siempre, sin la menor desconfianza. Creo que es uno de los cuentos más horribles que he escrito. Pero ese cuento fue un exorcismo que me curó de encontrar una cucaracha en mi comida".
También pertenece a Bestiario el breve, pero intensísimo cuento de "La casa tomada", donde dos hermanos, peculiar pareja adánica, son expulsados de su pequeño y cerrado "paraíso" y arrojados a la vida, a un mundo desconocido. Significativamente lo único que consiguen "salvar" de la casa es un reloj, que les recuerda obsesivamente su temporalidad, su condición de mortales.
Cortázar explica así ese cuento: "Ese cuento fue resultado de una pesadilla. Yo soñé ese cuento. Sólo que no estaban los hermanos. Había una sola persona que era yo. Algo que no se podía identificar me desplazaba poco a poco a lo largo de las habitaciones de uma casa, hasta la calle.
Me dominaba esa sensación que tienes en las pesadillas: el espanto es total sin que nada se defina, miedo en estado puro. Había una cosa espantosa que avanzaba, una sensación de amenaza que avanzaba y se traducía en ruidos. Yo me iba creando barricadas, cerrando puertas, hasta la última puerta que era la puerta de la calle. En ese momento me desperté: antes de llegar a la calle. Me fui inmediatamente a la máquina de escribir y escribí el cuento de una sentada".
De "La casa tomada" se dijo que era una alegoría del Peronismo y de la situación de Argentina a final de los años cuarenta. Cortázar no rechaza totalmente esta tesis: "Esa interpretación de que yo estaba traduciendo imaginativamente mi reacción como argentino ante lo que sucedía en el país, no es la mía, pero no se puede excluir. Es perfectamente posible que yo haya tenido esta sensación y que en el cuento se tradujera así, de manera fantástica y, simbólica".

Monday, November 03, 2008

Pescoço de gatinho preto

Além do mais não era a primeira vez que lhe acontecia, mas de qualquer maneira sempre tinha sido Lucho quem tomara a iniciativa, encostando a mão como que por descuido para roçar a de uma loura ou uma ruiva que lhe caía bem, aproveitando os vaivéns nas curvas do metrô, então havia uma resposta por aí, havia gancho, um dedinho que ficava preso um momento antes da cara de desagrado ou indignação, tudo dependia de tantas coisas, às vezes saía bem, corria, o resto entrava no jogo como iam entrando as estações nas janelas do vagão, mas aquela tarde acontecia de outra maneira, em primeiro lugar Lucho estava gelado e com o cabelo cheio de neve que se derretera na plataforma e gotas frias escorriam para dentro do cachecol, subira ao metrô na estação da rue du Bac sem pensar em nada, um corpo grudado a tantos outros esperando que em dado momento fosse a estufa, o copo de conhaque, a leitura do jornal antes de começar a estudar alemão entre sete e meia e nove, a mesma coisa de sempre a não ser aquela luvinha preta na barra de apoio, entre montes de mãos e cotovelos e casacos uma luvinha preta agarrada na barra metálica e ele com sua luva marrom molhada firme na barra para não cair em cima da senhora dos embrulhos e da menina chorona, de repente a consciência de que um dedo pequenino estava como que subindo a cavalo por sua luva, que aquilo vinha de uma manga de pele de coelho muito usada, a mulata parecia muito jovem e olhava para baixo como que alheia, um balanço a mais entre o balanço de tantos corpos comprimidos; aquilo parecera a Lucho um desvio da regra bastante divertido, deixou a mão solta, sem responder, imaginando que a jovem estava distraída, que não percebia aquela ligeira cavalgada no cavalo molhado e quieto. Gostaria de ter tido lugar suficiente para puxar o jornal do bolso e ler as manchetes onde se falava de Biafra, de Israel e dos Estudantes de La Plata, mas o jornal estava no bolso direito e para tirá-lo teria de soltar a mão da barra, perdendo o apoio necessário nas curvas, de modo que o melhor era ficar firme, abrindo um pequeno vácuo precário entre sobretudos e embrulhos para que a menina ficasse menos triste e sua mãe não continuasse a lhe falar naquele tom de cobrador de impostos.
Quase não tinha olhado para a jovem mulata. Agora imaginou a mecha de cabelo crespo sob o capuz do casaco e pensou criticamente que com o calor do vagão ela bem podia ter colocado o capuz para trás, justamente quando o dedo lhe acariciava de novo a luva, primeiro um dedo e depois dois subindo no cavalo úmido. A curva antes de Montparnasse-Bienvenue empurrou a jovem contra Lucho, sua mão escorregou do cavalo para segurar-se na barra, tão pequena e tola ao lado do grande cavalo que naturalmente procurava agora as cócegas com um focinho de dois dedos, sem forçar, divertido e ainda distante e úmido. A jovem pareceu perceber de repente (mas sua distração, antes, também, tivera algo de repentino e brusco), e afastou um pouco mais a mão, olhando para Lucho do vácuo escuro formado pelo capuz para depois reparar em sua própria mão como se não estivesse de acordo ou estudasse as distâncias da boa educação. Muita gente havia descido em Montparnasse-Bienvenue e Lucho já podia puxar o jornal, mas em vez de puxá-lo ficou estudando o comportamento da mãozinha enluvada com uma atenção um pouco zombeteira, sem olhar para a jovem que tinha outra vez os olhos postos nos sapatos agora bem visíveis no chão sujo onde de repente faltavam a menina chorona e tanta gente que estava descendo na estação Falguière. O solavanco obrigou as duas luvas a se crisparem na barra, separadas e agindo por sua conta, mas o trem estava parado na estação Pasteur quando os dedos de Lucho buscaram a luva preta que não se afastou como da primeira vez mas pareceu afrouxar-se na barra, tornar-se ainda menor e mais mole sob a pressão de dois, de três dedos, de toda a mão que subia numa lenta posse delicada, sem encostar-se demais, segurando e soltando ao mesmo tempo, e no vagão quase vazio agora que se abriam as portas na estação Volontaires, a moça girando pouco a pouco sobre um pé enfrentou Lucho sem levantar o rosto, como se o olhasse da luvinha coberta por toda a mão de Lucho, e quando finalmente o olhou, sacudidos os dois por um solavanco entre Volontaires e Vaugirard, seus grandes olhos metidos na sombra do capuz estavam lá como se esperassem, fixos e graves, sem o menor sorriso nem censura, sem mais nada a não ser uma espera interminável que vagamente fez mal a Lucho.
— É sempre assim — disse a jovem. — Não se pode com elas.
— Ah — disse Lucho, aceitando o jogo mas perguntando a si mesmo por que não era divertido, por que não o sentia como jogo embora não pudesse ser outra coisa, não havia razão alguma para imaginar que fosse outra coisa.
— Não se pode fazer nada — repetiu a jovem. — Não entendem ou não querem entender, sei lá, mas não se pode fazer nada contra.
Estava falando com a luva, olhando Lucho sem vê-lo, estava falando com a luvinha preta quase invisível sob sua luva marrom.
— Comigo acontece a mesma coisa — disse Lucho. — São incorrigíveis, é verdade.
— Não é a mesma coisa — disse a jovem.
— Oh, sim, você viu.
— Não vale a pena falar — disse ela, baixando a cabeça. — Desculpe, a culpa foi minha.
Era o jogo, claro, mas por que não era divertido, por que ele não o sentia como jogo embora não pudesse ser outra coisa, não havia razão alguma para imaginar que fosse outra coisa.
— Digamos que a culpa tenha sido delas — disse Lucho afastando a mão para marcar o plural, para denunciar as culpadas na barra, as enluvadas silenciosas distantes quietas na barra.
— É diferente — disse a jovem. — Você acha que é a mesma coisa, mas é tão diferente.
— Bem, sempre há uma que começa.
— É, sempre há uma.
Era o jogo, bastava seguir as regras sem imaginar que houvesse outra coisa, uma espécie de verdade ou de desespero. Por que se fazer de tolo em vez de seguir a corrente dela, se ela assim cismava.
— Você tem razão — disse Lucho. — Seria preciso fazer alguma coisa contra, não as deixar.
— Não adianta nada — disse a jovem.
— É verdade, mal a gente se distrai, você está vendo.
— Sim — disse ela. — Embora você esteja falando de brincadeira.
— Oh não, falo tão sério quanto você. Olhe para elas.
A luva marrom brincava de roçar a luvinha imóvel, passava-lhe um dedo pela cintura, soltava-a, ia até o extremo da barra e ficava olhando para ela, esperando. A moça abaixou ainda mais a cabeça e Lucho tornou a perguntar-se por que tudo aquilo não era divertido agora que não restava outra coisa senão continuar o jogo.
— Se fosse sério — disse a moça, mas não falava com ele, não falava com ninguém no vagão quase vazio. — Se fosse sério, então talvez.
— É sério — disse Lucho — e realmente não se pode fazer nada contra.
Agora ela o olhou de frente, como se acordasse; o metrô entrava na estação Convention.
— As pessoas não podem entender — disse a moça. — Quando é um homem, claro, logo se imagina que...
Vulgar, naturalmente, e ademais tinha de apressar-se porque só faltavam três estações.
— E pior ainda se for mulher — dizia a moça. — Isso já me aconteceu e eu as vigio desde que subo, o tempo todo, mas é o que você vê.
— Claro — concordou Lucho. — Chega aquele minuto em que a gente se distrai, é tão natural, e então elas aproveitam.
— Não fale por você — disse a jovem. — Não é a mesma coisa. Perdão, eu tive culpa, desço em Corentin Celton.
— Claro que teve culpa — zombou Lucho. — Eu teria de descer em Vaugirard e, veja só, obrigou-me a passar duas estações.
A curva os atirou contra a porta, as mãos deslizaram até se juntarem no extremo da barra. A jovem continuava dizendo alguma coisa, desculpando-se tolamente; Lucho sentiu outra vez os dedos da luva preta que subiam em sua mão, apertavam-na. Quando ela o soltou repentinamente murmurando uma despedida confusa, só havia uma coisa a fazer, segui-la pela plataforma da estação, pôr-se a seu lado e procurar-lhe a mão como que perdida no fim da manga, balançando sem sentido.
— Não, disse a moça. — Por favor, não. Deixe-me continuar sozinha.
— Evidente — disse Lucho sem soltar-lhe a mão. — Mas não gosto que você vá embora assim, agora. Se tivéssemos tido mais tempo no metrô...
— Para quê? De que adianta ter mais tempo?
— Talvez tivéssemos acabado por encontrar alguma coisa, juntos. Alguma coisa contra, quero dizer.
— Mas você não entende — disse ela. — Você pensa que...
— Sei lá o que penso — disse honestamente Lucho. — Sei lá se no café da esquina tem um bom café, e se há um café na esquina, porque quase não conheço este bairro.
— Há um café — disse ela — mas é ruim.
— Não me negue que sorriu.
— Não estou negando, mas o café é ruim.
— De qualquer maneira há um café na esquina.
— Sim — disse ela, e desta vez sorriu, fitando-o. — Há um café mas o café é ruim, e você acredita que eu...
— Eu não acredito nada — disse ele, e era verdade.
— Obrigada — disse incrivelmente a moça. Respirava como se escada a cansasse, e Lucho teve a impressão de que ela estava tremendo, mas outra vez a luva preta pequenina dependurada morna inofensiva ausente, outra vez a sentia viver entre seus dedos, contorcer-se, apertar-se enroscar-se bolir estar bem estar morna estar contente acariciante preta luva pequenina dedos dois três quatro cinco um, dedos procurando dedos e luva em luva, preto em marrom, dedo entre dedo, um entre um e três, dois entre dois e quatro. Aquilo acontecia, balançava-se ali perto de seus joelhos, não havia nada a fazer, era agradável e não havia nada a fazer ou era desagradável mas de qualquer jeito não havia nada a fazer, aquilo acontecia ali e não era Lucho quem estava brincando com a mão que metia os dedos entre os seus e se enroscava e bolia, e também não de certo modo a moça que arfava ao chegar no alto da escada e erguia o rosto contra a garoa como se quisesse lavá-lo do ar parado e quente das galerias do metrô.
— Moro ali — disse a moça, mostrando uma janela alta entre tantas janelas de tantos altos imóveis iguais na calçada oposta. — Podíamos fazer um nescafé, é melhor do que ir a um bar, eu acho.
— Ah, sim — disse Lucho, e agora eram seus dedos que iam se fechando lentamente em cima da luva como quem aperta o pescoço de um gatinho preto. O quarto era bastante grande e muito quente, com uma azaléia e um abajur de pé e discos de Nina Simone e uma cama desmanchada que a jovem envergonhadamente e desculpando-se refez aos puxões. Lucho ajudou a colocar xícaras e colheres na mesa perto da janela, fizeram um nescafé forte e doce, ela se chamava Dina e ele Lucho. Contente, como que aliviada, Dina falava da Martinica, de Nina Simone, em certos momentos dava impressão de apenas núbil dentro daquele vestido liso cor de lacre, a minissaia assentava-lhe bem, trabalhava num cartório, as fraturas de tornozelo eram penosas mas esquiar em fevereiro na Haute Savoie, ah. Duas vezes ficara olhando-o, começara a dizer alguma coisa com o tom da barra do metrô, mas Lucho gracejara, já decidido a dar o basta, a outra coisa, inútil insistir e ao mesmo tempo admitindo que Dina sofria, que talvez lhe fizesse mal renunciar tão depressa à comédia como se isso tivesse agora a menor importância. E na terceira vez, quando Dina se inclinara para jogar água quente em sua xícara, murmurando de novo que não era culpa dela, que só lhe acontecia de vez em quando, que ele já via como tudo era diferente agora, a água e a colherinha, a obediência de cada gesto, então Lucho tinha compreendido mas sabe-se lá o quê, de repente tinha compreendido e era diferente, era do outro lado, a barra valia, o jogo não tinha sido um jogo, as fraturas do tornozelo e o esqui podiam ir para o inferno agora que Dina falava de novo sem que ele a interrompesse ou a desviasse, deixando-a, sentindo-a quase esperando-a, acreditando porque era absurdo, a menos que só fosse porque Dina com sua carinha triste, seus seios miúdos que desmentiam o trópico, simplesmente porque Dina. Talvez tenha de me internar, dissera Dina sem exagero, como um simples ponto de vista. Não se pode viver assim, compreenda, em qualquer momento ocorre, você é você, mas outras vezes. Outras vezes o quê. Outras vezes insultos, taponas nas nádegas, deitar-se logo, menina, para que perder tempo. Mas então. Então o quê. Mas então, Dina.
— Pensei que tivesse compreendido — disse Dina, hostil. — Quando lhe digo que talvez fosse necessário me internar.
— Bobagens. Mas eu, no começo...
— Já sei. Como não ia lhe ocorrer no começo. Justamente é isso, no começo qualquer um se engana, é tão lógico. Tão lógico, tão lógico. E me internar também seria lógico.
— Não, Dina.
— Mas sim, porra. Perdoe-me. Mas sim. Seria melhor que a outra coisa, que tantas vezes. Ninfo não sei das quantas. Putinha, machona. Seria bem melhor afinal de contas. Ou eu mesma cortá-las com o machado de picar carne. Mas não tenho um machado — disse Dina sorrindo-lhe como para que a perdoasse mais uma vez, tão absurda recostada na poltrona, escorregando cansada, perdida, com a minissaia cada vez mais para cima, esquecida de si mesma, só as olhando tomar uma xícara, botar nescafé, obedientes, hipócritas laboriosas machonas putinhas ninfo não sei das quantas.
— Não diga bobagens — repetiu Lucho, perdido em algo que brincava de qualquer coisa, de desejo, de desconfiança, de proteção. — Já sei que não é normal, seria necessário encontrar as causas, seria necessário que. De qualquer maneira para que ir tão longe. A internação ou o machado, quero dizer.
— Quem sabe — disse ela. — Talvez fosse necessário ir muito longe, até o fim. Talvez fosse a única maneira de sair.
— O que quer dizer longe? — perguntou Lucho, cansado. — E qual é o fim?
— Não sei, não sei de nada. Só tenho medo. Eu também ficaria impaciente se outra pessoa me falasse dessa maneira, mas há dias em que. Sim, dias. E noites.
— Ah — disse Lucho aproximando o fósforo do cigarro. — Porque também de noite, claro.
— Sim.
— Mas não quando está sozinha.
— Também quando estou sozinha.
— Também quando está sozinha. Ah.
— Entenda, quero dizer que.
— Está bem — disse Lucho, tomando o café. — Está muito bom, muito quente. O que precisávamos num dia como este.
Obrigada — disse ela simplesmente, e Lucho a olhou porque não quisera agradecer-lhe nada, simplesmente sentia a recompensa daquele momento de repouso, de que a barra afinal tivesse acabado.
— Apesar de que não era ruim nem desagradável — disse Dina como se adivinhasse. — Não me incomodo que você não acredite, mas para mim não era ruim nem desagradável, da primeira vez.
— Da primeira vez o quê?
— Isso mesmo, que não fosse ruim nem desagradável.
— Que começassem a..?
— Sim, que de novo começassem a, e que não fosse ruim nem desagradável.
— Alguma vez levaram você presa por causa disso? — perguntou Lucho, descendo a xícara até o pires com um movimento lento e deliberado, guiando sua mão para que a xícara pousasse exatamente no meio do pires. Contagioso, che.
— Não, nunca, mas em compensação... Tem outras coisas. Já lhe disse, os que pensam que é de propósito e também eles começam, como você. Ou se enfurecem, como as mulheres, é preciso descer na primeira estação ou sair correndo da loja ou do café.
— Não chore — disse Lucho. — Não vamos ganhar nada se você começar a chorar.
— Não quero chorar — disse Dina. — Mas nunca pude falar com alguém desta maneira, depois de... Ninguém me acredita, ninguém pode me acreditar, você mesmo não acredita em mim, só que é bom e não quer me fazer mal.
— Agora acredito — disse Lucho. — Até dois minutos atrás eu era como os outros. Talvez você devesse rir em vez de chorar.
— Já vê — disse Dina fechando os olhos. — Já vê que é inútil. Você também não, embora o diga, embora acredite. É idiota demais.
— Você já fez exames?
— Sim. Sabe como é, calmantes e mudanças de ar. Durante algum tempo a gente se engana, pensa que...
— Sim — disse Lucho, estendendo-lhe os cigarros. — Espere.
Assim. — Vamos ver o que faz.
A mão de Dina pegou o cigarro com o polegar e o indicador, e ao mesmo tempo o anular e o dedo mínimo trataram de enroscar-se nos dedo de Lucho, que mantinha o braço estendido, olhando fixo. Livre do cigarro, seus cinco dedos desceram até envolver a pequena mão morena, cingiram-na apenas, começando uma lenta carícia que deslizou até deixá-la livre, tremendo no ar; o cigarro caiu dentro da xícara. Subitamente as mãos subiram até o rosto de Dina, dobrada em cima da mesa, quebrando-se num soluço como de vômito.
— Por favor — disse Lucho, levantando a xícara. — Por favor, não. Não chore dessa maneira, é tão absurdo.
— Não quero chorar — disse Dina. — Não deveria chorar, ao contrário, mas você vê.
— Tome, vai lhe fazer bem, está quente; eu faço outro para mim, espere eu lavar a xícara.
— Não, deixe que eu lavo.
Levantaram-se ao mesmo tempo, encontraram-se na beira da mesa. Lucho tornou a deixar a xícara suja em cima da toalha da mesa; as mãos estavam penduradas murchas contra os corpos; só os lábios se roçaram, Lucho encarando-a bem e Dina com os olhos fechados, as lágrimas.
— Talvez — murmurou Lucho —, talvez seja isto o que devemos fazer, a única coisa que devemos fazer, e então.
— Não, não, por favor — disse Dina, imóvel e sem abrir os olhos. — Você não sabe o que... Não, melhor não, melhor não.
Lucho lhe cingira os ombros, apertava-a devagar contra ele, sentia-a respirar contra sua boca, um hálito quente com cheiro de café e de pele morena. Beijou-a em plena boca, afundando-se nela, procurando-lhe os dentes e a língua; o corpo de Dina afrouxava em seus braços, quarenta minutos antes sua mão acariciara a dela na barra de um assento de metrô, quarenta minutos antes uma luva preta pequenina em cima de uma luva marrom. Sentia-se resistir debilmente, repetir a negativa na qual tinha havido como que o começo de uma prevenção, mas tudo nela cedia, nos dois, agora os dedos de Dina subiam lentamente pelas costas de Lucho, seu cabelo entrava nos olhos, seu cheiro era um cheiro sem palavras nem prevenções, a colcha azul contra seus corpos, os dedos obedientes procurando os fechos, dispersando roupas, cumprindo as ordens, as suas e as de Dina contra a pele, entre as coxas, as mãos como as bocas e os joelhos e agora os ventres e a cinturas, uma súplica murmurada, uma pressão resistida, um atirar-se para trás, um instantâneo movimento para transferir da boca aos dedos e dos dedos aos sexos aquela espuma quente que a tudo nivelava, que num mesmo movimento unia seus corpos e os lançava ao jogo. Quando acenderam os cigarros na escuridão (Lucho tinha querido apagar o abajur e o abajur caíra no chão com um ruído de vidros quebrados, Dina erguera-se como se estivesse aterrada, recusando-se à escuridão, falara em acender ao menos uma vela e em descer para comprar outra lâmpada, mas ele tornara a abraçá-la na sombra e agora fumavam e se entreviam em cada aspiração da fumaça, e se beijavam de novo), lá fora chovia obstinadamente, o quarto reaquecido os mantinha nus e lassos, roçando-se com mãos e cinturas e cabelos se deixavam estar, acariciavam-se interminavelmente, viam-se com um tato repetido e úmido, cheiravam-se na sombra murmurando uma felicidade de monossílabos e diástoles. Em algum momento as perguntas voltariam, as afugentadas que a escuridão guardava nos cantos ou debaixo da cama, mas quando Lucho quis saber, ela se atirou em cima dele com a pele úmida e calou-lhe a boca com beijos, mordidas suaves, só muito mais tarde, com outros cigarros entre os dedos, disse-lhe que morava sozinha, que ninguém durava, que era inútil, que era preciso acender uma luz, que do trabalho para casa, que nunca tinha sido amada, que aquela doença, tudo como se no fundo não se importasse ou fosse importante demais para que as palavras adiantassem alguma coisa, ou talvez como se tudo aquilo não fosse durar além da noite e pudesse prescindir de explicações, alguma coisa mal começada numa barra de metrô, algo em que sobretudo era necessário acender uma luz.
— Tem uma vela em algum lugar — insistira monotonamente, rejeitando as carícias dele. — Já é tarde para descer e comprar uma lâmpada. Deixe-me procurar, deve estar em alguma gaveta. Dê-me os fósforos. Não devemos ficar no escuro. Dê-me os fósforos.
— Não acenda ainda — disse Lucho. — Está bom assim, sem nos vermos.
— Não quero. Está bom assim mas você já sabe, já sabe. Às vezes.
— Por favor — disse Lucho, tateando no chão para encontrar os cigarros —, tínhamos esquecido por algum tempo... Por que é que você torna a começar? Estava bom assim.
— Deixe-me procurar a vela — repetiu Dina.
Procure, tanto faz — disse Lucho estendendo-lhe os fósforos. A chama flutuou no ar pesado do quarto desenhando apenas o corpo pouco menos negro que a escuridão, um brilho de olhos e de unhas, outra vez trevas, riscar de outro fósforo, escuridão, riscar de outro fósforo, movimento repentino da chama que se apagava no fundo do quarto, uma breve corrida como que sufocada, o peso do corpo nu caindo enviesado sobre o dele, machucando-o contra as costelas, seu arfar. Abraçou-a com força, beijando-a sem saber do que ou por que tinha de aclamá-la, murmurou-lhe palavras de alívio, estendeu-a contra ele, debaixo dele, possuiu-a docemente e quase sem desejo a partir de uma longa fadiga, penetrou-a e a remontou sentindo-a crispar-se e ceder e abrir-se e agora, agora, já, agora, assim, já, e a ressaca devolvendo-os e um descanso de barriga para cima olhando o nada, ouvindo a noite latejar com um sangue de chuva lá fora, interminável grande ventre da noite guardando-os dos medos, de barras de metrô e lâmpadas quebradas e fósforos que a mão de Dina não tinha querido segurar, que dobrara para baixo para queimar-se e queimá-la, quase como um acidente porque na escuridão o espaço e as posições mudam e se é desajeitado como uma criança mas depois o segundo fósforo amassado entre o dedos, caranguejo enraivecido queimando-se contanto que destrua a luz, então Dina tratara de acender o último fósforo com a outra mão e tinha sido pior, não podia nem dizer a Lucho que a ouvia a partir de um medo vago, um cigarro sujo. Não está percebendo que não querem, é outra vez. Outra vez que. Isso. Outra vez que. Não, nada, é preciso achar a vela. Eu vou procurá-la, dê-me os fósforos. Caíram lá, no canto. Fique quieta, espere. Não, não vá, por favor não vá. Deixe-me, eu vou achá-los. Vamos juntos, é melhor. Não, me deixe, eu vou encontrá-los, me diga onde pode estar essa maldita vela. Por aí, na estante, se você acendesse um fósforo, talvez. Não vai se ver nada, deixe eu ir. Empurrando-a devagar, desatando-lhe as mãos que o cingiam pela cintura, levantando-se pouco a pouco. O puxão no sexo o fez gritar mais de surpresa que de dor, procurou como um chicote o punho que o prendia a Dina estendida de costas e gemendo, abriu-lhe os dedos e a empurrou violentamente. Escutava-a a chamá-lo, a pedir-lhe que voltasse, que não tornaria a acontecer, que a culpa era dele por teimar. Orientando-se em direção ao que pensava ser o canto, agachou-se junto à coisa que podia ser a mesa e tateou procurando os fósforos, pareceu-lhe encontrar um mas era comprido demais, talvez um palito de dentes, e a caixa não estava lá, as palmas das mãos percorriam o velho tapete, arrastava-se de joelhos debaixo da mesa; achou um fósforo, depois outro, mas a caixa não; contra o assoalho parecia ainda mais escuro, cheirava a abafado e a tempo. Sentiu os ganchos que lhe corriam pelas costas, subindo até a nuca e o cabelo, ergueu-se de um salto empurrando Dina que gritava contra ele e dizia alguma coisa sobre a luz no patamar da escada, abrir a porta e a luz da escada, mas claro, como não tinham pensado antes, onde estava a porta, ali defronte, não podia saber que a mesa ficava do lado, embaixo da janela, estou lhe dizendo que aí, então vá você que sabe, vamos os dois, não quero ficar sozinha agora, então me solte, você me machuca, não posso, digo que não posso, me solte ou bato em você, não, não, me solte, estou lhe dizendo. O empurrão o deixou sozinho frente a um arfar, alguma coisa que tremia ali ao lado, muito perto; esticando os braços avançou em busca de uma parede, imaginando a porta; tocou numa coisa quente que o evitou com um grito, sua outra mão fechou-se sobre a garganta de Dina como se apertasse uma luva ou o pescoço de um gatinho preto, a queimadura lhe dilacerou a face e os lábios, roçando-lhe um olho, jogou-se para trás para livrar-se daquilo que continuava apertando a garganta de Dina, caiu de costas no tapete, arrastou-se de lado sabendo o que ia acontecer, um vento quente em cima dele, o espinhal de unhas contra seu ventre e suas costelas, eu lhe disse, eu lhe disse que não podia ser, que acendesse a vela, procure a porta logo, a porta. Arrastando-se longe da voz suspensa em algum ponto do ar negro, num soluço de asfixia que se repetia e repetia, deu com a parede, percorreu-a erguendo-se para sentir uma moldura, uma cortina, a outra moldura, a maçaneta; um ar gélido misturou-se ao sangue que lhe enchia os lábios, tateou procurando o interruptor da luz, ouviu atrás a corrida e o alarido de Dina, seu golpe contra a porta encostada, devia ter batido de testa, de nariz na porta, a porta fechando-se atrás dele justamente no momento em que apertava o interruptor da luz. O vizinho que espiava da porta em frente olhou-o e com uma exclamação sufocada meteu-se para dentro e trancou a porta, Lucho nu no patamar o amaldiçoou e passou os dedos pelo rosto que ardia enquanto tudo mais era o frio do patamar, os passos que subiam correndo do primeiro andar, abra, abra logo, pelo amor de Deus abra, já tem luz, abra que já tem luz. Dentro o silêncio e como que uma espera, a velha embrulhada no roupão roxo olhando de baixo, um berro, sem-vergonha, a esta hora, depravado, a polícia, são todos iguais, madame Roger, madame Roger! "Não vai abrir", pensou Lucho sentando no primeiro degrau, tirando o sangue da boca e dos olhos, "desmaiou por causa do golpe e está aí no chão, não vai abrir, sempre a mesma coisa, que frio, que frio." Começou a bater na porta enquanto ouvia as vozes no apartamento em frente, a corrida da velha que descia chamando madame Roger, o edifício que acordava nos andares de baixo, perguntas e rumores, um momento de espera, nu e cheio de sangue, um louco furioso, madame Roger, abra Dina, abra, não importa que tenha sido sempre assim, éramos outra coisa, Dina, poderíamos encontrar juntos, porque você está aí no chão, o que foi que eu fiz, por que você bateu contra a porta, madame Roger, se você me abrisse acharíamos a saída, você já viu antes, já viu como ia tudo tão bem, simplesmente acender a luz e continuarmos procurando os dois, mas você não quer me abrir, está chorando, miando como um gato machucado, eu a ouço, eu a ouço, ouço madame Roger, a polícia, e você grande filho da puta por que me espia dessa porta, abra, Dina, ainda podemos achar a vela, nos lavaremos, estou com frio, Dina, eles vêm aí com um cobertor, é típico, um homem nu se embrulha com um cobertor, terei de dizer-lhes que você está aí jogada, que tragam outro cobertor, que ponham a porta abaixo, que limpem sua cara, que cuidem de você e a protejam porque eu já não estarei aí, nos separarão logo, você vai ver, vão nos descer separados e nos levarão longe um do outro, qual é a mão que você vai procurar Dina, que cara vai arranhar agora enquanto a levam entre todos e madame Roger.

Julio Cortázar - Octaedro

Saturday, November 01, 2008

Manuscrito achado num bolso

Agora que escrevo, para outros isto podia ter sido a roleta ou o hipódromo, mas não era dinheiro que eu procurava, em dado momento tinha começado a sentir, a decidir que uma vidraça de janela no metrô podia me trazer a resposta, o encontro com uma felicidade, precisamente aqui, onde tudo acontece sob o signo da mais implacável ruptura, dentro de um tempo subterrâneo que um trajeto entre estações desenha e limita assim inapelavelmente embaixo. Digo ruptura para compreender melhor (teria de compreender tantas coisas desde que comecei a jogar o jogo) aquela esperança de uma convergência que talvez me fosse dada no reflexo em uma vidraça de janela. Ultrapassar a ruptura que as pessoas não parecem observar embora sabe-se lá o que pensam essas pessoas agoniadas que sobem e descem dos vagões do metrô, o que procura além do transporte essa gente que sobe antes ou depois para descer depois ou antes, que só coincide numa zona do vagão onde tudo está decidido por antecipação sem que ninguém possa saber se sairemos juntos, se eu descerei em primeiro lugar ou esse homem magro com um rolo de papéis, se a velha de verde continuará até o fim, se esses meninos descerão agora, é claro que descerão, porque recolhem seus cadernos e suas réguas, aproximam-se rindo e brincando da porta enquanto lá no canto uma jovem se instala para demorar, para permanecer ainda por muitas estações no assento enfim livre, e aquela outra jovem é imprevisível, Ana era imprevisível, mantinha-se muito tesa contra o encosto no assento da janela, já estava lá quando subi na estação Etienne Marcel e um negro abandonou o assento em frente e a ninguém pareceu interessar e eu pude escorregar com uma vaga desculpa por entre os joelhos dos dois passageiros sentados nos assentos externos e fiquei defronte de Ana e quase em seguida, porque tinha descido ao metrô para jogar mais uma vez o jogo, procurei o perfil de Margrit no reflexo da vidraça da janela e pensei que era bonita, que eu gostava de seu cabelo preto com uma espécie de asa breve que penteava em diagonal à testa.
Não é verdade que o nome de Margrit ou o de Ana viessem depois ou que sejam agora uma maneira de diferenciá-las por escrito, coisas assim eram decididas instantaneamente pelo jogo, quero dizer que de maneira alguma o reflexo na vidraça da janela podia chamar-se Ana, assim como também não podia chamar-se Margrit a jovem sentada frente a mim sem me olhar, com os olhos perdidos no fastio daquele interregno em que todo mundo parece consultar uma área de visão que não é a circundante, salvo as crianças que olham fixo e em cheio para as coisas até o dia em que lhes ensinam a situar-se também nos interstícios, a olhar sem ver com aquela ignorância cortês de toda presença vizinha, de todo contato sensível, cada qual instalado em sua bolha, alinhado entre parênteses, cuidando em manter o mínimo de espaço entre joelhos e cotovelos alheios, refugiando-se no France-Soir ou em livros de bolso, embora quase sempre como Ana, uns olhos se situando no oco entre o verdadeiramente observável, naquela distância neutra e estúpida que ia de minha cara à do homem concentrado no Figaro. Mas então Margrit, se eu podia prever alguma coisa era que em dado momento Ana se voltaria distraída para a janela e então Margrit veria meu reflexo, o cruzamento de olhares nas imagens daquela vidraça onde a escuridão do túnel põe seu mercúrio atenuado, sua felpa roxa e móvel que dá às caras uma vida em outros planos, tira-lhes aquela horrível máscara de giz das luzes municipais do vagão e sobretudo, oh, sim, você não poderia negar, Margrit, as obriga a olhar de verdade aquela outra cara do vidro porque durante o tempo instantâneo do olhar duplo não há censura, meu reflexo na vidraça não era o homem sentado defronte de Ana e que Ana não devia olhar em cheio num vagão de metrô, e ademais quem estava olhando meu reflexo já não era Ana e sim Margrit no momento em que Ana desviara rapidamente o olhar do homem sentado defronte dela porque não ficava bem que olhasse para ele, e ao voltar-se para o vidro da janela tinha visto meu reflexo que esperava aquele instante para sorrir ligeiramente sem insolência nem esperança quando o olhar de Margrit caísse como um pássaro em seu olhar. Deve ter durado um segundo, talvez um pouco mais porque senti que Margrit havia percebido aquele sorriso que Ana reprovava embora não fosse mais que por causa do gesto de baixar o rosto, de examinar vagamente o fecho de sua bolsa de couro vermelho; e era quase justo continuar sorrindo se bem que Margrit já não me olhasse porque de alguma maneira o gesto de Ana acusava meu sorriso, seguia-a sabendo e já não era necessário que ela ou Margrit olhassem para mim aplicadamente concentradas na miúda tarefa de experimentar o fecho da bolsa vermelha.
Assim foi com Paula (com Ofélia) e com tantas outras que se tinham concentrado na tarefa de verificar um fecho, um botão, a dobra de uma revista, mais uma vez foi o poço onde a esperança se enredava com o temor numa intensa cãibra de aranhas até a morte, onde o tempo começava a latejar como um segundo coração no pulso do jogo; desde esse momento cada estação do metrô era uma trama diferente do futuro porque o jogo decidira daquela maneira; o olhar de Margrit e meu sorriso, o recuo instantâneo de Ana à contemplação do fecho da bolsa eram a abertura de uma cerimônia que um belo dia começara a celebrar contra tudo quanto fosse razoável, preferindo os piores desencontros às correntes estúpidas de uma casualidade cotidiana. Explicá-lo não é difícil mas jogá-lo tinha muito de combate às cegas, trêmula suspensão coloidal na qual todo itinerário erguia uma árvore de imprevisível percurso. Um plano do metrô de Paris define em seu esqueleto mondrianesco, em seus galhos vermelhos, amarelos, azuis e pretos uma vasta porém limitada superfície de subtendidos pseudópodes; e aquela árvore está viva vinte horas em cada vinte e quatro, uma seiva atormentada a percorre com finalidades precisas, a que desce em Châtelet ou sobe em Vaugirard, a que em Odéon muda para continuar até La Motte-Picquet, as duzentas, trezentas, sabe-se lá quantas possibilidades de combinação para que cada célula codificada e programada ingresse num setor da árvore e aflore em outro, saia das Galeries Lafayette para depositar um embrulho de toalhas ou um abajur num terceiro andar da rue Gay-Lussac.
Minha regra do jogo era maniacamente simples, era bela, estúpida e tirânica, se eu gostava de uma mulher, se eu gostava de uma mulher sentada à minha frente, se eu gostava de uma mulher sentada em frente a mim junto da janela, se seu reflexo na janela cruzava o olhar com meu reflexo na janela, se meu sorriso no reflexo da janela perturbava ou agradava ou rejeitava o reflexo da mulher na janela, se Margrit me via sorrir e então Ana baixava a cabeça e começava a examinar atentamente o fecho de sua bolsa vermelha, então havia jogo, dava exatamente na mesma que o sorriso fosse aceito ou respondido ou ignorado, o primeiro tempo da cerimônia não ia além disso, um sorriso registrado por quem o havia merecido. Então começava o combate no poço, as aranhas no estômago, a espera com seu pêndulo de estação em estação. Lembro-me de como acordei naquele dia: agora eram Margrit e Ana, mas uma semana atrás tinham sido Paula e Ofélia, a moça loura descera numa das piores estações, Montparnasse-Bienvenue, que abre sua hidra mal-cheirosa às máximas possibilidades de fracasso. Minha conexão era com a linha da Porte de Vanves e quase em seguida, no primeiro corredor, compreendi que Paula (que Ofélia) tomaria o corredor que levava à conexão com a Mairie d'Issy. Impossível fazer alguma coisa, só olhar para ela pela última vez no cruzamento dos corredores, vê-la afastar-se, descer uma escada. A regra do jogo era aquela, um sorriso na vidraça da janela e o direito de seguir uma mulher e esperar desesperadamente que sua conexão coincidisse com a decidida por mim antes de cada viagem; e então — sempre, até agora — vê-la tomar outro corredor e não poder segui-la, obrigado a voltar ao mundo de cima e entrar num café e continuar vivendo até que pouco a pouco, horas ou dias ou semanas, a sede de novo reclamando a possibilidade de que tudo coincidisse eventualmente, mulher e vidraça da janela, sorriso aceito ou rejeitado, conexões de trens e então finalmente sim, então o direito de aproximar-se e dizer a primeira palavra, espessa de tempo estancado, de interminável pilhagem no fundo do poço entre as aranhas da cãibra.
Agora entrávamos na estação de Saint-Sulpice, alguém do meu lado se levantava e ia embora, também Ana ficava sozinha diante de mim, deixara de olhar a bolsa e uma ou duas vezes seus olhos me varreram distraidamente antes de se perderem no anúncio de termas que se repetia nos quatro cantos do vagão. Margrit não tinha voltado a olhar para mim na janela mas aquilo provava o contato, seu latejar sigiloso; Ana era talvez tímida ou simplesmente lhe parecia absurdo aceitar o reflexo daquela cara que voltaria a sorrir para Margrit; e além disso chegar a Saint-Sulpice era importante porque, se ainda faltavam oito estações até o final do percurso na Porte D'Orléans, só três tinham conexões com outras linhas, e só se Ana descesse numa daquelas três me restaria a possibilidade de coincidir; quando o trem começava a frear em Saint-Placide olhei e olhei para Margrit procurando-lhe os olhos que Ana continuava encostando suavemente nas coisas do vagão como que admitindo que Margrit não olharia mais para mim, que era inútil esperar que voltasse a olhar o reflexo que a esperava para sorrir-lhe.
Não desceu em Saint-Placide, soube-o antes que o trem começasse a frear, existe esse preparativo do viajante, sobretudo das mulheres que nervosamente verificam embrulhos, atam o casaco ou olham de lado ao levantar-se, evitando joelhos naquele instante em que a perda de velocidade trava e estonteia os corpos. Ana repassava vagamente os anúncios da estação, a cara de Margrit foi se apagando sob as luzes da plataforma e não pude saber se tinha voltado a olhar para mim; também meu reflexo não teria sido visível naquela maré de néon e anúncios fotográficos, de corpos entrando e saindo. Se Ana descesse em Mont-parnasse-Bienvenue minhas possibilidades eram mínimas, como não me lembrar de Paula (de Ofélia) lá onde uma possível conexão quádrupla estreitava qualquer previsão; e entretanto no dia de Paula (de Ofélia) tivera certeza absoluta de que coincidiríamos, até o último momento caminhava a três metros daquela mulher lenta e loura, que parecia vestida de folhas secas, e sua bifurcação à direita me envolvera a cara como uma chicotada. Por isso agora Margrit não, por isso o medo, de novo podia ocorrer abominavelmente em Montparnasse-Bienvenue; a lembrança de Paula (de Ofélia), as aranhas no poço contra a miúda confiança em que Ana (em que Margrit). Mas ninguém pode contra aquela ingenuidade que nos vai deixando viver, quase imediatamente disse comigo mesmo que talvez Ana (que talvez Margrit) não descesse em Montparnasse-Bienvenue, mas em uma das outras estações possíveis, que talvez não descesse nas intermediárias, onde não me era dado segui-la; que Ana (que Margrit) não desceria em Montparnasse-Bienvenue (não desceu), que não desceria em Vavin, e não desceu, que talvez descesse em Raspail, que era a primeira das duas últimas possíveis; e quando não desceu e eu soube que só restava uma estação na qual podia segui-la contra as três finais em que tudo já dava na mesma, procurei de novo os olhos de Margrit na vidraça da janela, chamei-a de um silêncio e de uma imobilidade que deveriam chegar até ela como uma exigência, como um marulho, sorri-lhe com o sorriso que Ana já não podia ignorar, que Margrit tinha de admitir embora não olhasse para meu reflexo açoitado pelas meias-luzes do túnel desembocando em Denfert-Rochereau. Talvez o primeiro golpe dos freios tenha feito tremer a bolsa vermelha nas coxas de Ana, talvez só o tédio lhe mexesse a mão até a mecha preta que atravessava sua testa; naqueles três, quatro segundos em que o trem se imobilizava na plataforma, as aranhas cravaram suas unhas na pele do poço para mais uma vez me vencer partindo de dentro; quando Ana se ergueu com uma só e límpida flexão de seu corpo, quando a vi de costas entre os passageiros, acho que procurei ainda absurdamente o rosto de Margrit na vidraça ofuscado de luzes e movimento. Saí como que sem o saber, sombra passiva daquele corpo que descia na plataforma, até despertar para o que viria, para a dupla escolha final cumprindo-se irrevogável.
Penso que está claro, Ana (Margrit) tomaria um caminho cotidiano ou circunstancial, enquanto antes de subir naquele trem eu decidira que se alguém entrasse no jogo e descesse em Denfert-Rochereau, minha conexão seria a linha Nation-Étoile, da mesma maneira que se Ana (que se Margrit) tivesse descido em Châtelet só poderia segui-la no caso de tomar a conexão Vincennes-Neuilly. No último momento da cerimônia o jogo estava perdido se Ana (se Margrit) tomasse a conexão da Ligne de Sceaux ou saísse diretamente à rua; imediatamente, mesmo porque naquela estação não havia os intermináveis corredores de outras vezes e as escadas conduziam rapidamente ao destino, àquilo que nos meios de transporte também se chamava destino. Eu a via mexer-se entre as pessoas, sua bolsa vermelha como um pêndulo de brinquedo, erguendo a cabeça à procura dos letreiros indicadores, vacilando um instante até orientar-se para a esquerda; mas a esquerda era a saída que levava à rua.
Não sei como dizer, as aranhas mordiam demais, não fui desonesto no primeiro minuto, simplesmente a segui para depois talvez admitir, deixá-la partir para qualquer de seus rumos lá em cima; no meio da escada compreendi que não, que talvez a única maneira de matá-las fosse negar ao menos uma vez a lei, o código. A cãibra que me crispara naquele segundo em que Ana (em que Margrit) começava a subir a escada proibida cedia lugar de repente a uma fadiga sonolenta, a um golem de lentos degraus; recusei-me a pensar, bastava saber que continuava a vê-la, que a bolsa vermelha subia em direção à rua, que a cada passo o cabelo preto lhe tremia nos ombros. Já era de noite e o ar estava gelado, com alguns flocos de neve entre rajadas e chuvisco; sei que Ana (que Margrit) não teve medo quando me coloquei a seu lado e lhe disse: "Não é possível que nos separemos assim, antes de nos termos encontrado."
No café, mais tarde, agora somente Ana enquanto o reflexo de Margrit cedia a uma realidade de cinzano e palavras, disse-me que não compreendia nada, que se chamava Marie-Claude, que meu sorriso no reflexo lhe fizera muito mal, que em dado momento pensara em se levantar e mudar de lugar, que não tinha me visto segui-la e que na rua não sentira medo, contraditoriamente, olhando nos meus olhos, bebendo seu cinzano, sorrindo sem se envergonhar de sorrir, de ter aceitado quase em seguida minha abordagem em plena rua. Naquele momento de uma felicidade como que esparramada, de abandono a um deslizar cheio de álamos, não podia dizer-lhe o que ela teria imaginado como loucura ou mania e que era assim mas de outra maneira, de outras margens da vida; falei-lhe de sua mecha de cabelo, de sua bolsa vermelha, de seu modo de olhar para o anúncio das termas, de que não lhe tinha sorrido por donjuanismo nem tédio mas para dar-lhe uma flor que não possuía, o sinal de que gostava dela, de que me fazia bem, de que viajar defronte dela, de que outro cigarro e outro cinzano. Em nenhum momento fomos enfáticos, falamos como de algo já conhecido e aceito, olhando-nos sem nos machucar, acho que Maria-Claude me deixava vir e estar em seu presente como talvez Margrit teria respondido a meu sorriso na vidraça se não houvesse de permeio tantas idéias preconcebidas, tanto não deve responder se falarem com você na rua ou lhe oferecerem balas e quiserem levá-la ao cinema, até que Maria-Claude, já libertada de meu sorriso a Margrit, Marie-Claude na rua e o café pensara que era um bom sorriso, que o desconhecido lá de baixo não tinha sorrido para Margrit para tatear outro terreno, e minha maneira absurda de abordá-la tinha sido a única compreensível, a única razão para dizer que sim, que podíamos beber um drinque e conversar num café.
Não me lembro o que pude contar-lhe de mim, talvez tudo a não ser o jogo mas então só isso, em dado momento rimos, alguém fez a primeira piada, descobrimos que gostávamos dos mesmos cigarros e de Catherine Deneuve, deixou-me acompanhá-la até a entrada de sua casa, estendeu-me a mão com firmeza e consentiu no mesmo café à mesma hora de terça-feira. Peguei um táxi para voltar a meu bairro, pela primeira vez em mim mesmo como num incrível país estrangeiro, repetindo-me que sim, que Marie-Claude, que Denfert-Rochereau, apertando as pálpebras para guardar melhor seu cabelo preto; aquela maneira de mexer a cabeça de lado antes de falar, de sorrir. Fomos pontuais e nos contamos filmes, trabalho, verificamos diferenças ideológicas parciais, ela continuava me aceitando como se maravilhosamente lhe bastasse aquele presente sem razões, sem interrogação; nem parecia perceber que qualquer imbecil a teria tomado por fácil ou tola; acatando inclusive que eu não tratasse de compartilhar o mesmo banco no café, que no percurso da rue Froidevaux não lhe passasse o braço pelo ombro no primeiro sinal de uma intimidade, que a sabendo quase só — uma irmã mais moça, muitas vezes ausente do apartamento do quarto andar — não lhe pedisse para subir. Se de alguma coisa não podia desconfiar era das aranhas, tínhamo-nos encontrado três ou quatro vezes sem que mordessem, imóveis no poço e esperando até o dia em que eu soube como se não tivesse sabido o tempo todo, mas às terças-feiras, chegar ao café, imaginar que Marie-Claude já estaria lá ou vê-la entrar com seus passos ágeis, sua morena recorrência que lutara inocentemente contra as aranhas outra vez acordadas, contra a transgressão do jogo que só ela tinha podido defender apenas me dando uma breve, morna mão, somente aquela mecha de cabelo que passeava por sua testa. Em dado momento deve ter percebido, ficou calada olhando para mim, esperando; já era impossível que não me delatasse o esforço para fazer durar a trégua, para não admitir que voltavam pouco a pouco apesar de Marie-Claude, contra Marie-Claude que não podia compreender, que ficava calada olhando para mim, esperando; beber e fumar e falar-lhe, defendendo até o fim o doce interregno sem aranhas, saber de sua vida simples e com horário e irmã estudante e alergias, desejar tanto aquela mecha preta que lhe penteava a testa, desejá-la como um término, como realmente a última estação do último metrô da vida, e então o poço, a distância de minha cadeira àquele banquinho em que nos teríamos beijado, em que minha boca teria bebido o primeiro perfume de Maria-Claude antes de levá-la abraçada até sua casa, subir aquela escada, despir-nos finalmente de tanta roupa e tanta espera.
Então eu lhe disse, lembro-me do muro do cemitério e de que Marie-Claude encostou-se nele e me deixou falar com o rosto perdido no musgo quente de seu casaco, quem sabe se minha voz lhe chegou com todas as suas palavras, se foi possível que compreendesse: disse-lhe tudo, cada detalhe do jogo, as improbabilidades confirmadas desde tantas Paulas (desde tantas Ofelias) perdidas no fim de um corredor, as aranhas em cada final. Chorava, sentia-a tremer contra mim embora continuasse me agasalhando, sustentando-me com todo seu corpo encostado no muro dos mortos; não me perguntou nada, não quis saber por que nem desde quando, não lhe ocorreu lutar contra uma máquina montada por toda uma vida a contrapelo de si mesma, da cidade e suas palavras de ordem, somente aquele choro ali como um animalzinho machucado, resistindo sem força ao triunfo do jogo, à dança exasperada das aranhas no poço.
Na porta de sua casa disse-lhe que nem tudo estava perdido, que dos dois dependia tentar um encontro legítimo; agora ela conhecia as regras do jogo, talvez nos fossem favoráveis dado que não faríamos outra coisa senão nos procurar. Disse-me que podia pedir quinze dias de férias, viajar levando um livro para que o tempo fosse menos úmido e hostil no mundo subterrâneo, passar de uma conexão a outra, esperar-me lendo, olhando os anúncios. Não quisemos pensar na improbabilidade, em que talvez nos encontraríamos num trem mas que não bastava, que desta vez não se poderia faltar ao preestabelecido; pedi-lhe que não pensasse, que deixasse correr o metrô, que não chorasse nunca naquelas duas semanas enquanto eu a procurava; sem palavras ficou entendido que se o prazo se esgotasse sem nos tornarmos a ver ou só nos vendo até que dois corredores diferentes nos separassem, já não faria sentido voltar ao café, à porta de sua casa. Ao pé daquela escada de bairro que uma luz alaranjada estendia docemente para cima, para a imagem de Marie-Claude em seu apartamento, entre seus móveis, nua e dormindo, beijei-a no cabelo, acariciei-lhe as mãos; ela não procurou minha boca, foi se afastando e a vi de costas, subindo outras das tantas escadas que as levavam sem que pudesse segui-las; voltei a pé para casa, sem aranhas, vazio e lavado para a nova espera; agora não podiam me fazer nada, o jogo ia recomeçar como tantas outras vezes mas só com Marie-Claude, segunda-feira descendo a estação Cou-ronnes de manhã, saindo em Max Dormoy em plena noite, terça-feira entrando em Crimée, quarta-feira em Philippe Auguste, a precisa regra do jogo, quinze estações nas quais quatro tinham conexões, e então na primeira das quatro sabendo que teria de continuar até a linha Sèvres-Montreuil como na segunda teria de tomar a conexão Clichy-Porte Dauphine, cada itinerário escolhido sem uma razão especial porque não podia existir nenhuma razão, Marie-Claude teria subido talvez perto de sua casa, em Denfert-Rochereau ou em Corvisart, estaria trocando em Pasteur para continuar até Falguière, a árvore mondrianesca com todos os seus galhos secos, acaso das tentações vermelhas, azuis, brancas, pontilhadas; quinta, sexta, sábado. De qualquer plataforma ver entrar os trens, os sete ou oito vagões, permitindo-me olhar enquanto passavam cada vez mais lentos, chegar até o fim e subir num vagão sem Marie-Claude, descer na estação seguinte e esperar outro trem, seguir até a primeira estação para procurar outra linha, ver chegar os vagões sem Marie-Claude, deixar passar um trem ou dois, subir no terceiro, continuar até o terminal, retornar a uma estação de onde podia passar para outra linha, decidir que só tomaria o quarto trem, abandonar a procura e subir para comer, retornar quase em seguida com um cigarro amargo e sentar-me num banco até o segundo, até o quinto trem. Segunda, terça, quarta, quinta, sem aranhas porque ainda esperava, porque ainda espero neste banco da estação Chemin Vert, com este caderninho em que uma mão escreve para inventar um tempo que não seja só aquela interminável rajada que me projeta em direção ao sábado no qual talvez tudo terá acabado, em que voltarei sozinho e as sentirei acordar e morder, suas pinças enraivecidas exigindo-me o novo jogo, outras Marie-Claudes, outras Paulas, a reiteração depois de cada fracasso, o recomeçar canceroso. Mas é quinta-feira, é a estação Chemin Vert, lá fora cai a noite, ainda se pode imaginar qualquer coisa, inclusive pode não parecer incrível demais que no segundo trem, que no quarto vagão, que Marie-Claude num assento contra a janela, tenha me visto e se levante com um grito que ninguém salvo eu pode escutar assim em plena cara, em plena corrida para saltar do vagão lotado, empurrando passageiros indignados, murmurando desculpas que ninguém espera nem aceita, ficando de pé contra o assento duplo ocupado por pernas e guarda-chuvas e embrulhos, por Marie-Claude com seu agasalho cinza contra a janela, a mecha preta que o arranco repentino do trem apenas agita como suas mãos tremem em cima das coxas num chamado que não tem nome, que é só isso que agora vai acontecer. Não há necessidade de falar, não se poderia dizer nada por cima desse muro impassível e desconfiado de caras e guarda-chuvas entre mim e Marie-Claude; restam três estações que fazem conexão com outras linhas, Marie-Claude deverá escolher uma delas, percorrer a plataforma, seguir por um dos corredores ou procurar a escada de saída, alheia à minha escolha que desta vez não transgredirei. O trem entra na estação Bastille e Marie-Claude continua ali, as pessoas descem e sobem, alguém deixa desocupado o assento a seu lado mas não me aproximo, não posso me sentar ali, não posso tremer junto dela como ela estará tremendo. Agora vêm Ledru-Rollin e Froidherbe-Chaligny, naquelas estações sem conexão Marie-CIaude sabe que não posso segui-la e não se mexe, o jogo tem de ser jogado em Reuilly-Diderot ou em Daumesnil; enquanto o trem entra em Reuilly-Diderot afasto os olhos, não quero que saiba, não quero que possa compreender que não é ali. Quando o trem arranca vejo que não se mexeu, que nos resta uma última esperança, em Daumesnil há apenas uma conexão e a saída para a rua, vermelho ou preto, sim ou não. Então olhamos um para o outro, Marie-CIaude ergueu o rosto para encarar-me em cheio, agarrado à barra do assento sou aquilo que ela olha, alguma coisa tão pálida como o que estou olhando, o rosto sem sangue de Marie-CIaude que aperta a bolsa vermelha, que vai fazer o primeiro gesto para levantar-se enquanto o trem entra na estação Daumesnil.

Julio Cortázar - Octaedro - Tradução de Gloria Rodríguez

Thursday, October 30, 2008

Verão

Ao entardecer Florencio desceu com a menina até a cabana, seguindo o caminho cheio de buracos e pedras soltas que só Mariano e Zulma tinham coragem de enfrentar com o jipe. Zulma abriu-lhes a porta, e pareceu a Florencio que tinha os olhos de quem descascava cebolas. Mariano veio do outro quarto, mando-os entrar, mas Florencio só queria lhes pedir que tomassem conta da menina até a manhã seguinte porque precisava ir à costa por causa de um assunto urgente e na cidade não havia ninguém a quem pedir o favor. É claro, disse Zulma, pode deixá-la, arrumamos uma cama para ela aqui embaixo. Tome um drinque, insistiu Mariano, só cinco minutos, mas Florencio deixara o carro na praça da cidade, tinha de seguir viagem logo; agradeceu-lhes, beijou a filhinha que já descobrira a pilha de revistas no banquinho; quando fechou a porta Zulma e Mariano se entreolharam quase interrogativamente, como se tudo tivesse acontecido depressa demais. Mariano encolheu os ombros e voltou para sua oficina onde estava colando uma poltrona velha; Zulma perguntou à menina se estava com fome, propôs-lhe que brincasse com as revistas, na despensa havia uma bola e uma rede para caçar borboletas; a menina agradeceu e pôs-se a olhar as revistas; Zulma observou-a um momento enquanto preparava as alcachofras para a noite, e pensou que podia deixá-la brincar sozinha.
Já entardecia cedo no sul, tinham apenas um mês até voltar para a capital, entrar na outra vida do inverno que afinal era uma sobrevivência a dois, estar distintamente juntos, amavelmente amigos, respeitando e executando as múltiplas e excessivamente delicadas cerimônias convencionais do casal, como naquele momento em que Mariano precisava de uma das bocas do fogão para esquentar a lata de cola e Zulma tirava do fogo a panela de batatas dizendo que depois acabaria de cozinhá-las e Mariano agradecia porque a poltrona já estava quase terminada e era melhor aplicar a cola de uma só vez, mas é claro, pode esquentá-la, nada mais. A menina folheava as revistas no fundo do grande quarto que servia de cozinha e sala de jantar, Mariano procurou umas balas nas despensa; estava na hora de sair para o jardim e tomar um drinque olhando o anoitecer nas colinas: nunca tinha ninguém no caminho, a primeira casa da cidade perfilava-se apenas na parte mais alta; diante deles o sopé da montanha continuava descendo até o fundo do vale já em penumbra. Pode me servir, volto já, disse Zulma. Tudo se cumpria ciclicamente, cada coisa em sua hora e uma hora para cada coisa, com exceção da menina que de repente desajustava ligeiramente o esquema; um banquinho e um copo de leite para ela, uma festinha no cabelo e elogios pelo bom comportamento. Os cigarros, as andorinhas cacheando-se em cima da cabana; tudo se repetia, se encaixava, a poltrona já estava quase seca, colada como aquele novo dia que nada tinha de novo. As diferenças insignificantes eram a menina naquela tarde, como às vezes ao meio-dia o carteiro os tirava por um momento da solidão com uma carta para Mariano ou para Zulma, que o destinatário recebia e guardava sem dizer palavra. Mais um mês de repetições previsíveis, como que ensaiadas, e o jipe carregado até o topo os faria voltar ao apartamento da capital, à vida que era só outra nas formas, o grupo de Zulma ou dos amigos pintores de Mariano, as tardes nas lojas para ela e as noites nos cafés para Mariano, um ir e vir separadamente embora sempre se encontrassem para o cumprimento das cerimônias dobradiças, o beijo matinal e os programas neutros em comum, como agora que Mariano oferecia outro drinque e Zulma aceitava com os olhos perdidos nas colinas mais distantes, já tingidas de um roxo profundo.
O que é que você gostaria para jantar, menina? Eu, o que a senhora quiser. Talvez ela não goste de alcachofras, disse Mariano. Sim, eu gosto, disse a menina, com azeite e vinagre mas com pouco sal porque arde. Riram, fariam um molho especial. E ovos quentes, que tal? Com colherzinha, disse a menina. E pouco sal porque arde, brincou Mariano. O sal arde muitíssimo, disse a menina, à minha boneca eu dou purê de batata sem sal, hoje eu não a trouxe porque meu pai estava com pressa e não deixou. Vai fazer uma noite bonita, pensou Zulma em voz alta, olhe como o ar está transparente para o lado do norte. Sim, não vai fazer calor demais, disse Mariano recolhendo as poltronas para a sala de baixo, acendendo as lâmpadas junto do janelão que dava para o vale. Maquinalmente ligou também o rádio, Nixon viajará para Pequim, o que é que você acha, disse Mariano. Já não existe religião, disse Zulma, e soltaram a gargalhada ao mesmo tempo. A garota se dedicara às revistas e marcava as páginas das historietas como se pensasse lê-las duas vezes.
A noite chegou entre o inseticida com que Mariano pulverizava o quarto de cima e o perfume de uma cebola que Zulma cortava cantarolando um ritmo pop do rádio. No meio do jantar a menina começou a cochilar em cima de seu ovo quente; zombaram dela, animaram-na a terminar; Mariano já tinha preparado a cama dobrável com um colchão de espuma no canto mais afastado da cozinha, de maneira a não a incomodar se ainda ficassem um pouco na sala de baixo, ouvindo discos ou lendo. A menina comeu seu pêssego e admitiu que estava com sono. Deite, meu amor, disse Zulma, já sabe que se quiser fazer pipi é só subir, deixamos acesa a luz da escada. A menina beijou-os no rosto, já tonta de sono, mas antes de deitar escolheu uma revista e a pôs debaixo do travesseiro. São incríveis, disse Mariano, que mundo inatingível, e pensar que foi o nosso, o de todos. Talvez não seja tão diferente, disse Zulma que tirava a mesa, você também tem suas manias, o vidro de água-de-colônia à esquerda e a gilete à direita, e eu nem é bom falar. Mas não eram manias, pensou Mariano, antes uma resposta à morte e ao nada, fixar as coisas e os tempos, estabelecer ritos e passagens contra a desordem cheia de furos e de manchas. Apenas já não falava em voz alta, cada vez mais parecia haver menos necessidade de falar com Zulma, e Zulma também não dizia nada que reclamasse uma troca de idéias. Leve a cafeteira, já pus as xícaras no banquinho da chaminé. Veja se ainda tem açúcar no açucareiro, tem um pacote novo na despensa. Não encontro o saca-rolha, esta garrafa de aguardente tem uma cara boa, você não acha? Sim, bonita cor. Já que você vai subir traga os cigarros que deixei na cômoda. Esta aguardente é boa mesmo. Está calor, você não acha? Sim, está abafado, é melhor não abrir as janelas, vai encher de mariposas e mosquitos.
Quando Zulma ouviu o primeiro barulho, Mariano estava procurando nas pilhas de discos, tinha uma sonata de Beethoven que não escutara naquele verão. Ficou com a mão no ar, olhou para Zulma. O barulho parecia na escada de pedra do jardim, mas àquela hora ninguém vinha à cabana, nunca ninguém vinha de noite. Da cozinha acendeu a lâmpada que iluminava a parte mais próxima do jardim, não viu nada e apagou-a. Um cachorro que estava procurando comida, disse Zulma. Soava esquisito, assim como alguém bufando, disse Mariano. No janelão chicoteou uma enorme mancha branca, Zulma sufocou um grito, Mariano de costas voltou-se tarde demais, o vidro refletia só os quadros e os móveis da sala. Não teve tempo de perguntar, o bufo soou perto da parede que dava para o norte, um relincho abafado como o grito de Zulma que tinha as mãos contra a boca e se grudava à parede do fundo, olhando fixo para o janelão. É um cavalo, disse Mariano sem acreditar, parece um cavalo, ouça os cascos, está galopando no jardim. As crinas, os beiços como que sangrando, uma enorme cabeça branca roçava o janelão, o cavalo apenas olhou para eles, a mancha branca apagou-se para a direita, ouviram outra vez os cascos, um brusco silêncio do lado da escada de pedra, o relincho, a corrida. Mas não há cavalos por aqui, disse Mariano, que segurara a garrafa de aguardente pelo gargalo antes que se desse conta e tornasse a colocá-la em cima do banquinho. Quer entrar, disse Zulma grudada à parede do fundo. Mas não, que bobagem, deve ter fugido de alguma chácara do vale e veio até a luz. Estou lhe dizendo que quer entrar, está louco e quer entrar. Os cavalos não enlouquecem, que eu saiba, disse Mariano, acho que foi embora, vou olhar pela janela de cima. Não, não, fique aqui, ainda o ouço, está na escada do terraço, está pisando as plantas, vai voltar, e se quebrar o vidro, entra. Não seja tola, como é que ele vai quebrar o vidro, disse Mariano debilmente, se apagarmos as luzes talvez ele vá embora. Não sei, não sei, disse Zulma escorregando até ficar sentada no banquinho, ouça como relincha, está aí em cima. Ouviram os cascos descendo a escada, o resfolegar irritado contra a porta, Mariano pareceu sentir uma espécie de pressão na porta, um roçar repetido, e Zulma correu até ele gritando histericamente. Rejeitou-a sem violência, estendeu a mão para o interruptor; na penumbra (restava a luz da cozinha, onde dormia a menina) o relincho e os cascos se tornaram mais fortes, mas o cavalo já não estava em frente à porta, podia-se ouvi-lo indo e vindo no jardim. Mariano correu para apagar a luz da cozinha, sem olhar sequer para o canto onde tinham deitado a menina; voltou para abraçar Zulma que soluçava, acariciou-lhe o cabelo e o rosto, pedindo-lhe que se calasse para poder ouvir melhor. No janelão, a cabeça do cavalo esfregou-se contra o grande vidro, sem muita força, a mancha branca parecia transparente na escuridão; sentiram que o cavalo olhava para dentro como se procurasse alguma coisa, mas já não podia vê-los e entretanto continuava ali, relinchando e resfolegando, com sacudidelas repentinas de um lado para outro. O corpo de Zulma escorregou entre os braços de Mariano, que a ajudou a sentar-se outra vez no banquinho, apoiando-a contra a parede. Não se mexa, não diga nada, agora ele vai embora, você verá. Quer entrar, disse debilmente Zulma, sei que quer entrar e, se quebrar a janela, o que é que vai acontecer se ele quebrar a janela a coices. Psiu, disse Mariano, cale a boca por favor. Vai entrar, murmurou Zulma. E não tenho nem uma espingarda, disse Mariano, eu lhe meteria cinco balas na cabeça, filho da puta. Já não está aí, disse Zulma levantando-se de repente, ouço-o em cima, descobriu a porta do terraço, é capaz de entrar. Está bem fechada, não tenha medo, pense que não vai entrar no escuro numa casa onde nem sequer pode se mexer, não é idiota a esse ponto. Oh sim, disse Zulma, ele quer entrar, vai nos esmagar contra as paredes, sei que quer entrar. Psiu, repetiu Mariano, que também pensava isso, que não podia fazer outra coisa senão esperar com as costas empapadas de suor frio. Mais uma vez os cascos nas lajes da escada, e de repente o silêncio, os grilos distantes, um pássaro na nogueira do alto.
Sem acender a luz, agora que o janelão deixava entrar a vaga claridade da noite, Mariano encheu um copo de aguardente e o sustentou contra os lábios de Zulma, obrigando-a a beber embora os dentes chocassem contra o copo e o álcool se derramasse na blusa; depois, pelo gargalo, bebeu um longo gole e foi até a cozinha para olhar a menina. Com as mãos debaixo do travesseiro como se segurasse a preciosa revista, dormia incrivelmente e não escutara nada, apenas parecia estar ali, ao passo que na sala o choro de Zulma cortava-se, de vez em quando, com um soluço sufocado, quase um grito. Já passou, já passou, disse Mariano sentando-se junto dela e sacudindo-a suavemente, foi apenas um susto. Vai voltar, disse Zulma com os olhos presos no janelão. Não, deve estar longe, com certeza fugiu de alguma tropa lá de baixo. Nenhum cavalo faz isso, disse Zulma, nenhum cavalo quer entrar dessa maneira numa casa. Admito que é estranho, disse Mariano, é melhor darmos uma espiada lá fora, tenho uma lanterna aqui. Mas Zulma estava colada contra a parede; a idéia de abrir a porta, de sair em direção à sombra branca que podia estar perto, esperando debaixo das árvores, pronta a atacar. Olhe, se não nos certificarmos de que foi embora, ninguém vai dormir esta noite, disse Mariano. Vamos dar-lhe um pouco mais de tempo, enquanto isso você deita e eu lhe dou um calmante: dose extra, coitadinha, você merece.
Zulma acabou por concordar, passivamente; sem acender as luzes foram até a escada e Mariano apontou com a mão a menina dormindo, mas Zulma apenas olhou para ela, subiu a escada tropeçando, Mariano teve de segurá-la ao entrar no quarto porque estava a ponto de bater no vão da porta. Da janela que dava para o telhado olharam para a escada de pedra, o terraço mais alto do jardim. Foi embora, está vendo, disse Mariano ajeitando o travesseiro de Zulma, vendo-a despir-se com gestos mecânicos, o olhar fixo na janela. Fez com que ela bebesse um pouco, passou-lhe água-de-colônia no pescoço e nas mãos, levantou suavemente o lençol até os ombros de Zulma, que fechara os olhos e tremia. Enxugou-lhe as faces, esperou um momento e desceu para procurar a lanterna; levando-a apagada numa mão e com um machado na outra, encostou pouco a pouco a porta da sala e saiu para o terraço inferior, de onde podia abranger todo o lado da casa que dava para o leste; a noite era idêntica a tantas outras do verão, os grilos cricrilavam ao longe, uma rã deixava cair duas gotas alternadas de som. Sem necessidade da lanterna, Mariano viu a moita de lilases pisoteada, as enormes pegadas no canteiro de amores-perfeitos, o vaso derrubado ao pé da escada; não era uma alucinação, então, e melhor que não fosse; de manhã iria com Florencio investigar nas chácaras do vale, não o fariam de bobo tão facilmente. Antes de entrar endireitou o vaso, foi até as primeiras árvores e ouviu longamente os grilos e a rã; quando olhou para a casa, Zulma estava na janela do quarto, nua, imóvel.
A menina não se mexera, Mariano subiu sem fazer barulho e pôs-se a fumar ao lado de Zulma. Está vendo, foi embora, podemos dormir tranqüilos; amanhã veremos. Pouco a pouco a foi levando até a cama, despiu-se, estendeu-se de barriga para cima, sempre fumando. Durma, está tudo bem, foi somente um susto absurdo. Passou-lhe a mão pelo cabelo, os dedos escorregaram até o ombro, roçaram os seios. Zulma voltou-se de lado, de costas para ele, sem falar; também aquilo era tal qual tantas outras noites de verão.
Dormir ia ser difícil, mas Mariano dormiu de repente logo após apagar o cigarro; a janela continuava aberta e com certeza entrariam mosquitos, mas o sono veio antes, sem imagens, o nada total do qual saiu num dado momento despertado por um pânico indescritível, a pressão dos dedos de Zulma num ombro, o arfar. Quase antes de compreender já estava escutando a noite, o perfeito silêncio pontilhado pelos grilos. Durma, Zulma, não há nada, você deve ter sonhado. Insistia que ela concordasse, que tornasse a se estender de costas para ele, agora que de repente retirara a mão e estava sentada, rígida, olhando para a porta fechada. Levantou-se ao mesmo tempo que Zulma, incapaz de impedir que ela abrisse a porta e fosse até o começo da escada, grudado a ela e perguntando-se vagamente se não seria melhor esbofeteá-la, trazê-la à força até a cama, dominar finalmente tanta distância petrificada. Na metade da escada Zulma parou, segurando-se ao corrimão. Você sabe por que é que a menina está aí? Com uma voz que ainda devia pertencer ao pesadelo. A menina? Outros dois degraus, já quase na curva do corrimão que se abria em cima da cozinha. Zulma, por favor. E a voz quebrada, quase de falsete, está aí para deixá-lo entrar, eu digo que vai deixá-lo entrar. Zulma, não me obrigue a fazer uma bobagem. E a voz como que triunfante, subindo ainda mais de tom, olhe, mas olhe se você não acredita, a cama vazia, a revista no chão. Com um arranco Mariano adiantou-se a Zulma, saltou até o interruptor. A menina olhou para eles, seu pijama cor-de-rosa contra a porta que dava para a sala, a cara de sono. O que é que você está fazendo levantada a esta hora, disse Mariano enrolando um pano de prato na cintura. A menina olhava para Zulma nua, entre dormindo e envergonhada, como se quisesse voltar à cama, à beira do choro. Levantei para fazer pipi, disse. E você saiu para o jardim quando dissemos que subisse ao banheiro. A menina começou a fazer beicinho, as mãos comicamente perdidas nos bolsos do pijama. Não é nada, volte para a cama, disse Mariano acariciando-lhe o cabelo. Cobriu-a, pôs a revista debaixo do travesseiro; a menina voltou-se contra a parede, um dedo na boca como para se consolar. Suba, disse Mariano, você está vendo que não acontece nada, não fique aí como uma sonâmbula. Viu-a dar dois passos em direção à porta da sala, atravessou-se em seu caminho, já estava bem assim, que diabo. Mas você não percebe que ela abriu a porta para ele, disse Zulma com aquela voz que não era a dela. Deixe de bobagem, Zulma. Vá ver se não é verdade, ou deixe que eu vá. A mão de Mariano fechou-se no antebraço que tremia. Suba agora mesmo, disse empurrando-a, até levá-la ao pé da escada, olhando ao passar pela menina que não se mexera, que já devia estar dormindo. No primeiro degrau Zulma gritou e quis fugir, mas a escada era estreita e Mariano a empurrava com todo o corpo, o pano de prato desprendeu-se e caiu ao pé da escada, segurando-a pelos ombros e puxando-a para cima a levou até o descanso, atirou-a no quarto, fechando a porta atrás de si. Vai deixá-lo entrar, repetia Zulma, a porta está aberta e vai entrar. Deite, disse Mariano, que entre se quiser, agora estou cagando para que ele entre ou não entre. Segurou as mãos de Zulma que tratavam de rejeitá-lo, empurrou-a de costas contra a cama, caíram juntos, Zulma soluçando e suplicando, impossibilitada de se mexer sob o peso de um corpo que a cingia cada vez mais, que a submetia a uma vontade murmurada boca a boca, enraivecida-mente, entre lágrimas e obscenidades. Não quero, não quero, não quero nunca mais, não quero, mas já tarde demais, sua força e seu orgulho cedendo àquele peso arrasador que a devolvia ao passado impossível, aos verões sem cartas e sem cavalos. Em dado momento — começava a clarear — Mariano vestiu-se em silêncio, desceu à cozinha; a menina dormia com o dedo na boca, a porta da sala estava aberta. Zulma tinha razão, a menina abrira a porta mas o cavalo não entrara em casa. A menos que sim, pensou acendendo o primeiro cigarro e olhando para o gume azul das colinas, a menos que também nisso Zulma tivesse razão e o cavalo houvesse entrado em casa, mas como saber se não o tinham ouvido, se tudo estava em ordem, se o relógio continuaria medindo a manhã e depois que Florencio viesse apanhar a menina, talvez por volta do meio-dia chegasse o carteiro assobiando já de longe, deixando em cima da mesa do jardim as cartas que ele ou Zulma pegariam sem dizer nada, um pouco antes de decidir de comum acordo o que convinha preparar para o almoço.

Julio Cortázar - Octaedro - Tradução de Gloria Rodríguez

Monday, October 27, 2008

Propriedades de um sofá

Em casa de Jacinto há um sofá para morrer.
Quando a pessoa fica velha, um dia a convidam a sentar no sofá que é um sofá igual a todos mas tem uma estrelinha prateada no meio do encosto. A pessoa convidada suspira, mexe um pouco as mãos como se quisesse afastar o convite e depois senta no sofá, e morre.
Os meninos, sempre travessos, se divertem em enganar as visitas na ausência da mãe e as convidam para sentar no sofá. Como as visitas estão informadas mas sabem que não se pode falar nisso, olham para os meninos com grande confusão e se desculpam com palavras nunca usadas quando se fala com os meninos, fato que os deixa enormemente contentes. Afinal as visitas aproveitam qualquer pretexto para não se sentarem, porém mais tarde a mãe percebe o que aconteceu e na hora de deitar há surras tremendas. Nem por isso eles se emendam, de quando em quando conseguem enganar alguma visita inocente e as fazem sentar no sofá. Nesses casos os pais disfarçam, pois temem que os vizinhos possam tomar conhecimento das propriedades do sofá e o peçam emprestado para fazer sentar uma ou outra pessoa da família ou amiga. Entretanto, os meninos vão crescendo e chega o dia em que, sem saber por quê, deixam de se interessar pelo sofá e pelas visitas. Ao contrário, evitam entrar na sala, dão uma volta pelo pátio, e os pais que já estão muito velhos fecham a chave a porta da sala e olham para seus filhos com atenção como querendo ler-seu-pensamento. Os filhos desviam os olhos e dizem que já é hora de jantar ou de deitar-se. De manhã, o pai levanta primeiro e vai sempre olhar se a porta da sala continua fechada a chave, ou se algum dos filhos abriu-a para que da sala de jantar se veja o sofá, porque a estrelinha de prata brilha até na escuridão e se vê perfeitamente de qualquer parte da sala de jantar.

Julio Cortázar - Histórias de Cronópios e de Famas - Tradução de Gloria Rodríguez

Sunday, October 26, 2008

Posibilidades de la Abstracción

Trabajo desde hace años en la UNESCO y otros organismos internacionales, pese a lo cual conservo algún sentido del humor y especialmente una notable capacidad de abstracción, es decir, que si no me gusta un tipo lo borro del mapa con sólo decidirlo, y mientras él habla y habla yo me paso a Melville y el pobre cree que lo estoy escuchando. De la misma manera, si me gusta una chica puedo abstraerle la ropa apenas entra en mi campo visual, y mientras me habla de lo fría que está la mañana yo me paso largos minutos admirándole el ombliguito. A veces es casi malsana esta facilidad que tengo.
El lunes pasado fueron las orejas. A la hora de entrada era extraordinario el número de orejas que se desplazaban en la galería de entrada. En mi oficina encontré seis orejas; en la cantina, a mediodía, había más de quinientas, simétricamente ordenadas en dobles filas. Era divertido ver de cuando en cuando dos orejas que remontaban, salían de la fila y se alejaban. Parecían alas.
El martes elegí algo que creía menos frecuente: los relojes de pulsera. Me engañé, porque a la hora del almuerzo pude ver cerca de doscientos que sobrevolaban las mesas con un movimiento hacia atrás y adelante, que recordaba particularmente la acción de seccionar un biftec. El miércoles preferí (con cierto embarazo) algo más fundamental, y elegí los botones. ¡Oh espectáculo! El aire de la galería lleno de cardúmenes de ojos opacos que se desplazaban horizontalmente, mientras a los lados de cada pequeño batallón horizontal se balanceaban pendularmente dos, tres o cuatro botones. En el ascensor la saturación era indescriptible: centenares de botones inmóviles, o moviéndose apenas, en un asombroso cubo cristalográfico. Recuerdo especialmente una ventana (era por la tarde) contra el cielo azul. Ocho botones rojos dibujaban una delicada vertical, y aquí y allá se movían suavemente unos pequeños discos nacarados y secretos. Esa mujer debía ser tan hermosa.
El miércoles era de ceniza, día en que los procesos digestivos me parecieron ilustración adecuada a la circunstancia, por lo cual a las nueve y media fui mohíno espectador de la llegada de centenares de bolsas llenas de una papilla grisácea, resultante de la mezcla de corn-flakes, café con leche y medialunas. En la cantina vi cómo una naranja se dividía en prolijos gajos, que en un momento dado perdían su forma y bajaban uno tras otro hasta formar a cierta altura un depósito blanquecino. En ese estado la naranja recorrió el pasillo, bajó cuatro pisos y, luego de entrar en una oficina, fue a inmovilizarse en un punto situado entre los dos brazos de un sillón. Algo más lejos se veían en análogo reposo un cuarto de litro de té cargado. Como curioso paréntesis (mi facultad de abstracción suele ejercerse arbitrariamente) podía ver además una bocanada de humo que se entubaba verticalmente, se dividía en dos translúcidas vejigas, subía otra vez por el tubo y luego de una graciosa voluta se dispersaba en barrocos resultados. Más tarde (yo estaba en otra oficina) encontré un pretexto para volver a visitar la naranja, el té y el humo. Pero el humo había desaparecido, y en vez de la naranja y el té había dos desagradables tubos retorcidos. Hasta la abstracción tiene su lado penoso; saludé a los tubos y me volví a mi despacho. Mi secretaria lloraba, leyendo el decreto por el cual me dejaban cesante. Para consolarme decidí abstraer sus lágrimas, y por un rato me deleité con esas diminutas fuentes cristalinas que nacían en el aire y se aplastaban en los biblioratos, el secante y el boletín oficial. La vida está llena de hermosuras así.

Julio Cortázar - Historias de Cronopios y de Famas

Tartarugas e Cronópios

Agora acontece que as tartarugas são grandes admiradoras da velocidade, como é natural.

As esperanças sabem disso e não ligam.

Os famas sabem e caçoam.

Os cronópios sabem e cada vez que encontram uma tartaruga, puxam a caixa de giz colorido e na lousa redonda da tartaruga desenham uma andorinha.

Julio Cortázar - Histórias de Cronópios e de Famas - Tradução de Gloria Rodríguez