Pescoço de gatinho preto
Além do mais não era a primeira vez que lhe acontecia, mas de qualquer maneira sempre tinha sido Lucho quem tomara a iniciativa, encostando a mão como que por descuido para roçar a de uma loura ou uma ruiva que lhe caía bem, aproveitando os vaivéns nas curvas do metrô, então havia uma resposta por aí, havia gancho, um dedinho que ficava preso um momento antes da cara de desagrado ou indignação, tudo dependia de tantas coisas, às vezes saía bem, corria, o resto entrava no jogo como iam entrando as estações nas janelas do vagão, mas aquela tarde acontecia de outra maneira, em primeiro lugar Lucho estava gelado e com o cabelo cheio de neve que se derretera na plataforma e gotas frias escorriam para dentro do cachecol, subira ao metrô na estação da rue du Bac sem pensar em nada, um corpo grudado a tantos outros esperando que em dado momento fosse a estufa, o copo de conhaque, a leitura do jornal antes de começar a estudar alemão entre sete e meia e nove, a mesma coisa de sempre a não ser aquela luvinha preta na barra de apoio, entre montes de mãos e cotovelos e casacos uma luvinha preta agarrada na barra metálica e ele com sua luva marrom molhada firme na barra para não cair em cima da senhora dos embrulhos e da menina chorona, de repente a consciência de que um dedo pequenino estava como que subindo a cavalo por sua luva, que aquilo vinha de uma manga de pele de coelho muito usada, a mulata parecia muito jovem e olhava para baixo como que alheia, um balanço a mais entre o balanço de tantos corpos comprimidos; aquilo parecera a Lucho um desvio da regra bastante divertido, deixou a mão solta, sem responder, imaginando que a jovem estava distraída, que não percebia aquela ligeira cavalgada no cavalo molhado e quieto. Gostaria de ter tido lugar suficiente para puxar o jornal do bolso e ler as manchetes onde se falava de Biafra, de Israel e dos Estudantes de La Plata, mas o jornal estava no bolso direito e para tirá-lo teria de soltar a mão da barra, perdendo o apoio necessário nas curvas, de modo que o melhor era ficar firme, abrindo um pequeno vácuo precário entre sobretudos e embrulhos para que a menina ficasse menos triste e sua mãe não continuasse a lhe falar naquele tom de cobrador de impostos.
Quase não tinha olhado para a jovem mulata. Agora imaginou a mecha de cabelo crespo sob o capuz do casaco e pensou criticamente que com o calor do vagão ela bem podia ter colocado o capuz para trás, justamente quando o dedo lhe acariciava de novo a luva, primeiro um dedo e depois dois subindo no cavalo úmido. A curva antes de Montparnasse-Bienvenue empurrou a jovem contra Lucho, sua mão escorregou do cavalo para segurar-se na barra, tão pequena e tola ao lado do grande cavalo que naturalmente procurava agora as cócegas com um focinho de dois dedos, sem forçar, divertido e ainda distante e úmido. A jovem pareceu perceber de repente (mas sua distração, antes, também, tivera algo de repentino e brusco), e afastou um pouco mais a mão, olhando para Lucho do vácuo escuro formado pelo capuz para depois reparar em sua própria mão como se não estivesse de acordo ou estudasse as distâncias da boa educação. Muita gente havia descido em Montparnasse-Bienvenue e Lucho já podia puxar o jornal, mas em vez de puxá-lo ficou estudando o comportamento da mãozinha enluvada com uma atenção um pouco zombeteira, sem olhar para a jovem que tinha outra vez os olhos postos nos sapatos agora bem visíveis no chão sujo onde de repente faltavam a menina chorona e tanta gente que estava descendo na estação Falguière. O solavanco obrigou as duas luvas a se crisparem na barra, separadas e agindo por sua conta, mas o trem estava parado na estação Pasteur quando os dedos de Lucho buscaram a luva preta que não se afastou como da primeira vez mas pareceu afrouxar-se na barra, tornar-se ainda menor e mais mole sob a pressão de dois, de três dedos, de toda a mão que subia numa lenta posse delicada, sem encostar-se demais, segurando e soltando ao mesmo tempo, e no vagão quase vazio agora que se abriam as portas na estação Volontaires, a moça girando pouco a pouco sobre um pé enfrentou Lucho sem levantar o rosto, como se o olhasse da luvinha coberta por toda a mão de Lucho, e quando finalmente o olhou, sacudidos os dois por um solavanco entre Volontaires e Vaugirard, seus grandes olhos metidos na sombra do capuz estavam lá como se esperassem, fixos e graves, sem o menor sorriso nem censura, sem mais nada a não ser uma espera interminável que vagamente fez mal a Lucho.
— É sempre assim — disse a jovem. — Não se pode com elas.
— Ah — disse Lucho, aceitando o jogo mas perguntando a si mesmo por que não era divertido, por que não o sentia como jogo embora não pudesse ser outra coisa, não havia razão alguma para imaginar que fosse outra coisa.
— Não se pode fazer nada — repetiu a jovem. — Não entendem ou não querem entender, sei lá, mas não se pode fazer nada contra.
Estava falando com a luva, olhando Lucho sem vê-lo, estava falando com a luvinha preta quase invisível sob sua luva marrom.
— Comigo acontece a mesma coisa — disse Lucho. — São incorrigíveis, é verdade.
— Não é a mesma coisa — disse a jovem.
— Oh, sim, você viu.
— Não vale a pena falar — disse ela, baixando a cabeça. — Desculpe, a culpa foi minha.
Era o jogo, claro, mas por que não era divertido, por que ele não o sentia como jogo embora não pudesse ser outra coisa, não havia razão alguma para imaginar que fosse outra coisa.
— Digamos que a culpa tenha sido delas — disse Lucho afastando a mão para marcar o plural, para denunciar as culpadas na barra, as enluvadas silenciosas distantes quietas na barra.
— É diferente — disse a jovem. — Você acha que é a mesma coisa, mas é tão diferente.
— Bem, sempre há uma que começa.
— É, sempre há uma.
Era o jogo, bastava seguir as regras sem imaginar que houvesse outra coisa, uma espécie de verdade ou de desespero. Por que se fazer de tolo em vez de seguir a corrente dela, se ela assim cismava.
— Você tem razão — disse Lucho. — Seria preciso fazer alguma coisa contra, não as deixar.
— Não adianta nada — disse a jovem.
— É verdade, mal a gente se distrai, você está vendo.
— Sim — disse ela. — Embora você esteja falando de brincadeira.
— Oh não, falo tão sério quanto você. Olhe para elas.
A luva marrom brincava de roçar a luvinha imóvel, passava-lhe um dedo pela cintura, soltava-a, ia até o extremo da barra e ficava olhando para ela, esperando. A moça abaixou ainda mais a cabeça e Lucho tornou a perguntar-se por que tudo aquilo não era divertido agora que não restava outra coisa senão continuar o jogo.
— Se fosse sério — disse a moça, mas não falava com ele, não falava com ninguém no vagão quase vazio. — Se fosse sério, então talvez.
— É sério — disse Lucho — e realmente não se pode fazer nada contra.
Agora ela o olhou de frente, como se acordasse; o metrô entrava na estação Convention.
— As pessoas não podem entender — disse a moça. — Quando é um homem, claro, logo se imagina que...
Vulgar, naturalmente, e ademais tinha de apressar-se porque só faltavam três estações.
— E pior ainda se for mulher — dizia a moça. — Isso já me aconteceu e eu as vigio desde que subo, o tempo todo, mas é o que você vê.
— Claro — concordou Lucho. — Chega aquele minuto em que a gente se distrai, é tão natural, e então elas aproveitam.
— Não fale por você — disse a jovem. — Não é a mesma coisa. Perdão, eu tive culpa, desço em Corentin Celton.
— Claro que teve culpa — zombou Lucho. — Eu teria de descer em Vaugirard e, veja só, obrigou-me a passar duas estações.
A curva os atirou contra a porta, as mãos deslizaram até se juntarem no extremo da barra. A jovem continuava dizendo alguma coisa, desculpando-se tolamente; Lucho sentiu outra vez os dedos da luva preta que subiam em sua mão, apertavam-na. Quando ela o soltou repentinamente murmurando uma despedida confusa, só havia uma coisa a fazer, segui-la pela plataforma da estação, pôr-se a seu lado e procurar-lhe a mão como que perdida no fim da manga, balançando sem sentido.
— Não, disse a moça. — Por favor, não. Deixe-me continuar sozinha.
— Evidente — disse Lucho sem soltar-lhe a mão. — Mas não gosto que você vá embora assim, agora. Se tivéssemos tido mais tempo no metrô...
— Para quê? De que adianta ter mais tempo?
— Talvez tivéssemos acabado por encontrar alguma coisa, juntos. Alguma coisa contra, quero dizer.
— Mas você não entende — disse ela. — Você pensa que...
— Sei lá o que penso — disse honestamente Lucho. — Sei lá se no café da esquina tem um bom café, e se há um café na esquina, porque quase não conheço este bairro.
— Há um café — disse ela — mas é ruim.
— Não me negue que sorriu.
— Não estou negando, mas o café é ruim.
— De qualquer maneira há um café na esquina.
— Sim — disse ela, e desta vez sorriu, fitando-o. — Há um café mas o café é ruim, e você acredita que eu...
— Eu não acredito nada — disse ele, e era verdade.
— Obrigada — disse incrivelmente a moça. Respirava como se escada a cansasse, e Lucho teve a impressão de que ela estava tremendo, mas outra vez a luva preta pequenina dependurada morna inofensiva ausente, outra vez a sentia viver entre seus dedos, contorcer-se, apertar-se enroscar-se bolir estar bem estar morna estar contente acariciante preta luva pequenina dedos dois três quatro cinco um, dedos procurando dedos e luva em luva, preto em marrom, dedo entre dedo, um entre um e três, dois entre dois e quatro. Aquilo acontecia, balançava-se ali perto de seus joelhos, não havia nada a fazer, era agradável e não havia nada a fazer ou era desagradável mas de qualquer jeito não havia nada a fazer, aquilo acontecia ali e não era Lucho quem estava brincando com a mão que metia os dedos entre os seus e se enroscava e bolia, e também não de certo modo a moça que arfava ao chegar no alto da escada e erguia o rosto contra a garoa como se quisesse lavá-lo do ar parado e quente das galerias do metrô.
— Moro ali — disse a moça, mostrando uma janela alta entre tantas janelas de tantos altos imóveis iguais na calçada oposta. — Podíamos fazer um nescafé, é melhor do que ir a um bar, eu acho.
— Ah, sim — disse Lucho, e agora eram seus dedos que iam se fechando lentamente em cima da luva como quem aperta o pescoço de um gatinho preto. O quarto era bastante grande e muito quente, com uma azaléia e um abajur de pé e discos de Nina Simone e uma cama desmanchada que a jovem envergonhadamente e desculpando-se refez aos puxões. Lucho ajudou a colocar xícaras e colheres na mesa perto da janela, fizeram um nescafé forte e doce, ela se chamava Dina e ele Lucho. Contente, como que aliviada, Dina falava da Martinica, de Nina Simone, em certos momentos dava impressão de apenas núbil dentro daquele vestido liso cor de lacre, a minissaia assentava-lhe bem, trabalhava num cartório, as fraturas de tornozelo eram penosas mas esquiar em fevereiro na Haute Savoie, ah. Duas vezes ficara olhando-o, começara a dizer alguma coisa com o tom da barra do metrô, mas Lucho gracejara, já decidido a dar o basta, a outra coisa, inútil insistir e ao mesmo tempo admitindo que Dina sofria, que talvez lhe fizesse mal renunciar tão depressa à comédia como se isso tivesse agora a menor importância. E na terceira vez, quando Dina se inclinara para jogar água quente em sua xícara, murmurando de novo que não era culpa dela, que só lhe acontecia de vez em quando, que ele já via como tudo era diferente agora, a água e a colherinha, a obediência de cada gesto, então Lucho tinha compreendido mas sabe-se lá o quê, de repente tinha compreendido e era diferente, era do outro lado, a barra valia, o jogo não tinha sido um jogo, as fraturas do tornozelo e o esqui podiam ir para o inferno agora que Dina falava de novo sem que ele a interrompesse ou a desviasse, deixando-a, sentindo-a quase esperando-a, acreditando porque era absurdo, a menos que só fosse porque Dina com sua carinha triste, seus seios miúdos que desmentiam o trópico, simplesmente porque Dina. Talvez tenha de me internar, dissera Dina sem exagero, como um simples ponto de vista. Não se pode viver assim, compreenda, em qualquer momento ocorre, você é você, mas outras vezes. Outras vezes o quê. Outras vezes insultos, taponas nas nádegas, deitar-se logo, menina, para que perder tempo. Mas então. Então o quê. Mas então, Dina.
— Pensei que tivesse compreendido — disse Dina, hostil. — Quando lhe digo que talvez fosse necessário me internar.
— Bobagens. Mas eu, no começo...
— Já sei. Como não ia lhe ocorrer no começo. Justamente é isso, no começo qualquer um se engana, é tão lógico. Tão lógico, tão lógico. E me internar também seria lógico.
— Não, Dina.
— Mas sim, porra. Perdoe-me. Mas sim. Seria melhor que a outra coisa, que tantas vezes. Ninfo não sei das quantas. Putinha, machona. Seria bem melhor afinal de contas. Ou eu mesma cortá-las com o machado de picar carne. Mas não tenho um machado — disse Dina sorrindo-lhe como para que a perdoasse mais uma vez, tão absurda recostada na poltrona, escorregando cansada, perdida, com a minissaia cada vez mais para cima, esquecida de si mesma, só as olhando tomar uma xícara, botar nescafé, obedientes, hipócritas laboriosas machonas putinhas ninfo não sei das quantas.
— Não diga bobagens — repetiu Lucho, perdido em algo que brincava de qualquer coisa, de desejo, de desconfiança, de proteção. — Já sei que não é normal, seria necessário encontrar as causas, seria necessário que. De qualquer maneira para que ir tão longe. A internação ou o machado, quero dizer.
— Quem sabe — disse ela. — Talvez fosse necessário ir muito longe, até o fim. Talvez fosse a única maneira de sair.
— O que quer dizer longe? — perguntou Lucho, cansado. — E qual é o fim?
— Não sei, não sei de nada. Só tenho medo. Eu também ficaria impaciente se outra pessoa me falasse dessa maneira, mas há dias em que. Sim, dias. E noites.
— Ah — disse Lucho aproximando o fósforo do cigarro. — Porque também de noite, claro.
— Sim.
— Mas não quando está sozinha.
— Também quando estou sozinha.
— Também quando está sozinha. Ah.
— Entenda, quero dizer que.
— Está bem — disse Lucho, tomando o café. — Está muito bom, muito quente. O que precisávamos num dia como este.
Obrigada — disse ela simplesmente, e Lucho a olhou porque não quisera agradecer-lhe nada, simplesmente sentia a recompensa daquele momento de repouso, de que a barra afinal tivesse acabado.
— Apesar de que não era ruim nem desagradável — disse Dina como se adivinhasse. — Não me incomodo que você não acredite, mas para mim não era ruim nem desagradável, da primeira vez.
— Da primeira vez o quê?
— Isso mesmo, que não fosse ruim nem desagradável.
— Que começassem a..?
— Sim, que de novo começassem a, e que não fosse ruim nem desagradável.
— Alguma vez levaram você presa por causa disso? — perguntou Lucho, descendo a xícara até o pires com um movimento lento e deliberado, guiando sua mão para que a xícara pousasse exatamente no meio do pires. Contagioso, che.
— Não, nunca, mas em compensação... Tem outras coisas. Já lhe disse, os que pensam que é de propósito e também eles começam, como você. Ou se enfurecem, como as mulheres, é preciso descer na primeira estação ou sair correndo da loja ou do café.
— Não chore — disse Lucho. — Não vamos ganhar nada se você começar a chorar.
— Não quero chorar — disse Dina. — Mas nunca pude falar com alguém desta maneira, depois de... Ninguém me acredita, ninguém pode me acreditar, você mesmo não acredita em mim, só que é bom e não quer me fazer mal.
— Agora acredito — disse Lucho. — Até dois minutos atrás eu era como os outros. Talvez você devesse rir em vez de chorar.
— Já vê — disse Dina fechando os olhos. — Já vê que é inútil. Você também não, embora o diga, embora acredite. É idiota demais.
— Você já fez exames?
— Sim. Sabe como é, calmantes e mudanças de ar. Durante algum tempo a gente se engana, pensa que...
— Sim — disse Lucho, estendendo-lhe os cigarros. — Espere.
Assim. — Vamos ver o que faz.
A mão de Dina pegou o cigarro com o polegar e o indicador, e ao mesmo tempo o anular e o dedo mínimo trataram de enroscar-se nos dedo de Lucho, que mantinha o braço estendido, olhando fixo. Livre do cigarro, seus cinco dedos desceram até envolver a pequena mão morena, cingiram-na apenas, começando uma lenta carícia que deslizou até deixá-la livre, tremendo no ar; o cigarro caiu dentro da xícara. Subitamente as mãos subiram até o rosto de Dina, dobrada em cima da mesa, quebrando-se num soluço como de vômito.
— Por favor — disse Lucho, levantando a xícara. — Por favor, não. Não chore dessa maneira, é tão absurdo.
— Não quero chorar — disse Dina. — Não deveria chorar, ao contrário, mas você vê.
— Tome, vai lhe fazer bem, está quente; eu faço outro para mim, espere eu lavar a xícara.
— Não, deixe que eu lavo.
Levantaram-se ao mesmo tempo, encontraram-se na beira da mesa. Lucho tornou a deixar a xícara suja em cima da toalha da mesa; as mãos estavam penduradas murchas contra os corpos; só os lábios se roçaram, Lucho encarando-a bem e Dina com os olhos fechados, as lágrimas.
— Talvez — murmurou Lucho —, talvez seja isto o que devemos fazer, a única coisa que devemos fazer, e então.
— Não, não, por favor — disse Dina, imóvel e sem abrir os olhos. — Você não sabe o que... Não, melhor não, melhor não.
Lucho lhe cingira os ombros, apertava-a devagar contra ele, sentia-a respirar contra sua boca, um hálito quente com cheiro de café e de pele morena. Beijou-a em plena boca, afundando-se nela, procurando-lhe os dentes e a língua; o corpo de Dina afrouxava em seus braços, quarenta minutos antes sua mão acariciara a dela na barra de um assento de metrô, quarenta minutos antes uma luva preta pequenina em cima de uma luva marrom. Sentia-se resistir debilmente, repetir a negativa na qual tinha havido como que o começo de uma prevenção, mas tudo nela cedia, nos dois, agora os dedos de Dina subiam lentamente pelas costas de Lucho, seu cabelo entrava nos olhos, seu cheiro era um cheiro sem palavras nem prevenções, a colcha azul contra seus corpos, os dedos obedientes procurando os fechos, dispersando roupas, cumprindo as ordens, as suas e as de Dina contra a pele, entre as coxas, as mãos como as bocas e os joelhos e agora os ventres e a cinturas, uma súplica murmurada, uma pressão resistida, um atirar-se para trás, um instantâneo movimento para transferir da boca aos dedos e dos dedos aos sexos aquela espuma quente que a tudo nivelava, que num mesmo movimento unia seus corpos e os lançava ao jogo. Quando acenderam os cigarros na escuridão (Lucho tinha querido apagar o abajur e o abajur caíra no chão com um ruído de vidros quebrados, Dina erguera-se como se estivesse aterrada, recusando-se à escuridão, falara em acender ao menos uma vela e em descer para comprar outra lâmpada, mas ele tornara a abraçá-la na sombra e agora fumavam e se entreviam em cada aspiração da fumaça, e se beijavam de novo), lá fora chovia obstinadamente, o quarto reaquecido os mantinha nus e lassos, roçando-se com mãos e cinturas e cabelos se deixavam estar, acariciavam-se interminavelmente, viam-se com um tato repetido e úmido, cheiravam-se na sombra murmurando uma felicidade de monossílabos e diástoles. Em algum momento as perguntas voltariam, as afugentadas que a escuridão guardava nos cantos ou debaixo da cama, mas quando Lucho quis saber, ela se atirou em cima dele com a pele úmida e calou-lhe a boca com beijos, mordidas suaves, só muito mais tarde, com outros cigarros entre os dedos, disse-lhe que morava sozinha, que ninguém durava, que era inútil, que era preciso acender uma luz, que do trabalho para casa, que nunca tinha sido amada, que aquela doença, tudo como se no fundo não se importasse ou fosse importante demais para que as palavras adiantassem alguma coisa, ou talvez como se tudo aquilo não fosse durar além da noite e pudesse prescindir de explicações, alguma coisa mal começada numa barra de metrô, algo em que sobretudo era necessário acender uma luz.
— Tem uma vela em algum lugar — insistira monotonamente, rejeitando as carícias dele. — Já é tarde para descer e comprar uma lâmpada. Deixe-me procurar, deve estar em alguma gaveta. Dê-me os fósforos. Não devemos ficar no escuro. Dê-me os fósforos.
— Não acenda ainda — disse Lucho. — Está bom assim, sem nos vermos.
— Não quero. Está bom assim mas você já sabe, já sabe. Às vezes.
— Por favor — disse Lucho, tateando no chão para encontrar os cigarros —, tínhamos esquecido por algum tempo... Por que é que você torna a começar? Estava bom assim.
— Deixe-me procurar a vela — repetiu Dina.
Procure, tanto faz — disse Lucho estendendo-lhe os fósforos. A chama flutuou no ar pesado do quarto desenhando apenas o corpo pouco menos negro que a escuridão, um brilho de olhos e de unhas, outra vez trevas, riscar de outro fósforo, escuridão, riscar de outro fósforo, movimento repentino da chama que se apagava no fundo do quarto, uma breve corrida como que sufocada, o peso do corpo nu caindo enviesado sobre o dele, machucando-o contra as costelas, seu arfar. Abraçou-a com força, beijando-a sem saber do que ou por que tinha de aclamá-la, murmurou-lhe palavras de alívio, estendeu-a contra ele, debaixo dele, possuiu-a docemente e quase sem desejo a partir de uma longa fadiga, penetrou-a e a remontou sentindo-a crispar-se e ceder e abrir-se e agora, agora, já, agora, assim, já, e a ressaca devolvendo-os e um descanso de barriga para cima olhando o nada, ouvindo a noite latejar com um sangue de chuva lá fora, interminável grande ventre da noite guardando-os dos medos, de barras de metrô e lâmpadas quebradas e fósforos que a mão de Dina não tinha querido segurar, que dobrara para baixo para queimar-se e queimá-la, quase como um acidente porque na escuridão o espaço e as posições mudam e se é desajeitado como uma criança mas depois o segundo fósforo amassado entre o dedos, caranguejo enraivecido queimando-se contanto que destrua a luz, então Dina tratara de acender o último fósforo com a outra mão e tinha sido pior, não podia nem dizer a Lucho que a ouvia a partir de um medo vago, um cigarro sujo. Não está percebendo que não querem, é outra vez. Outra vez que. Isso. Outra vez que. Não, nada, é preciso achar a vela. Eu vou procurá-la, dê-me os fósforos. Caíram lá, no canto. Fique quieta, espere. Não, não vá, por favor não vá. Deixe-me, eu vou achá-los. Vamos juntos, é melhor. Não, me deixe, eu vou encontrá-los, me diga onde pode estar essa maldita vela. Por aí, na estante, se você acendesse um fósforo, talvez. Não vai se ver nada, deixe eu ir. Empurrando-a devagar, desatando-lhe as mãos que o cingiam pela cintura, levantando-se pouco a pouco. O puxão no sexo o fez gritar mais de surpresa que de dor, procurou como um chicote o punho que o prendia a Dina estendida de costas e gemendo, abriu-lhe os dedos e a empurrou violentamente. Escutava-a a chamá-lo, a pedir-lhe que voltasse, que não tornaria a acontecer, que a culpa era dele por teimar. Orientando-se em direção ao que pensava ser o canto, agachou-se junto à coisa que podia ser a mesa e tateou procurando os fósforos, pareceu-lhe encontrar um mas era comprido demais, talvez um palito de dentes, e a caixa não estava lá, as palmas das mãos percorriam o velho tapete, arrastava-se de joelhos debaixo da mesa; achou um fósforo, depois outro, mas a caixa não; contra o assoalho parecia ainda mais escuro, cheirava a abafado e a tempo. Sentiu os ganchos que lhe corriam pelas costas, subindo até a nuca e o cabelo, ergueu-se de um salto empurrando Dina que gritava contra ele e dizia alguma coisa sobre a luz no patamar da escada, abrir a porta e a luz da escada, mas claro, como não tinham pensado antes, onde estava a porta, ali defronte, não podia saber que a mesa ficava do lado, embaixo da janela, estou lhe dizendo que aí, então vá você que sabe, vamos os dois, não quero ficar sozinha agora, então me solte, você me machuca, não posso, digo que não posso, me solte ou bato em você, não, não, me solte, estou lhe dizendo. O empurrão o deixou sozinho frente a um arfar, alguma coisa que tremia ali ao lado, muito perto; esticando os braços avançou em busca de uma parede, imaginando a porta; tocou numa coisa quente que o evitou com um grito, sua outra mão fechou-se sobre a garganta de Dina como se apertasse uma luva ou o pescoço de um gatinho preto, a queimadura lhe dilacerou a face e os lábios, roçando-lhe um olho, jogou-se para trás para livrar-se daquilo que continuava apertando a garganta de Dina, caiu de costas no tapete, arrastou-se de lado sabendo o que ia acontecer, um vento quente em cima dele, o espinhal de unhas contra seu ventre e suas costelas, eu lhe disse, eu lhe disse que não podia ser, que acendesse a vela, procure a porta logo, a porta. Arrastando-se longe da voz suspensa em algum ponto do ar negro, num soluço de asfixia que se repetia e repetia, deu com a parede, percorreu-a erguendo-se para sentir uma moldura, uma cortina, a outra moldura, a maçaneta; um ar gélido misturou-se ao sangue que lhe enchia os lábios, tateou procurando o interruptor da luz, ouviu atrás a corrida e o alarido de Dina, seu golpe contra a porta encostada, devia ter batido de testa, de nariz na porta, a porta fechando-se atrás dele justamente no momento em que apertava o interruptor da luz. O vizinho que espiava da porta em frente olhou-o e com uma exclamação sufocada meteu-se para dentro e trancou a porta, Lucho nu no patamar o amaldiçoou e passou os dedos pelo rosto que ardia enquanto tudo mais era o frio do patamar, os passos que subiam correndo do primeiro andar, abra, abra logo, pelo amor de Deus abra, já tem luz, abra que já tem luz. Dentro o silêncio e como que uma espera, a velha embrulhada no roupão roxo olhando de baixo, um berro, sem-vergonha, a esta hora, depravado, a polícia, são todos iguais, madame Roger, madame Roger! "Não vai abrir", pensou Lucho sentando no primeiro degrau, tirando o sangue da boca e dos olhos, "desmaiou por causa do golpe e está aí no chão, não vai abrir, sempre a mesma coisa, que frio, que frio." Começou a bater na porta enquanto ouvia as vozes no apartamento em frente, a corrida da velha que descia chamando madame Roger, o edifício que acordava nos andares de baixo, perguntas e rumores, um momento de espera, nu e cheio de sangue, um louco furioso, madame Roger, abra Dina, abra, não importa que tenha sido sempre assim, éramos outra coisa, Dina, poderíamos encontrar juntos, porque você está aí no chão, o que foi que eu fiz, por que você bateu contra a porta, madame Roger, se você me abrisse acharíamos a saída, você já viu antes, já viu como ia tudo tão bem, simplesmente acender a luz e continuarmos procurando os dois, mas você não quer me abrir, está chorando, miando como um gato machucado, eu a ouço, eu a ouço, ouço madame Roger, a polícia, e você grande filho da puta por que me espia dessa porta, abra, Dina, ainda podemos achar a vela, nos lavaremos, estou com frio, Dina, eles vêm aí com um cobertor, é típico, um homem nu se embrulha com um cobertor, terei de dizer-lhes que você está aí jogada, que tragam outro cobertor, que ponham a porta abaixo, que limpem sua cara, que cuidem de você e a protejam porque eu já não estarei aí, nos separarão logo, você vai ver, vão nos descer separados e nos levarão longe um do outro, qual é a mão que você vai procurar Dina, que cara vai arranhar agora enquanto a levam entre todos e madame Roger.
Julio Cortázar -
Octaedro