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Friday, June 20, 2008

Melodrama lusitano

Vim pela primeira vez a Lisboa com remotos 19 anos, em 1963, mas já a conhecia com afetuosa intimidade, graças aos romances de Eça de Queiroz: a rua das Janelas Verdes, o Bairro Alto, o Rocio, o teatro D. Maria, a rua do Ouro, o Chiado, era como rever lugares queridos, apenas imaginados.
Nas ruas, em plena ditadura salazarista, homens e mulheres de roupas feias e escuras, melancólicos e cabisbaixos, passavam como sombras. Também tive a impressão, e não só por ser muito jovem, de que só havia velhos pelas ruas. Onde estaria a juventude daquela cidade? Sentia-se medo, derrota e resignação no ar.
Em 1975, voltei a Lisboa, pouco depois da Revolução dos Cravos. Encontrei a cidade eufórica com a nova liberdade, as outrora imaculadas paredes pichadas com slogans libertários, havia alegria em todos os rostos e, nas ruas, todos pareciam jovens e cheios de esperança.
Minha filha Esperança acabara de nascer no Brasil, no último e mais terrível ano do governo Médici. Assim que cheguei, liguei para o amigo e grande ator Nicolau Brayner para irmos aos copos celebrar a chegada da miúda. Ele me disse para encontrá-lo no teatro, mas não precisava ver a peça, "é muito chata", que chegasse no final e o esperasse no camarim.
Fui recebido por uma simpática velhinha, camareira de Nicolau havia muitos anos. Chamava-se Esperança, um nome muito comum em Portugal, mas raríssimo no Brasil. Contei-lhe que minha filha era sua xará porque, em 1963, sua mãe, então com 19 anos e um filho recém-nascido, fizera uma sofrida turnê teatral pelo interior de Portugal e uma bondosa camareira a ajudara a cuidar do bebê. Chamava-se dona Esperança e inspirara Marilia a dar seu nome à filha.
Era a própria. Nos abraçamos aos prantos.

Nelson Motta - Folha de São Paulo

Friday, March 21, 2008

Frases obscenas
NELSON MOTTA

Jovem e fervoroso revolucionário, um dia comentei com meu avô que alguma coisa era boa, mas cara, e ouvi, chocado, um velho professor amigo dele me dizer com naturalidade: "Mas tudo que é caro é bom, meu filho".
Sorrindo da minha indignação, ressalvou que nem tudo que é barato é ruim, que era possível que algo barato fosse bom, e que nem tudo que é bom é caro, já que algumas das melhores coisas da vida são de graça. Mas manteve a frase obscena.
E mais: me assegurou que o ser humano não vende mais barato o que pode vender mais caro, que ninguém quer o pior se pode ter o melhor e que uma das leis irrevogáveis da humanidade é a da oferta e da procura. Me senti ultrajado.
Mas ao longo dos 40 anos seguintes fui entendendo que era só uma generalização provocativa paulo-franciana, nelson-rodrigueana, pelo prazer da frase e da ironia, e me lembrei dele muitas vezes, com um sorriso, do velho cínico. E sábio.
O que diria ele agora, quando tantos ainda crêem que "tudo que é de esquerda é bom"? Sem ressalvas, já que tudo que não é de esquerda, de direita é, portanto, do mal. Quem ler, digamos, o Zé Dirceu, vai acreditar que a esquerda é generosa com os pobres e oprimidos, quer a igualdade e a fraternidade, é trabalhadora, honesta, não rouba, só pensa no bem do povo e do país. Os que apenas são contra a esquerda são autoritários, gananciosos, só pensam em dinheiro, em explorar os pobres, em atrasar o país, em pilhar o Estado. É patético.
O óbvio ululante é que há cada vez mais gente que não é de esquerda mas tem as qualidades que ela se atribui, assim como há muitos esquerdistas no poder que fazem justamente o que atribuem a seus opostos. Mas, o que seria dos zé-dirceus se não fosse "a direita"?

Folha de São Paulo - Opinião