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Saturday, February 07, 2009

O Valor da Ilusão e os Estados Transicionais

A primeira mamada teórica é representada na vida real pela soma das experiências iniciais de muitas mamadas. Após a primeira mamada teórica, o bebê começa a ter material com o qual criar. É possível dizer que aos poucos o bebê se torna capaz de alucinar o mamilo no momento em que a mãe está pronta para oferecê-lo. As memórias são construídas a partir de inúmeras impressões sensoriais, associadas à atividade da amamentação e ao encontro do objeto. No decorrer do tempo surge um estado no qual o bebê sente confiança em que o objeto do desejo pode ser encontrado, e isto significa que o bebê gradualmente passa a tolerar a ausência do objeto. Desta forma inicia-se no bebê a concepção da realidade externa, um lugar de onde os objetos aparecem e no qual eles desaparecem. Através da magia do desejo, podemos dizer que o bebê tem a ilusão de possuir uma força criativa mágica, e a onipotência existe como um fato, através da sensível adaptação da mãe. O reconhecimento gradual que o bebê faz da ausência de um controle mágico sobre a realidade externa tem como base a onipotência inicial transformada em fato pela técnica adaptativa da mãe.

No dia-a-dia da vida do bebê, podemos observar como ele explora esse terceiro mundo, um mundo ilusório que nem é sua realidade interna, nem é um fato externo, e que toleramos num bebê, ainda que não o façamos com adultos ou mesmo com crianças mais velhas. Vemos o bebê chupando os dedos ou adotando alguma técnica de mexer o rosto ou murmurando um som ou agarrando algum pano, e sabemos que nesse momento o bebê está declarando seu controle mágico sobre o mundo por meio desses diversos instrumentos, prolongando (e nós permitimos que ele o faça) a onipotência originalmente satisfeita pela adaptação realizada pela mãe. Considerei útil denominar os objetos e fenômenos que pertencem a este tipo de experiências de "transicionais". Aos objetos chamei de "objetos transicionais", e às técnicas empregadas nessas situações de "fenômenos transicionais". Estes termos implicam na existência de um estado temporário próprio da primeira infância em que ao bebê é permitido pretender um controle mágico sobre a realidade externa, um controle que, nós sabemos, foi tornado real pela adaptação da mãe, mas disto o bebê ainda não sabe. O "objeto transicional", ou primeira possessão, é um objeto que o bebê criou ainda que, ao mesmo tempo em que nós assim dizemos, na realidade sabemos que se trata da ponta de um cobertor ou da franja de um xale ou de um brinquedo.

O próximo objeto que o bebê possuir será talvez dado por uma tia, e por este objeto a criança dirá "tá", reconhecendo assim a limitação do controle mágico e reconhecendo sua dependência da boa vontade das pessoas existentes no mundo externo.

Como são importantes, então, esses primeiros objetos e técnicas transicionais! Sua importância se reflete em sua persistência, uma persistência feroz por anos a fio. A partir desses fenômenos transicionais, desenvolve-se grande parte daquilo que costumamos admitir e valorizar de várias maneiras sob o título de religião e arte, e também derivam aquelas pequenas loucuras que nos parecem legítimas num dado momento, de acordo com o padrão cultural vigente.

Entre o subjetivo e aquilo que é objetivamente percebido existe uma terra de ninguém, que na infância é natural, e que é por nós esperada e aceita. O bebê não é desafiado no início, não é obrigado a decidir, tem o direito de proclamar que algo que se encontra na fronteira é ao mesmo tempo criado por ele e percebido ou aceito no mundo, o mundo que existia antes da concepção do bebê. Alguém que exija tamanha tolerância numa idade posterior é chamado de louco. Na religião e nas artes vemos essa reivindicação socializada, de modo que o indivíduo não é chamado de louco e pode usufruir, no exercício da religião ou na prática das artes, do descanso necessário aos seres humanos em sua eterna tarefa de discriminar entre os fatos e a fantasia.

D. W. Winnicott – Natureza Humana. Parte IV – Da Teoria do Instinto à Teoria do Ego; Capítulo 1 – Estabelecimento da relação com a realidade externa.

A Filosofia do "Real"

Os filósofos sempre se preocuparam com o significado da palavra "real", e houve diversas escolas de pensamento fundadas sobre a crença de que

"This stone and this tree
discontinue to be
when there's no one about in the quad"

com a alternativa

"This stone and this tree
do continue to be
as observed by yours faithfully…"

Nem todos os filósofos percebem que este problema, que aflige todo ser humano, constitui uma descrição do relacionamento inicial com a realidade externa no momento da primeira mamada teórica; ou, melhor ainda, no momento de qualquer primeiro contato teórico.

Eu o formularia da seguinte maneira: alguns bebês têm a sorte de contar com uma mãe cuja adaptação ativa inicial à necessidade foi suficientemente boa. Isto os capacita a terem a ilusão de realmente encontrar aquilo que eles criaram (alucinaram). Eventualmente, depois que a capacidade para o relacionamento foi estabelecida, estes bebês podem dar o próximo passo rumo ao reconhecimento da solidão essencial do ser humano. Mais cedo ou mais tarde, um desses bebês crescerá e dirá: "Eu sei que não há nenhum contato direto entre a realidade externa e eu mesmo, há apenas umas ilusão de contato, um fenômeno intermediário que funciona muito bem para mim quando não estou muito cansado. A mim não importa nem um pouco se aí existe ou não um problema filosófico".

Bebês que tiveram experiências um pouco menos afortunadas vêem-se realmente aflitos pela idéia de que não há um contato direto com a realidade externa. Pesa sobre eles o tempo todo, uma ameaça de perda da capacidade de se relacionar. Para eles o problema filosófico se torna e permanece sendo vital, uma questão de vida ou morte, de comer ou passar fome, de alcançar o amor ou perpetuar o isolamento.

Os bebês ainda menos afortunados, aos quais o mundo foi apresentado de maneira confusa, crescem sem qualquer capacidade de ilusão de contato com a realidade externa; ou então esta sua capacidade é tão frágil, que facilmente se quebra num momento de frustração, dando margem ao desenvolvimento de uma doença esquizóide.

D. W. Winnicott - Natureza Humana. Parte IV – Da Teoria do Instinto à Teoria do Ego; Capítulo 1 – Estabelecimento da relação com a realidade externa.