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Tuesday, July 23, 2013

Hannah Arendt - o filme


No programa Roda Viva, o filósofo e psicanalista Slavoj Zizek, que expele palavras como de uma espécie de metralhadora giratória, referiu-se três vezes ao filósofo Martin Heidegger. Na primeira, a legenda saiu "Hildegard"; nas outras duas, variações um pouco mais próximas do original não foram suficientes para esconder o fato de que o responsável pela tradução, muito provavelmente, não sabia de quem se falava.

Mas, sendo honesto, quem sabe quem foi Martin Heidegger? Quem seria capaz de reconhecê-lo numa foto?

Em caso de resposta negativa, é preciso cuidado com o filme mais recente de Margarethe Von Trotta, em que a bela Barbara Sukowa interpreta uma Hannah Arendt adentrando a meia idade, envolta em permanente fumaça de cigarro, madura como pensadora e cheia de afetos.

O filme usa como fio condutor o julgamento do criminoso de guerra Adolf Eichmann pelo recém fundado Estado de Israel e a escrita e publicação da série de reportagens para a revista New Yorker que posteriormente Arendt transformou em livro, Eichmann em Jerusalém, saído em 1964.

Heidegger surge três ou quatro vezes no roteiro em mais de um momento de sua vida, portanto, com mais de uma aparência. A quem não conheça o histórico do filósofo no partido nazista, o que temos é um professor e sua aluna aparentemente apaixonados que se encontram anos depois (no "presente" do filme) e se referem a um obscuro "Discurso da Reitoria". A maneira como a encenação se dá indica que "Discurso da Reitoria" é uma senha para algo revelador. Impossível de se entender, infelizmente.

Em princípio, as ideias fundamentais de Hannah Arendt sobre a banalidade do mal, que o livro Eichmann em Jerusalém celebrizou, o filme sabe, sim, tocar. O problema está em que é indispensável ser, no mínimo, familiarizado com vida e obra da escritora para que tais ideias façam sentido. Sem dúvida um desacerto cinematográfico que veda boa parte do entendimento dos diálogos a quem não tenha feito a "lição de casa".

De bom, o filme oferece um reconhecimento do instante em que Arendt formula, para si própria, o conceito de banalidade do mal. Esse verdadeiro susto (também registrado no Eichmann, assim como no ensaio Verdade e Política escrito como resposta pública ao que ela chamou ironicamente de "controvérsia" em torno do livro e, ainda, nas biografias), o filme consegue captar: a urgência de ter que admitir que se estava diante de algo que não havia sido vislumbrado. É isso e não (como quiseram vários dos que a atacaram) qualquer arrogância ou "trauma" antigo que a leva a enfrentar, ao preço de ser politicamente estigmatizada por seus próximos, o repúdio público e o ódio judeu que se manifestam de imediato e com toda a clareza, dos anfitriões em Jerusalém aos editores da New Yorker.

O que fica é que roteiro e direção demonstram fluência nos conceitos básicos da obra da autora, acrescentam detalhes interessantes a sua vida afetiva, mas a quem não a conheça, resta preencher com temáticas pessoais as várias gavetas deixadas abertas ao longo do filme, "adivinhando" certos sentidos.

Uma dessas gavetas poderia ser, diagnosticar o carrasco nazista como portador de um distúrbio de caráter, hipótese menos "complicada". Despreza-se, no entanto, assim, parte importante da descoberta: não se encontra traço de desequilíbrio psíquico em Eichmann. O que há é um vazio moral tão fundo que obriga a uma viravolta do eixo que norteara o exame do fenômeno totalitário formulado por Arendt até ali. Pois, pior que um evento, ainda que gigantesco, circunscrito a uma patologia singular e, no limite, intransferível, Adolf Eichmann revelava a possibilidade do mal mais extremo ser praticado por qualquer um. Daí, o adjetivo "banal". Não para perdoar ou minimizar os horrores cometidos e sim para circunscrever os campos de extermínio entre as consequências possíveis das ações humanas, não as raras, mas as mais ordinárias ações humanas.


Saturday, July 09, 2011

[...] A palavra é "filisteísmo". Sua origem, um pouco mais antiga que seu emprego específico, não possui grande importância; ela foi utilizada a princípio, no jargão universitário alemão, para distinguir burgueses de togados; a associação bíblica já indicava, porém, um inimigo numericamente superior e em cujas mãos se pode cair. Quando foi usado pela primeira vez como termo [...] designava uma mentalidade que julgava todas as coisas em termos de utilidade imediata e de "valores" materiais, e que, por conseguinte, não tinha consideração alguma por objetos e ocupações inúteis tais como os implícitos na cultura e na arte.

[...] o status objetivo do mundo cultural, na medida em que contém coisas tangíveis - livros e pinturas, estátuas, edifícios e música - compreende e testemunha todo o passado registrado de países, nações e, por fim, da humanidade. Como tais, o único critério não-social e autêntico para o julgamento desses objetos especificamente culturais é sua permanência relativa e mesmo sua eventual imortalidade. Somente o que durará através dos séculos pode se pretender em última instância um objeto cultural. O ponto crucial da questão é que tão logo as obras imortais do passado se tornam objeto de refinamento social e individual e do status correspondente, perdem sua qualidade mais importante e elementar, qual seja, a de apoderar-se do leitor ou espectador, comovendo-o durante os séculos.

[..] O que irritava no filisteu educado não era que lesse os clássicos, mas que ele o fizesse movido pelo desejo dissimulado de auto-aprimoramento, continuando completamente alheio ao fato de que Shakespeare ou Platão pudessem ter a dizer-lhes coisas mais importantes do que a maneira de se educar; o lamentável era que ele escapasse para uma região de "pura poesia" para manter a realidade fora de sua vida - coisas "prosaicas" como uma crise das batatas, por exemplo - ou para contemplá-la através de um véu de "doçura e luz".

Hannah Arendt - A Crise na Cultura: Sua Importância Social e Política - Entre o Passado e o Futuro

Thursday, July 07, 2011

Quando voltamos a pensar nos padrões e regras objetivos de comportamento segundo os quais agimos na vida cotidiana, sem pensar muito e sem julgar muito no sentido de Kant, isto é, quando de fato subordinamos os casos particulares às regras gerais sem jamais questioná-las, surge a questão de saber se não há realmente nada a que se agarrar quando somos solicitados a decidir que isto é certo e isto é errado, assim como decidimos que isto é belo e isto é feio. E a resposta a essa questão é sim e não. Sim - se com isso queremos dizer padrões geralmente aceitos como existentes em toda comunidade com respeito a maneiras e convenções, isto é, com respeito aos mores da moralidade. As questões de certo e errado não são decididas como as maneiras à mesa, como se não estivesse em jogo senão uma conduta aceitável. Mas há realmente algo a que o senso comum, quando se eleva ao nível de julgar, pode se agarrar e na verdade se agarra, e esse elemento é o exemplo. Kant disse: "Os exemplos são o andador do julgamento" (Crítica da Razão Pura, B174), e ele também chamou o "pensamento representativo" presente no julgamento em que os elementos particulares não podem ser subsumidos a algo geral pelo nome de "pensamento exemplar". Não podemos nos agarrar a nada geral, mas a algum elemento particular que se tornou um exemplo. De certo modo, esse exemplo lembra o edifício esquemático que trago no espírito para reconhecer como edifícios todas as estruturas que abrigam algo ou alguém. Mas o exemplo em contraposição ao esquema, deve nos dar uma diferença de qualidade. Deixem-me ilustrar essa diferença com um exemplo exterior à esfera moral. Perguntamos: O que é uma mesa? Em resposta a essa questão, invocamos a forma ou o esquema (kantiano) de uma mesa presente em nossa imaginação, com relação à qual toda mesa deve se conformar para ser uma mesa. Vamos chamar isso de a mesa esquemática (que, aliás, é mais ou menos a mesma coisa que a mesa "ideal", a ideia de mesa em Platão). Ou podemos reunir todos os tipos de mesa, despojá-los de suas qualidades secundárias, como cor, número de pernas, material etc., até chegarmos às qualidades mínimas comuns a todas. Vamos chamar esse objeto de a mesa abstrata. Ou podemos finalmente escolher entre as melhores dentre todas as mesas que conhecemos ou podemos imaginar, e dizer: este é um exemplo de como as mesas deveriam ser construídas e como deveria ser o seu aspecto. Vamos chamar isso de mesa exemplar. O que fizemos foi escolher, eximere, um caso particular que então se torna  válido para outros casos particulares. A maioria das virtudes e vícios políticos são pensados em termos de indivíduos exemplares: Aquiles para coragem, Sólon para perspicácia (sabedoria) etc. Ou tome-se o exemplo do cesarismo ou bonapartismo: tomamos Napoleão ou César como um exemplo, isto é, como uma pessoa particular que exibe qualidades que são válidas para outros casos. Sem dúvida, aqueles que não sabem quem foram César ou Napoleão não podem compreender do que estamos falando se mencionamos o cesarismo ou o bonapartismo. Por isso a validade do conceito é restrita, mas dentro de suas restrições, ele é ainda assim válido.

Os exemplos, que são realmente o "andador" (go-cart) de todas as atividades de julgamento, constituem também, e de maneira especial, os sinais de orientação de todo pensamento moral. A amplitude com que a antiga afirmação, outrora muito paradoxal - é melhor sofrer o mal do que fazer o mal -, tem conquistado a concordância dos homens civilizados deve-se primariamente ao fato de que Sócrates deu um exemplo, e, assim, tornou-se exemplo para um certo modo de conduta e um certo modo de decidir entre o certo e o errado. Esta posição é recapitulada por Nietzsche - o último filósofo, somos tentados a pensar, que levou a sério as questões morais e que, portanto, analisou e pensou até o limite todas as posições morais anteriores. Ele disse o seguinte: "É uma desnaturação da moralidade separar o ato do agente, dirigir o ódio ou o desprezo contra o 'pecado' [o ato em vez do agente], acreditar que uma ação poderia ser boa ou má em si mesma. [... Em toda ação] tudo depende de quem a pratica, o mesmo 'crime' pode ser, num caso, o privilégio mais elevado e, noutro caso, o estigma [do mal]. Na verdade, é o apego a si daquele que julga que interpreta uma ação, ou melhor, o seu autor, com respeito à [...] semelhança ou 'não-afinidade' entre o agente e o juiz" (Vontade de poder, nº 292). Julgamos e distinguimos o certo do errado por termos presentes em nosso espírito algum incidente e alguma pessoa, ausentes no tempo ou no espaço, os quais se tornaram exemplos. Há muitos desses exemplos. Podem estar no passado remoto ou entre os vivos. Não precisam ser realidade histórica; como Jefferson certa vez observou: "O assassinato fictício de Duncan por Macbeth" provoca em nós "um horror tão grande da vilania quanto o assassinato real de Henrique IV", e um "senso vivo e duradouro de dever filial é incutido com mais eficácia num filho ou numa filha pela leitura de Rei Lear do que por todos os volumes áridos de ética e divindade que já foram escritos". (Isso é o que diz todo professor de ética e o que nenhum outro professor jamais deveria dizer).

Bem , obviamente não tenho nem o tempo nem provavelmente a capacidade de analisar todos os detalhes, isto é, de responder, mesmo da forma mais breve, a todas as perguntas que eu própria fiz durante essas quatro palestras. Só posso esperar que ao menos alguma indicação de como podemos pensar e nos mover nesses assuntos difíceis e urgentes tenha se tornado aparente. Como conclusão, permitam-me apenas mais dois comentários. De nossa discussão de hoje sobre Kant, espero que tenha se tornado mais claro porque propus, por meio de Cícero e Meister Eckhart, a questão de determinar com quem desejamos estar juntos. Tentei mostrar que as nossas decisões sobre o certo e o errado vão depender de nossa escolha da companhia, daqueles com quem desejamos passar a nossa vida. Uma vez mais, essa companhia é escolhida ao pensarmos em exemplos, em exemplos de pessoas mortas ou vivas, reais ou fictícias, e em exemplos de incidentes passados ou presentes. No caso improvável de que alguém venha nos dizer que preferiria o Barba Azul por companhia, tomando-o assim como seu exemplo, a única coisa que poderíamos fazer é nos assegurarmos de que ele jamais chegasse perto de nós. Mas receio que seja muito maior a probabilidade de que alguém venha nos dizer que não se importa com a questão e que qualquer companhia lhe será satisfatória. Em termos morais e até políticos, essa indiferença, embora bastante comum, é o maior perigo. Em conexão com isso, sendo apenas um pouco menos perigoso, está outro fenômeno moderno muito comum, a tendência difundida da recusa a julgar. A partir da recusa ou da incapacidade de estabelecer uma relação com os outros pelo julgamento surgem os skandala reais, os obstáculos reais que os poderes humanos não podem remover porque não foram causados por motivos humanos ou humanamente compreensíveis. Nisso reside o horror e, ao mesmo tempo, a banalidade do mal.

1965-6

Hannah Arendt - Algumas questões de filosofia moral* - Responsabilidade e Julgamento


* Curso ministrado por Hannah Arendt na New School for Social Research em 1965. No ano seguinte, Arendt ministrou um curso semelhante na Universidade de Chicago, intitulado "Questões morais básicas"

A reconstrução do tema dos direitos humanos elaborada com base em desenvolvimento ou sugestões contidas na obra de Hannah Arendt não leva a um sistema. Permite, no entanto, identificar problemas que são importantes e se tornaram relevantes em virtude da ruptura totalitária e dos seus desdobramentos. A identificação de tais problemas resulta de um juízo, uma faculdade da mente com que Hannah Arendt se preocupou – é, na verdade, um tema recorrente de sua reflexão – mas sobre a qual não chegou a escrever, e que seria o fecho de The Life of the Mind, seu último livro, publicado postumamente.

O juízo, entendido kantianamente como a faculdade de pensar o particular contido no geral, é um dos temas fundamentais do Direito, por ser uma das características da experiência jurídica moderna o processo através do qual o caso concreto é qualificado e subsumido pela norma geral. A lógica do razoável no pensamento jurídico explorou amplamente, em matéria de hermenêutica jurídica, as dificuldades da subsunção. Entretanto, sempre partiu do pressuposto de existir um geral, ao qual se possa razoavelmente recorrer por meio de interpretação. 

Precisamente porque articulou [...] a ruptura que dissolveu o geral, Hannah Arendt se deu conta da inexistência de um sistema de universais para aquilo que desborda da lógica do razoável. Por isso, toda a sua reflexão tem como horizonte o problema de como julgar um particular, para o qual não existe previamente o dado de um universal. Foi por essa razão que, diante das dificuldades do juízo determinante em situações-limite provenientes da impossibilidade de se aplicar uma regra universal de entendimento a um caso particular, ela explorou o campo dos juízos reflexivos e raciocinantes. Estes entreabrem a faculdade de pensar o particular, através de sua validade exemplar, que pode ser realçada e comunicada. 

O juízo reflexivo e raciocinante – que Kant examina na Crítica do Juízo – na análise da estética foi o ponto de partida heurístico de Hannah Arendt para unir a teoria à prática na sua proposta de reconstrução, como se vislumbra nas suas Lectures on Kant’s Political Philosophy, também publicadas postumamente sob os cuidados de Ronald Beiner. 

Tal proposta harmoniza-se com a sua visão [...] perante um mundo percebido centrifugamente, pois a importância dos juízos reflexivos e raciocinantes deriva da relação problemática entre o universal e o particular que a ruptura tornou evidente. Em síntese: precisamente porque o juízo, no mundo contemporâneo, não pode ser reduzido a uma fórmula inequívoca de subsunção é que se pode falar no seu peso e na sua responsabilidade. 

Hannah Arendt assumiu, com a sua obra, o ônus e a responsabilidade de juízos reflexivos e raciocinantes, que são esforços de mediação entre o particular e um universal fugidio. Ela nos convida a fazer a mesma coisa. Não é fácil aceitar tal convite, inclusive por força das limitações teóricas e práticas ao que se pode fazer com as indicações por ela deixadas a propósito do juízo. Estas indicações, no entanto, são suficientes para fundamentar por que uma reconstrução pós-totalitarismo do tema dos direitos humanos inspirada em Hannah Arendt só poderia ser tópica – e não sistemática –, mas que existe indiscutível validade nos problemas investigados com base em sua reflexão. 

Com efeito, e resumindo para a seguir concluir, quais são os temas de direitos humanos discutidos neste texto*, voltados para impedir a reemergência de um novo estado totalitário de natureza, e heuristicamente inspirados por um diálogo livre com o pensamento de Hannah Arendt? São eles: 

• a cidadania concebida com o “direito a ter direitos”, pois sem ela não se trabalha a igualdade que requer o acesso ao espaço público, pois os direitos – todos os direitos – não são dados (physei) mas construídos (nomoi) no âmbito de uma comunidade política; 

• a repressão ao genocídio concebido como um crime contra a humanidade e fundamentado na tutela da condição humana da pluralidade e da diversidade que o genocídio visa destruir;

• o estudo da obrigação política em conexão: com o direito de associação como a base do agir conjunto e condição de possibilidade da geração de poder; com a dimensão de autoridade e legitimidade da fundação do nós de uma comunidade política e a sua relação com o direito à autodeterminação dos povos; com o poder da promessa e conseqüentemente com o pacta sunt servanda enquanto base da obediência ao Direito; com a resistência à opressão, através da desobediência civil, que em situações-limite pode resgatar a obrigação política da destrutividade da violência; 

• o direito à informação, como condição essencial para a manutenção de um espaço público democrático, e o direito à intimidade, indispensável para a preservação do calor da vida humana na esfera privada. 

Todos estes temas são, penso eu, uma eloqüente e pertinente indicação da capacidade arendtiana de indicar caminhos teóricos a partir de problemas concretos. Daí os fermenta cognitionis dos tópicos abordados, derivados da experiência de ruptura, que revelam, pela sua validade exemplar, uma generalidade que de outra forma não poderia ser percebida.

ESTUDOS AVANÇADOS 11 (30), 1997

Celso Lafer, professor titular de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP, é chefe da missão do Brasil junto à ONU em Genebra e ex-ministro das Relações Exteriores do Brasil.


* A Reconstrução dos direitos humanos: a contribuição de Hannah Arendt. Hannah Arendt: Pensamento, Persuasão e Poder

Monday, July 04, 2011

Nos seus comentários, Arendt indicou que "o caráter imperecível" das obras de arte aplicada, o fato de que podemos julgá-las e realmente as julgamos belas depois de centenas ou milhares de anos, introduz a durabilidade do passado e com isso a estabilidade do mundo em nossa experiência. Mas, ao contrário das artes aplicadas que sustentam a estrutura do mundo, a ação, sem nenhum plano ou paradigma, o modifica. A ação, como testemunha o século XX, demonstra a fragilidade e a maleabilidade do mundo que ronda a liberdade abissal da vontade. No entanto, segundo Arendt, apesar de sua contingência "acidental" e "caótica", depois de terminada, pode-se contar uma história que "dá sentido" à ação. Como, perguntava ela, isso é possível? Em oposição aos filósofos da história, que tipicamente lêem progresso ou declínio nos resultados da ação, o interesse de Arendt era pela ação livre, cujos resultados são desconhecidos enquanto está sendo desempenhada. Se a faculdade de julgamento se mantém afastada da ação para adaptá-la a uma história, deve operar também naquele que age, que Arendt gostava de comparar a um ator, um artista. Embora a interpretação do agente desapareça assim que termina, enquanto perdura ela "ilumina" o princípio que a inspira. Espontaneamente, aquele que age julga esse princípio adequado para aparecer no mundo: ele lhe agrada, e sua ação é um apelo a outros, um pedido de que também lhes agrade. O agente, ocupado demais para pensar enquanto está agindo, não é irracional, e toda a atividade mental, segundo Arendt, torna a refletir sobre si mesma. Ao contrário do pensar e do querer, entretanto, o julgar está estreitamente ligado ao sentido que lhe corresponde, isto é, ao gosto. A reflexividade do julgar é qualificada pelo "agrada" ou "não agrada" do gosto, e quando o julgamento reflete o gosto de outros que julgam, transcende-se o imediatismo do próprio gosto daquele que julga. O ato de julgar transforma o gosto, o mais subjetivo de nossos sentidos, no senso comum especificamente humano que orienta os homens, homens que julgam, no mundo.

O julgamento, portanto, é uma espécie de atividade de equilíbrio, "congelada" na figura das balanças da justiça que pesam a estabilidade do mundo, em que o seu passado é presente, contra a renovação do mundo, a sua abertura à ação, mesmo que ela possa abalar a própria estrutura do mundo. [...] Com algum grau de confiança, pode-se dizer que a capacidade de pensar [...] é a precondição do julgar, e que a recusa e a incapacidade de julgar, de imaginar diante dos olhos os outros a quem o julgamento representa e reage, convidam o mal a entrar e infeccionar o mundo. Também se pode dizer que a faculdade de julgamento, ao contrário da vontade, não contradiz a si mesma: a capacidade de formular um julgamento não está separada de sua expressão, de fato são virtualmente a mesma coisa no discurso e na ação. [...] Seria possível dizer que o fenômeno da consciência é verdadeiro ao dar ouvidos e prestar atenção às vozes dos vivos, e dos que já não são ou ainda não são vivos, que partilham em comum um mundo duradouro e mutuamente agradável, cuja possibilidade tanto instiga o julgamento como é o seu resultado. Também se poderia dizer que a capacidade de reagir julgando imparcialmente - apreciando e tratando com consideração todos os pontos de vista possíveis - a adequação ou inadequação de certos fenômenos particulares que aparecerem no mundo une de forma inconsútil a política e a moralidade na esfera da ação. [...] Finalmente, talvez se possa perguntar: Arendt não estava se referindo ao poder estritamente moral do julgamento, quando [...] escreveu que julgar "pode realmente impedir catástrofes, pelo mesmo para mim mesma, nos raros momentos em que as cartas estão abertas sobre a mesa"?

Jerome Kohn, professor da New School for Social Research e diretor do Centro Hannah Arendt, na mesma instituição. Assistente de pesquisa de Hannah Arendt na New School. Responsável pela edição e publicação de seus inéditos. Introdução à edição americana - Responsabilidade e Julgamento,  pgs. 27, 28 e 29.

Saturday, July 02, 2011

Mencionei o colapso total dos padrões morais e religiosos entre pessoas que, segundo todas as aparências, sempre tinham acreditado firmemente nesses padrões, e também mencionei o fato inegável de que os poucos que conseguiram não ser tragados pelo redemoinho não foram de modo algum os "moralistas", pessoas que sempre apoiaram as regras da conduta certa, mas, ao contrário, foram muito frequentemente aqueles que tinham sido convencidos, mesmo antes da débâcle, da não-validade objetiva desses padrões per se. Assim, teoricamente, nós nos descobrimos hoje na mesma situação em que o século XVIII se descobriu com respeito aos meros julgamentos de gosto. Kant se indignava que a questão da beleza fosse decidida arbitrariamente, sem possibilidade de discussão e acordo mútuo, no espírito do  de gustibus non disputandum est. De maneira bastante frequente, mesmo em circunstâncias que estão muito longe de qualquer indicação catastrófica, nos descobrimos hoje exatamente na mesma posição no que diz respeito às discussões de questões morais. Assim, vamos retornar a Kant.

1.

O senso comum para Kant não significava um sentido comum para todos nós, mas, estritamente, aquele sentido que nos ajusta a uma comunidade formada com os outros, que nos torna seus membros e capacita-nos a comunicar as coisas dadas pelos nossos cinco sentidos. Ele cumpre essa tarefa com a ajuda de outra faculdade, a faculdade da imaginação (para Kant a faculdade mais misteriosa). A imaginação ou representação designa a minha capacidade de ter no espírito a imagem de algo que não está presente. A representação torna presente o que está ausente - por exemplo, a ponte George Washington. Mas embora eu possa evocar a ponte que está distante do olho de meu espírito, tenho realmente duas imaginações ou representações no espírito: primeiro, essa ponte particular que já vi muitas vezes, e segundo, uma imagem esquemática de ponte pela qual posso reconhecer e identificar qualquer ponte, inclusive a mencionada, como sendo uma ponte. Essa segunda ponte esquemática nunca aparece diante de meus olhos corpóreos; no momento em que a coloco no papel torna-se uma ponte particular, deixa de ser um mero esquema. Ora, a mesma capacidade representativa sem a qual nenhum conhecimento seria possível estende-se às outras pessoas, e os esquemas que aparecem no conhecimento se tornam exemplos no julgamento. O senso comum, em virtude de sua capacidade imaginativa, pode ter presente em si mesmo todos aqueles que de fato estão ausentes. Pode pensar, como diz Kant, no lugar de todos os outros, de modo que quando alguém faz um julgamento - isto é belo - ele não quer dizer meramente que isso me agrada (como se, por exemplo, sopa de galinha pudesse ser do meu gosto, mas não ser do gosto de outros), mas ele reivindica a aprovação dos outros porque no ato de julgar já os levou em consideração e, por isso, espera que seus julgamentos venham conter uma certa validade geral, ainda que talvez não universal. A validade vai se estender a toda a comunidade da qual o meu senso comum se torna membro - Kant, que se julgava um cidadão do mundo, esperava que se estendesse à comunidade de toda a humanidade. Kant dá a isso o nome de "mentalidade alargada", querendo dizer que sem esse acordo o homem não está preparado para a interação civilizada. O aspecto importante da questão é que meu julgamento de um caso particular não depende meramente da minha percepção, mas de representar para mim mesmo algo que não percebo. Deixem-me ilustrar esse ponto: vamos supor que eu veja uma moradia específica na favela e perceba nessa construção particular a noção geral que ela não exibe diretamente, a noção de pobreza e miséria. Chego a essa noção ao representar para mim mesmo como me sentiria se tivesse de viver ali, isto é, tento pensar no lugar do morador da favela. O julgamento a que vou chegar não será necessariamente igual ao dos habitantes, a quem o tempo e a falta de esperança podem ter embotado qualquer sensibilidade à afronta de sua condição, mas vai se tornar um exemplo marcante para os meus julgamentos posteriores dessas questões. Além disso, embora ao julgar eu leve em consideração os outros, isso não significa que me adapte em meu julgamento ao julgamentos dos outros. Ainda falo com a minha própria voz e não conto votos para chegar ao que penso ser certo. Mas o meu julgamento já não é subjetivo, no sentido de que chegaria às minhas conclusões levando apenas a mim mesma em consideração.

Hannah Arendt - Algumas questões de filosofia moral (1965 - 6) - Responsabilidade e Julgamento

Saturday, June 25, 2011

3.

[...] Pensar e lembrar, dissemos, é o modo humano de deitar raízes, de cada um tomar seu lugar no mundo a que todos chegamos como estranhos. O que em geral chamamos de uma pessoa ou uma personalidade, distinta de um mero ser humano ou de um ninguém, nasce realmente desse processo que deita raízes. Nesse sentido, afirmei que é quase uma redundância falar de uma personalidade moral; sem dúvida, uma pessoa ainda pode ser de boa ou má índole, as suas inclinações podem ser generosas ou mesquinhas, ela pode ser agressiva ou dócil, franca ou dissimulada; pode ser dada a todos os tipos de vícios, assim como pode nascer inteligente ou estúpida, bela ou feia, amável ou um tanto rude. Tudo isso tem pouco a ver com as questões que nos preocupam nesse momento. Caso se trate de um ser pensante, arraigado em seus pensamentos e lembranças e, assim, conhecedor de que tem de viver consigo mesmo, haverá limites para o que se pode permitir fazer, e esses limites não lhe serão impostos de fora, mas auto-estabelecidos. Esses limites podem mudar de maneira considerável e desconfortavelmente de pessoa para pessoa, de país para país, de século para século: mas o mal ilimitado e extremo só é possível quando essas raízes cultivadas a partir do eu, que automaticamente limitam as possibilidades, estão inteiramente ausentes. Elas estão ausentes quando os homens apenas deslizam sobre a superfície dos acontecimentos, quando se deixam levar adiante sem jamais penetrarem em qualquer profundidade de que possam ser capazes. Certamente, essa profundidade também muda de pessoa para pessoa, de século para século, tanto na sua qualidade específica quanto nas suas dimensões. Sócrates acreditava que ensinando as pessoas como  pensar, como falar consigo mesmas, uma ação distinta da arte oratória de como persuadir e da ambição do sábio de ensinar o que  pensar e como aprender, ele melhoraria seus concidadãos; mas se aceitamos esse pressuposto e perguntamos a Sócrates quais seriam as sanções para aquele famoso crime oculto dos olhos dos deuses e dos homens, a sua resposta só poderia ter sido: a perda dessa capacidade, a perda de estar só, e, como tentei ilustrar, com ela a perda da criatividade - em outras palavras, a perda do eu que constitui a pessoa.

Hanna Arendt - Algumas questões de filosofia moral III - Responsabilidade e Julgamento

2.

Por fim, permitam-me lembrar-lhes um dos fenômenos mais assustadores em nossas experiências morais mais recentes. Suponho que todos os senhores já ouviram falar ao menos daqueles assassinos do Terceiro Reich que não só levavam uma impecável vida familiar, como gostavam de passar o seu tempo de lazer lendo Hölderlin e escutando Bach, provando (como se houvesse falta de provas a esse respeito) que os intelectuais podem ser tão facilmente induzidos ao crime quanto qualquer outra pessoa. Mas a sensibilidade e um gosto pelas assim chamadas coisas elevadas da vida não são capacidades do espírito? Sem dúvida, mas a capacidade de apreciação não tem nada a ver com o pensamento, que, devemos lembrar, é uma atividade, e não o desfrute passivo de algo. Na medida em que o pensamento é uma atividade, ele pode ser traduzido em produtos, em coisas como poemas, música ou pinturas. Todas as coisas desse tipo são realmente coisas do pensamento, assim como a mobília e os objetos de nosso uso diário são corretamente chamados objetos de uso: uns são inspirados pelo pensamento e os outros são inspirados pelo uso, por alguma necessidade e carência humana. O ponto importante sobre esses assassinos altamente cultos é que nem um único deles compôs um poema digno de ser lembrado, uma música digna de ser escutada, ou pintou um quadro que alguém gostaria de dependurar nas suas paredes. Sem dúvida, é necessário mais do que o pleno exercício da capacidade de pensar (thoughtfulness) para compor um bom poema, uma música ou pintar um quadro - é necessário um talento especial. Mas nenhum talento suportará a perda de integridade que experimentamos quando perdemos essa capacidade muito comum de pensar e lembrar.

Hannah Arendt - Algumas questões de filosofia moral II - Responsabilidade e Julgamento

1.

A primeira coisa que nos chama a atenção nos diálogos socráticos de Platão é que são todos aporéticos. A argumentação ou não leva a lugar nenhum ou anda em círculos.

[...] Nenhum dos logoi, os argumentos, jamais fica parado; movem-se ao redor porque Sócrates, ao fazer perguntas para as quais ele não sabe as respostas, coloca-os em movimento. E quando as afirmações perfazem o círculo completo é em geral Sócrates que, com prazer, propõe começar tudo de novo [...]

[...] Entretanto, Sócrates, de quem comumente se diz que teria acreditado na possibilidade de ensinar a virtude, parece ter sustentado de fato que falar e pensar sobre a piedade, a justiça, a coragem e tudo o mais, poderia tornar os homens mais piedosos, mais justos, mais corajosos, mesmo que não lhes fossem dadas definições ou "valores" para orientar a sua conduta posterior. Aquilo em que Sócrates realmente acreditava a respeito dessas questões pode ser mais bem ilustrado pelas comparações que aplicava a si mesmo. Ele se chamava de moscardo e parteira, e, segundo Platão, foi chamado por outra pessoa de "arraia-elétrica", um peixe que paralisa e entorpece pelo contato, uma semelhança cuja propriedade ele reconheceu sob condição de que fosse compreendido que "a arraia-elétrica só paralisa os outros por estar ela própria paralisada. Não é que, sabendo eu próprio as respostas, deixe perplexas as outras pessoas. A verdade é, antes, que também as infecto com a perplexidade que eu próprio sinto". O que, sem dúvida, resume com muita clareza a única maneira em que o pensamento pode ser ensinado - exceto que Sócrates, como ele disse repetidas vezes, não ensinava nada pela simples razão de que nada tinha para ensinar; ele era "estéril" como as parteiras na Grécia, que já tinham passado da idade de dar à luz.

[...] Sócrates (comparado a) um moscardo [...] sabe como provocar os cidadãos que, sem ele, "continuarão a dormir calmamente pelo resto da vida", a menos que apareça outra pessoa para voltar a despertá-los. E a que ele os provoca? A pensar, a examinar as questões, uma atividade sem a qual a vida, segundo ele, não só não valia muito a pena como não era plenamente viva.

[..] Parece que ele, ao contrário dos filósofos profissionais, sentia-se impelido a verificar se os seus semelhantes partilhavam as suas perplexidades - e esse impulso é totalmente diferente da inclinação a encontrar soluções para enigmas para então demonstrá-las aos outros.

Hannah Arendt - Pensamento e considerações morais - Responsabilidade e Julgamento

Sunday, June 05, 2011

Reflexos de uma vocação libertária

Lançado em 1963, Sobre a Revolução, de Hannah Arendt, que ganha nova edição no País, permanece atual ao tratar da busca da felicidade pública por meio do fim da opressão - algo verificado, por exemplo, na primavera árabe de 2011

Celso Lafer - O Estado de S.Paulo

O que é uma Revolução? O que distingue um revolucionário de um revoltado - que é um insatisfeito - e de um rebelde - que se levanta contra a autoridade? Por que um golpe de Estado, que provoca uma mudança de governo e uma ruptura da ordem jurídica, não é a expressão de uma Revolução? O que separa um reformista de um revolucionário? Por que uma mudança radical como a representada pela Revolução Industrial, que transformou a economia, ou a Revolução Feminina, que alterou os costumes da sociedade, não tem a aura da Revolução Francesa ou da Revolução Russa que foram precedidas pela violência de um movimento revolucionário?

Estas perguntas permanecem na agenda da discussão pública. Delas trata, esclarecendo, Hannah Arendt em Sobre a Revolução. Daí uma razão do interesse do seu livro que, em nova e cuidadosa tradução para o português de Denise Bottmann, acaba de ser publicado pela Companhia das Letras.

A primeira edição do livro, publicada pela Viking Press de Nova York, é de 1963; a segunda, revista pela autora, é de 1965. A edição de 2006, inserida nos clássicos da Penguin, contém uma importante apresentação de Jonathan Schell que integra, igualmente, esta edição da Companhia das Letras. Schell destaca a atualidade do livro sublinhando a pertinência da reflexão arendtiana para a análise da onda das revoluções democráticas posteriores à redação do livro - da Revolução dos Cravos, de Portugal, às do Leste Europeu, nos processos que levaram à derrocada da União Soviética. A elas pode-se acrescentar as da primavera árabe de 2011. Por isso, Sobre a Revolução tem uma das características de um livro "clássico" - e como tal foi qualificado pela Penguin. Com efeito, continua propiciando caminhos para o entendimento do mundo atual, não obstante ter sido concebido e redigido no distinto contexto histórico da década de 1960, caracterizado pelo confronto entre os EUA - herdeiros do legado da Revolução Americana - e a URSS - herdeira, na época, do legado da Revolução Russa.

Hannah Arendt abre o seu livro explicando que a guerra tem em comum com a revolução a presença da violência e, portanto, o problema da sua justificativa. Esta, no caso de uma Revolução, diz respeito à possibilidade de um novo início, fruto de uma aspiração trazida pelo potencial da convergência entre libertação e liberdade. Revolução não se confunde, portanto, como ela diz, com rebelião e revolta que não apontam para a instauração de uma nova liberdade. Tampouco se identifica com o golpe de Estado, que não carrega o pathos da novidade, tem a sua origem no palácio e não na praça, que é o espaço político do exercício da liberdade motivador da Revolução. A Revolução não se assemelha ao reformismo nem às mudanças substantivas mas aluvionais como as trazidas pela Revolução Industrial ou pela Revolução Feminina, pois tem como nota distintiva não apenas a mudança mas o movimento da tempestade revolucionária, de que falava Robespierre.

A Revolução vem à tona por meio da violência. Esta não a explica, assim como a mudança que não dá conta do seu significado. O fenômeno da Revolução, aponta Hannah Arendt, tem como característica "quando a mudança ocorre no sentido de criar um novo início; quando a violência é empregada para constituir uma forma de governo totalmente diferente e para gerar a formação de um novo corpo político", e "quando a libertação da opressão visa pelo menos à constituição da liberdade".

Foi a aura da Revolução Francesa que incendiou o mundo, aponta Hannah Arendt ao propor a "ideia a realizar" da coincidência entre liberdade e um novo início. Não teve precedentes históricos, pois não foi entendida e historicamente recepcionada como uma indiferenciada expressão da mudança política mas sim como algo radicalmente novo: a fundação do novus ordo saeclorum, instaurador da legitimidade do poder. O impacto da Revolução Francesa, no campo das ideias, trouxe um novo conceito de História na filosofia de Hegel. Este conceito, por sua vez, exerceu uma influência direta sobre os revolucionários dos séculos 19 e 20, que absorveram o conceito nas lições de Marx e que passaram a enxergar a Revolução com base nas categorias hegelianas, como um libertário desenlace histórico da convergência entre necessidade e violência.

O tema recorrente do livro é uma grande reflexão sobre, de um lado, a validade das aspirações de liberdade que motivaram, no mundo moderno, o fenômeno revolucionário e, de outro, as razões dos descaminhos das Revoluções. Estes descaminhos integram o tema arendtiano da ruptura - vale dizer o das descontinuidades entre o passado e o futuro, assinaladores dos desdobramentos da modernidade - pois não trouxeram a constituição da liberdade. Explicam, ao mesmo tempo, a relevância do que Hannah Arendt considera o tesouro perdido da tradição revolucionária - a da autogestão dos townhalls, dos conselhos, dos Räte, dos sovietes - pela qual, com sua vocação libertária e empenho na construção de uma comunidade política criativa e criadora, tinha apreço e afinidade

Hannah Arendt traz à colação, neste livro, a importância da Revolução Americana. Destaca que o espírito da Revolução Americana não teve o mesmo impacto no imaginário político que caracterizou a Revolução Francesa, mas realça tanto o significado desta experiência na criação de uma nova ordem quanto à densidade das teorias políticas dos seus pais fundadores, que estão na origem da República norte-americana. Esta não nasceu de uma necessidade histórica nem de um desenvolvimento orgânico, mas "de um ato deliberado empenhado na fundação da liberdade". Por isso as reflexões e as ações de John Adams, Jefferson, Hamilton, Madison ecoam nas páginas deste livro assim como as de Robespierre, Saint-Just, Condorcet, Marx e Lenin. A comparação e o contraste entre as Revoluções Americana e a Francesa tem como horizonte a preocupação arendtiana de examinar as condições da possibilidade de um mundo comum, livre da opressão e ensejador da liberdade política de participação no governo e nos assuntos públicos.

O pensamento de Hannah Arendt é denso e abrangente. Daí os riscos da simplificação da sua análise. Ciente destes riscos diria que o fulcro de Sobre a Revolução é a tese de que a busca da felicidade pública (à que não têm acesso os Homens em Tempos Sombrios para os quais o espaço público desapareceu ou encolheu) através da liberação da opressão - econômica, social, política, colonial - não leva, necessária ou automaticamente, à liberdade. Esta requer instituições políticas apropriadas, a constitutio libertatis. Sem estas instituições não se efetiva a motivação revolucionária de uma nova ordem que assegure a permanência do espaço público para o exercício da liberdade. Daí a especificidade e a autonomia da política, que não se reduz à questão social e que Hannah Arendt ilumina no seu livro através da dicotomia liberação da opressão/construção da liberdade.

Na discussão da criação de instituições políticas, Hannah Arendt elaborou, com muito engenho, o significado fundacional do poder constituinte originário e explora o papel da Constituição como a convenção que enseja a gramática da ação e a sintaxe do poder. Na análise da experiência da Revolução Americana e dos desdobramentos no tempo de sua construção institucional chama atenção para o vínculo virtuoso entre República e Federação e mostra o significado da Suprema Corte e do Senado como instâncias de autoridade distintas do exercício da ação conjunta do poder.

Tanto no mando quanto no desmando, na política sempre ocorre o enlace, entre as forças impessoais e históricas e o bom e o mau das paixões e dos sentimentos humanos. Numa Revolução, que é uma situação-limite, este enlace adquire uma intensidade própria, à qual Hannah Arendt dedica páginas de grande acuidade.

No trato das motivações que levam aos movimentos revolucionários, destaca os efeitos da hipocrisia dos governantes de regimes corruptos e prepotentes que instiga a violência dos governados. Na análise do que leva aos descaminhos revolucionários, realça a obsessão jacobina com a pureza da virtude que induz o terror revolucionário e destaca os riscos do voluntarismo na política que não leva em conta a pluralidade e a diversidade da condição humana.

Em Sobre a Revolução Hannah Arendt discute os equívocos da piedade e da compaixão promovidos pela contemplação da miséria dos deserdados. A compaixão e a piedade são incapazes de argumentação. Por isso, não dizem respeito à política e a sua intrusão neste âmbito acaba levando à destrutividade da violência. A compaixão e a piedade são sentimentos. Não são um princípio da ação como a solidariedade, que pode orientar o juízo político.

O bom e o mau que caracteriza os seres humanos - da generosidade ao ressentimento - estão presentes na vida política. Na análise desta dimensão da política, Hannah Arendt com frequência valeu-se, na sua obra, da literatura que nos dá acesso, como ela dizia citando Shakespeare, "às trevas do coração humano". Do mal absoluto na política ela tratou em Origens do Totalitarismo e em Eichmann em Jerusalém. Em Sobre a Revolução, avaliou as consequências da bondade absoluta. Instigada pela leitura de O Grande Inquisidor de Dostoievski e do Billy Budd de Melville, discute os riscos para a política da bondade absoluta - a bondade além da virtude e o mal além do vício - capaz de buscar impor, pelo terror, a virtude revolucionária. Mostra, assim, como é fundamental, na discussão do fenômeno e da motivação revolucionária, a percepção da atuação concreta dos atores políticos que os ideólogos, com as suas paixões e sentimentos e as ideologias, nas suas abstrações, não alcançam.

CELSO LAFER É PROFESSOR TITULAR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS E DA ABL. PRESIDENTE DA FAPESP, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES DO GOVERNO FERNANDO HENRIQUE

Saturday, June 04, 2011

Quanto aos homens da revolução ( * ), havia apenas duas lendas de fundação que lhes eram familiares: a história bíblica do êxodo das tribos de Israel saindo do Egito e a história ( * ) de Virgílio sobre as andanças de Eneias depois de fugir de Troia em chamas. Ambas são lendas de libertação, a primeira sobre a libertação da escravidão e a segunda sobre a fuga à destruição, e ambas têm como centro uma promessa futura de liberdade, a conquista de uma terra prometida ou a fundação de uma nova cidade. Quanto à revolução, essas histórias parecem encerrar uma lição importante; numa estranha coincidência, as duas insistem num hiato entre o fim da velha ordem e o início da nova, de forma que não importa muito, neste contexto, se o hiato é preenchido pelas erranças desoladas das tribos de Israel no deserto ou pelas aventuras e perigos que Eneias enfrenta antes de chegar à costa italiana. Se essas lendas ensinam alguma coisa, é que a liberdade não é o resultado automático da libertação, da mesma forma que o novo início não é a consequência automática do fim.

[...] Faz parte da própria natureza de um início que ele traga em si uma dose de completa arbitrariedade. Não só o início não está ligado a uma sólida cadeia de causas e efeitos, uma cadeia em que cada efeito se torna a causa de futuros desenvolvimentos, como ainda não há nada, por assim dizer, a que ele possa se segurar; é como se saísse do nada no tempo e no espaço. Por um momento, o momento do início, é como se o iniciador tivesse abolido a própria sequencia da temporalidade, ou como se os atores fossem lançados fora da ordem temporal e de sua continuidade. O problema do início, claro, aparece primeiramente na reflexão e especulação sobre a origem do universo, e conhecemos a solução hebraica para tais perplexidades - o postulado de um Deus Criador que está fora de sua criação, da mesma forma como o artesão está fora do objeto que fez. Em outras palavras, o problema do início é resolvido com a introdução de um iniciador cujo próprio início não está mais sujeito a indagações pois vai "da eternidade à eternidade".

[...] Por mais que as reações mentais involuntárias dos homens das revoluções ainda pudessem estar dominadas pela tradição hebraico-cristã, não resta dúvida de que o esforço consciente deles em lidar com as perplexidades do início, tais como aparecem no próprio ato de fundação, recorreu não ao "No início Deus criou o céu e a terra", mas sim à "antiga prudência", à sabedoria política da Antiguidade, em especial à Antiguidade romana. [...]  A história romana tinha como centro a ideia de fundação, e é impossível entender qualquer dos grandes conceitos políticos romanos, como autoridade, tradição, religião, lei etc., sem considerar o grande feito que está no início da história e da cronologia de Roma, o fato da urbis condita, a fundação da cidade eterna.

[...] Em nosso contexto, porém, é mais importante observar que (para os próprios romanos) nem mesmo a fundação era entendida como um início absolutamente novo. Roma - ela era o ressurgimento de Troia e o restabelecimento de alguma cidade-estado que existira antes e cujo fio de continuidade e tradição nunca se rompera. [...] O que importa [...] não é tanto a noção profundamente romana de que todas as fundações são restabelecimentos e reconstruções, e sim a ideia em certa medida relacionada, mas distinta, de que os homens estão capacitados para a tarefa, que é um paradoxo em termos lógicos, de criar um novo início porque eles mesmos são novos inícios e, portanto, iniciadores, que a própria capacidade de iniciar se radica na natalidade, no fato de que os seres humanos aparecem no mundo em virtude do nascimento.

Seja como for, ou como tenha sido, quando os americanos decidiram criar uma variante do magnus ordo saeclorum virgiliano, alterando-o para novus ordo saeclorum, admitiam que não se tratava mais de fundar "Roma de novo", e sim de fundar uma "nova Roma", que a linha de continuidade que unia a política ocidental à fundação da cidade eterna e ligava esta fundação, por sua vez, às memórias pré-históricas da Grécia e de Troia tinha se rompido e não poderia ser restaurada. E era inevitável admiti-lo.

[...] Assim, pelo visto, os homens da Revolução Americana, que tinham uma percepção quase obsessiva quanto à absoluta novidade daquele empreendimento, viram-se inevitavelmente apanhados em algo para o qual a verdade histórica e a verdade lendária de suas tradições não podiam oferecer nenhum auxílio ou precedente. E, no entanto, [...] podem ter percebido vagamente que existe uma solução para as perplexidades do início, a qual não requer nenhum absoluto para romper o círculo vicioso em que parecem presas todas as primeiras coisas. O que salva o ato de iniciar de sua própria arbitrariedade é que ele traz dentro de si seu próprio princípio, ou, em termos mais precisos, que o início e o princípio, principium  e princípio, não só estão relacionados entre si, mas são simultâneos. O absoluto do qual o início há de derivar sua validade e que, por assim dizer, deve salvá-lo de sua arbitrariedade intrínseca é o princípio que faz seu aparecimento no mundo junto com ele. A maneira como o iniciador começa o que pretende fazer estabelece a lei da ação para os que se uniram a ele a fim de participar e realizar o empreendimento. Como tal, o princípio inspira os atos que se seguirão e continua a aparecer enquanto dura a ação. E não é apenas nossa língua que ainda deriva o "princípio" do latim principium, sugerindo assim tal solução para o problema que, de outra maneira, seria insolúvel, a saber, o problema de um absoluto na esfera dos assuntos humanos, que é relativa por definição.

[...] Por grandiosas e significativas que sejam tais percepções, elas só passam a se aplicar à esfera política depois de se reconhecer que estão em flagrante oposição com as velhas noções, mas ainda correntes, sobre o papel dominante da violência, necessária para todas as fundações e, portanto, supostamente inevitável em todas as revoluções. Sob este aspecto, o curso da Revolução Americana conta uma história inesquecível e pode ensinar uma lição sem igual; pois essa revolução não eclodiu, mas foi feita por homens deliberando em conjunto com a força dos compromissos mútuos. O princípio que veio à luz naqueles anos cruciais quando foram lançadas as fundações - não pela força de um arquiteto, mas pelo poder somado de muitos - era o princípio da promessa mútua e da deliberação comum; e de fato foi o próprio acontecimento que decidiu, como havia insistido Hamilton, que os homens "são realmente capazes de estabelecer um bom governo a partir da reflexão e da escolha", que não estão "destinados para sempre a depender do acaso e da força para suas constituições políticas".

Hannah Arendt - Sobre a Revolução - capítulo 5. Fundação II: Novus ordo saeclorum

Sunday, May 29, 2011

Podemos dizer que a experiência especificamente americana ensinou aos homens da revolução [ * ] que a ação, mesmo que se inicie no isolamento e seja decidida por pessoas individuais pelos mais variados motivos, só pode ser efetivada com algum esforço conjunto em que a motivação de cada um deixa de contar, de modo que a homogeneidade de origem ou passado, que é o princípio decisivo do Estado nacional, deixa de ser um requisito. O esforço conjunto nivela com grande eficiência as diferenças de origem e qualidade. Aqui, ademais, podemos encontrar a raiz do surpreendente dito "realismo" dos Pais Fundadores [ * ] em relação à natureza humana. Eles podiam ignorar a proposição revolucionária francesa de que o homem é bom fora da sociedade, em algum estado original fictício, que era, afinal, a proposição da era do Iluminismo. Podiam ser realistas e até pessimistas neste aspecto porque sabiam que os homens, como quer que fossem em sua singularidade, eram capazes de se unir numa comunidade, que, embora composta de "pecadores", não precisaria refletir necessariamente esse lado "pecaminoso" da natureza humana. Dessa maneira, o mesmo estado social que, para seus colegas franceses, tinha se tornado a raiz de toda a maldade humana, era para eles a única vida razoável em que poderiam se salvar do mal e da desgraça, vida à qual os homens eram capazes de aceder mesmo neste mundo, e mesmo por iniciativa própria, sem qualquer auxílio divino. Aqui, aliás, também podemos discernir a verdadeira origem da versão americana, sujeita a tantos mal-entendidos, da crença então corrente na perfectibilidade humana. Antes que a filosofia americana comum sucumbisse aos conceitos rousseaunianos a esse respeito - o que só veio a acontecer no século XIX -, a fé americana não se baseava absolutamente numa confiança quase religiosa na natureza humana, mas, ao contrário, na possibilidade de refrear a natureza humana em sua singularidade graças a promessas mútuas e a obrigações comuns. A esperança para o homem em sua singularidade consistia no fato de que não é o Homem, e sim os homens que habitam a terra e formam um mundo entre eles. É a mundanidade humana que salvará os homens das armadilhas da natureza humana. E por isso o argumento mais forte que John Adams [ * ] pôde desferir contra um corpo político dominado por uma única assembleia foi que ele estaria "sujeito a todos os vícios, loucuras e fraquezas de um indivíduo".

A isso se relaciona  intimamente a percepção da natureza do poder humano. À diferença da força, que é dote e posse de cada homem isolado contra todos os outros homens, o poder só nasce se e quando os homens se unem com a finalidade de agir, e desaparece quando, por qualquer razão, eles se dispersam e abandonam uns aos outros. Assim, prometer e obrigar, unir e pactuar são os meios de manter a existência do poder; sempre que os homens conseguem preservar o poder nascido entre eles durante qualquer gesto ou ação particular, já se encontram em processo de fundação, em processo de constituir uma estrutura terrena estável que, por assim dizer, abrigue esse seu poder somado de ação conjunta. A faculdade humana de fazer e manter promessas guarda um elemento da capacidade humana de construir o mundo. Assim como as promessas e acordos tratam do futuro e oferecem estabilidade no oceano de incertezas do porvir, onde o imprevisível pode irromper de todos os lados, da mesma forma as capacidades humanas de constituir, fundar e construir o mundo sempre remetem mais a nossos "sucessores" e à "posteridade" do que a nós mesmos e à nossa época. A gramática da ação: a ação é a única faculdade humana que requer uma pluralidade de homens; a sintaxe do poder: o poder é o único atributo humano que se aplica exclusivamente ao entremeio mundano onde os homens se relacionam entre si, unindo-se no ato da fundação em virtude de fazer promessas, o que, na esfera da política, é provavelmente a faculdade humana suprema. 

Hannah Arendt - Sobre a Revolução - capítulo 4. Fundação I: Constitutio libertatis - pgs. 226, 227, 228

Tuesday, July 20, 2010

Per - sonare

[...] Deixem-me lembrar-lhes a origem etimológica da palavra "pessoa", que foi adotada quase sem alterações do latim persona pelas línguas européias, com a mesma unanimidade com que, por exemplo, a palavra "política" foi derivada do grego polis. Não é certamente desprovido de significação que uma palavra tão importante em nossos vocabulários contemporâneos, que usamos em toda a Europa para discutir uma grande variedade de questões legais, políticas e filosóficas, derive de uma fonte idêntica na Antiguidade. Esse vocabulário antigo fornece algo como um acorde fundamental que, em muitas modulações e variações, soa através da história intelectual da humanidade ocidental.

Persona, em todo caso, referia-se em latim à máscara do ator, aquela que cobria sua face "pessoal" individual, indicando para o espectador o papel e a parte do ator na peça. Mas nessa máscara, que era criada e determinada para a peça, havia uma abertura larga no lugar da boca, pela qual soava a voz individual e sem disfarce do ator. É desse soar através que a palavra persona derivou originalmente: per-sonare, "soar através", é o verbo do qual persona, a máscara, é o substantivo. E os próprios romanos foram os primeiros a usar o substantivo num sentido metafórico; na lei romana, persona era alguém que possuía direitos civis, em contraste agudo com a palavra homo, que denotava alguém que não passava de um membro da espécie humana, diferente, sem dúvida, de um animal, mas sem nenhuma qualificação ou distinção específica, de modo que homo, como o grego anthropos, era frequentemente usado de modo desdenhoso para designar pessoas não protegidas pela lei.

Considerei útil para as minhas considerações essa compreensão latina de pessoa, porque ela convida a outros usos metafóricos, as metáforas sendo o pão de cada dia de todo pensamento conceitual. A máscara romana corresponde com grande precisão ao nosso modo de aparecer em sociedade, onde não somos cidadãos, isto é, onde não estamos igualados pelo espaço público estabelecido e reservado para o discurso e atos políticos, mas em que somos aceitos como indivíduos por nossos próprios méritos, e, no entanto, de modo algum como seres humanos enquanto tais. No palco que é o mundo, sempre aparecemos e somos reconhecidos segundo os papéis que nossas profissões nos designam, como médicos ou advogados, como autores ou editores, como professores ou estudantes, e assim por diante. É por meio desse papel, como que soando através dele, que alguma outra coisa se manifesta, algo inteiramente idiossincrático e indefinível e, mesmo assim, inequivocamente identificável, de modo que não ficamos confusos por uma repentina mudança de papéis, quando, por exemplo, um estudante atinge o seu objetivo que era tornar-se professor, ou quando a anfitriã, a quem conhecemos socialmente como médica, serve os drinques em vez de cuidar de seus pacientes. Em outras palavras, a vantagem de adotar a noção de persona para as minhas considerações reside no fato de que as máscaras ou papéis que o mundo nos atribui, e que devemos aceitar e até adquirir se desejamos fazer parte do teatro do mundo, são permutáveis; não são inalienáveis, no sentido em que falamos de "direitos inalienáveis", e não são um acessório permanente anexado a nosso eu interior, no sentido em que a voz da consciência, como acredita a maioria das pessoas, é algo que a alma humana carrega constantemente consigo.

É nesse sentido que consigo entrar num acordo com o fato de aparecer aqui como uma "figura pública", para fins de um evento público. Significa que, findos os eventos para os quais a máscara foi criada, e eu tiver acabado de usar e abusar do meu direito individual de soar através da máscara, tudo voltará ao seu lugar mais uma vez. Então eu, extremamente honrada e profundamente agradecida por esse momento, estarei livre, não apenas para trocar os papéis e as máscaras que a grande peça do mundo venha a me oferecer, mas livre até para me mover por essa peça no mundo na minha hecceidade (thisness) nua, identificável, espero, mas não definível e não seduzida pela grande tentação do reconhecimento que, não importa de que forma, só pode nos reconhecer como isto e aquilo, isto é, como algo que fundamentalmente não somos.

Hannah Arendt - Trecho final de conferência apresentada em Copenhague em abril de 1975, durante a entrega do Prêmio Sonning, atribuído pelo governo da Dinamarca, por sua contribuição à civilização européia. Esse discurso, completo, figura como Prólogo à Responsabilidade e Julgamento, edição de Jerome Kohn.

Tuesday, July 06, 2010

Tecnologia – produto – Mercado

1. O trabalho e seu produto, o artefato humano, emprestam certa permanência e durabilidade à futilidade da vida mortal e ao caráter efêmero do tempo humano.

[...] o desgaste não é o destino dos objetos, no mesmo sentido em que a destruição é o fim intrínseco de todas as coisas destinadas ao consumo. O que o uso desgasta é a durabilidade.

É esta durabilidade que empresta às coisas do mundo sua relativa independência dos homens que as produziram e as utilizam, a "objetividade" que as faz resistir, "obstar" e suportar, pelo menos durante algum tempo, as vorazes necessidades de seus fabricantes e usuários. Desse ponto de vista, as coisas do mundo têm a função de estabilizar a vida humana; [...] os homens, a despeito de sua contínua mutação, podem reaver sua invariabilidade, isto é, sua identidade no contato com objetos que não variam, como a mesma cadeira e a mesma mesa.


2. A antiguidade [...] conhecia perfeitamente certos tipos de comunidade humana nos quais não era o cidadão da polis nem a res publica em si que estabelecia e determinava o conteúdo da esfera pública; [...] A característica dessas comunidades apolíticas era que o logradouro público, a agora, não constituía lugar de encontro para os cidadãos, e sim mercado, no qual os artífices podiam exibir e trocar produtos. Além disto, na Grécia, os tiranos nutriam a ambição, sempre frustrada, de persuadir os cidadãos a não se imiscuírem em assuntos públicos, a deixar de desperdiçar o tempo em agoreuein e politeuesthai, e de transformar a agora num conjunto de lojas semelhantes aos bazares do despotismo oriental.

[...] Ao contrário do 
animal laborans, cuja vida é gregária e alheia ao mundo e que, portanto, é incapaz de construir ou habitar uma esfera pública e mundana, o homo faber é perfeitamente capaz de ter a sua própria esfera pública, embora não uma esfera política propriamente dita. A esfera pública do homo faber é o mercado de trocas, no qual ele pode exibir os produtos de sua mão e receber a estima que merece. Esta inclinação para a exibição pública tem muito a ver com a "propensão de negociar, permutar e trocar uma coisa por outra" que, segundo Adam Smith, distingue os homens dos animais [...] "Ninguém jamais viu um cão trocar um osso com outro cão honesta e propositalmente" (Wealth of Nations).

[...] O erro básico [...] é ignorar a inevitabilidade com que os homens se revelam como sujeitos, como pessoas distintas e singulares, mesmo quando empenhados em alcançar um objetivo completamente material e mundano.

3. [uma das funções] da 
polis, estreitamente relacionada com os riscos da ação tal como experimentada antes que a polis passasse a existir, era remediar a futilidade da ação e do discurso; pois não era muito grande a possibilidade de que um ato digno de fama fosse realmente lembrado e "imortalizado". Homero não foi somente um brilhante exemplo da função política do poeta e, portanto, "o educador de toda a Hélade"; o próprio fato de que um empreendimento grandioso como a guerra de Tróia pudesse ter sido esquecido sem um poeta que o imortalizasse centenas de anos depois, era um lembrete do que poderia ocorrer com a grandeza humana, se esta dependesse apenas dos poetas para garantir sua permanência.

Não nos interessam aqui as causas históricas do surgimento da cidade-estado grega; os próprios gregos deixaram bem claro o que dela pensavam e qual a sua raison d'être. A acreditarmos nas célebres palavras de Péricles na Oração Fúnebre, a polis era uma garantia aos que haviam convertido mares e terras no cenário do seu destemor de que não ficariam sem testemunho e não dependeriam do louvor de Homero nem de outro artista da palavra; sem a ajuda de terceiros, os que agiam podiam estabelecer, juntos, a memória eterna de suas ações, boas ou más, e de inspirar a admiração dos contemporâneos e da posteridade. Em outras palavras, a convivência dos homens sob a forma de polis parecia garantir a imperecibilidade das mais fúteis atividades humanas – a ação e o discurso – e dos menos tangíveis e mais efêmeros "produtos" do homem – os feitos e as histórias que deles resultam. A organização da polis, fisicamente assegurada pelos muros que rodeavam a cidade, e fisionomicamente garantida por suas leis – para que as gerações futuras não viessem a desfigurá-las inteiramente – é uma espécie de memória organizada. Garante ao ator mortal que sua existência passageira e sua grandeza efêmera terão sempre a realidade que advém de ser visto, ouvido e, de modo geral, aparecer para a platéia de seus semelhantes que, fora da polis, só podiam assistir a um desempenho de curta duração e, portanto, precisavam de Homero e de "outros do mesmo ofício" para conhecer os que já haviam morrido.

Segundo esta auto-interpretação, a esfera política resulta diretamente da ação em conjunto, da "comparticipação de palavras e atos". A ação, portanto, não apenas mantém a mais íntima relação com o lado público do mundo, comum a todos nós, mas é a única atividade que o constitui. É como se os muros da 
polis e os limites da lei fossem erguidos em torno de um espaço público preexistente, mas que, sem essa proteção estabilizadora, não duraria, não sobreviveria ao próprio instante da ação e do discurso. Falando metafórica e teoricamente (e não historicamente, é claro), é como se os que regressaram da guerra de Tróia desejassem tornar permanente o espaço da ação decorrente de seus feitos e sofrimentos, e impedir que esse espaço desaparecesse com a dispersão e o regresso de cada um a seu lar.

A rigor, a 
polis não é a cidade-estado em sua localização física; é a organização da comunidade que resulta do agir e falar em conjunto, e o seu verdadeiro espaço situa-se entre as pessoas que vivem juntas com tal propósito, não importa onde estejam. "Onde quer que vás, serás uma polis": estas famosas palavras não só vieram a ser a senha da colonização grega, mas exprimiam a convicção de que a ação e o discurso criam entre as partes um espaço capaz de situar-se adequadamente em qualquer tempo e lugar. Trata-se do espaço da aparência, no mais amplo sentido da palavra, ou seja, o espaço no qual eu apareço aos outros e os outros a mim; onde os homens assumem uma aparência explícita, ao invés de se contentar em existir meramente como coisas vivas ou inanimadas.

Nem sempre este espaço existe; e, embora todos os homens sejam capazes de agir e de falar, a maioria deles - o escravo, o estrangeiro e o bárbaro na antiguidade, o trabalhador e o artesão antes da idade moderna, o assalariado e o homem de negócios da atualidade - não vive nele. Além disso, nenhum homem pode viver permanentemente nesse espaço. Privar-se dele significa privar-se da realidade que, humana e politicamente, é o mesmo que a aparência. Para os homens, a realidade do mundo é garantida pela presença dos outros, pelo fato de aparecerem a todos: "pois chamamos de Existência àquilo que aparece a todos; e tudo que deixa de ter essa aparência surge e se esvai como um sonho - íntima e exclusivamente nosso, mas desprovido de realidade" (Aristóteles, Ética a Nicômaco).


Hannah Arendt - A Condição Humana – 1958

Thursday, April 15, 2010

(4 de dezembro de 1975)

[...] No fim do jantar, ela propõe um café. Diante de seus amigos estupefatos, depois de um breve acesso de tosse, Hannah Arendt cai para trás em sua poltrona e perde a consciência. Consta o nome de um médico em um frasco de remédio sobre a escrivaninha. Ele chegará tarde demais.

[...] Essa morte tão brusca, sem dor, sem alerta - como não pensar em um pássaro atingido em pleno vôo pela arma de um caçador - ressoa estranhamente. Hannah Arendt, que passou toda a sua vida tentando entender a plenitude do homem, que sempre soube em seu íntimo que a morte faz parte da vida, constitui sua própria essência, sua razão de ser, morreu sem perceber.

Laure Adler - Nos Passos de Hannah Arendt - biografia

Saturday, February 13, 2010

Sobre o colaboracionismo francês, drama dos refugiados judeus e Lisboa como rota de fuga

1941. Uma bola de fogo transpõe o horizonte do passado. Preparar o futuro significa organizar o pessimismo. A espera se torna interminável. A procissão do desespero dos refugiados vai se espalhando pelas ruas de Lisboa, onde a Europa vomita o conteúdo de seu estômago envenenado. Hannah Arendt e Heinrich Blücher ladeiam Alfred Koestler. Só o pensamento do milagre os mantém de pé.

Laure Adler - Pária - Nos Passos de Hannah Arendt

Monday, December 28, 2009

Saiu a melhor biografia de Hannah Arendt

ELIO GASPARI

Nunca o episódio de sua cobertura do julgamento de Adolf Eichmann foi tão bem contado. O tédio lhe fez mal

ESTÁ NA PRAÇA um grande livro com a vida de uma mulher fenomenal num século de tragédias. É "Nos Passos de Hannah Arendt", de Laure Adler. Formada na elite da academia alemã dos anos 20, Arendt tornou-se uma refugiada judia em 1933, viveu na França, fugiu para Lisboa e foi para os Estados Unidos em 1941. Tinha 35 anos. Lia os clássicos enquanto vivia numa dieta de grão de bico e repolho. Em Nova York, tornou-se uma das maiores pensadoras do século 20. Era judia e anti-sionista, encantava um pedaço da esquerda e expunha o totalitarismo soviético. Sua obra é uma busca de explicações para as malvadezas humanas. (No Brasil, onde seus livros circulavam livremente, era freguesa da censura à imprensa dos anos 70.)

Adler, que trabalhou com o presidente francês François Mitterrand, mostra a alma de uma geração. A generosidade de Raymond Aron e a militância nazista, escrachada e oportunista, do filósofo Martin Heidegger (paixão de Arendt). O livro modula suavemente discussões filosóficas. A excelente tradução de Tatiana Salem Levy e Marcelo Jacques assegura uma leitura sem obstáculos.

Hannah Arendt mudou o curso de sua vida em 1961, quando propôs à revista "New Yorker" que a mandasse a Jerusalém para cobrir o julgamento de Adolf Eichmann, o supervisor das deportações do Holocausto. Ele fora seqüestrado por agentes israelenses em Buenos Aires. Numa série de cinco artigos que viraram livro (com algumas alterações), ela criou uma expressão universal: "a banalidade do mal". Arendt evitou a armadilha que explicava tudo a partir da construção de um monstro: "Era difícil não desconfiar que fosse um palhaço". Além disso, foi fundo na condenação das lideranças de sua comunidade na Europa: "Para um judeu, o papel desempenhado pelos líderes judeus na destruição de seu próprio povo é, sem dúvida alguma, o capítulo mais sombrio de toda uma história de sombras".

Nunca esse pedaço da vida de Hannah Arendt foi tão bem contado. A narrativa de Adler mostra que ela foi influenciada pelo tédio que ronda os repórteres em longas coberturas. Aborreceu-se com a cidade, não teve paciência com as testemunhas, irritou-se com a gramática do promotor e largou o tribunal no meio do julgamento.

O debate provocado por "Eichmann em Jerusalém" dividiu a intelectualidade de esquerda de Nova York e apressou a migração de parte dela para a direita. Criticaram-na por ter pegado leve no réu e pesado nas vítimas.

Adler foi além dos papéis de Arendt e, em seis páginas, mexe num caso que dará tristeza ao professor Celso Lafer, aluno e devoto da pensadora. No livro, Arendt louva uma obra monumental, publicada em 1961 pelo professor Raul Hilberg, da Universidade do Vermont. Chama-se "A Destruição dos Judeus da Europa" e discute o comportamento das lideranças judaicas européias. O livro havia sido rejeitado pela Universidade Princeton e pelo Instituto Yad Vashem. Adler entrevistou Hilberg. Ele avisara: "O que vou lhe dizer de Hannah não é agradável. Você quer realmente saber?"

O professor mostrou-lhe uma carta. Em 1960, Hannah Arendt desaconselhara a publicação do trabalho pela editora de Princeton. Sustentara que era obra inútil, sobre um assunto esgotado. Hilberg já se referira ao lance em 1994, mas discutiu melhor o assunto na conversa com Adler. Arendt rejeitara o livro em 1960 e, depois que ele foi publicado, usou-o (11 citações na versão ampliada de "Eichmann em Jerusalém"), fazendo de conta que nada acontecera.

Um episódio ilustra o racionalidade e o esnobismo de Hannah Arendt. Em março de 1962, ela sofreu um acidente de trânsito no Central Park. Retiraram-na de um táxi com a cabeça ferida, seis costelas e um pulso quebrados. Enquanto esperava a ambulância, mexeu-se e concluiu que não estava paralítica. Em seguida, recitou poemas em grego e lembrou os números dos telefones de alguns amigos. O sistema continuava rodando. Fechou os olhos e aguardou o socorro em paz.

Folha de São Paulo, domingo, 15 de abril de 2007

Sunday, September 06, 2009

Morpheus: Você é um escravo. Como todo mundo. Você nasceu num cativeiro, nasceu numa prisão que não consegue sentir ou tocar. Uma prisão para sua mente. Infelizmente é impossível dizer o que é Matrix. Você tem de ver por si mesmo.


Labor – Escravidão


1 - O labor é a atividade humana que corresponde ao processo biológico do corpo humano, cujo crescimento espontâneo, metabolismo e eventual declínio têm a ver com as necessidades vitais produzidas e introduzidas pelo labor no processo da vida.

O labor assegura não apenas a sobrevivência do indivíduo, mas a vida da espécie.

O labor é uma atividade assinalada pela necessidade e concomitante futilidade do processo biológico, do qual deriva, uma vez que é algo que se consome no próprio metabolismo, individual ou coletivo. Porque é atividade que os homens compartilham com os animais, Hannah Arendt qualifica-a como a do animal laborans.

[...] É típico de todo labor nada deixar atrás de si: o resultado do seu esforço é consumido quase tão depressa quanto o esforço é despendido. E, no entanto, esse esforço, a despeito de sua futilidade, decorre de enorme premência; motiva-o um impulso mais poderoso que qualquer outro, pois a própria vida depende dele.


2 - Os antigos [...] achavam necessário ter escravos em virtude da natureza servil de todas as ocupações que servissem às necessidades de manutenção da vida.

A degradação do escravo era um rude golpe do destino, um fado pior que a morte, por implicar a transformação do homem em algo semelhante a um animal doméstico.

Ao contrário do que ocorreu nos tempos modernos, a instituição da escravidão na antiguidade não foi uma forma de obter mão-de-obra barata nem instrumento de exploração para fins de lucro, mas sim a tentativa de excluir o labor das condições da vida humana. Tudo que os homens tinham em comum com as outras formas de vida animal era considerado inumano. (Esta era também, por sinal, a razão da teoria grega, tão mal interpretada, da natureza inumana do escravo. Aristóteles, que sustentou tão explicitamente a sua teoria para depois, no leito de morte, alforriar seus escravos, talvez não fosse tão incoerente como tendem a pensar os modernos. Não negava que os escravos pudessem ser humanos; negava somente o emprego da palavra "homem" para designar membros da espécie humana totalmente sujeitos à necessidade).


As duas qualidades que, segundo Aristóteles, o escravo não possui – e é por causa desses defeitos que ele não é humano – são as faculdades de deliberar e decidir (to bouleutikon) e de prever e escolher (proairesis). Isto é, naturalmente, outra maneira de dizer que o escravo é sujeito à necessidade.

Não possuir lugar próprio e privado. Ser, contra a vontade, servo da necessidade; a verdade é que o emprego da palavra "animal" no conceito de animal laborans, ao contrário do outro uso, muito discutível, da mesma palavra na expressão animal rationale, é inteiramente justificado. O animal laborans é, realmente, apenas uma das espécies animais que vivem na terra – na melhor das hipóteses a mais desenvolvida.

Hannah Arendt – A Condição Humana

Monday, August 03, 2009

7169063 Hannah Arendt Trabalho Obra Acao



Tradução de Adriano Correia
Revisão de Theresa Calvet de Magalhães

Resumo: Em meados da década de 1960, quando a relevância do pensamento para a moralidade se convertia em uma das preocupações centrais de Hannah Arendt, ela retoma, no texto aqui traduzido, sua inusitada distinção entre as atividades fundamentais do trabalho, da obra e da ação. Partindo da questão “em que consiste uma vida ativa?”, ela revisita e repõe suas análises de A Condição Humana, ocupando-se novamente com as implicações das inversões hierárquicas entre estas atividades para a vida, para o mundo e, principalmente, para a pluralidade humana. No mesmo sentido, ela examina os princípios que orientam as atividades do animal laborans, do homo faber e do homem de ação, assim como seu significado para a afirmação da liberdade humana e da dignidade da política. Para Hannah Arendt, este é o ponto de partida para pensar sobre o que estamos fazendo.