Concluindo o que eu estava falando sobre a beleza, as mais satisfatórias relações do sensível devem, por conseguinte, corresponder às fases necessárias da apreensão artística. Descobre-as e terás descoberto as qualidades da beleza universal. Santo Tomás de Aquino diz: Ad pulcritudinem tria requiruntur integritas, consonantia, claritas. Eu traduzo isso assim: Três coisas são necessárias para a beleza: inteireza, harmonia e radiação. Correspondem essas três às fases da apreensão?
Para ver um cesto, o espírito, antes de mais nada, separa o cesto do resto do universo visível que não é o cesto. A primeira fase de apreensão é uma linha limitando, contornando o objeto a ser apreendido. Uma imagem estética se nos apresenta seja no espaço ou no tempo. O que é audível apresenta-se no tempo, o que é visível apresenta-se no espaço. Mas, tanto temporal como espacial, a imagem estética é em primeiro lugar luminosamente apreendida como autolimitada e autocontida sobre o incomensurável segundo plano do espaço ou do tempo, que não o são. Tu a apreendes como uma coisa. Tu a enxergas como um todo. Apreendes o seu todo. Eis o que é integritas.
Então, depois, tu passas dum a outro ponto, conduzido por suas linhas formais; apreendes cada ponto como parte em função de outra parte dentro dos seus limites; sentes o ritmo de sua estrutura.
Em outras palavras, a síntese da percepção imediata é seguida pela análise de apreensão. Tendo, primeiramente, sentido que é uma coisa, sentes, agora, que é uma coisa. Tu a apreendes como complexa, múltipla, divisível, separável, inteirada pelas suas partes, o resultado de suas partes e a soma harmoniosa. Eis o que é consonantia.
A conotação de claritas é um tanto vaga. Santo Tomás de Aquino emprega um termo que parece ser inexato, que me iludiu durante muito tempo. Tal termo levaria a crer que ele tinha em mente simbolismo ou idealismo, a suprema qualidade da beleza sendo uma luz como que dum outro mundo, a ideia de que a matéria não era senão a sombra, a sua realidade não sendo senão o símbolo. Penso que ele cuidaria que claritas fosse a descoberta e a representação artística da intenção divina nalgumacoisa, ou a força da generalização que faria da imagem estética uma imagem universal, que a faria irradiar as suas próprias condições.
Mas isso não passa de linguagem literária. Pelo menos assim a tomo eu. Quando apreendeste aquela cesta como uma coisa e a analisaste, depois, de acordo com a sua forma e a apreendeste como coisa, fizeste a única síntese que lógica e esteticamente é permissível. Viste que é a coisa que de fato é, e não uma outra coisa. A radiação de que ele fala na escolástica: quidditas, o quê de uma coisa. Tal qualidade suprema é sentida pelo artista quando primeiro a imagem estética é concebida em sua imaginação. O espírito, nesse misterioso instante, Shelley comparou-o lindamente a um carvão se apagando. O instante em que essa suprema qualidade de beleza, a radiação clara da imagem estética, é apreendida luminosamente pelo espírito que foi surpreendido por sua inteireza e fascinado por sua harmonia é o luminoso êxtase silencioso de prazer estético, um estado espiritual muito similar à condição cardíaca que o fisiologista italiano Luigi Galvani, servindo-se duma frase quase tão bonita quanto a de Shelley, chamou de encantamento do coração.
O que eu disse se refere à beleza no mais lato sentido da palavra, no sentido que tal palavra possui na tradição literária. No mercado da bolsa, se bem me exprimo, ela tem outro sentido. Quando falamos em beleza, no segundo sentido do termo, o nosso julgamento é influenciado em primeiro lugar pela arte mesma, bem como pela forma dessa arte. A imagem, é claro, deve ser posta entre o espírito ou os sentidos do artista pessoalmente e o espírito e os sentidos dos demais. Se fixares bem isso na tua memória, verás que a arte, necessariamente, se divide em três formas ligadas progressivamente uma à outra. Tais formas são: a forma lírica, isto é, a forma na qual o artista manifesta a sua imagem em imediata relação com ele próprio; a forma épica, isto é, a forma na qual ele manifesta a sua imagem em imediata relação consigo mesmo e com os outros; e a forma dramática, isto é, a forma na qual ele manifesta a sua imagem em imediata relação com os outros.
É uma cadeira bem feita, trágica ou cômica? É o retrato de Mona Lisa bom, se o desejo ver? O busto de Sir Philip Crampton é lírico, épico ou dramático? Se não é, por que não o é? Se um homem, trabalhando com fúria, um bloco de madeira faz aí a imagem duma vaca, é essa imagem uma obra de arte? Se não, por que não?
A arte, sendo inferior, não apresenta as formas, de que falei, distintamente claras umas das outras. Mesmo em literatura, a arte mais alta e mais espiritual, as formas são muitas vezes confusas. A forma lírica é, de fato, a veste verbal mais simples dum instante de emoção, uma exclamação rítmica, dessas que, há muitos anos, são gratas ao homem que empunhava um remo ou que rolava pedras numa ladeira.
Aquele que a profere está mais cônscio do instante de emoção do que de si mesmo ao sentir a emoção. A forma épica mais simples é vista emergindo da literatura lírica quando o artista prolonga e se põe a se examinar como centro dum fato épico e essa forma progride até que o centro de gravidade emocional fique equidistante do artista propriamente e dos outros. A narrativa tampouco é meramente pessoal.
A personalidade do artista passa para a narração mesma, enchendo, enchendo de fora para dentro as pessoas e a ação como um mar vital. Tal progressão vê-la-ás facilmente nessa antiga balada inglesa, Turpin Hero, que começa na primeira pessoa e acaba na terceira. A forma dramática é atingida quando a vitalidade que encheu e turbilhonou em volta de cada pessoa enche todas as pessoas com uma força vital tal que ele ou ela acaba assumindo uma vida própria estética e intangível.
A personalidade do artista, no começo um grito, ou uma cadência, ou uma maneira, e depois um fluido e uma radiante narrativa, acaba finalmente se clarificando fora da existência, despersonalizando-se por assim dizer. A imagem estética, na forma dramática, é a vida purificada nela e tornando a se projetar para fora da imaginação humana. O mistério da criação estética, assim como o da criação material, então se realiza. O artista, como o Deus da criação, permanece dentro, junto, atrás ou acima da sua obra, invisível, clarificado fora da existência, indiferente, raspando as unhas dos seus dedos.
James Joyce - Retrato do artista quando jovem. Tradução de José Geraldo Vieira