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Sunday, July 17, 2011

Concluindo o que eu estava falando sobre a beleza, as mais satisfatórias relações do sensível devem, por conseguinte, corresponder às fases necessárias da apreensão artística. Descobre-as e terás descoberto as qualidades da beleza universal. Santo Tomás de Aquino diz: Ad pulcritudinem tria requiruntur integritas, consonantia, claritas. Eu traduzo isso assim: Três coisas são necessárias para a beleza: inteireza, harmonia e radiação. Correspondem essas três às fases da apreensão?

Para ver um cesto, o espírito, antes de mais nada, separa o cesto do resto do universo visível que não é o cesto. A primeira fase de apreensão é uma linha limitando, contornando o objeto a ser apreendido. Uma imagem estética se nos apresenta seja no espaço ou no tempo. O que é audível apresenta-se no tempo, o que é visível apresenta-se no espaço. Mas, tanto temporal como espacial, a imagem estética é em primeiro lugar luminosamente apreendida como autolimitada e autocontida sobre o incomensurável segundo plano do espaço ou do tempo, que não o são. Tu a apreendes como uma coisa. Tu a enxergas como um todo. Apreendes o seu todo. Eis o que é integritas.

Então, depois, tu passas dum a outro ponto, conduzido por suas linhas formais; apreendes cada ponto como parte em função de outra parte dentro dos seus limites; sentes o ritmo de sua estrutura.

Em outras palavras, a síntese da percepção imediata é seguida pela análise de apreensão. Tendo, primeiramente, sentido que é uma coisa, sentes, agora, que é uma coisa. Tu a apreendes como complexa, múltipla, divisível, separável, inteirada pelas suas partes, o resultado de suas partes e a soma harmoniosa. Eis o que é consonantia.

A conotação de claritas é um tanto vaga. Santo Tomás de Aquino emprega um termo que parece ser inexato, que me iludiu durante muito tempo. Tal termo levaria a crer que ele tinha em mente simbolismo ou idealismo, a suprema qualidade da beleza sendo uma luz como que dum outro mundo, a ideia de que a matéria não era senão a sombra, a sua realidade não sendo senão o símbolo. Penso que ele cuidaria que claritas fosse a descoberta e a representação artística da intenção divina nalgumacoisa, ou a força da generalização que faria da imagem estética uma imagem universal, que a faria irradiar as suas próprias condições.

Mas isso não passa de linguagem literária. Pelo menos assim a tomo eu. Quando apreendeste aquela cesta como uma coisa e a analisaste, depois, de acordo com a sua forma e a apreendeste como coisa, fizeste a única síntese que lógica e esteticamente é permissível. Viste que é a coisa que de fato é, e não uma outra coisa. A radiação de que ele fala na escolástica: quidditas, o quê de uma coisa. Tal qualidade suprema é sentida pelo artista quando primeiro a imagem estética é concebida em sua imaginação. O espírito, nesse misterioso instante, Shelley comparou-o lindamente a um carvão se apagando. O instante em que essa suprema qualidade de beleza, a radiação clara da imagem estética, é apreendida luminosamente pelo espírito que foi surpreendido por sua inteireza e fascinado por sua harmonia é o luminoso êxtase silencioso de prazer estético, um estado espiritual muito similar à condição cardíaca que o fisiologista italiano Luigi Galvani, servindo-se duma frase quase tão bonita quanto a de Shelley, chamou de encantamento do coração.

O que eu disse se refere à beleza no mais lato sentido da palavra, no sentido que tal palavra possui na tradição literária. No mercado da bolsa, se bem me exprimo, ela tem outro sentido. Quando falamos em beleza, no segundo sentido do termo, o nosso julgamento é influenciado em primeiro lugar pela arte mesma, bem como pela forma dessa arte. A imagem, é claro, deve ser posta entre o espírito ou os sentidos do artista pessoalmente e o espírito e os sentidos dos demais. Se fixares bem isso na tua memória, verás que a arte, necessariamente, se divide em três formas ligadas progressivamente uma à outra. Tais formas são: a forma lírica, isto é, a forma na qual o artista manifesta a sua imagem em imediata relação com ele próprio; a forma épica, isto é, a forma na qual ele manifesta a sua imagem em imediata relação consigo mesmo e com os outros; e a forma dramática, isto é, a forma na qual ele manifesta a sua imagem em imediata relação com os outros.

É uma cadeira bem feita, trágica ou cômica? É o retrato de Mona Lisa bom, se o desejo ver? O busto de Sir Philip Crampton é lírico, épico ou dramático? Se não é, por que não o é? Se um homem, trabalhando com fúria, um bloco de madeira faz aí a imagem duma vaca, é essa imagem uma obra de arte? Se não, por que não?

A arte, sendo inferior, não apresenta as formas, de que falei, distintamente claras umas das outras. Mesmo em literatura, a arte mais alta e mais espiritual, as formas são muitas vezes confusas. A forma lírica é, de fato, a veste verbal mais simples dum instante de emoção, uma exclamação rítmica, dessas que, há muitos anos, são gratas ao homem que empunhava um remo ou que rolava pedras numa ladeira. 

Aquele que a profere está mais cônscio do instante de emoção do que de si mesmo ao sentir a emoção. A forma épica mais simples é vista emergindo da literatura lírica quando o artista prolonga e se põe a se examinar como centro dum fato épico e essa forma progride até que o centro de gravidade emocional fique equidistante do artista propriamente e dos outros. A narrativa tampouco é meramente pessoal.

A personalidade do artista passa para a narração mesma, enchendo, enchendo de fora para dentro as pessoas e a ação como um mar vital. Tal progressão vê-la-ás facilmente nessa antiga balada inglesa, Turpin Hero, que começa na primeira pessoa e acaba na terceira. A forma dramática é atingida quando a vitalidade que encheu e turbilhonou em volta de cada pessoa enche todas as pessoas com uma força vital tal que ele ou ela acaba assumindo uma vida própria estética e intangível.

A personalidade do artista, no começo um grito, ou uma cadência, ou uma maneira, e depois um fluido e uma radiante narrativa, acaba finalmente se clarificando fora da existência, despersonalizando-se por assim dizer. A imagem estética, na forma dramática, é a vida purificada nela e tornando a se projetar para fora da imaginação humana. O mistério da criação estética, assim como o da criação material, então se realiza. O artista, como o Deus da criação, permanece dentro, junto, atrás ou acima da sua obra, invisível, clarificado fora da existência, indiferente, raspando as unhas dos seus dedos.

James Joyce - Retrato do artista quando jovem. Tradução de José Geraldo Vieira

Friday, July 15, 2011

Aristóteles não definiu a piedade e o terror. Eu defini. Escuta...

A piedade é o sentimento que faz parar o espírito na presença de algo que seja grave e constante no sofrimento humano e o une com o sofredor humano. O terror é o sentimento que detém o espírito na presença de seja lá o que for que seja grave e constante no sofrimento humano e o liga à sua causa secreta.

De fato, a emoção trágica é uma face olhando para dois lados, para o terror e para a piedade, pois que ambos são faces dela.

Repara bem que emprego o termo deter, ficar parado. Quero com isso significar que a emoção trágica é estática. Ou, antes, a emoção dramática é que o é. Os sentimentos excitados pela arte imprópria são cinéticos, desejo, ou repulsa. O desejo nos compele a possuir, a ir para alguma coisa; a repulsa nos compele a abandonar, a partir duma dada coisa. As artes que o excitam, pornográficas ou didáticas, são, por conseguinte, artes impróprias. A emoção estética (sempre emprego o termo geral) é, por conseguinte, estática. O espírito fica detido e suspenso acima do desejo e da repulsa.

O desejo e a repulsa excitados por meios estéticos impudicos não são realmente emoções estéticas, não só porque são cinéticas em caráter como também porque não são senão físicas. A nossa alma contrai-se ante aquilo que teme e responde ao estímulo daquilo que deseja por uma ação puramente reflexa do sistema nervoso. Nossas pálpebras fecham-se antes que estejamos cônscios de que a mosca está a ponto de entrar no nosso olho.

A beleza expressa pelo artista não pode despertar em nós uma emoção que é cinética, ou uma sensação que é puramente física. Ela desperta ou deve despertar, ou induz, ou deve induzir, um êxtase estético, uma piedade ideal ou um terror ideal, um êxtase que perdura, que se prolonga e que acaba, por fim, dissolvido pelo que chamo de ritmo de beleza.

O ritmo é a primeira relação formal estética duma parte com outra parte, em qualquer conjunto ou todo estético, ou dum todo estético para a sua parte ou para as suas partes ou duma parte para o todo estético do qual é parte.

Falar destas coisas, tentar compreender-lhes a natureza, e, tendo-a compreendido, procurar lenta, humilde e constantemente expressar (tornar a extrair da terra bruta ou do que dela procede, do som, da forma e da cor, que são as portas da prisão de nossa alma) uma imagem da beleza que chegamos a aprender — isto é arte.

Que é a arte? Que é que a beleza exprime? A arte é a disposição humana de matéria sensível ou inteligível para um fim estético.

Santo Tomás de Aquino diz que o belo é a apreensão do que agrada. Pulcra sunt quae visa placent.

Ele emprega a palavra visa para revestir as apreensões estéticas de todas as maneiras, seja através da vista ou do ouvido, seja através de qualquer outra perspectiva de apreensão. Esta palavra, conquanto seja vaga, é clara o suficiente para discernir o que haja de bom e de mau que excite o desejo e a repulsa. Significa certamente uma estase e não uma cinese. E relativamente ao real? Também produz uma estase do espírito. 

Por conseguinte, estático, Platão, creio eu, disse que a beleza é o esplendor da verdade. Não acho que isso tenha um sentido, mas a verdade e a beleza são aparentadas. A verdade é contemplada pelo intelecto que é acalmado pelas mais satisfatórias relações do inteligível; a beleza é contemplada pela imaginação que é acalmada pelas mais satisfatórias relações do sensível. O primeiro passo na direção da verdade é compreender o escopo e o encaixe do intelecto mesmo, compreender o ato mesmo de intelecção. Todo o sistema de filosofia de Aristóteles repousa no seu livro de psicologia e esta, penso eu, no seu princípio de que o mesmo atributo não pode ao mesmo tempo e com a mesma conexão pertencer e não pertencer ao mesmo objeto. O primeiro passo na direção da beleza é compreender o limite e o escopo da imaginação, compreender o ato mesmo da apreensão estética.

Embora o mesmo objeto possa não ser bonito para toda a gente, toda gente pode admirar um objeto bonito, encontrar nele certas relações que satisfaçam e coincidam com os estágios próprios mesmos de toda apreensão estética. Tais relações do sensível, visíveis para mim através duma forma e para ti através doutras, devem ser, por conseguinte, as necessárias qualidades da beleza. Já agora podemos voltar ao nosso velho amigo Santo Tomás para outros dez vinténs de sabedoria.

James Joyce - Retrato do artista quando jovem. Tradução de José Geraldo Vieira

E ao descer os degraus a impressão que desfez a sua perturbada autocomunhão foi a duma máscara sem alegria refletindo o cair da tarde gravado lá na soleira do colégio. E, então, a sombra da vida do colégio passou gravemente por sobre a sua consciência. O que o esperava era uma vida grave, ordenada e sem paixão, uma vida sem cuidados materiais. Perguntou a si mesmo como iria passar a sua primeira noite de noviciado e com que pasmo iria acordar na manhã seguinte, em pleno dormitório. O incômodo odor dos compridos corredores de Clongowes veio-lhe outra vez; e ouviu o discreto murmúrio das chamas dos bicos de gás. Imediatamente, de todas as partes do seu ser um desassossego começou a se irradiar. Um aceleramento febril do seu pulso seguiu-se a isso; e um tumulto de vozes sem sentido dirigia confusamente, para aqui e para acolá, seu raciocínio. Seus pulmões dilatavam-se e sufocavam como se estivessem inalando um ar viciado insuportável; e sentiu de novo o cheiro quente e viciado que pairava nos banheiros, em Clongowes, por cima da água parada, cor de turfa.

Um instinto qualquer, que essas recordações acordaram, e mais forte do que a educação ou a piedade, acelerava-se dentro dele ante a aproximação a esta vida, um instinto agudo e hostil, que o armava contra a aceitação. O frio e a ordem dessa vida repeliam-no. Viu-se, levantando-se na friagem da manhã e descendo em fila com os demais para a missa bem cedo, tentando, em vão, lutar, ajudado por suas orações, com o seu estômago que, enjoado e fraco, o fazia desfalecer. Viu-se sentado durante o jantar, com a comunidade dum colégio. Que faria, então, dessa sua timidez, de tão profundas raízes, que sempre o impedia de comer ou beber sob tetos de estranhos? Que seria feito do orgulho do seu espírito que sempre o fizera considerar-se um ser à parte em todas as ordens?

O Reverendo Stephen Dedalus, S. J.

O seu nome, nessa nova vida, pulou em caracteres diante dos seus olhos; e a isso se seguiu uma sensação mental de uma cara indefinida ou, melhor, duma cor de cara. A cor esmaeceu, ficando, porém, logo forte como a mudança para a vermelhidão dum pálido tijolo avermelhado. Seria essa a vermelhidão crua, quase apoplética, que tantas vezes vira, nas manhãs hibernais, sobre as papadas escanhoadas dos padres? Uma cara sem olhos, azedamente contraída e devota, fechada com manchas róseas de raiva sufocada. Pois não era isso um espectro mental da face dum desses jesuítas que certos meninos apelidavam Queixo de Lanterna e a um outro Campbell, o Velhaco?

Ia nesse instante passando diante da casa dos jesuítas na Gardimer Street e vagamente se interrogou qual janela viria a ser a sua, caso ingressasse para a ordem. E, então, se admirou da confusão do seu espanto, da distância de sua própria alma daquilo que até então imaginara o seu santuário, da frágil prisão que durante tantos anos de ordem e de obediência o contivera, quando um ato definitivo e irrevogável ameaçava pôr fim, para sempre, no tempo e na eternidade, à sua liberdade. A voz do diretor, concitando-o com os altivos conclames da igreja e com o mistério e a força do sacerdócio, repetia-se preguiçosamente na sua memória. A sua alma estivera lá mas não ouvira e não concordara, e sabia, agora, que a exortação que tinha escutado já tinha caído ociosamente em formal e mera conversa. Ele jamais haveria de balouçar o turíbulo diante do tabernáculo, como padre. O seu destino era ser arredio às ordens sociais ou religiosas. A sabedoria do apelo do padre não o tocara assim tão de pronto. Ele estava era destinado a aprender a sua própria sabedoria separado dos outros, ou a aprender a sabedoria dos outros vagando, ele, por entre as armadilhas do mundo.

As armadilhas do mundo eram os seus caminhos de pecado. Cairia. Ainda não tinha caído, mas haveria de cair silenciosamente, em dado instante. Não cair era dificílimo; e sentia o lapso silencioso da sua alma, tal como estaria dentro dum dado instante a vir, caindo, caindo, mas ainda não caída, ainda sem cair, mas prestes a cair.

Atravessou a ponte sobre a torrente do Tolka e volveu os olhos, friamente, por uns instantes, para o nicho azul desbotado da Santa Virgem, que estava, à maneira dum pássaro, empoleirado sobre uma viga no meio dum acampamento de míseras cabanas. Depois, virando-se para a esquerda, seguiu a ladeira que conduzia à sua casa. O cheiro azedo de couves em salmoura vinha até ele, dos jardins das cozinhas da margem em subida, sobre o rio. Sorriu ao pensar que era a desordem, o relaxamento e a confusão da casa paterna e a estagnação da vida vegetal que estavam para ganhar o dia na sua alma. Então uma curta risada saiu dos seus lábios ao pensar naquele solitário jardineiro, nas hortas detrás de sua casa e que haviam apelidado o Homem do Chapéu. Uma segunda risada, nascida da primeira depois duma pausa, saiu-lhe involuntariamente ao pensar em como o Homem do Chapéu trabalhava, considerando à sua volta os quatro pontos do céu e em seguida resignadamente enterrando a enxada na terra.

Escancarou a porta sem tramela, do alpendre, e cruzou a soleira desconjuntada da cozinha. O grupo dos seus irmãos e irmãs estava sentado em volta da mesa. O chá estava praticamente no fim, e apenas a última água a ferver posta sobre ele restava ainda ao fundo do pequeno bule e dos potes de geleia que faziam as vezes de xícaras. Restos de pão açucarado, em crostas e pedaços, escurecidos pelo chá em folha que caíra sobre eles, jaziam espalhados sobre a mesa. Pingos de chá, aqui e acolá, sobre a tábua da mesa, e uma faca, com cabo quebrado de marfim, esquecida dentro dum moedor estragado.

O triste reflexo, cinza e azul, do dia morrendo, entrava pela janela e pela porta aberta, alisando aos poucos súbito instinto de remorso no coração de Stephen. Tudo quanto a eles fora negado fora dado, sem razão, a ele, que era o mais velho; mas o lânguido clarão da tarde não mostrava em seus rostos traço algum de rancor. Sentou-se junto deles à mesa e perguntou onde estavam o pai e a mãe.

James Joyce - Retrato do artista quando jovem. Tradução de José Geraldo Vieira