Saturday, May 20, 2023

20 de maio de 2019

O Paulo Coelho garante que coincidências não existem. Quem sou eu pra desdizer? Mas, algo incontestável, no inconsciente a regra do Mago é um fato. Lá nos recônditos da mente não existe ponto sem nó. Isto posto, se há alguém que sabe da existência da noiva do Lula desde sempre, esse alguém é o sinistro mini-ministro da Injustiça, Sérjo Morno. E sabe também, sempre soube, que o nome dela é Rosângela, assim como a esposa dele mesmo. E sim, sabe que o apelido da jovem e bela senhora é Janja. E - digo mais - ao tentar pronunciar 'cônjuge' no Congresso, o pobre diabo acabou balbuciando 'cônge'. A proparoxítona se lhe deslizou com a leveza de um paralelepípedo língua abaixo. Coisa de deixar lacaniano feliz à beça. Não se sabe até hoje se 'cônge' é com jota ou com gê. Já inveja ninguém tem dúvida como se inscreve.

Thursday, May 18, 2023

18 de maio de 2016

Na virada dos anos 70 para os 80, Duardo Duzek lançou uma música chamada 'Nostradamus'. A letra era uma crônica blasé sobre o dia do fim do mundo.

Não, não estou escrevendo isso para dizer que a profecia está para se cumprir. Na verdade, quero apenas usar um termo que o Duzek usou no 'Nostradamus': TOQUE-TENHA.

Toque-tenha era gíria da época para traficante. Não para qualquer um, mas para uma inovação daqueles tempos de abertura política, o delivery de drogas. O grand monde, cansado de correr riscos nas quebradas, demandou essa prestação de serviços. O consumidor liga (toque) para o trafica e recebe (tenha) o produto em casa, que nem pizza. 'Meu Nome Não é Johnny' é um filme sobre isso.

Quem pensava que o vice da Dilma era um mordomo, se enganou. Ele é um toque-tenha. E agora montaram uma biqueira na Esplanada dos Ministérios.

O toque-tenha na Saúde se responsabilizou por entregar o SUS para os planos privados.

O toque-tenha que invadiu o Ministério das Cidades quer zerar o Minha Casa Minha Vida pra introduzir algum bagulho novo, mais ao gosto da freguesia VIP.

O toque-tenha das Relações Exteriores usa um celular por satélite e anunciou que o Pré Sal tá na promoção.

Seria cômico, se não fosse trágico. A mesma classe média alta que consome o produto 'liberdades individuais' fazendo de conta que não toma parte no big business do tráfico, demandou também o produto 'Golpe'. Mas, é claro, os interesses por trás do comércio de ilícitos movem bilhões ao redor do mundo. As causas são mais vastas. E a manipulação, lógico, é a regra.

O dono da boca não é dono de nada. É um interino. Por definição.

Um prestador de serviços. Um motoboy. Um toque-tenha qualquer.

Thursday, May 11, 2023

Simonal no Pasquim


Sérgio Cabral: Eu digo os nomes e você dá notas de um a dez. Vamos começar com Chico Buarque.

Simonal: Eu daria dez em letra e quatro em música. Acho a maioria das músicas do Chico muito ruins.

Sérgio Cabral: Caetano Veloso.

Simonal: O Caetano merece uma explicação, pela tropicália, que é um tipo de pilantragem. Eu conheço e gravei músicas do Caetano, sensacionais, fora desta linha misteriosa que ele andou fazendo. Na verdade, ele aproveitou o tumulto, a insatisfação geral, a depressão da juventude e optou pelo negócio da pilantragem, que parece não ter dado muito certo. Mas eu daria a ele 10 como letrista e cinco como músico.

Sérgio Cabral: E Gilberto Gil?

Simonal: Dez como letrista e 9 como musicista.

Sérgio Cabral: Roberto Carlos?

Simonal: Já faz outro gênero, uma música com maior poder de comunicação. É o que nós, da música moderna, chamamos de música quadrada. Para ele eu tenho que abrir um parêntese: pelo meu gosto musical eu daria três para ele, como compositor. Mas se estabelecermos o problema da comunicação, que também é válido, o Roberto Carlos é o compositor brasileiro que mais fez músicas comunicativas, eu nunca vi um sujeito fazer música água-com-açúcar de tanto poder comunicativo. Então, como compositor, eu daria três, mas pelo poder de comunicação ele é hors-concours.

Sérgio Cabral: E Noel Rosa?

Simonal: Eu conheço muita coisa ruim dele. Eu acredito que, na sua época, ele foi um Chico Buarque, eu não sei, mas ele poderia até ser considerado um Caetano Veloso na época, porque ele fez umas músicas realmente muito diferentes das músicas que se faziam naquele tempo. Como eu não conheço a maioria das coisas do Noel Rosa, eu não dou nota.

Sérgio Cabral: Ary Barroso?

Simonal: Compositor razoável. Foi muito idolatrado mas ele não chegava a ser sensacional.

Sérgio Cabral: Dorival Caymmi?

Simonal: Esse é quente. Eu daria dez em música e dez em letra. Ele tem umas músicas cafoninhas, comerciais, mas ele é sensacional. Faz bem música, tem bom gosto harmônico, tem melodia bonita e faz verdadeiras poesias. Eu daria vinte.

Jaguar: Você conhece o Nelson Cavaquinho? Que tal?

Simonal: Conheço, é sensacional. Como músico, pelo simples. Isto dele tocar o instrumento cavaquinho, que é pobre harmonicamente, faz com que ele mesmo muitas vezes estrague suas melodias. O Nelson Cavaquinho é um compositor em potencial, ele sente uma música, mas não dá para fazer o que quer fazer, porque se o Nelson Cavaquinho fosse Nelson Pianinho, seria sensacional. Como letrista, dentro daquela simplicidade, eu daria 15.

Jaguar: Qual o melhor compositor do Brasil?

Simonal: Não existe o melhor. Existe tanta gente boa. Tem um compositor, por exemplo, que eu nunca gravei música dele, chama-se Hermínio Bello de Carvalho; nunca gravei porque eu estou numa outra linha, mas é o tipo do compositor sensacional. E eu nunca gravei, porque não gravo disco para receber elogio, eu gravo disco para vender. Uso a minha arte no sentido comercial. O dia em que eu ficar rico, muito rico, aí sim eu vou me dar ao luxo de fazer disco artístico, mas por enquanto ainda não. E assim como Hermínio, existe muita gente boa. O Billy Blanco, o Ataulfo Alves, tanta gente bacana que não existe o melhor.

Sérgio Cabral: E a melhor cantora brasileira?

Simonal: A maior também não existe. Existem grandes cantoras. Eu faço questão de dizer que existem grandes cantores brasileiros, porque uma das piores línguas que existem para cantar é a língua portuguesa, porque não é sonora, é uma língua dura, uma língua feia. E a grande maioria dos compositores brasileiros faz músicas que dificultam a interpretação. E para a mulher ainda é mais difícil cantar na língua portuguesa do que para o homem. Então, quando encontramos uma Elizeth Cardoso, quando ouvimos uma Elis Regina, uma Claudette Soares, uma Maysa, é um negócio que a gente tem que tirar o chapéu, o que elas fazem com a voz, cantando em português, que é dificílimo... Cantar em inglês é fácil, italiano é mole. Você vê: todo calouro, em geral, canta música americana ou italiana, porque é mais fácil. Cantar em português já é mais difícil. Nós temos realmente grandes cantoras. Elza Soares é uma cantora excelente...

Sérgio Cabral: Você gosta da Gal Costa?

Simonal: Ela não é uma grande cantora. A Gal Costa é uma figura, funciona mais como uma peça de um movimento, como cantora ainda é muito imatura. Eu acredito que não poderá ser uma grande cantora. Mas eu falei em Elizeth Cardoso e se falasse que a Gal Costa é uma grande cantora, eu seria um cafajeste.

Sérgio Cabral: E Nara Leão?

Simonal: A Nara canta mal. E dizer que alguém canta mal não desmerece o valor. Nara canta mal como todas as menininhas grã-fininhas da Zona Sul e da Zona Norte que se identificam com Nara. O grande segredo de Nara é que ela sempre escolhe bem o repertório. Deve ser a cantora brasileira que melhor escolhe repertório. Acho que nem a Elizeth, com a prática que tem, escolhe tão bem quanto Nara. Ela só vai na mosca. Porque é fogo fazer sucesso cantando mal do jeito que Nara canta, o segredo dela está no repertório, isso sem falar no seu charme, no seu joelho que é sensacional etc.

Tarso de Castro: E hoje você acha que é o maior cantor do Brasil?

Simonal: O melhor, não, mas eu sou um dos melhores.

Tarso de Castro: Quais são os outros?

Simonal: Os outros, atuantes, eu diria... vocês vão morrer de rir, o Altemar Dutra. É que eu tenho um conceito muito diferente: eu não julgo o bom cantor pelo repertório que ele canta, mas sim pelo que ele pode fazer com a voz. Então, Altemar Dutra, Agnaldo Timóteo, Cauby Peixoto, Agostinho dos Santos, Lúcio Alves... puxa, tem tanta gente, deixa eu ver...

Tarso de Castro: O que você acha do Jair Rodrigues?

Simonal: Acho um ótimo sambista. Não é cantor, ele é sambista. Cantor não canta samba; ou se é sambista, ou se é cantor.

*

Entrevista a O Pasquim nº 4 - Julho de 1969

Reproduzida em Quem não tem swing morre com a boca cheia de formiga: Wilson Simonal e os limites de uma memória tropical / Alonso, Gustavo. – Rio de Janeiro: Record, 2011

Tuesday, May 09, 2023

Calvino: Seis Propostas

Perseus with the Head of Medusa. Benvenuto Cellini, 1545–1554.

LEVEZA

(...) Quando iniciei minha atividade literária, o dever de representar nossa época era um imperativo categórico para todo jovem escritor. Cheio de boa vontade, buscava identificar-me com a impiedosa energia que move a história de nosso século, mergulhando em seus acontecimentos coletivos e individuais. Buscava alcançar uma sintonia entre o espetáculo movimentado do mundo, ora dramático ora grotesco, e o ritmo interior picaresco e aventuroso que me levava a escrever. Logo me dei conta de que entre os fatos da vida, que deviam ser minha matéria-prima, e um estilo que eu desejava ágil, impetuoso, cortante, havia uma diferença que eu tinha cada vez mais dificuldade em superar. Talvez que só então estivesse descobrindo o pesadume, a inércia, a opacidade do mundo — qualidades que se aderem logo à escrita, quando não encontramos um meio de fugir a elas. Às vezes, o mundo inteiro me parecia transformado em pedra: mais ou menos avançada segundo as pessoas e os lugares, essa lenta petrificação não poupava nenhum aspecto da vida. Como se ninguém pudesse escapar ao olhar inexorável da Medusa.

0 único herói capaz de decepar a cabeça da Medusa é Perseu, que voa com sandálias aladas; Perseu, que não volta jamais o olhar para a face da Górgona, mas apenas para a imagem que vê refletida em seu escudo de bronze. Eis que Perseu vem ao meu socorro até mesmo agora, quando já me sentia capturar pela mordaça de pedra — como acontece toda vez que tento uma evocação histórico-autobiográfica. Melhor deixar que meu discurso se elabore com as imagens da mitologia. Para decepar a cabeça da Medusa sem se deixar petrificar, Perseu se sustenta sobre o que há de mais leve, as nuvens e o vento; e dirige o olhar para aquilo que só pode se revelar por uma visão indireta, por uma imagem capturada no espelho. Sou tentado de repente a encontrar nesse mito uma alegoria da relação do poeta com o mundo, uma lição do processo de continuar escrevendo. Mas sei bem que toda interpretação empobrece o mito e o sufoca: não devemos ser apressados com os mitos; é melhor deixar que eles se depositem na memória, examinar pacientemente cada detalhe, meditar sobre seu significado sem nunca sair de sua linguagem imagística. A lição que se pode tirar de um mito reside na literalidade da narrativa, não nos acréscimos que lhe impomos do exterior.

A relação entre Perseu e a Górgona é complexa: não termina com a decapitação do monstro. Do sangue da Medusa nasce um cavalo alado, Pégaso; o peso da pedra pode reverter em seu contrário; de uma patada, Pégaso faz jorrar no monte Hélicon a fonte em que as Musas irão beber. Em algumas versões do mito, será Perseu quem irá cavalgar esse maravilhoso Pégaso, caro às Musas, nascido do sangue maldito da Medusa. (Mesmo as sandálias aladas, por sua vez, provinham de um mundo monstruoso: Perseu as havia recebido das irmãs de Medusa, as Graias de um só olho.) Quanto à cabeça cortada, longe de abandoná-la, Perseu a leva consigo, escondida num saco; quando os inimigos ameaçam subjugá-lo, basta que o herói a mostre, erguendo-a pelos cabelos de serpentes, e esse despojo sanguinoso se torna uma arma invencível em suas mãos, uma arma que utiliza apenas em casos extremos e só contra quem merece o castigo de ser transformado em estátua de si mesmo. Não há dúvida de que neste ponto o mito quer me dizer alguma coisa, algo que está implícito nas imagens e que não se pode explicar de outro modo. Perseu consegue dominar a pavorosa figura mantendo-a oculta, da mesma forma como antes a vencera, contemplando-a no espelho. É sempre na recusa da visão direta que reside a força de Perseu. mas não na recusa da realidade do mundo de monstros entre os quais estava destinado a viver, uma realidade que ele traz consigo e assume como um fardo pessoal.

CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. Companhia das Letras, 1990. 1ª ed. [Lezioni americane — Sei proposte per il prossimo millenio, 1988] Tradução: Ivo Barroso