Friday, September 29, 2006
Sunday, September 24, 2006
A ANÁLISE DE CRIANÇAS PEQUENAS
(1923)
Nota Explicativa da Comissão Editorial Inglesa
Este artigo, cujo título – por nenhum motivo discernível – fora traduzido como (“Infant Analysis”) “Análise do Bebê”, tem uma natureza bastante complexa. Isso talvez se deva em parte ao fato de ser baseado em três artigos não-publicados, “O desenvolvimento e a inibição das habilidades” (“The Development and Inhibition of Abilities”), “A ansiedade infantil e sua importância para o desenvolvimento da personalidade” (“Infantile Anxiety and its Significance for the Development of the personality”) e “Sobre a inibição e o desenvolvimento da habilidade de se orientar” (“On the Inhibition and the Development of the Ability to Orient Oneself”). Além disso, Melanie Klein lida com vários conceitos básicos – ansiedade, inibição, sintomas, formação de símbolos e sublimação. Ela própria acreditava que o artigo fazia uma contribuição para a teoria da sublimação.
No entanto, já nesse artigo Melanie Klein afirma aquilo que se tornaria um de seus princípios fundamentais: é a solução da ansiedade que leva ao progresso tanto na análise quanto no desenvolvimento mental. Numa tentativa de explicar a ansiedade presente no pavor nocturnus da criança pequena, ela é levada a estabelecer o início do complexo de Édipo entre as idades de dois e três anos – a primeira de uma série de datas que vão recuando cada vez mais. Contudo, três anos mais tarde, em “Princípios psicológicos da análise de crianças pequenas”, ela dá uma explicação bem diferente para o pavor nocturnus, o que marca o início de suas investigações a respeito da ligação entre a ansiedade e a agressividade.
Suas opiniões acerca do simbolismo, que vão culminar em “A importância da formação de símbolos no desenvolvimento do ego” (1930), também se encontram num rápido desenvolvimento nesse ponto. No mesmo ano, em “O papel da escola no desenvolvimento libidinal da criança”, Melanie Klein afirmara que todas as atividades possuem significação simbólica. Agora, afirma que essa significação simbólica é o motivo pelo qual certas atividades dão prazer ou são inibidas. Além disso, propõe que antes da formação de símbolos há um estágio de identificação em que, como Ferenczi descreveu, o bebê identifica objetos com seus próprios órgãos e atividades. Esse tipo de identificação mais tarde passou a fazer parte do conceito de identificação projetiva em “Notas sobre alguns mecanismos esquizóides” (“Notes on Some Schizoid Mechanisms”) (1946).
KLEIN, Melanie. Amor, Culpa e Reparação e outros trabalhos 1921 - 1945
Saturday, September 23, 2006
A opinião médica foi aos poucos se tornando hostil à prática de enfaixar as crianças durante os séculos XVII e XVIII. Os críticos afirmavam que a prática restringia a liberdade dos membros jovens, arriscava impedir a respiração da criança e a deixava enrolada em suas próprias urina e fezes por longos períodos. Considerava também que pendurar uma criança enfaixada em um gancho por longos períodos era o máximo de negligência.
Proporcionar alimentação suficiente às crianças era o problema geral para os pais entre os "estratos inferiores" até o século XIX. Mantê-las aquecidas era mais um desafio. Durante mais ou menos o primeiro mês de suas vidas, na Europa e nos Estados Unidos, as crianças eram amarradas firmemente com faixas de tecido sobre suas roupas, sendo que as técnicas utilizadas variavam segundo a região. Na Itália, o costume era amarrá-las de forma justa, como uma múmia egípcia, ao passo que, na França, Alemanha e Inglaterra, as mães simplesmente passavam a faixa duas ou três vezes em torno do corpo. Em toda parte, os bebês eram amarrados com os braços presos próximos à lateral do corpo e as pernas estendidas juntas, com suporte adicional para manter a cabeça firme. Em uma etapa posterior, braços e cabeça eram deixados livres até que, após alguns meses, estivessem prontos para um casaquinho usado por meninos e meninas. A opinião médica foi aos poucos se tornando hostil à prática de enfaixar as crianças durante os séculos XVII e XVIII. Os críticos afirmavam que a prática restringia a liberdade dos membros jovens, arriscava impedir a respiração da criança e a deixava enrolada em suas próprias urina e fezes por longos períodos. Considerava também que pendurar uma criança enfaixada em um gancho por longos períodos era o máximo de negligência. Rosseau, por exemplo, foi severo: em Emílio (1762), ele afirmou que: "os lugares em que se enfaixam as crianças estão cheios de corcundas, de mancos, de cambaios, de raquíticos, de pessoas deformadas de todo o tipo". Mesmo assim os observadores tendiam a reconhecer que, além de manter as crianças aquecidas, essas faixas tornavam carregá-las mais fácil, e ajudavam a protegê-las de mordidas de animais domésticos, especialmente os porcos. Os camponeses acreditavam que essas tiras, junto com berços estreitos, ajudavam a criança a desenvolver ossos fortes e uma postura ereta. Eles também consideravam que isso ajudava a distinguir a criança de um animal, impedindo-a de andar de quatro patas. Enfaixar as crianças era uma tarefa complexa e demorada, especialmente se realizada três, quatro ou mesmo sete vezes por dia, depois de amamentá-la, mas também, talvez, satisfatória. A parteira Jane Sharp aconselhava, em 1671, que se deveria tratar as crianças "de forma muito suave, lavar o corpo com vinho morno e, quando estivesse seca, enrolá-la com panos macios e deitá-la no berço". O costume desapareceu gradualmente no século XVIII, sob a crítica da opinião educada, embora tenha se arrastado até o século XX em regiões remotas.
Pierre-Jakez Hélias registrou que, na Bretanha, às vésperas da Primeira Guerra Mundial, passava várias horas sozinho todos os dias, envolto em faixas apertadas em seu berço com grades, enquanto seus pais e seu avô estavam fora trabalhando.
Os pais não estavam particularmente preocupados com a limpeza durante grande parte do passado, assim como os médicos, até o século XVIII. Autores medievais recomendavam banhos freqüentes, mas é de se duvidar que seu conselho fosse seguido muito além de um círculo restrito de moradores abastados das cidades. A sujeira, na verdade, cumpria papel protetor simbólico na crença popular. As mães acreditavam que era melhor secar as fraldas do que lavá-las, em função dos poderes curativos da urina. Pensavam também que uma camada de sujeira sobre a cabeça preservava a moleira. No Haut-Vivarais, para tomar apenas um exemplo entre muitos, as pessoas acreditavam que lavar a cabeça de uma criança a tornaria simplória; e que cortar as unhas e o cabelo antes de um ano e um dia de idade faria com que ela se tornasse, respectivamente, muda e ladra. Elas também não tinham pressa alguma de começara a ensinar o uso do banheiro. Mais uma vez, não importa o quanto tais crenças e práticas parecessem bizarras a partir de uma perspectiva atual, elas demonstram um esforço permanente para aprimorar a saúde e a felicidade da criança, antes de indicar negligência dos pais.
HEYWOOD, Colin. Uma História da Infância.Friday, September 22, 2006
Thursday, September 21, 2006
As quatro canções que seguem
Separam-se de tudo o que penso,
Mentem a tudo o que eu sinto.
São do contrário do que eu sou...
Escrevi-as estando doente
E por isso elas são naturais
E concordam com aquilo que sinto,
Concordam com aquilo que não concordam...
Estando doente devo pensar o contrário
Do que penso quando estou são
(Senão não estaria doente),
Devo sentir o contrário do que sinto
Quando sou eu na saúde,
Devo mentir à minha natureza
De criatura que sente de certa maneira...
Devo ser todo doente - ideias e tudo.
Quando estou doente, não estou doente para outra cousa.
Por isso essas canções que me renegam
Não são capazes de me renegar
E são a paisagem da minha alma de noite,
A mesma ao contrário...
CAEIRO, Alberto. O Guardador de Rebanhos.
Ao nascer eu não estava acordado, de forma que
não vi a hora.
Isso faz tempo.
Foi na beira de um rio.
Depois eu já morri 14 vezes.
Só falta a última.
Escrevi 14 livros
E deles estou livrado.
São todos repetições do primeiro.
(Posso fingir de outros, mas não posso fugir de mim).
Já plantei dezoito árvores, mas pode que só quatro.
Em pensamento e palavras namorei noventa moças,
mas pode que nove.
Produzi desobjetos, 35, mas pode que onze.
Cito os mais bolinados: um alicate cremoso, um
abridor de amanhecer, uma fivela de prender silêncios,
um prego que farfalha, um parafuso de veludo etc etc.
Tenho uma confissão: noventa por cento do que
escrevo é invenção; só dez por cento que é mentira.
Quero morrer no barranco de um rio: - sem moscas
na boca descampada!
BARROS, Manoel de. Ensaios Fotográficos.
Wednesday, September 20, 2006
Danny Dalton - personagem interpretado por Tim Blake Nelson.
Syriana (EUA, 2005) / Direção: Stephen Gaghan
Há aqueles que jamais confiaram de fato na democracia, num governo de leis (poucas e claras), de regras que se apliquem identicamente a todos. De acordo com estes, a democracia é inerentemente uma farsa (burguesa) e sua única utilidade reside em levar ao poder os autênticos representantes das "massas oprimidas", pois uma gestão que não opere em nome destas, por mais votos que tenha obtido, é sempre ilegítima.
Ora, para estes, o fato de que nossos governantes tenham se revelado humanos, demasiado humanos, só pode mesmo ser visto como uma tragédia.
O grupo em questão se dividirá agora em pelo menos duas alas interpretativas. Uma dirá que suas idéias eram boas, bem-intencionadas e que o equívoco foi entregar sua implementação a gente imperfeita. Outra, continuando a crer no que pensava antes, há de assegurar-nos que o contexto, ou seja, nossa democracia, a estrutura sócio-econômica do país etc., condenava inevitavelmente seus planos infalíveis, seus projetos magníficos ao fracasso e que, portanto, chegou a hora de mudar o próprio contexto. É duvidoso que surja uma facção, por menor que seja, disposta a levantar a hipótese de que suas idéias é que eram o problema.
Afinal, isso implicaria questionar seu postulado central, a saber, o de que a "redenção" do Brasil e do mundo passa pelo Estado, por mais e mais Estado, porque o Estado, malgrado cair às vezes em mãos erradas, é fundamentalmente bom, aliás, o sumo bem. Claro que o Estado não é maravilhoso num vácuo: suas virtudes se patenteiam também, ou sobretudo, comparativamente, no confronto com o mal supremo: o egoísmo individual ou o individualismo egoísta, entidades diabólicas que se manifestam sem peias na iniciativa privada, nas economias de mercado e assim por diante. O indivíduo egoísta teria essa triste propensão a se ocupar primeiro de seus interesses e, não sendo altruísta nem solidário, o que regularia sua interação com os demais seria apenas a reciprocidade.
A maioria dos que pensam inocentemente assim estava, não jogando, mas, sim, nas arquibancadas, torcendo. Os jogadores profissionais costumam ver as coisas de maneira um pouco diferente. Se admiram o Estado, é porque se julgam aptos a tomá-lo com o intuito de, numa versão otimista, corrigirem as deficiências da sociedade ou, numa perspectiva algo mais realista, de saquearem, com desculpas redistributivas de "justiça social" (uma expressão traiçoeira e que mereceria ser cruelmente dissecada), através de seu controle, quanto os indivíduos produziram. Se nem todos os políticos pertencem a esta última categoria, todos são capazes de agir assim e é justo imaginar que são exatamente os piores aqueles que demonstram maior aptidão para conquistar o poder.
Depois de advertir incontáveis vezes o pirralho de que a chama queima ou a tomada dá choques, não resta aos pais outro recurso que o de deixá-lo brincar com o fogo para experimentar na carne o sentido concreto do verbo "se queimar". Similarmente, os "torcedores", que poderiam ter aprendido suas lições mediante o estudo de outras gerações desencantadas (por exemplo, daquelas que assistiram aos cursos de Moscou e Leningrado nos anos 30, que testemunharam, em 1956, seja o famoso 20º Congresso, seja o esmagamento do levante húngaro, ou a invasão, em 1968, da Tchecoslováquia liberalizante de Dubcek), têm agora a oportunidade áurea de curtirem sua fossa singular, sua merecida, embora desnecessária, ressaca.
Maltratá-los por isso ou zombar deles seria de mau gosto. Ainda mais porque seu mal-estar os coloca, enfim, na corrente normal da história contemporânea, no âmbito de uma torrente à qual nosso país parecia ter sido poupado. Seu desencanto tem chances de se tornar útil e produtivo caso, superando o narcisismo da auto-piedade, esses sofredores descubram o óbvio pululante: que tudo o que sucede nesta terra abençoada é, se tanto, uma ilustração de linhas de forças maiores, que agem no planeta inteiro.
Nossos idealistas foram colhidos num debate antigo, mas nem por isso menos atual, que contrapõe utopistas e oportunistas que consideram o Estado fundamentalmente redentor e virtuoso aos céticos que o definem como um mal necessário a ser minimizado.
A corrupção é, sem dúvida alguma, um problema endêmico em toda parte e em qualquer época: ela não tem sexo, cor, idade ou ideologia. Mas colocá-la no centro do palco é ou um equívoco que leva a confundir política e moralidade, ou uma estratégia míope fadada a sair, como aconteceu, pela culatra. Trocando em miúdos, a corrupção estatal é somente o retorno pela porta dos fundos das leis férreas do mercado às quais se fechou a entrada principal. Se bem que não se acabe nunca com a corrupção, há um meio seguro de limitá-la e esse equivale a limitar o âmbito da "ocasião faz o ladrão". A ocasião se chama o "Estado" e quem queira sinceramente reduzir a corrupção tem conseqüentemente de reduzi-lo.
Graças aos guardiões capengas das virtudes irrelevantes, a nação está hoje preparada para se integrar com maturidade à mais importante das discussões internacionais, a grande querela mundial em torno dos modelos sócio-econômicos que cada povo há de adotar. A pergunta que fica no ar é a seguinte: se o mais virtuoso dos partidos governando um país bem mais viável do que a média não consegue, nem na sua primeira gestão federal, manter os dedos fora do bolso dos contribuintes, o que esperar, então, de projetos superlativamente ambiciosos de governança como a União Européia, a ONU ou o Califado Universal?
ASCHER, Nelson. Folha de São Paulo. 29/08/2005
Escrito em 2004 e postado originalmente em irajamenezes.blig.ig.com.br
1.
Escolher um partido político como o seu preferido é muito parecido com torcer por um time.
Nas fases ruins você até admite os erros, as derrotas; mas não vira a casaca.
A maior parte das pessoas que eu conheço sente-se representada por um partido.
Alguns mais organizadamente, outros menos, mas em todos dá pra perceber uma lógica, uma identificação com as bandeiras e figuras do partido.
É a isto que chamamos representatividade. Sentir-se representado por um conjunto de idéias, atitudes que o partido sintetiza. Sistematiza. Reconhecer-se nas manifestações do partido.
Como os times de futebol.
Desnecessário dizer que esta identificação se dá em níveis ao mesmo tempo racionais e emotivos. Que nós não temos consciência completa desta identificação, do caráter desta identificação.
O PT era o único partido que ainda permitia aos seus adeptos gozar o prazer de se assumir desavergonhada e publicamente; sem medo de ser feliz. Ele se pretendia puro, inviolável.
Só porque não tinha passado pelo poder.
Os PSDBistas estão se esbaldando de cobrar o purismo, o moralismo que o discurso caga-regras do PT trazia.
Fica evidente que eles mesmos não podiam exercitar aquele tipo de discurso, justamente por já haverem tantas vezes passado pelo achatamento que a administração pública impõe às ideologias.
A prática do poder deixa marcas indeléveis. Fornece provas incontestáveis. Des-moraliza.
O PT agora já não vai ter mais credibilidade para exercer a mesma retórica. Os petistas que insistiram nela foram expurgados.
As táticas de difamação eleitoreira dos oposicionistas de hoje servem para deitar luz precisamente sobre o jogo difamatório a que o PT se dedicou todos estes anos e nós petistas, nos dando por ingênuos, quisemos não ver.
Talvez agora nós todos estejamos condicionados a não mais discutir a veracidade dos discursos de campanha, quer seja da esquerda ou da direita, para nos concentrarmos na tarefa bem mais árdua de refletir sobre as implicações do poder.
2.
É tipicamente brasileiro acreditar que o presidente detém grandes poderes.
O presidente tem que ser a cara do poder. Mas o poder é exercido por uma trama enorme, uma teia, uma rede que não tem começo, nem meio, nem fim; nem forma.
Deveria ser assim mesmo, só que extensível a todos e cada um dos habitantes da nação.
E aí diríamos: é a trama nacional.
Na verdade a trama acaba por restringir-se a alguns poucos que jogam um eterno jogo de lances mirabolantes e ininterruptos. Uma autêntica democracia-para-poucos, mas que exige constantes negociações, estratégias, disputas, contendas e consenso. Como em qualquer democracia.
Não ler o Raízes do Brasil faz muita falta.
É lá que está dito, há mais de 60 anos, que o brasileiro é cordial, quer dizer, resolve tudo tomando o coração por referência. Para o bem e para o mal. Ou, "aos amigos tudo, aos inimigos a lei". No Brasil a lei é para os inimigos!
Mas é a impessoalidade da política que garante a igualdade de direitos. Não pode haver política caso a caso.
A política não pode ser resolvida como problema pessoal.
E não é.
A manutenção do funcionamento caótico e corrupto da burocracia estatal é coerente demais para que não haja nisto algo de racional. A bagunça burocrática funciona. Para determinados fins ela atrapalha, mas para outros funciona sim, e muito! É para viabilizar estes fins que ela existe e não aqueles.
Só está habilitado para a disputa eleitoral quem conhece as regras do jogo.
O grupo que chegou em 2003 ao Planalto certamente sabia que o exercício da coisa pública achata, comprime, põe tudo no mesmo plano. Não chega lá quem se contrapõe a esta realidade.
Há uma estrutura montada, ramificada por todos os estratos da sociedade e recebendo manutenção constante para que permaneça.
Esperar mudanças operadas a partir do governo é o mesmo que orar pela chegada de um iluminado que haverá de nos redimir.
As lideranças petistas que ganharam as eleições já não se propõem a posar de profetas. Ou posam cientes de que ninguém dá crédito.
Como o PSDB há anos aprendeu a ser.
Quem se manifesta chateado com o fato do PT não cumprir as mudanças que prometeu assim como quem anda se divertindo em acusar que a fala da campanha não bate com a administração, no fundo, está querendo continuar na base da cordialidade.
Já há modelos mais avançados de luta pelas transformações sociais. São modelos que perseguem a idéia de fortalecer a sociedade civil, descentralizar as decisões, aumentar a capacidade de articulação de pequenos grupos, ampliar o grau de humanização das relações, impedir a transformação de realidades específicas em dados estatísticos para catálogo.
3.
Está em processo no mundo todo uma mudança que ainda não vamos conseguir aquilatar.
A Revolução Industrial de dois séculos e meio atrás inventou a produção em larga escala.
A longevidade humana aumentou, a mortalidade infantil diminuiu e o mundo, cada vez mais populoso, entrou em processo de massificação.
Os meios industriais eram todos de grande custo e com isto a fabricação de bens artesanais tendeu ao desaparecimento.
Adotamos um paradigma de objetos consumidos por grandes massas e produzidos por poucas pessoas.
Com o avanço das tecnologias alguns destes mecanismos de produção vêm se democratizando. Não é preciso mais uma fábrica para se copiar discos, por exemplo. Tampouco é preciso gastar fortunas para divulgar um produto pela Internet.
Isto gera, por exemplo, a obsolescência do conceito de "indústria de entretenimento". Fazer um filme caro passa a ser só uma das inúmeras possibilidades que um cineasta pode escolher.
O modelo de "montagem" de computadores, dominante no mercado brasileiro de informática, não poderia tornar-se factível para fornos de microondas ou geladeiras?
A mudança, pois, a que me refiro é a que consiste em poder voltar-se em direção a modos de produção artesanais para a obtenção de objetos a serem replicados indefinidamente como discos, livros, filmes, sem depender de investimentos vultosos e de grandes corporações. Embora permaneçam inúmeros produtos que só poderão ser fabricados mediante mecanismos de alto investimento, tudo leva a crer que está em curso uma disseminação generalizada do conceito de indíviduo como detentor prioritário de suas decisões. De compra, venda, vida, morte e crenças.
O terrorismo é uma faceta aberrante deste mesmo conceito. Explodir-se é uma manifestação individualista. Requer tão somente uma bomba e um homem preso a ela. Fica difícil transformar em estatística o homem-bomba. Quantos explodem por mês? São ações, por natureza, pontuais, o oposto exato da indiscriminação do pesadelo atômico, das bombas atiradas de avião ou das armas de destruição em massa.
Isto é coerente com um modo descentralizado de organização social.
O desejo de igualdade de direitos que percorre o mundo todo consolida um avanço sem precedentes na história dos ideais democráticos. Repito: ideais; mentalidade, desejo, aspiração democrática.
As propostas de manutenção de poder das elites, estas não são mais defensáveis.
Um mundo superpovoado não permite ser gerenciado a partir de um centro.
Um mundo superpovoado se impõe como teia.
É este fator estrutural que derruba a identificação com a autoridade. Não se reconhece autoridade. Ninguém está autorizado a nada.
Resultado da democratização do mundo, a "desautorização" gera também um processo de rompimento com a idéia de tradição. Campo aberto para a descrença e para o uso das instituições, agora, desautorizadas, em proveito próprio, já que ninguém se sente identificado com elas e, por conseguinte, não há quem tome conta.
Vivemos um eterno presente e, por isso, sem olhos para o futuro, como descreveu o professor Yves de La Taille. E, especificamente no Brasil, ao mesmo tempo, o "eterno retorno" à cordialidade.
Está em andamento um processo de humanização das massas. De "descoisificação" das pessoas. Um processo histórico de reconhecimento das identidades. Que acontece independente das políticas adotadas.
E há, ao mesmo tempo, o impulso gregário que os veículos de comunicação tentam alimentar, mas que as tendências de segmentação desmentem o tempo todo.
E há também, ao contrário, um tribalismo crescente. Grupos se fechando para manter seus métodos e costumes inalterados.
Joseph Campbell disse que uma mitologia para dar conta do nosso tempo, para conseguir simbolizá-lo, teria que surgir como uma mitologia planetária. A metáfora de integração de forças contrárias, típica de toda mitologia, teria o planeta como tema.
Os pequenos grupos tendem a se excluir mutuamente. É característico do grupo de gueto enxergar o outro antes como estrangeiro, estranho e, portanto, passível de ataque.
Meditar a convivência dos opostos, agora em escala planetária, é que poderia gerar novos mitos, afirma Campbell, novas compreensões.
As religiões, de certa maneira, já trazem em seus fundamentos esta vontade. O princípio de um Deus que ultrapassa barreiras e unifica humano e natureza num patamar de identificação, num cosmos.
Paradoxalmente são guerras declaradas religiosas as que estão atualmente em curso à roda toda do planeta. Guerras sectárias, guerras pelo predomínio de concepções que se pretendem excludentes.
Como fazer convergir a nova descentralização que percorre o planeta com a consciência de contexto histórico e com a possibilidade de negociação que permita acordos duradouros para o futuro?
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Sunday, September 10, 2006
As condições de um pássaro solitário são cinco:
A primeira, que ele voe para o ponto mais alto.
A segunda, que ele não sofra por companhia, nem mesmo de sua espécie.
A terceira, que ele aponte seu bico para o céu.
A quarta, que ele não tenha uma cor definitiva.
A quinta, que ele cante suavemente.
San Juan de La Cruz.
En esta manera de contemplación tiene el espíritu las propiedades del pájaro solitario, las cuales son cinco: la primera, que ordinariamente se pone en lo más alto; y así el espíritu, en este paso, se pone en altísima contemplación. La segunda, que siempre tiene vuelto el pico hacia donde viene el aire; y así el espíritu vuelve aquí el pico de afecto hacia donde viene el espíritu de amor, que es Dios. La tercera es que ordinariamente está solo y no consiente otra ave alguna junto a sí, sino que, en posándose alguna junto, luego se va; y así el espíritu en esta contemplación está en soledad de todas las cosas, desnudo de todas ellas, ni consiente en sí otra cosa que soledad en Dios. La cuarta propiedad es que canta muy suavemente; y lo mismo hace a Dios el espíritu a este tiempo, porque las alabanzas que hace a Dios son de suavísimo amor, sabrosísimas para sí y preciosísimas para Dios. La quinta es que no es de ningún determinado color, y así es el espíritu perfecto, que no sólo en este exceso no tiene algún color de afecto sensual y amor propio, más ni aun particular consideración en lo superior ni inferior, ni podrá decir de ello modo ni manera, porque es abismo de noticia de Dios la que posee. (Cántico Espiritual 14-15, 24)
Juan de Yepes, ou San Juan de la Cruz. Las Propiedades del Pájaro Solitario.
Saturday, September 09, 2006
Friday, September 08, 2006
3
O PAPEL DA ESCOLA NO DESENVOLVIMENTO LIBIDINAL DA CRIANÇA
(1923)
Nota explicativa da Comissão Editorial Inglesa
"O desenvolvimento de uma criança” (1921), esse artigo e “A análise de crianças pequenas” (1923) formam uma só unidade. No primeiro, a criança está em casa, o segundo vai examiná-la na escola e o terceiro relaciona a infância à vida adulta. Todos, mas principalmente o artigo em questão, destacam a continuidade psíquica da vida humana, sempre uma idéia dominante na obra de Melanie Klein.
A maneira como aborda aqui a questão da inibição intelectual, tópico que já tinha discutido na Parte I de “O desenvolvimento de uma criança” , é de especial interesse. O conceito fundamental aqui é o de libido, e as noções de progresso e de inibição através da ansiedade de castração ocupam seu lugar em torno dele; a agressividade por si só não aparece e a significação simbólica tem sempre um caráter sexual. Ao mesmo tempo, o material de caso mostra que Melanie Klein já estava analisando em seu trabalho clínico o efeito inibidor das fantasias agressivas. Quando escreveu “Uma contribuição à teoria da inibição intelectual”, em 1931, o sadismo já tinha ocupado o lugar da libido no centro de uma nova explicação para a inibição intelectual.
Esse artigo também mostra como a nova técnica de brincar fornecia uma grande quantidade de material que ilustrava as fantasias da criança e a significação simbólica de cada aspecto da vida escolar. De fato, isso leva Melanie Klein à conclusão geral de que todas as atividades têm uma significação simbólica.
KLEIN, Melanie. AMOR, CULPA E REPARAÇÃO e outros trabalhos (1921 - 1945)
INIBIÇÕES E DIFICULDADES NA PUBERDADE
Nota explicativa da Comissão Editorial Inglesa
Melanie Klein ignorou este artigo depois de sua publicação; não o traduziu para o inglês a fim de inclui-lo no livro que reunia seus ensaios. Seus motivos para isso são desconhecidos, mas esse artigo não apresenta nenhuma das características próprias de seu pensamento, nem o denso raciocínio típico de suas outras obras desse período.
KLEIN, Melanie. AMOR, CULPA E REPARAÇÃO e outros trabalhos (1921 - 1945)
A criação do mundo não terminou até que P'an Ku morreu. Somente sua morte pôde aperfeiçoar o Universo: de seu crânio surgiu a abóbada do firmamento, e de sua pele a terra que cobre os campos; de seus ossos vieram as pedras, de seu sangue, os rios e os oceanos; de seu cabelo veio toda a vegetação. Sua respiração se transformou em vento, sua voz, em trovão; seu olho direito se transformou na Lua, seu olho esquerdo, no Sol. De sua saliva e suor veio a chuva. E dos vermes que cobriam seu corpo surgiu a humanidade.
mito chinês (século III)
GLEISER, Marcelo. A Dança do Universo. Companhia de Bolso.
Thursday, September 07, 2006
O poderoso vento vagava pelo mundo mexendo com todos à sua passagem.
Balançava as árvores, soprava os cabelos, fazia a água do lago se mover em delicadas ondinhas. Sussurrava, refrescava, dava frio... brincava de estátua!
Mas do que ele mais gostava era de ir subindo, subindo alto, cada vez mais rápido, até o cume das montanhas.
E lá em cima, onde não se ouve nada, descansava soprando o capim crescido que gosta de ondular pra lá e pra cá.
Um dia, quando já vinha voltando de um dos seus passeios na montanha, encontrou presa, numa pocinha de lama, uma pluma.
A pobrezinha se remexia, fazia força mas, tudo em vão, permanecia grudada na armadilha.
Por ajudá-la a se soltar o vento e a pluma tornaram-se amigos.
No começo eles até que se sentiram tímidos. E conversaram por monossílabos.
Mas, quando a pluma viu que já estava enxuta daquela lama preta aceitou o convite do vento e foram os dois passear.
O vento carregou a pluma, porque ela era tão leve!
Mostrou-lhe os pastos e as plantações, elevou-a mais alto que as copas das árvores, soprou pra ela ouvir uma música nos bambus e juntos, de molecagem, fizeram cócegas no nariz das crianças.
Ela foi se deixando levar, brincando, dançando no céu e foi aí que, pela primeira vez, o vento, sentindo uma vontade que ainda não havia experimentado, resolveu carregá-la até o topo da montanha.
Lá em cima, a pluma agradecida pela surpresa, convidou o vento pra dançar.
E os dois deram-se os braços e bailaram, bailaram a tarde inteira. Inventaram o passo da pirueta, deram cambalhotas, vôos rasantes, deslizaram na grama, acenaram pras aves poderosas, as únicas que alcançam o alto da montanha. E ficaram felizes.
Fim da tarde, quando os dois sentaram pra descansar, começaram a se formar lá longe no horizonte umas nuvens negras, carregadas de chuva. Vinham vindo bem naquela direção.
O vento que planejava levar a pluma para uma gloriosa noite na aldeia levantou-se imediatamente e soprou: Não!
Acontece que as nuvens já vinham em bando, inchadas de água pra despejar, soltando faíscas de tanta pressa e empurradas por um vento contrário rabugento, rugidor.
O vento não esperou nem mais um segundo. Partiu em direção das nuvens de chuva e soprou, soprou muito forte decidido a expulsá-las daquelas paragens.
O que se viu então foi uma batalha feroz.
Remexeram-se as árvores, a água do lago, as porteiras dos sítios.
O vento não queria abrir mão de seu passeio com a pluma.
As nuvens faziam questão de chover.
De tanta raiva que ficou o vento foi se enremoinhando, sentindo uma vertigem, girando, girando e virou um furacão.
À sua passagem tudo ia se arrebentando. Quebrou troncos, virou as mesas, machucou os cavalos, arrancou o telhado das casas. Uma destruição!
Quando tudo se acalmou, depois de muito tempo, foi como se as coisas todas chorassem.
O vento, ainda ofegante, lembrou-se da pluma mas ao procurar, pobre dele, nunca mais a encontrou.
Correu pelos lugares onde haviam passeado, assoviou, tocou de novo a mesma música nos bambus, olhou por baixo dos troncos derrubados, nas poças de lama, debaixo das pedras, nada. O vento e a pluma nunca mais voltaram a se ver.
História de Walter Dias recontada por Irajá Menezes
Marcadores: Autorais
Um monge descabelado me disse no caminho: "Eu
na é uma desconstrução. Minha idéia era de fazer
alguma coisa ao jeito de tapera. Alguma coisa que ser-
visse para abrigar o abandono, como as taperas abri-
gam. Porque o abandono pode não ser apenas de um
homem debaixo da ponte, mas pode ser também de
um gato no beco ou de uma criança presa num cubí-
culo. O abandono pode ser também de uma expressão
que tenha entrado para o arcaico ou mesmo de uma
palavra. Uma palavra que esteja sem ninguém dentro.
(O olho do monge estava perto de ser um canto.)
Continuou: digamos a palavra AMOR. A palavra amor
está quase vazia. Não tem gente dentro dela. Queria
construir uma ruína para a palavra amor. Talvez ela
renascesse das ruínas, como o lírio pode nascer de um
monturo." E o monge se calou descabelado.
BARROS, Manoel de. Ensaios Fotográficos