Tuesday, October 24, 2006

ESTRAMBOTE MELANCÓLICO

Tenho saudade de mim mesmo, sau-
dade sob aparência de remorso,
de tanto que não fui, a sós, a esmo,
e de minha alta ausência em meu redor.

Tenho horror, tenho pena de mim mesmo
e tenho muitos outros sentimentos
violentos. Mas se esquivam no inventário,
e meu amor é triste como é vário,

e sendo vário é um só. Tenho carinho
por toda perda minha na corrente
que de mortos a vivos me carreia

e a mortos restitui o que era deles
mas em mim se guardava. A estrela-d’alva
penetra longamente seu espinho

(e cinco espinhos são) na minha mão.

ANDRADE, Carlos Drummond de

Nel mezzo del cammin di nostra vita
mi ritrovai per una selva oscura,
ché la diritta via era smarrita.

Ahi quanto a dir qual era è cosa dura
esta selva selvaggia e aspra e forte
che nel pensier rinova la paura!

Tant’è amara che poco è piú morte;
ma per trattar del ben ch’i’ vi trovai,
dirò de l’altre cose ch’i’ v’ho scorte.

Dante Alighieri – La Divina Commedia Inferno – Canto I

Sunday, October 22, 2006

Como seria ficar doente quando se era criança no passado? As evidências com relação a esses pontos são fragmentadas. Muitas referências a doenças sérias nas autobiografias costumam ser superficiais. Santo Agostinho (354 - 430), por exemplo, mencionou apenas de passagem que "sendo, ainda criança, [sobreveio-lhe] certo dia uma febre alta motivada, numa opressão do estômago, [e bateu] às portas da morte". Isso parece um pouco estranho, dado que todos devem ter passado por várias doenças na infância e, em muitos casos, ficado com várias seqüelas em função delas, tanto física quanto psicologicamente. Gerald Strauss pode estar certo ao argumentar que "as dores e os riscos enfrentados por todas as crianças na Europa do final da Idade Média e do período moderno fizeram da infância uma experiência tão traumática que havia um grande incentivo para que se apagassem as memórias a seu respeito".
Nos casos em que os autobiógrafos entraram em mais detalhes, fica-se cara a cara com as realidades sombrias da existência cotidiana antes da medicina moderna. Hermann von Weinsberg vinha de uma família relativamente rica em Colônia, mas, mesmo assim, sua infância no início do século XVI foi arruinada pela doença. Segundo Strauss, antes dos 9 anos:

Ele teve vários tipos de febre, incluindo colibacilose, da qual muitos conhecidos seus morreram em 24 horas, além de misteriosas paralisias temporárias, furúnculos, chagas e sarnas no couro cabeludo, "carne pútrida na boca", que um barbeiro cortou com uma tesoura de ponta, vermes que lhe davam vertigem, diarréia e vômitos violentos, dor de dente constante seguida da extração à mão da maior parte de seus dentes, hérnia e a peste.

Antoine Sylvère (1888- 1963) considerou completamente normal que toda a sua turma no Auvergne formasse um coro de tossidas durante as longas noites de inverno. Ele se sentia cada vez mais feio, na medida em que seu nariz escorrendo constantemente achatava suas narinas. Fritz Pauk (1888 - ?), de 10 anos, sofreu ainda mais depois que um fazendeiro, que o empregou perto de Lippe, permitiu que sua perna inchada se inflamasse por muito tempo:

Todos os dias, o fazendeiro vinha e me xingava por ser tão preguiçoso e não levantar, pois o gado tinha de ser alimentado. Não havia o que eu pudesse fazer, eu chorava de dor, mas ele não mandava o médico ou qualquer ajuda para mim.

Ao final, Pauk teve de amputar um pé. Autores socialistas faziam muito uso dos efeitos debilitantes da pobreza sobre a saúde dos trabalhadores. Adelheid Popp lembrava-se de lutar contra a desnutrição na década de 1880, enquanto trabalhava em uma fábrica de metal, com medo de perder os sentidos a qualquer momento.
As crianças tinham, evidentemente, vários mecanismos para enfrentar as enfermidades e as lesões. Robert Roberts (1905 - 1974) reconheceu que, quando sofria de um surto ocasional de neuralgia, "costumava se deitar no sofá, gemendo alto e exagerando a coisa ao máximo". Seu objetivo era fazer com que a mãe embalasse sua cabeça em seu peito, de modo que ele pudesse se perder no esquecimento "daquela felicidade rechonchuda e perfumada". Antoine Sylvère também desfrutava da pausa na vida cotidiana que vinha com a enfermidade, quando se recolhia à cama e bebia chás de ervas, mas sua mãe não lhe dava bola por muito tempo quando ele chorava por atenção. Mesmo um tempo no hospital podia ser um interlúdio agradável em uma existência árdua de criança pobre. Adelheid Popp admitiu que o tempo que passou em um hospital para doentes mentais foi o melhor de sua vida. Todos a tratavam gentilmente, a comida era boa e ela tinha uma cama própria. Em grande parte do tempo, as crianças certamente se cuidavam da melhor maneira que podiam. Pierre-Jakez Hélias, para tomarmos um exemplo da Bretanha, sabia que, se furasse o pé com um prego, deveria deixar que a ferida sangrasse, urinando sobre ela a seguir, utilizando a pegada de uma vaca como receptáculo improvisado, antes de fechá-la com a secreção de uma lesma.

HEYWOOD, Colin. Uma História da Infância. Tradução de Roberto Cataldo Costa.

Afastou-se, deu uns quantos passos ainda firmes, depois avançou ao longo da parede do corredor, quase a desmaiar, de repente os joelhos dobraram-se, e caiu redonda. Os olhos nublaram-se-lhe, Vou cegar, pensou, mas logo compreendeu que ainda não ia ser desta vez, eram só lágrimas o que lhe cobria a visão, lágrimas como nunca as tinha chorado em toda a sua vida, Matei, disse em voz baixa, quis matar e matei. Virou a cabeça na direcção da porta da camarata, se os cegos viessem aí não seria capaz de defender-se. O corredor estava deserto. As mulheres tinham desaparecido, os cegos, ainda assustados pelos disparos e muito mais pelos cadáveres dos seus, não se atreviam a sair. Pouco a pouco foram regressando as forças. As lágrimas continuavam a correr, mas lentas, serenas, como diante de um irremediável. Levantou-se a custo. Tinha sangue nas mãos e na roupa, e subitamente o corpo exausto avisou-a de que estava velha. Velha e assassina, pensou, mas sabia que se fosse necessário tornaria a matar, E quando é que é necessário matar, perguntou-se a si mesma enquanto ia andando na direcção do átrio, e a si mesma respondeu, Quando já está morto o que ainda é vivo. Abanou a cabeça, pensou, E isto que quer dizer, palavras, palavras, nada mais.

SARAMAGO, José. Ensaio Sobre a Cegueira.

8

TENDÊNCIAS CRIMINOSAS EM CRIANÇAS NORMAIS

(1927)

Nota Explicativa da Comissão Editorial Inglesa

Trata-se de um desenvolvimento das duas páginas seminais de Freud sobre a criminalidade em "Criminosos em conseqüência de um sentimento de culpa", E.S.B. 14, onde ele apresenta a tese de que a culpa não surge do crime, mas sim o crime da culpa. Melanie Klein liga essa sensação de culpa anterior à descoberta recente do superego primitivo. Sua tese, tão oposta ao senso comum quanto a de Freud, é que o criminoso não é destituído de consciência; ao contrário, ele possui uma consciência cruel demais: um superego primitivo que não foi modificado e funciona de forma diferente que o normal, impelindo-o para o crime sob a pressão do medo e da culpa.

Esse artigo discute o medo e a culpa, mas sem distinguir o seu funcionamento dentro do superego. Em A Psicanálise de Crianças, de 1932, Melanie Klein diferencia o superego primitivo do superego desenvolvido. Em seu conceito, o superego primitivo é percebido na psique como ansiedade ou medo e é o superego em desenvolvimento que desperta o sentimento de culpa, ponto de vista que apresenta com mais clareza em "O desenvolvimento inicial da consciência na criança" (1933). O único artigo em que voltou a tratar da criminalidade, "Sobre a criminalidade", um breve ensaio escrito às pressas em 1934, formula as conclusões do presente artigo a partir dessa diferenciação posterior. Também estabelece ligação entre a criminalidade e a psicose.

A própria Melanie Klein considera o ano em que escreveu esse artigo como o ano em que percebeu a importância da agressividade. Seu outro ensaio de 1917, "Simpósio sobre a análise de crianças", via nos impulsos agressivos da criança a explicação da crueldade de seu superego arcaico. O presente artigo ainda contém outra tese importante sobre o crime. Ele liga os atos criminosos às tendências criminosas das crianças normais, mostrando que os crimes são uma realização detalhada das fantasias sádicas arcaicas que fazem parte do desenvolvimento normal. De fato, Melanie Klein chama atenção para as diversas fantasias sádico-orais e sádico-anais da criança normal, que soma aos dois crimes inconscientes do incesto e do parricídio cometidos durante o complexo de Édipo genital, que Freud menciona em relação ao sentimento interior de culpa. Ela também afirma que, independentemente de experiências traumáticas, são as fantasias sádicas que criam concepções distorcidas e assustadoras do relacionamento sexual. No próximo artigo, "Estágios iniciais do conflito edipiano", algumas destas fantasias são descritas em maiores detalhes.

Por fim, ao longo de todo esse artigo que lida com o conflito entre o superego e o id, o leitor perceberá o interesse de Melanie Klein em outro conflito, o conflito entre amor e ódio, que mais tarde se tornaria a idéia básica que guia seu trabalho. Quanto a isso, é interessante observar sua convicção de que, apesar de todas as aparências do contrário, o amor existe dentro de todos, incluindo os criminosos.

KLEIN, Melanie. Amor, Culpa e Reparação e outros trabalhos 1921 - 1945

7

SIMPÓSIO SOBRE ANÁLISE DE CRIANÇAS

(1927)

Nota Explicativa da Comissão Editorial Inglesa

Em artigos anteriores, Melanie Klein estava preocupada apenas em relatar seu trabalho. Nesse simpósio com Anna Freud o seu tom muda e ela passa a defender de forma direta seu ponto de vista. Há apenas um outro texto, a Introdução a A Psicanálise de crianças, em que Melanie Klein se refere às diferenças entre ela própria e Anna Freud.

O problema entre as duas é a natureza da análise de crianças. Trata-se de um equivalente da análise de adultos? Melanie Klein argumenta, como já fizera um ano antes, em "Princípios psicológicos da análise de crianças pequenas", que a analogia é perfeita: a criança forma uma neurose de transferência e apresenta, através de sua brincadeira, o equivalente das associações livres do adulto para o analista, cuja única função é analisar ao máximo tudo o que seu pequeno paciente lhe traz. Nessa época, Anna Freud tinha uma opinião contrária a respeito de todos esses pontos. A discordância entre as duas vinha das concepções divergentes que tinham da mente da criança e da natureza da ligação entre ela e os pais.

Igualmente importante é a discussão acerca do superego. Num artigo anterior, Melanie Klein apresenta uma concepção do superego em que esse surge numa idade bastante tenra com uma forma severa e cruel, desenvolvendo-se lentamente até se transformar numa consciência mais normal. Aqui ela oferece uma explicação para o fato de o superego primitivo ser tão cruel. Seu argumento é que a natureza rigorosa, punitiva e irreal do superego se origina dos impulsos sádicos e canibalescos da própria criança, opinião que Freud, em uma de suas poucas referências publicadas a Melanie Klein, endossa em uma nota de pé de página de O mal-estar na civilização, E.S.B. 21, p.133. Melanie Klein parte desse ponto para chegar a uma conclusão de ordem terapêutica. A tarefa da análise de crianças não pode ser fortalecer um superego frágil, como acredita Anna Freud; ao contrário, ela deve reduzir a força excessiva do superego primitivo. Ao longo de todo o artigo, Melanie Klein enfatiza a importância fundamental de se analisar a ansiedade e a culpa. Um relato de seus escritos a respeito do superego está na Nota Explicativa de "O desenvolvimento inicial da consciência na criança" (1933).

Nessa época, Melanie Klein já tinha uma experiência de oito anos analisando crianças e ao longo desse simpósio apresenta suas descobertas sobre a técnica num exame que continua e amplia o relato do artigo anterior. Ela chama atenção para a necessidade de se analisar não só a transferência positiva, mas também a transferência negativa, visando uma maior eficácia da análise e protegendo os pais de atitudes negativas não-analisadas. Discute os modos de comunicação da criança, a quantidade de material que ela apresenta e a relação do analista com os pais dos jovens pacientes. Melanie Klein também registra suas opiniões a respeito dos métodos a que se opõe. Avalia em particular os efeitos negativos da análise incompleta do material e do uso de técnicas introdutórias não-analíticas, assim como de procedimentos educacionais ou diretivos. A descrição mais completa de sua técnica do brincar pode ser encontrada em A Psicanálise de Crianças. "A técnica psicanalítica através do brincar" ("The Psycho-Analytic Play Technique") (1955) apresenta uma história dessa técnica e as anotações clínicas diárias de Narrativa da análise de uma criança (Narrative of a Child Analysis) (1961) mostram Melanie Klein trabalhando.

Este artigo também contém novas descobertas sobre o complexo de Édipo. Numa nota de pé de página de um artigo anterior ("Uma contribuição à psicogênese dos tiques"), Melanie Klein afirma que a mãe, ao desmamar e treinar o bebê para os hábitos de higiene, faz com que a criança se volte para o pai. Agora, ela afirma explicitamente que o complexo de Édipo e, portanto, a formação do superego, começam no desmame. Também coloca o auge do complexo de Édipo em outra época, de modo que ele não coincide mais com o fim da infância inicial e a aproximação da latência, como na teoria de Freud. Para ela, aos três anos de idade a criança já atingiu a parte mais importante de seu desenvolvimento edipiano. Para um exame do trabalho de Melanie Klein a respeito do complexo de Édipo, o leitor deve consultar a Nota Explicativa de "O complexo de Édipo à luz das ansiedades arcaicas" (1945).

KLEIN, Melanie. Amor, Culpa e Reparação e outros trabalhos 1921 - 1945

6

PRINCÍPIOS PSICOLÓGICOS DA ANÁLISE DE CRIANÇAS PEQUENAS

(1926)

Nota Explicativa da Comissão Editorial Inglesa

Este artigo contém a primeira descrição de uma das descobertas iniciais mais importantes de Melanie Klein: o superego existe na criança bem mais cedo do que Freud acreditava. Esse superego primitivo - de acordo com Melanie Klein, uma descoberta inesperada - é composto de várias identificações, é mais cruel do que sua forma posterior e é um fardo para o ego frágil da criança. Essas descobertas colocam algumas dificuldades para a visão que Freud tinha do superego como resultado do complexo de Édipo; nesse estágio, Melanie Klein ainda tenta se enquadrar nesse ponto de vista. Ela desloca o começo do complexo de Édipo para o início do segundo ano de vida da criança, sugerindo que "logo que surge o complexo de Édipo, estas [as crianças pequenas] tentam resolvê-lo, desenvolvendo assim o superego". Mais tarde, ela se afasta de Freud e desliga o início do superego do complexo de Édipo; na verdade, Melanie Klein voltou várias vezes ao assunto do superego e o leitor encontrará um exame de seus principais escritos na nota explicativa de "O desenvolvimento inicial da consciência na criança" (1933).

Melanie Klein já empregava a técnica psicanalítica do brincar há seis ou sete anos. Nesse artigo, ela apresenta seu princípio básico: a situação analítica e a abordagem ao tratamento são os mesmos presentes na análise dos adultos, mas ajustados ao modo de comunicação da criança através da brincadeira. Melanie Klein discute esse princípio de forma mais completa e polêmica no próximo artigo, "Simpósio sobre a análise de crianças".

KLEIN, Melanie. Amor, Culpa e Reparação e outros trabalhos 1921 - 1945

Friday, October 20, 2006

Tuesday, October 03, 2006

5
UMA CONTRIBUIÇÃO À PSICOGÊNESE DOS TIQUES
(1925)

Nota explicativa da Comissão Editorial Inglesa

Esse estudo do caso de um menino de treze anos que sofre de um tique, associado a outras dificuldades, é muito diferente do tortuoso artigo que o precede. Com nova precisão, Melanie Klein traça e resolve o tique na análise em termos de identificações e fantasias masturbatórias. É a primeira vez que estuda a identificação com um objeto – neste caso, os pais na relação sexual – como um fenômeno de importância central. De agora em diante, sempre considerará as identificações no mundo interior como algo da maior importância. De fato, o próximo artigo apresenta um trabalho a respeito de uma das identificações mais essenciais: o superego. Apesar de nunca ter escrito especificamente sobre fantasias masturbatórias, Melanie Klein obviamente as considerava fundamentais: ela declara isso numa nota de pé de página no próximo artigo (p. 135), e o mesmo se pode perceber ao longo de todo A psicanálise de crianças.

Nesse estágio, Melanie Klein ainda parte da concepção de Freud de uma fase narcisista primária. No que diz respeito à questão específica do tique, porém, ela discorda da opinião de Ferenczi de que se trata de um símbolo narcisista primário inanalisável, afirmando, juntamente com Abraham, que para o tique ser analisado é preciso compreender as relações de objeto em que ele está baseado. Essa primeira descoberta das relações de objeto por trás de um fenômeno aparentemente narcisista aponta para a direção tomada pelo seu trabalho posterior sobre a psicose e as relações de objeto primárias. Seus motivos para depois rejeitar a idéia de uma fase narcisista primária serão encontrados em “As origens da transferência” (“The Origins of Transference”) (1952).

Um exemplo da abordagem empírica de Melanie Klein à técnica da análise de crianças é o relato de sua interferência quando, ao contrário de seu costume, proibiu dois relacionamentos na vida do paciente. Dois anos depois, ela apresentaria fortes argumentos contra esse tipo de procedimento diretivo em “Simpósio sobre a análise de crianças”.

KLEIN, Melanie. Amor, Culpa e Reparação e outros trabalhos 1921 - 1945