Friday, December 29, 2006

OFERECER OU PERMITIR? 11/10/2006


No artigo desta quarta-feira, voltei ao tema dos presentes para o Dia das Crianças, e o fascínio que eles exercem sobre os adultos. Uma das coisas que me chamam a atenção, quando entro numa loja de brinquedos, é o grau de realismo, de perfeição das bonecas e dos carrinhos à venda. Há uma espécie de duplicação, de clonagem da própria fantasia; o boneco do Shrek é exatamente igual ao Shrek do desenho animado, o Homem-Aranha de brinquedo faz quase tudo o que o Homem-Aranha “real” é capaz de fazer. Desse modo, não sobra espaço para muita coisa a ser reelaborado pela criança, que vive numa satisfação imediata de seus desejos, e no tédio que isso acarreta.

Mesmo assim, quem não resiste a comprar os badulaques sou eu; em parte, devido ao meu próprio consumismo. Há outro fator em jogo, contudo, que vai além do mero comportamento econômico.

Como a grande maioria dos pais e mães contemporâneos, minha atitude básica diante das crianças pode ser resumida num verbo: oferecer. Sinto que o mundo é cheio de atrações, de coisas a serem desfrutadas e conhecidas. Quero que meus filhos não apenas as desfrutem, mas sobretudo que as conheçam. Tenho satisfação, quando passeio de carro com meus filhos, de ir apontando as coisas que aparecem no caminho: isto é uma igreja, isto é uma padaria... há como que a felicidade edênica de ir nomeando as coisas, uma a uma, no inesgotável e fresco Jardim do Mundo.

Também a mãe abre o armário da cozinha e pergunta para o filho: “quer biscoito de polvilho? quer bolacha de doce-de-leite? quer bolinho de chocolate”? Inevitável que, diante de tanta oferta, a criança entre em crise. Não está preparada para decidir; não sabe o que perde e o que ganha com cada opção. Oferece-se, na verdade, a perda, e não o ganho, para ela.

Uma das conquistas pedagógicas que presenciei com meus filhos foi o momento em que deixei de conjugar o verbo “oferecer” e passei a ver meus filhos usarem os verbos que lhes cabem: “eu posso? você deixa?” Cada oferecimento, de luxo importuno, passou a ser conquista. Em vez de tentar iluminar novos objetos sobre o fundo ofuscante do “sim”, passei a apresentar cada coisa sobre o fundo negro do “não”. Como num quadro clássico, cada maçã, cada pêssego, adquiriu assim um valor mágico, a preciosidade natural que deve ter na vida.

Extraio disso uma conclusão teológica: a única fruta que vale a pena, no Paraíso, é a proibida. Toda a obra da Criação era, na verdade, insípida aos olhos do primeiro homem, da primeira mulher. Saber é experimentar. Conhecer o mundo é conquistá-lo, pouco a pouco, num jogo entre o risco e a permissão, entre a dúvida e o prazer.

Meu pai, figura alheia a qualquer autoritarismo e tradição, mas apreciador de formalidades que a meus olhos não tinham nenhum sentido, gostava que toda noite eu lhe pedisse “a bênção”. Talvez esse ritual arcaico tenha um sentido oculto; é como se representasse a autorização, plenária e irrestrita, que se desse a uma criança para fruir e conhecer o mundo. O mundo que se dá “de mão beijada”, ou seja, tomando por automática essa autorização, substituindo permissão por oferecimento, não tem valor.


http://marcelocoelho.folha.blog.uol.com.br/paisefilhos/


Tuesday, December 26, 2006

"Meu caro Antunes Filho,
Você está querendo que eu lhe dê autorização para encenar uma peça da qual você ainda não tem uma idéia definida, baseada em minhas obras - jornalística, literária e teatral.
Isso - seu talento à parte - é um mergulho no infinito. Mas como prezo o seu talento e o considero meu amigo, dou a autorização, mas sob uma condição: você submeterá o seu trabalho a minha apreciação e fará os cortes e as mudanças que eu achar necessárias (espero que saia uma obra-prima irretocável).
E fica estipulado desde já que a Sbat [Sociedade Brasileira de Autores Teatrais] recolherá tanto no Brasil como no exterior os meus direitos autorais. Outrossim - e isso é óbvio -, você não poderá vender ou negociar sob qualquer pretexto os meus textos utilizados no seu espetáculo, que será, acredito, sua consagração definitiva.
Um abraço."

Nelson Rodrigues, por carta datilografada. O documento data de 22 de novembro de 1979, Rio de Janeiro. in: Folha de São Paulo, 25 de dezembro de 2006.

Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo. Às vezes, mal apagava a vela, meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar: “Adormeço”. E, meia hora depois, despertava-me a idéia de que já era tempo de procurar dormir; queria largar o volume que imaginava ter ainda nas mãos e soprar a vela; durante o sono, não havia cessado de refletir sobre o que acabara de ler, mas essas reflexões tinham assumido uma feição um tanto particular; parecia-me que eu era o assunto de que tratava o livro: uma igreja, um quarteto, a rivalidade entre Francisco I e Carlos V. Essa crença sobrevivia alguns segundos ao despertar; não chocava minha razão, mas pairava-me como um véu sobre os olhos, impedindo-os de ver que a luz já não estava acesa. Depois começava a parecer-me ininteligível, como, após a metempsicose, os pensamentos de uma existência anterior; o tema da obra destacava-se de mim, ficando eu livre para adaptar-me ou não a ele; em seguida recuperava a vista, atônito de encontrar em derredor uma obscuridade, suave e repousante para os olhos, mas talvez ainda mais para o espírito, ao qual se apresentava como algo sem causa, incompreensível, algo de verdadeiramente obscuro.

PROUST, Marcel. No Caminho de Swann.

Henri, o papagaio

Mon Dieu, mon Dieu, um gravador. Deus dos papagaios, me acuda. Já ouvi minha voz gravada. Quase silenciei para sempre. É o som do caldeirão rachado com o qual pretendemos comover as estrelas e só conseguimos fazer dançar os ursos, como escreveu Flaubert sobre a linguagem.Tente dizer qualquer coisa séria, ou profunda, com voz de papagaio. Mesmo em francês. Impossible. Foi por isso que não me deram atenção, e a comédia que vou contar quase virou tragédia. Eu avisei, me esganicei, mas me ouviram? Diziam "Le perroquet, qu'est-ce qu'il dit?". E riam. Eu avisando que não era comédia, era drama, era tragédia. Tinha paixão, traição, perfídia, sociologia. E riam, riam. Culpa da voz, minha sina. Com voz de papagaio, nada é importante, nada é trágico. Dizem que Shakespeare lia suas comédias com voz de papagaio para seus atores, que nunca entendiam o que ele escrevia. Só assim eles sabiam que não era tragédia. Não havia gravadores no tempo de Shakespeare. Quantos não devem sua fama póstuma ao fato de não haver um gravador por perto? O mundo talvez fosse outro se descobrissem que Péricles tinha a voz fina, Napoleão a língua presa e... Mas vamos à entrevista. Sei o que vocês querem ouvir. É sobre a santa que era santo, nespá? Sobre o passado. Pelo menos estão interessados no que eu tenho para contar. Só o que ouço aqui é "Le perroquet, qu'est-ce qu'il dit?" e "Tais-toi, Henri!". Fazem pouco das digressões de um caldeirão rachado. Este é o outro terror do gravador: ele não permite digressões. E o que é um papagaio sem digressões? Essa fita girando, girando, como a vida se aproximando do fim, nos obrigando a ser sucintos e breves. Durante séculos, milênios, gerações e gerações, vivemos com a capacidade de falar sem saber que a tínhamos. Imaginem. Uma espécie inteira que se autodesconhecia. Imitávamos uns aos outros, imitávamos os outros bichos e os sons da floresta, mas só quando ouvimos um humano falar, pela primeira vez, descobrimos este nosso talento para articular palavras. E descobrimos o que nos faltara durante gerações e gerações de loquacidade desperdiçada e sons desconexos: assunto. Até hoje, em florestas desabitadas, papagaios selvagens voam em bandos cacofônicos sem conhecer a delícia de fazer uma frase, os prazeres da prosódia. É em nome deles que eu falo tanto assim. E para recuperar o tempo perdido, o nosso tempo sem assunto. Eu estaria traindo a minha ascendência se fosse sucinto e breve. Eu... Está bem, a história que vocês querem ouvir. Vamos a ela. Está gravando?

VERÍSSIMO, L. F. in: A Décima Segunda Noite.



DEBATE ABERTO

Pesquisa sobre Lula é balde de água fria na imprensa

Datafolha e Ibope constatam alta aprovação governamental, maior do que a de seus antecessores. Quais as razões? Possivelmente são as políticas sociais e a própria personalidade de Lula. Mas os ricos também ganharam muito. Consolida-se um sofisticado e polêmico projeto nacional.

O Datafolha divulgou neste domingo (17) uma extensa pesquisa, apontando Lula como o presidente mais bem avaliado da história do Brasil. A afirmação é um tanto temerária, pois as comparações com outros mandatários é feita a partir de dados colhidos em 2002 e em 2006. As apreciações sobre os governos Vargas (1950-53), Kubitschek (1956-60), Jânio (1961), Figueiredo (1979-85), Sarney (1985-1990), Collor (1990-92) e Itamar (1992-94), constantes nas tabulações, são muito mais subjetivas do que as de Fernando Henrique e de Lula. A comparação mais precisa, realizada com igual metodologia, se dá entre os dois últimos. É significativa a constatação do instituto que “Ao final do primeiro mandato, Lula é aprovado por 52% dos brasileiros. FHC era aprovado por 35% ao final do primeiro mandato”.

Nos casos anteriores, a memória histórica parece ser o único fator de comparação possível. E mesmo esta memória não é direta. A avaliação muitas vezes vem de relatos de antepassados, de leituras ou de outro tipo de informação secundária. Mas é interessante a seguinte afirmação:

“As menções a Lula como o melhor presidente chegam a 57% no Nordeste e a 40% nas regiões Norte e Centro-Oeste. No Sul, Lula é citado por 25% (dez pontos abaixo da média), Fernando Henrique Cardoso por 14%, Juscelino Kubitscheck por 10% e Getúlio Vargas por 12% (quatro pontos acima da média). No Sudeste, quem fica ligeiramente acima da média é Juscelino Kubitscheck, mencionado como o melhor presidente do país por 15%. Lula é citado por 23% (12 pontos abaixo da média), Fernando Henrique Cardoso por 13% e Getúlio Vargas por 9%.”

A evolução de Lula

Se olharmos para a evolução da aceitação popular do governo Lula, veremos que mesmo no auge da crise política de 2005, sua aprovação – a soma dos indicadores de ótimo e bom com regular – nunca esteve abaixo de 50%. No final de 2004 (17 de dezembro), ele tinha 45% de ótimo e bom e 40% de regular. Ao longo do ano seguinte – e do pesado bombardeio de denúncias por parte da mídia e da oposição – o índice chegou respectivamente a 35% e 40% em 21 de julho. Seu ponto mais baixo aconteceu em 28 de dezembro: 28% de ótimo e bom. Na mesma pesquisa, o governo tinha 42% de regular e atingia o pico de ruim e péssimo: 29%. A partir daí, ao longo do ano de 2006, sua recuperação foi constante e segura até o último indicador. A partir de 22 de agosto, quando atingiu 52% de ótimo e bom, o governo oscilou neste indicador entre 46% e 53%.

A avaliação do Ibope, divulgada na segunda-feira (18), confirma o Datafolha. O ótimo e bom subiu de 49% em setembro para 57% neste mês.

Tudo indica – e as eleições confirmam isso – que Lula tem o apoio de mais da metade da população brasileira. Isso, apesar do constante fogo de barragem que o atinge pelo menos desde junho de 2005, quando a imprensa repercutiu as denúncias do ex-deputado Roberto Jefferson.

Mais do que examinar, no olho mecânico, as variações percentuais, vale tentar entender o que está por trás delas.

As duas pesquisas desta semana representam um balde de água fria nas pretensões demolidoras dos grandes monopólios da mídia e dos setores mais duros da direita. Eles se depararam com um apoio popular sólido, tanto em termos objetivos, quanto em aspectos subjetivos. Em português um pouco mais claro, Lula obtém tamanha aprovação por conta de ações governamentais vistas como benéficas para um grande contingente da população e por sua própria história e personalidade, profundamente identificadas com os pobres. Em torno destas características forma-se o que alguns analistas chamam genericamente de “lulismo”.

Lulismo e bolsa-família


Não está claro ainda o que seria exatamente o “lulismo”, tarefa de estudo para cientistas políticos e sociais. O certo é que se criou, em torno da personalidade do presidente, um culto que prescinde do PT para se afirmar. Percebendo isso, em vários episódios, ele buscou afastar-se da estrutura partidária, conseguindo evitar pontos de desgaste à sua imagem.

Combinando uma história profundamente identificável aos pobres, uma permanente imagem vitimizada pelos ataques que sofre e a concessão de políticas assistenciais focadas, Lula desenvolveu sua altíssima popularidade e uma espécie de blindagem anti-denúncias. Essas políticas, condensadas no Bolsa-família, representam um gasto de apenas 0,75% do PIB e atingem, segundo dados oficiais, 11 milhões de famílias e 40 milhões de pessoas.

Ao mesmo tempo, na seara econômica, o governo Lula repetiu os medíocres índices de crescimento de seu antecessor – da ordem de 2,3% ao ano, ora um pouco acima, ora um pouco abaixo. Um ajuste fiscal duríssimo destinou cerca de R$ 160 bilhões ao ano para os serviços da dívida pública, mantendo um corte de 40% no orçamento anual do Estado.
Paradoxalmente, a desigualdade social no Brasil é tamanha que, num quadro de extrema miserabilidade, as políticas de renda e de cunho assistencial conseguem ter um efeito dinamizador não apenas no consumo das milhões de famílias por ele beneficiadas, mas de ativador de economias locais que se encontravam em processo de semi-estagnação.

Segundo matéria publicada no jornal Valor Econômico (28 de julho de 2006), “As transferências de recursos pelos programas sociais a famílias pobres estão assumindo um peso crescente na composição da renda disponível para o consumo de alguns estados e substituindo, inclusive, a renda proveniente do trabalho”. A matéria cita como exemplo o estado do Ceará, onde as vendas do comércio varejista aumentaram 10,7% entre janeiro e abril deste ano. E, ainda segundo o jornal, desde o início do programa, em outubro de 2003, as vendas na região Nordeste acumulam um crescimento de 54,2% até abril de 2006.

Se é verdade que os programas têm limites claros na distribuição da renda – os ganhos do setor financeiro aumentaram no período e a parcela referente aos salários na renda nacional seguiu em queda -, a qualidade de vida dessas pessoas melhorou. Ou seja, o conjunto da renda nacional não se distribuiu, como alardeia o governo. Mas a renda apurada pelo PNAD, uma fatia da renda interna, teve uma melhoria em sua distribuição entre 2004 e 2005.

Desenvolvimento e assistencialismo


O economista Guilherme Delgado, do IPEA, lança luz sobre essa intrincada questão numa entrevista recente:

“Uma coisa é a renda apurada pela PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), que é uma fatia pequena da renda interna. Outra coisa é o conjunto da renda social, no qual temos mais concentração, pelo menos até 2003, que é quando temos o sistema estruturado. A partir de então, mesmo sem dados, pelo ‘desconfiômetro’, temos a continuação do mesmo padrão. Não houve mudança, por exemplo, na política de pagamento de juros da dívida pública, nem na distribuição funcional para que possa se falar numa reversão em 2004/2005. Então, para deixar claro, a verdade é que melhorou a renda da PNAD. E a meia verdade (talvez até mentira), é que melhorou a distribuição de renda. Não melhorou. A distribuição no conjunto da renda piorou no período e as contas nacionais mostram isso”.

Não é prudente criticar os programas sociais por seu aspecto assistencialista. As pessoas que deles necessitam estão em situação de extrema pobreza e não há alternativa imediata a não ser dar comida e gêneros de primeiras necessidades a elas. Uma avaliação mais abrangente deve voltar-se para seu descasamento com um projeto mais geral de desenvolvimento econômico que possibilite uma real distribuição de renda.

O caso mais evidente de um programa desenvolvimentista sob o capitalismo, que envolveu programas sociais, foi o “New Deal”, nos Estados Unidos, deflagrado a partir de 1933, durante a primeira gestão de Franklin Roosevelt. Enfrentando uma situação de crise estrutural – 25% da população economicamente ativa estava desempregada – Roosevelt deu início a um ousado programa de obras e investimentos públicos, acompanhados de agressivas políticas sociais, especialmente para combater a fome. A recessão iniciada em 1929 teve um novo repique em 1937 e só foi plenamente superada no início da década seguinte, através dos pesados investimentos feitos na indústria bélica, com vistas à II Guerra Mundial.

O projeto de Lula não chega, até agora, a produzir um programa de desenvolvimento. Mantém os investimentos estrangulados pelos constantes cortes orçamentários destinados a gerar recursos para o pagamento da dívida pública.

Projeto sofisticado


Lula desenvolve, no governo, um projeto nacional muito mais sofisticado que o de FHC. Através dos programas sociais e dos juros estratosféricos, o governo calcifica seus apoios nos dois extremos da sociedade, o dos muito ricos e o dos muito pobres. Para isso, não precisa mover um milímetro do projeto econômico herdado de seu antecessor. Ao mesmo tempo, à diferença dele, colhe uma popularidade imensa.

Essa constatação é uma solução e um problema. A solução, para seus apoiadores, é que cria-se uma nova coalizão de poder no Brasil, que inclui alguns setores do mundo sindical e popular, através de concessões pontuais a setores organizados. O problema é que Lula adquire uma formidável legitimidade e ampla base social para aprofundar o modelo neoliberal. É ainda uma incógnita se essa diretriz mudará no segundo mandato. O presidente é reconhecido, identifica-se e dialoga com milhões e milhões de brasileiros.

Esses detalhes foram e são ignorados pela grande imprensa, em seus ataques quase histéricos ao presidente. Por isso, a não ser que ocorra um cataclismo na economia – o que depende muito mais do cenário externo do que de fatores internos – a popularidade do governo seguirá alta por um bom tempo.

Monday, December 25, 2006

Sunday, December 24, 2006

Segundo o pensamento grego, a capacidade humana de organização política não apenas difere mas é diretamente oposta a essa associação natural cujo centro é constituído pela casa (oikia) e pela família. O surgimento da cidade-estado significava que o homem recebera, além de sua vida privada, uma espécie de segunda vida, o seu bios politikos. Agora cada cidadão pertence a duas ordens de existência; e há uma grande diferença em sua vida entre aquilo que lhe é próprio (idion) e o que é comum (koinon).

Esfera Privada: geração, manutenção e perpetuação da vida (labor; necessidades)

Esfera Pública: (pólis, política): liberados da luta pela vida (das necessidades da sobrevivência), os homens podem criar uma esfera comum (criação e manutenção de corpos políticos, modos de vida e linguagens públicas que não visam fundamentalmente - ainda que possam influenciar - a luta pela sobrevivência).

[...] o que distinguia a esfera familiar era que nela os homens viviam juntos por serem a isso compelidos por suas necessidades e carências. A força compulsiva era a própria vida [...] e a vida, para sua manutenção individual e sobrevivência da espécie, requer a companhia de outros. O fato de que a manutenção individual fosse a tarefa do homem e a sobrevivência da espécie fosse a da mulher era tido como óbvio; e ambas estas funções naturais, o labor do homem no suprimento de alimentos e o labor da mulher no parto, eram sujeitas à mesma premência da vida. Portanto, a comunidade natural do lar decorria da necessidade: era a necessidade que reinava sobre todas as atividades exercidas no lar.

A esfera da Pólis, ao contrário, era a esfera da liberdade, e se havia uma relação entre essas duas esferas era que a vitória sobre as necessidades da vida constituía a condição natural para a liberdade na Pólis. A Política não podia, em circunstância alguma, ser um meio de proteger a sociedade; uma sociedade de fiéis, como na Idade Média ou uma sociedade de proprietários, como em Locke [...] A Pólis se diferenciava da família por somente conhecer 'iguais´, ao passo que a família era o centro da mais severa desigualdade. Ser livre significava ao mesmo tempo não estar sujeito às necessidades da vida nem ao comando de outro. Não significava domínio, como também não significava submissão.
O termo Público denota dois fenômenos intimamente correlatos, mas não perfeitamente idênticos.
1. Significa, em primeiro lugar que tudo o que vem a público pode ser visto e ouvido por todos e tem a maior divulgação possível [por oposição ao ocultamento a que se submete a esfera privada].
2. Significa o próprio mundo, na medida em que é comum a todos nós e diferente quanto ao lugar que nos cabe dentro dele. Este mundo, contudo, não é idêntico à Terra ou à Natureza [...] Antes, tem a ver com o artefato humano, com o produto de mãos humanas, com os negócios realizados entre os que, juntos, habitam o mundo feito pelo homem. Conviver no mundo significa ter um mundo de coisas interposto entre os que nele habitam em comum, como uma mesa se interpõe entre os que se assentam ao seu redor.

A ascensão da administração caseira de suas atividades, seus problemas e recursos organizacionais - do sombrio interior do lar para a luz da esfera pública não apenas diluiu a antiga divisão entre o privado e o político, mas também alterou o significado dos dois termos e a sua importância para a vida do indivíduo e do cidadão, a ponto de torná-los quase irreconhecíveis.

A mais clara indicação de que a sociedade constitui a organização pública do próprio processo vital talvez seja encontrada no fato de que, em tempo relativamente curto, a nova esfera social transformou todas as comunidades modernas em sociedades de operários e de assalariados; em outras palavras, essas comunidades concentram-se imediatamente em torno da única atividade necessária para manter a vida - o labor (naturalmente, para que se tenha uma sociedade de operários não é necessário que cada um dos seus membros seja um operário ou trabalhador... basta que todos os seus membros considerem o que fazem primordialmente como modo de garantir a própria subsistência e a vida de suas famílias). A sociedade é a forma na qual o fato da dependência mútua em prol da subsistência, e de nada mais, adquire importância pública [...]

ARENDT, Hannah; in: A Condição Humana.

Você, seu zé ninguém

23.12.2006 | A revista “Time” – uma espécie de “Veja” americana – elegeu “você” a Personalidade do Ano. Isso quer dizer o seguinte: o cara de 2006 foi qualquer um, todo mundo, ou seja, ninguém. Esse papo de enaltecer nossa participação na revolução da nova web, de valorizar o explosivo crescimento do conteúdo participativo via blogs, YouTube, Wikipedia e o reino da mídia global, essa conversa fiada sobre a conversa fiada eletrônica, francamente, estão querendo te fazer de bobo, amigo internauta. Democracia digital é o escambau. A verdade é a seguinte: escolheram você para personalidade de um ano de merda.

“Você”, é bom lembrar, concorreu com o presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, o da China, Hu Jintao, o da Venezuela, Hugo Chávez, e o líder da Coréia do Norte, Kim Jong-il, enfim, uma turma que falou mais do que produziu notícias. Não são "gente que faz" como Adolf Hitler, em 1938, e o aiatolá Khomeini, em 1979, para citar dois dos cretinos de marca maior que já participaram da competição. George W. Bush é bicampeão nesse troço.

Mas nem sempre, no final, o mal vence. Albert Einstein levou o título de Personalidade do Século 20. Ano passado, deu empate entre Bono Vox e Bill Gattes, mas também não se trata, necessariamente, de uma competição entre os maiores chatos do mundo. Se fosse esporte nacional aqui no Brasil era capaz de em 2006 ganhar o Lula, o Gabeira, o Rogério Ceni ou o Maluf. O troço não tem mesmo nenhuma lógica, a não ser escolher alguém em evidência no noticiário para vender revista, muita revista. Responda rápido: o que rende maior tiragem, uma capa com Hu Jintao ou essa que chegou às bancas com espelho e tudo na ilustração para refletir “você” no lugar da Personalidade do Ano?

Não vejo nada de errado na estratégia da “Time”, eu mesmo já inventei coisas piores para garantir meu emprego. O que me preocupa – e muito - é o discurso sobre o qual tal estratégia de marketing está montada. Essa história de dizer que o leitor venceu o jornalismo e assumiu o comando dos meios de comunicação modernos – “Você, e não nós, está transformando a era da informação”, afirma o editor da “Time” –, essa idéia de dar voz a quem não tem o que dizer, de entregar as ferramentas de produção a quem não sabe fazer, dá nisso: ninguém fez nada que mereça destaque em 2006. Destaca-se, então, a possibilidade de fazer. Vamos lá, qualquer estúpido é capaz.

Acho ótimo que todo mundo possa dizer o que pensa em rede planetária, danem-se as normas gramaticais e os bons costumes, mas daí a exaltar a banalização do raciocínio como sintoma benigno da inclusão digital, oxente, acho que o leitor tem razão: estou ficando velho mesmo. Mas não do gênero que vai ficar brigando com o estado de coisas a que chegamos. Parabéns pra “você”, personalidade do ano! Uhuuuuu!

VASQUES, Tutty. No Mínimo. ig.com.br

Thursday, December 21, 2006

SOBRE A INTUIÇÃO E A CONTEMPLAÇÃO

Intuir um objeto é perceber a sua forma finita e suas fronteiras. A comparação dessa forma à de outros objetos revela os limites do seu conjunto de possibilidades de ação e paixão. Uma coisa é perceber a forma quadrada, outra coisa é intuir as propriedades inerentes a essa forma. A primeira é pura sensação de uma forma, a segunda é a intuição. A primeira é a matéria-prima da segunda. A intuição ocorre quando começa a se revelar ao sujeito senciente algo da constituição interna do objeto percebido. A intuição é a apreensão da verdade mesma do objeto, a intelecção de um sistema finito de possibilidades e, portanto, de impossibilidades. É o primeiro passo na apreensão de um conjunto unitário de potências, cuja forma integral é a unidade e a identidade do objeto intuído. Intuir é perceber tudo o que o objeto pode e tudo o que ele não pode ser. É a forma percebida instantaneamente como um conjunto de possibilidades e impossibilidades.

A estrutura de percepção é igual em todos os homens. Ora, é impossível imaginar que no ato da percepção somos nós que projetamos os limites do objeto. Seria o mesmo que achar que os objetos são coisa amorfa. Poderíamos olhar um cavalo e ver um triângulo. E esse mesmo cavalo ser visto como gato por outra pessoa ou por mim mesmo em outro momento. O fato de formularmos hipóteses, aparentemente convincentes, sobre essas possibilidades no universo das cores, por exemplo, imaginando que a xícara que eu vejo amarela outra pessoa pode vê-la azul, não deve ser levada a sério. É preciso admitir, tendo em vista que esse subjetivismo tornaria impossível a percepção mesma e ainda qualquer comunicação entre sujeitos cognoscentes, que os limites do objeto vêm manifestados neles mesmos, em sua simples presença.

Os objetos tradicionais da metafísica - Deus, o infinto, o absoluto - não são objetos de experiência. Nunca vimos nem veremos nem ouvimos o absoluto em lugar nenhum. Mas esses termos são os objetos legítimos da metafísica pois ela, antes de ser o estudo de objetos em particular, é o estudo da possibilidade e da impossibilidade em seu sentido mais amplo. A idéia mesmo de possibilidade e impossibilidade não é dado de experiência, mas não há experiência sem ela, a possibilidade e a impossibilidade são dadas na experiência. Não são objetos, mas são os constituintes essenciais da objetualidade, no plano ontológico, assim como da objetividade, no plano gnoseológico. Não são objetos de intuição mas não há intuição separada delas. O homem é o único aninal capaz de fazer ciência pois é o único capaz de apreender a objetualidade nos objetos (ontologia). É um ser capaz da objetividade (gnoseologia).

Cada sentido nos informa exclusivamente as propriedades das coisas a que se relaciona particularmente; e o que diz dessas propriedades é sempre verdadeiro. Já os produtos da imaginação, quando o movimento do orgão do sentido se mantém para além da duração da sensação, podem ser verdadeiros ou falsos.

Quando raciocinamos, tentamos apreender a ratio, a harmonia, a proporção das coisas, ou na relação entre um todo e outro todo, ou na conformação de suas partes. No entanto, conhecemos as coisas antes de pensá-las. Conhecemos a nós mesmos por evidência direta. Se quisermos apreendermo-nos em uma fórmula, não conseguiremos. Listaremos notas, qualidades, particularidades, criaremos imagens e signos. Mas sei que sou eu que penso, que sou objeto de ações alheias, ou seja, apreendo-me como unidade. Conheço-me como um todo mas penso-me por partes. Assim ocorre também com os objetos da intelecção, com as realidades metafísicas: podem ser conhecidas mas não pensadas, exceto em partes e signos. Pensar é produzir "figuras" que não sendo a realidade, indicam coisas reais e até mesmo a transcendem. Pensamos sempre por partes. A inteligência é que nos dá a unidade, que reconhece o todo. Os objetos que não podem ser pensados só podem ser conhecidos pela contemplação. Pelo desejo de que ele seja o que é, sem a minha interferência, aceitação passiva e desejosa. O sentimento também é apenas uma representação de uma parte de uma realidade. A mesma comida que hoje me causa repulsa, devido a uma indisposição física, amanhã me causará atração. Sentimento é reação parcial e momentânea a determinados aspectos de um objeto.

Os sentidos só nos dão esquemas representativos, nunca objetos mesmo. Uma vez em nosso conhecimento podemos pensá-los através da reflexão ou querer conhecê-los através da contemplação. A percepção vulgar é altamente projetiva, mas a contemplação não. Contemplar é dominar-se para não interferir no objeto. O pensamento refere-se ao real mediante signos que expressam possibilidades; e só conhece o real enquanto objeto de significação intencional. Só a contemplação pode conhecer o real como tal.

ZEIGLER, Sérgio. in: Linguagem Musical e Arte. www.breim_menezes_zeigler.zip.net 2005

Wednesday, December 20, 2006

IMPERFEITOS - 2

A nossa opção, repito, é entre a angústia e a gangrena. Ou o sujeito se angustia, ou apodrece. E se me perguntarem o que quero dizer com a minha peça, eu responderia: que só os neuróticos verão a Deus. [...] Jovens, sejam neuróticos!
Nelson Rodrigues



Do Teatro Completo de Nelson Rodrigues pela Nova Aguilar faz parte a chamada fortuna crítica do autor: antecedidas por um prefácio de quase 100, mais de 150 páginas de artigos analíticos.


É desta fortuna crítica que saem os comentários copiados abaixo. Buscam localizar aquilo que Paulo Francis vai denominar a "substância" da obra rodriguiana.


Alguns dos exemplos escolhidos admitem uma certa fragilidade técnica na feitura das peças que poucos comentaristas têm disposição para apontar. Parece que da mesma volúpia padeciam autor e críticos. Todos os artigos devoram devotos o universo escatológico de Nelson Rodrigues, as "larvas que chafurdeiam" constituindo-se apenas o exemplo mais desavisado. Festejada, nem por isso a morbidez é menos feia. E o teatro de Nelson Rodrigues é feio. Não que verse sobre o feio. É ele mesmo sórdido. De toda essa baixeza extrair sublimidade foi a missão de artista de Nelson Rodrigues. Brilhantemente bem sucedida. "A contribuição do sr. Nelson Rodrigues ao teatro brasileiro foi, a rigor, a da criação do gênero em termos estéticos universais". E é nisto que os articulistas botam foco: a plena potência de gênio, a força "genesíaca" do talento. Parece que quaisquer outras características, particularidades, minúcias, ficam obscurecidas, postas em segundo plano, diante da fulgurância temática e da profundidade do "mundo" que surge em cena. E ele escrevia muito bem. Exibia um pleno domínio da expressão, característico dos que trabalham muito. De um mundo, entretanto, neobarbárico, primitivo, arcaico, incandescente, abissal, não seria lícito exigir "perfeição". A congruência entre a desformidade do caos observado e a "mão" do demiurgo, que se expressa pelo timing, pela perícia de dialoguista, pelo senso inovador em cada etapa do processo de uma montagem, em cada solilóquio mítico, esta congruência aparece também na sujeira de diálogos mal acabados, assim como nos maneirismos de toda espécie, nos truques auto-irônicos, nas piadas infames, nas artimanhas de repórter da página policial. Enfim, em toda a grandeza de sua imperfeição.



1. "Sob o signo de uma erotomania inquietante [...] Peça após peça, as larvas que chafurdeiam nas regiões abissais do subconsciente humano movem-se no palco" [...]
Léo Gilson Ribeiro



2. [...] "mural primitivo, pintado com sangue e com excremento, onde se espoja toda a brutalidade poética do bicho-criatura humano."
Pompeu de Sousa



3. "A substância de Nelson. Bem, tudo que escreveu tem um tema constante: o ser humano é presa de paixões avassaladoras, consideradas vergonhosas pela sociedade e, pior, pelo próprio ser humano. São quase sempre punidos. Daí o famoso autoproclamado moralismo de Nelson. São paixões primitivas, o que irrita a maioria dos intelectuais, em particular os de esquerda, que querem o homem aspirando à ordem socialista, racional e reconhecendo interesses de classe e a luta de classes. Nelson não se interessava por essas coisas. Era um conservador moral, um talento em captar emoções abaixo da cintura.


Dorotéia e Senhora dos Afogados (esta a peça em que o coloquialismo e a poesia mais se fundem) se mantêm dentro do aristotelismo primitivo. Na tragédia aristotélica o "herói" reconhece que o destino o condenou à paixão e morre por ela, como os de Nelson, mas os gregos eram religiosos e o teatro de Nelson não é. Os críticos mais honestos de Nelson reclamam que as peças dele não têm a estrutura realista de Ibsen. É certo. [...] Reclamam que ele escreve cenas e não peças. A crítica é certa se o examinarmos à luz de Ibsen. Está fundamentalmente errada se virmos nas peças não o realismo vulgar mas uma coisa nova, um impulso neobarbárico que está na essência do pós-modernismo, ainda que um pós-modernismo primitivista."
Paulo Francis



[...] "voltado para as raízes mais profundas do seu inconsciente, busca encontrar a sua mitologia pessoal, fundante, ao mesmo tempo que, nesta pesquisa, exprime problemas e situações essenciais da espécie. Essas peças [...] significam o movimento que faz o autor no sentido de sua interioridade, numa sondagem vertical das estruturas, a partir das quais a sua obra - e a sua própria personalidade - passam a conhecer-se e a construir-se." [...]

(esta) "direção criadora" [...] "tem repercussões na linguagem por ele usada e, além disto se reflete na recorrência com que, numa mesma peça, as mesmas situações básicas se repetem, numa pseudomonotonia que, longe de significar simplificação e empobrecimento, tem todo o sentido de um trabalho humano, poético e dramático que traz em si a fatalidade de esgotar-se - para surgir à luz em toda sua grandeza. O autor escava os seus temas, gira em torno deles, exacerba-os para clarificá-los e, a uma crítica menos avisada, este esforço poderá parecer sobrecarga rebarbativa quando, em verdade, obedece apenas ao movimento da sístole e diástole que caracterizam a pulsação do espírito em seus níveis inconscientes mais arcaicos".


[...] "tais são as massas incandescentes que giram no universo dramático de Nelson Rodrigues"
Hélio Pellegrino


IMPERFEITOS
1. De Dostoiévski falarei pouco. Bastará relembrar que ele é um notório prolixo. Não à maneira de Marcel Proust que teve seu manuscrito de Em busca do tempo perdido rejeitado por um editor que "simplesmente" não conseguia "acreditar que alguém ocupe trinta páginas para descrever como uma pessoa se agita e se revira na cama antes de pegar no sono".
Nem à maneira que, ouço falar, Tolstói descreve o tempo alargado que precede a batalha.
Fiódor Dostoiévski não desce às minudências das descrições de ambientes dos escritores clássicos - martírio dos jovens estudantes, tampouco arma seu fraseado em detalhes assonantes, rítmicos, preciosismo que convida à releitura, convite ao qual os intelectuais enfastiados costumam mais prontamente atender. Não, ele é apenas e tão somente prolixo. Páginas e páginas postas fora por incapacidade de "enxugar". Por amor à digressão. Desta incapacidade brota sua mais célebre contribuição ao artesanato literário: as linhas paralelas de narrativa, os inúmeros focos de força distribuídos entre os incontáveis personagens, a possibilidade de abolir o narrador, o personagem central. A biografia de Dostoiévski, como a de Proust, de Nelson Rodrigues, transpassa sua obra. Epilético, jogador viciado, erigiu uma obra "desconjuntada", atada por um fio só: a visão deformada que o homem tem de Deus.

Com vocabulário spinozista, já estabelecemos antes que o querer do sujeito humano da vontade é querer perseverar em seu ser (humano). Esse conato básico aspira a uma duração indefinida e faz o sujeito agir às vezes de acordo com idéias adequadas (convenientes para o homem, virtuosas) e em outras ocasiões segundo idéias inadequadas (nocivas para o homem; viciosas). O essencial dessa colocação é o seguinte: não há outro motivo ético além da busca e da defesa do que nos é mais proveitoso, do que mais nos convém; toda ética é rigorosamente auto-afirmativa; os vícios e desvios morais têm a mesma raiz das virtudes; nada há na ética laica, imanente (isto é, racional), que nos imponha, como quer que seja, a renúncia ao que somos para levar a cabo um plano ou objetivo superior, alheio, transcendental; todas as morais, ao contrário, pretendem tão-só o melhor cumprimento do que somos. Um jornalista perguntou ao velho François Mauriac quem teria gostado de ser, em vez do ilustre escritor e prêmio Nobel que já era: "Moi-même, mais réussi" *, respondeu Mauriac. A ética não quer nada mais que a realização mais inatacável do que o sujeito já é, embora boa parte desse ser ainda permaneça no grau ontológico de possibilidade preferível. Não há, pois, uma ética altruísta, na conotação forte do termo, o que imporia ao sujeito agir por um motivo distinto do melhor para si mesmo: só seria altruísta, nesse sentido, agir por algum móvel contrário ou simplesmente distinto a meu necessário querer ser humano. O outro altruísmo, digamos com suave ironia o altruísmo light, também se baseia na auto-afirmação do sujeito. Como o sujeito da ética não é um grupo nem uma comunidade de qualquer tipo, mas o indivíduo concreto, na medida em que é capaz de agir de acordo com preferências razoáveis em primeira instância e portanto universalizáveis depois, podemos dizer, e não por gosto de paradoxo vazio, que toda moralidade reflexiva tem um húmus egoísta. Essa afirmação se presta, é claro, a más interpretações e a mais ou menos sérias objeções teóricas [...]

* Eu mesmo, mas bem-sucedido. (N.T.)

SAVATER, Fernando. Ética Como Amor-Próprio. 1. O amor-próprio e a fundamentação dos valores; a) Definição e fenomenologia.

Sunday, December 17, 2006

“(...) a parte que a força desempenha na natureza, como causa do movimento, tem por contrapartida, na esfera mental, o motivo como a causa da conduta”


Max Planck in Causation and Free Will (citado por Hannah Arendt)

Friday, December 15, 2006

Paciente como um alquimista, sempre imaginei e tentei algo diferente, e estaria disposto a sacrificar toda satisfação e vaidade por isso, da mesma forma como antigamente eles costumavam queimar os móveis e as vigas do teto para alimentar suas fornalhas em busca do magnum opus. O que é isso? Difícil dizer: apenas um livro em vários volumes, um livro que é verdadeiramente um livro, arquitetonicamente sólido e premeditado, e não uma coleção de inspirações casuais, por mais maravilhosas que possam ser. [...]
Eis aqui, meu amigo, a confissão pura desse vício que tenho rejeitado mil vezes. [...] Mas ele me domina, e eu talvez ainda tenha êxito, não na conclusão dessa obra como um todo (seria preciso ser Deus sabe quem para tanto!), mas na apresentação de um fragmento bem sucedido [...] provando através de porções terminadas que esse livro realmente existe e que eu tinha consciência do que não era capaz de realizar.

Stéphane Mallarmé - Carta a Paul Verlaine, 16 de novembro de 1869.

MANGUEL, Alberto. Uma História da Leitura. Página de Guarda.

Thursday, December 14, 2006

A Europa curvou-se ante o Brasil
E clamou "parabéns" em meio tom.
Brilhou lá no céu mais uma estrela:
Apareceu Santos Dumont ...

A conquista do ar que aspirava
A velha Europa, poderosa e viril,
Quem ganhou foi o Brasil!

Por isso, o Brasil, tão majestoso,
Do século tem a glória principal:
Gerou no seu seio o grande herói
Que hoje tem um renome universal.

Assinalou para sempre o século vinte
O herói que assombrou o mundo inteiro:
Mais alto que as nuvens. Quase Deus,
Santos Dumont – um brasileiro.

São todos gestos comuns: tirar os óculos da caixa, limpá-los com papel ou tecido, com a bainha da blusa ou a ponta da gravata, empoleirá-los no nariz e firmá-los atrás das orelhas antes de olhar para a página agora lúcida diante de nós. Então, ajustá-los para cima ou para baixo sobre o nariz, para colocar as letras em foco, e, depois de algum tempo, levantá-los e esfregar a pele entre as sobrancelhas, apertando os olhos fechados para manter afastado o texto-sereia. E o ato final: tirá-los, dobrá-los e inseri-los entre as páginas do livro para marcar o lugar onde paramos a leitura. Na iconografia cristã, santa Luzia é representada carregando um par de óculos numa bandeja: os óculos são, com efeito, olhos que os leitores de visão ruim podem pôr e tirar à vontade. São uma função destacável do corpo, uma máscara através da qual o mundo pode ser observado, uma criatura semelhante a um inseto, carregada como um animal de estimação à caça de um louva-a-deus. Discretos, sentados de pernas cruzadas sobre uma pilha de livros ou em pé, em expectativa, num canto atravancado da escrivaninha, eles se tornaram o emblema do leitor, a marca da presença do leitor, um símbolo do ofício do leitor.
É desnorteante imaginar os muitos séculos anteriores à invenção dos óculos, séculos durante os quais os leitores se envesgaram para penetrar nas linhas nebulosas de um texto, e é emocionante imaginar seu alívio extraordinário, quando surgiram os óculos, ao ver subitamente, quase sem esforço, uma página escrita. Um sexto de toda a humanidade é míope; entre os leitores, a proporção é muito maior, perto de 24%. (...) Em muitas pessoas essa condição piora, e um notável número de leitores famosos ficou cego na velhice, de Homero a Milton, James Thurber e Jorge Luis Borges. O escritor argentino, que começou a perder a visão no início da década de 1930 e foi nomeado diretor da Biblioteca Nacional de Buenos Aires em 1955, quando não enxergava mais, comentou o destino peculiar do leitor debilitado a quem um dia concedem o reino dos livros:

Nadie rebaje a lágrima o reproche
Esta declaración de la maestría
De Dios, que con magnífica ironía
Me dio a la vez los libros y la noche.

Borges comparava o destino desse leitor no mundo borrado de "vagas cinzas pálidas semelhantes a olvido e sono" ao destino do rei Midas, condenado a morrer de fome e sede cercado por comida e bebida. Um episódio da série de televisão Além da Imaginação trata de um Midas assim, um leitor voraz que é o único homem a sobreviver a um desastre nuclear. Todos os livros do mundo estão agora à sua disposição; então, acidentalmente, ele quebra seus óculos.

MANGUEL, Alberto. Uma História da Leitura.

Sunday, December 10, 2006

A ficção científica errou!

09.12.2006 Responda rápido: quem são os controladores de vôo de “Blade Runner” ou “Star Wars”? Ainda que até outro dia ninguém desse a menor importância a essa gente, a ficção científica teria que prever o poder que o controlador de vôo terá no futuro sobre a vida e os negócios das pessoas. Vi “O Quinto elemento”, “A Ilha”, “Minority Report”, “De volta para o futuro 2”, mas não me lembro de ter assistido a um só filme sobre o grande colapso dos aeroportos – o dia em que nenhuma aeronave saiu do chão em todo o planeta, e esses caras tomaram consciência de que poderiam dominar o mundo como num videogame irado. Issaaaaa!
Na Los Angeles de 2019 ou naquela galáxia muito, muito distante, é imperdoável que os controladores de vôo não sejam de alguma forma protagonistas de núcleos em “Blade Runner” ou “Star Wars”. Fala sério: a ficção científica pisou na bola brabo ao não prever a importância que o personagem em questão ganharia no mundo real a partir do início do século 21.
Qualquer criança brasileira que passe por aeroportos nessas férias irá se perguntar quando voltar para frente da TV quem eram os controladores de vôo de “Futurama” ou de “Os Jetsons”, por exemplo. Como seria possível todo mundo ter sua própria aeronave para ir trabalhar ou ao supermercado sem de vez em quando roçar na barriga de um avião de carreira?
Alguém em Hollywood deve estar neste momento debruçado sobre o personagem para transformá-lo em protagonista, Deus queira não seja filme de terror, tipo, “O controlador”.
VASQUES, Tutty; No Mínimo - www.ig.com.br

Wednesday, December 06, 2006

Um filme contra o Brasil indiferente

O psicanalista Jurandir Freire Costa entrevista Walter Salles, diretor do filme "Central do Brasil", premiado com o Urso de Ouro do Festival de Berlim

Jurandir Freire - A dupla premiação de "Central do Brasil" fez com que você fosse solicitado a dar muitas entrevistas sobre o filme. Em algumas, você se referiu ao tema das cartas. Em "Socorro Nobre", a correspondência é o eixo do seu documentário e em "Central" volta a ser o elemento chave do enredo. Você poderia falar um pouco mais sobre isto?

Walter Salles - Fiquei muito impressionado com a maneira pela qual uma troca de cartas, uma coisa tão prosaica, pode ser decisiva na vida das pessoas. Comecei, assim, a pensar no que aconteceria se alguém insensibilizado pelo mundo, como a personagem Dora, de Fernanda Montenegro, impedisse as cartas de circularem. Isto significaria simplesmente impedir que estas pessoas tivessem voz.

Folha de São Paulo, 29 de março de 1998, Caderno Mais!, pp. 5-8

www.jfreirecosta.com

Laudo inocenta mãe acusada de matar filha

LAURA CAPRIGLIONE
ENVIADA ESPECIAL A TAUBATÉ (SP)

Foi colocada em liberdade ontem, depois de 37 dias de prisão, a jovem Daniele Toledo do Prado, 21, acusada injustamente de envenenar a própria filha, Victória Maria do Prado Iori Camargo, de apenas um ano e três meses, com cocaína colocada na mamadeira da menina.
Laudo definitivo do Instituto de Criminalística provou que não era cocaína o pó branco encontrado na mamadeira. Também deu negativo para cocaína o exame feito no pó branco encontrado na boca da criança e recolhido no hospital.
Caiu assim a única evidência que incriminava Daniele, um laudo provisório que a levou à prisão logo que constatada a morte clínica da menina, às 10h40 de 29 de outubro. O alvará de soltura foi concedido pelo juiz da Vara do Júri e da Infância e Juventude de Taubaté, Marco Antonio Montemor.
"Eu nem tinha ainda conseguido entender o que significava aquele pííííííííí do oxímetro [que indicava a ausência de pulso], a correria dos médicos para ressuscitá-la, o corpinho inerte da Victória ainda com o tubo saindo da boca, quando a doutora Érika me arrastou pelo braço para a sala onde estava minha filha, gritando:" Olha o que você fez, sua assassina. Encara o que você fez, monstro ". Dali, sem tempo para chorar a perda da filha, Daniele foi levada para a cadeia pública de Pindamonhangaba. "Joga o bicho da mamadeira para cá." Essa foi a senha para o início da surra que deixou Daniele com a mandíbula quebrada, hematomas no corpo e lesões na cabeça, por causa das pancadas contra as grades da cela. Nada menos do que 18 presas participaram da ação contra a jovem.
"Uma presa enfiou uma caneta no meu ouvido e já ia dar um soco para que entrasse até o talo, quando outra lhe pediu que não fizesse isso. Então, ela quebrou a caneta e metade ficou dentro", lembra Daniele. Apesar dos gritos, o socorro só chegou duas horas depois, ao amanhecer, quando a jovem foi levada inconsciente para o pronto-socorro.

Doença estranha


Daniele e sua filha eram bem conhecidas no Hospital Universitário de Taubaté. A menininha tinha uma doença até hoje não diagnosticada, que a deixava inconsciente por várias horas. A criança tomava de quatro a cinco remédios diariamente, inclusive um para evitar convulsões, composto por pó branco. Por causa do agravamento de seu quadro clínico, os últimos quatro meses de vida de Victória foram um entra-e-sai do hospital, com várias internações na UTI.
No dia 8 de outubro, a filha internada, Daniele foi estuprada dentro do hospital. Bastante machucada e em estado de choque, foi atendida lá mesmo. Segundo o delegado-seccional de Taubaté (130 km de SP), Roberto Martins de Barros, um laudo confirma a violência sexual. Na delegacia, Daniele acusou, como autor do crime, um quintanista de medicina, do corpo de residentes do hospital.
"Ele me ameaçava e dizia, enquanto me estuprava, que sabia que eu precisava do hospital para cuidar da minha filha", lembra Daniele.
Depois da denúncia contra o residente, a moça teve de ir à delegacia outra vez, antes da morte da filha. Dia 19 de outubro, médicos do hospital denunciaram ter encontrado um pó branco suspeito no pescoço de Victória. Sem autorização da mãe, foram recolhidas amostras de sangue e de urina da criança. Suspeita: cocaína. O resultado deu negativo.
A última alta de Victória foi no dia 25 de outubro. Mas a menina podia voltar a ter uma de suas crises a qualquer momento. Foi entregue a Daniele uma carta de encaminhamento assinada por duas médicas. Se o quadro clínico da menina piorasse, ela tinha autorização para ir diretamente ao Hospital Universitário.
No dia 28, a criança teve nova crise e a mãe, como combinado, levou-a ao hospital. Não quiseram recebê-la. A mãe deveria levá-la primeiro ao Pronto-Socorro Municipal, onde chegou às 20h30.
A mãe denuncia que, mesmo inconsciente, a criança ficou sem atendimento até as 4h25, quando recebeu glicose em soro. Nesse momento, foi coletada a substância branca da língua da criança (a mesma que o exame preliminar do Instituto de Criminalística afirmava ser cocaína). Às 10h40, Victória morreu.
Assim que foi libertada, ontem, a mãe de Victória abraçou os familiares que a esperavam do lado de fora da Penitenciária de Tremembé (a 138 km de SP). Chorou e, depois, conforme havia pedido à advogada Gladiwa de Almeida Ribeiro, foi para o cemitério visitar o túmulo da menina.
Ela pretende entrar na Justiça para saber se a filha morreu por omissão de socorro ou por morte natural. Também quer punir o estuprador que a vitimou. "Eu tenho o direito de saber exatamente do que a minha Victória morreu."


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Sunday, December 03, 2006

Dura Na Queda

Perdida
Na avenida
Canta seu enredo
Fora do carnaval
Perdeu a saia
Perdeu o emprego
Desfila natural

Esquinas
Mil buzinas
Imagina orquestras
Samba no chafariz
Viva a folia
A dor não presta
Felicidade, sim

O sol ensolarará a estrada dela
A lua alumiará o mar
A vida é bela
O sol, a estrada amarela
E as ondas, as ondas, as ondas, as ondas

O sol ensolarará a estrada dela
A lua alumiará o mar
A vida é bela
O sol, a estrada amarela
E as ondas, as ondas, as ondas, as ondas

Bambeia
Cambaleia
É dura na queda
Custa a cair em si
Largou família
Bebeu veneno
E vai morrer de rir

Vagueia
Devaneia
Já apanhou à beça
Mas para quem sabe olhar
A flor também é
Ferida aberta
E não se vê chorar

O sol ensolarará a estrada dela
A lua alumiará o mar
A vida é bela
O sol, a estrada amarela
E as ondas, as ondas, as ondas, as ondas

O sol ensolarará a estrada dela
A lua alumiará o mar
A vida é bela
O sol, a estrada amarela
E as ondas, as ondas, as ondas, as ondas

BUARQUE, Chico. Carioca; Biscoito Fino 2006

(...) Imagina
Imagina
Hoje à noite
A lua se apagar

Quem já viu a lua cris
Quando a lua começa a murchar
Lua cris
É preciso gritar e correr, socorrer o luar
Meu amor
Abre a porta pra noite passar
E olha o sol
Da manhã
Olha a chuva
Olha a chuva, olha o sol, olha o dia a lançar
Serpentinas
Serpentinas pelo céu
Sete fitas
Coloridas
Sete vias
Sete vidas
Avenidas
Pra qualquer lugar
Imagina
Imagina

JOBIM, Tom; BUARQUE, Chico. Imagina. Carioca; Biscoito Fino - 2006

(...) Não se atire do terraço, não arranque minha cabeça
Da sua cortiça
Não beba muita cachaça, não se esqueça depressa de mim, sim?
Pense que eu cheguei de leve
Machuquei você de leve
E me retirei com pés de lã
Sei que o seu caminho amanhã
Será tudo de bom
Mas não me leve

VERGUEIRO, Carlinhos; BUARQUE, Chico. Leve. Carioca; Biscoito Fino - 2006

Renata Maria

Ela era ela era ela no centro da tela daquela manhã
Tudo o que não era ela se desvaneceu
Cristo, montanhas, florestas, acácias, ipês

Pranchas coladas na crista das ondas, as ondas suspensas no ar
Pássaros cristalizados no branco do céu
E eu, atolado na areia, perdia meus pés

Músicas imaginei
Mas o assombro gelou
Na minha boca as palavras que eu ia falar
Nem uma brisa soprou
Enquanto Renata Maria saía do mar

Dia após dia na praia com olhos vazados de já não a ver
Quieto como um pescador a juntar seus anzóis
Ou como algum salva-vidas no banco dos réus

Noite na praia deserta, deserta, deserta daquela mulher
Praia repleta de rastros em mil direções
Penso que todos os passos perdidos são meus

Eu já sabia, meu Deus
Tão fulgurante visão
Não se produz duas vezes no mesmo lugar
Mas que danado fui eu
Enquanto Renata Maria saía do mar

LINS, Ivan; BUARQUE, Chico. Carioca. Biscoito Fino - 2006

(...) Quando ela mente
Não sei se ela deveras sente
O que mente para mim
Serei eu meramente
Mais um personagem efêmero
Da sua trama
Quando vestida de preto
Dá-me um beijo seco
Prevejo meu fim
E a cada vez que o perdão
Me clama

Ela faz cinema
Ela faz cinema
Ela é demais
Talvez nem me queira bem
Porém faz um bem que ninguém
Me faz

BUARQUE, Chico; Ela Faz Cinema. Carioca - Biscoito Fino, 2006.

Rato
Rato que rói a roupa
Que rói a rapa do rei do morro
Que rói a roda do carro
Que rói o carro, que rói o ferro
Que rói o barro, rói o morro
Rato que rói o rato
Ra-rato, ra-rato
Roto que ri do roto
Que rói o farrapo
Do esfarra-rapado
Que mete a ripa, arranca rabo
Rato ruim
Rato que rói a rosa
Rói o riso da moça
E ruma rua arriba
Em sua rota de rato

BUARQUE, Chico; Ode aos Ratos. Carioca - Biscoito Fino 2006

(...) Um passarinho espanhol
Cantava esta melodia
E com sotaque esta letra
De sua autoria (...)

Soñé que el fuego heló
Soñé que la nieve ardia
Y por soñar lo impossible, ay, ay
Soñe que tu me querias.

BUARQUE, Chico; Outros Sonhos - Carioca - Biscoito Fino 2006.

(...) Lá não tem moças douradas
Expostas, andam nus
Pelas quebradas teus exus
Não tem turistas
Não sai foto nas revistas
Lá tem Jesus
E está de costas

Fala, Maré
Fala, Madureira
Fala, Pavuna
Fala, Inhaúma
Cordovil, Pilares
Espalha a tua voz
Nos arredores
Carrega a tua cruz
E os teus tambores

BUARQUE, Chico; Subúrbio. Carioca - Biscoito Fino, 2006.

MIGNA TERRA

Migna terra tê parmeras,
Che ganta inzima o sabiá.
As aves che stó aqui,
Tambê tuttos sabi gorgeá.

A abobora celestia tambê,
Chi tê lá na mia terra,
Tê moltos millió di strella
Chi non tê na Ingraterra.

Os rios lá sô maise grandi
Dus rio di tuttas naçó;
I os matto si perdi di vista,
Nu meio da imensidó.

Na migna terra tê parmeras,
Dove ganta a galligna dangolla;
Na migna terra tê o Vapr'elli,
Chi só anda di gartolla.

BANANÉRE, Juó; candidato à Gademia Baolista de Letras. La Divina Increnca; Livro di Prupaganda da Literatura Nazionale. 2ª edição - São Paulo. Editor Folco Masucci, 1966.

"A artograffia muderna é una maniera de scrivê, chi a gentil scrive uguali come dice. Per isempio: - si a genti dice Capitó, scrive kapitó; si si dice Alengaro, si scrive Lenkaro; si si dice dice, non si dice dice, ma si dice ditche."

BANANERE, Juó.