Monday, January 29, 2007

[...] Na conferência que fez no PEN Club, em junho de 1991, por sugestão afetuosa do cientista político Celso Lafer, que o trouxe ao Rio, Antonio Candido falou pela primeira vez, demoradamente, de Merquior:

... foi sem dúvida um dos maiores críticos que o Brasil teve, e isto já se prenunciava nos primeiros escritos. Lembro como sinal precursor o ensaio que escreveu bem moço sobre A canção do exílio, de Gonçalves Dias, fazendo uma descoberta que dava a medida de sua imaginação crítica, — entendendo-se por imaginação crítica a capacidade pouco freqüente de elaborar conceitos que têm o teor das expressões metafóricas ou o vôo das criações ficcionais. Estou falando do seguinte: ao comentar a afirmação costumeira que o famoso poema é tão bem realizado porque não tem adjetivos, ele mostrou que a sua eficiência provém na verdade do fato de ser todo ele, virtualmente, uma espécie de grande expressão adjetiva, uma qualificação sem qualificativos, devido à tonalidade do discurso.
Num de seus ensaios mais recentes ele disse que a falta de informação filosófica prejudicava a maioria da crítica brasileira. Ora, deste mal ele estava galhardamente livre. A sua acentuada vocação especulativa e a vasta erudição que a nutria lhe permitiram fazer do trabalho crítico uma investigação que não se satisfazia em descrever e avaliar os textos, mas desejava descobrir o sentimento entesourado e em seguida ligá-lo a outros produtos da cultura. Daí um cruzamento fertilizador, característico do seu trabalho: o pensador José Guilherme Merquior era capaz de expor os seus pontos de vista com a expressividade de um escritor versado na melhor literatura, enquanto o crítico José Guilherme Merquior era capaz de interpretar os textos ou traçar a articulação dos movimentos com a capacidade dialética de discriminar e integrar, própria da mente filosófica. Por isso, poucos foram tão capazes de associar o impulso do pensador ao olhar do leitor penetrante. Nele, era notável a combinação de gosto fino, argúcia analítica, precisão da síntese e transfiguração reflexiva.
Não espanta que, sendo dotado de tais qualidades, Merquior tenha podido com igual maestria fazer análises finíssimas e construir visões integradoras. Ele sabia desmontar a fatura dos textos sem os reduzir à mecânica formalista e inscrever as obras na seqüência temporal sem deslizar para o esquema. Sobrevoando esses dons, a linguagem adequada, expressiva, cheia de flama, parecendo comunicar à página o ritmo trepidante que foi a sua vida de impetuosa dedicação às coisas mentais.

[...] Professor no King's College, em Londres, doutorou-se em letras pela Sorbonne, orientando de Raymond Cantel, com tese sobre Carlos Drummond de Andrade aprovada com louvor em junho de 1972. Depois de levar meses para acusar a remessa dos capítulos que Merquior lhe enviava, Drummond respondeu:

Eu poderia tentar justificar-me alegando que esperava o recebimento do texto completo para lhe escrever. Mas a verdade verdadeira é que, desde a leitura das primeiras páginas, me bateu uma espécie de inibição que conheço bem, por ser velha companheira de minhas emoções mais puras. Se você estivesse ao meu lado nos momentos de leitura, decerto acharia graça na dificuldade e confusão das palavras que eu lhe dissesse. Talvez até nem dissesse nenhuma. E na minha cara a encabulação visível diria tudo... ou antes, não diria nada, pois o melhor da sensação escapa a esse código fisionômico. Senti-me confortado, vitalizado, vivo. Meus versos saem sempre de mim como enormes pontos de interrogação, e constituem mais uma procura do que um resultado. Sei muito pouco de mim e duvido muito — você vai achar graça outra vez — de minha existência. Uma palavra que venha de fora pode trazer-me uma certeza positiva ou negativa. A sua veio com uma afirmação, uma força de convicção que me iluminou por dentro. E também com uma sutileza de percepção e valorização crítica diante da qual me vejo orgulhoso de nobre orgulho e... esmagado. Eis aí, meu caro Merquior. Estou feliz, por obra e graça de você, e ao mesmo tempo estou bloqueado na expressão dessa felicidade.

[...] O último ensaio de Merquior chamou-se "Situação de Miguel Reale", para o volume Direito Política Filosofia Poesia, coordenado por Celso Lafer e Tércio Sampaio Ferraz Jr. para a editora Saraiva, comemorativo do octogésimo aniversário de Reale. Embora escrito em meio a exames médicos, pois a doença estava avançada, provocou o entusiasmo de Reale, que em carta de 7 de dezembro de 1990 assim o expressou:

É uma análise abrangente e profunda, ponto de partida essencial a qualquer nova indagação, a começar pelas observações sobre o culturalismo. Você viu bem a correlação de meu pensamento com o de Croce, pois bem cedo fui um leitor entusiasta de sua revista, Critica, que renovou o pensamento italiano. (...) A influência de Hegel e Marx em minha formação foi atenuada pela filtragem croceana, revelando-se logo minha oposição a Gentile e seu idealismo "attualista". (...) Outro ponto que me impressionou foi o seu paralelo com Raymond Aron, a quem me aproximo pela constante vivência da problemática filosófica em sintonia com a política.

PEREIRA, José Mário; O fenômeno Merquior. Rio de Janeiro, 11-20 de fevereiro de 2001
http://jgmerquior.motime.com/post/452383


O mais frio dos monstros

O estado – escreveu Nietzsche – é o mais frio de todos os “monstros”, de todos os vastos aparelhos sociais montados pela civilização contra os impulsos vitais do homem. Em Basiléia, o jovem helenista Nietzsche fora aluno do grande historiador Jakob Burckhardt, um dos criadores do conceito de Renascimento. No seu livro pioneiro sobre a Renascença italiana, berço do estado moderno, Burckhardt descrevera o estado como “obra de arte”, plasmada pela política desenvolta dos primeiros príncipes maquiavélicos. Mais tarde, porém, ao esboçar sua filosofia da história, o velho Burckhardt generalizou seu desencanto com a Realpolitik de Bismarck, contemplando no estado um constante inimigo da cultura. De “obra de arte”, o estado teria passado a atuar contra o espírito. Contra a Vida, emendaria Nietzsche.
O século XIX nos legou pelo menos dois tipos de estadofobia: essa linha estético-vitalista e a tradição anarcoliberal. No primeiro caso, acusa-se o estado de reprimir os instintos; no segundo, de oprimir os indivíduos e as massas. O liberalismo burguês condenava o estado forte por motivos libertários. O anarquismo, nesse ponto endossado por Marx, insistia em fundir o ideal libertário com princípios igualitários: sem igualdade social, toda liberdade individual lhe parecia ou falsa ou opressiva.
Hoje, o pensamento radical de maior prestígio casa duas espécies de estadofobia. Nos teóricos da escola de Frankfurt, Adorno ou Marcuse, o elemento anárquico da utopia marxista se conjuga com uma crítica freudo-nietzschiana da repressão instintual. Ironicamente, a mesma reprise do tema do “monstro frio” veio a ser entronizada pelas baboseiras da nouvelle philosophie – o apogeu da forma pateta de ser antimarxista. Na filosofia peso-mosca de André Glucksmann, abençoada pela irresponsabilidade de Foucault, nos sofismas pirotécnicos de Bernard-Henri Lévy, o estado faz figura de vampiro e bicho-papão. O estado – e o estado revolucionário em particular – encarna a razão repressiva, o “terrorismo da ciência”, na ridícula frase do nouveau philosophe lacaniano Jean-Paul Dollé. Assim como, para Heidegger, a salvação do homem passava pela ruptura com a expansão planetária da técnica, indiretamente legitimada por toda a metafísica ocidental, para Glucksmann e Lévy, só nos salvaremos quando rompermos com a dominação do estado, preparada pela filosofia autoritária dos Hegel, Marx e Nietzsche. De conseqüências autoritárias no caso de Hegel e Marx; de aspirações autoritárias no de Nietzsche, profeta da vontade de poder.
É perfeitamente lícito sustentar que a aplicação das idéias de Marx conduz necessariamente ao autoritarismo; é até possível argumentar que algumas de suas idéias (por exemplo, sobre igualdade, divisão do trabalho, dinheiro) brigam, em última análise, com os seus propósitos emancipatórios. Mas jogar no mesmo saco o estadólatra Hegel e o democrata ingênuo que há em Marx, juntamente com o autoritário, mas antiestatista e anti-racionalista Nietzsche, não é análise filosófica, e sim puro confusionismo ideológico. No frívolo filó da nouvelle philo, libertarismo de soçaite, tudo que cai é peixe.
Do outro lado da Mancha, o frenesi antiestatista é infinitamente mais terra a terra: nada de injuriar a Razão ocidental, como em Frankfurt ou Saint-Germain-des-Prés. Afinal, o elder statesman da nova estadofobia britânica é F. A. Hayek, pai do neoliberalismo econômico, muito austríaco e demasiado economista para se permitir posar de irracionalista profissional. Na geração moça, o paladino do antiestatismo é o inquieto Paul Johnson, o ex-trabalhista convertido à ortodoxia neoliberal. Johnson era conhecido como diretor do New Statesman e historiador diletante do cristianismo. É sua, por exemplo, a tese de que os ingleses sempre foram criptopelagianos, isto é, seguidores secretos de Pelágio, que negou o pecado original e a corrupção das criaturas. Pessoalmente, tendo a concordar, sobretudo por causa daquela perspicaz definição do inglês: “o inglês é um self-made man que venera o seu criador...” Há quatro anos, Johnson misturou alhos e bugalhos num livro polêmico – Enemies of Society – em que, não obstante, desfechou pancadas certeiras em teóricos delirantes do tipo Marcuse, Laing ou Fanon. Mas seu ataque em regra contra o estado só saiu em 1980, sob o título de The Recovery of Freedom.
Johnson apresenta várias acusações contra o estado moderno. Primeiro, a idéia de que o governo deve ser o principal ou o único promotor do bem-estar coletivo se baseia na premissa, inaceitável, de que os problemas humanos possam ter soluções únicas. Segundo, a expansão do estado significa, necessariamente, o aumento da taxa de compulsão na vida social. Terceiro, o estado é – ao contrário do mercado – um instrumento econômico ineficiente. Daí o quarto inconveniente: como bem viu Adam Smith, o estado, em vez de produzir, só sabe é consumir a riqueza. Smith pensava em Versalhes e na sua prodigalidade parasitária; mas Johnson acha que o mesmo vale para as burocracias previdenciárias do nosso tempo. Quinto, o burocrata estatal contemporâneo é por definição um ideólogo igualitarista que, até mesmo para desviar a atenção de seu próprio poder e desperdício, promove ideais de igualdade compulsória que acarretam uma verdadeira “legitimação da inveja” como paixão coletiva. Esses venenos psicológicos liberados pelo gigantismo estatal seriam altamente propícios ao crescimento da violência e da agressividade entre os diversos grupos sociais contemporâneos.
Examinemos rapidamente o requisitório de Johnson. A idéia tecnocrática do governo como única agência do bem-estar coletivo não põe em causa o estado, mas apenas o estatismo, o que é muito diferente. Evidentemente, é possível defender o estado sem querer fazer dele uma solução infalível, e menos ainda uma panacéia, a Solução universal. Vejamos o segundo argumento. Longe de significar um aumento automático da compulsão, o desenvolvimento progressivo do estado, nos regimes liberais democratizados, foi o grande veículo histórico de uma palpável ampliação e diversificação das liberdades e dos direitos, notadamente no terreno das oportunidades educacionais, da proteção da saúde e da velhice, e do direito de cada um (e de cada família) à subsistência. O estado não só compeliu (quando o fez) – ao contrário, removeu obstáculos e reduziu impedimentos ao exercício concreto de várias dimensões da liberdade; sua obra integradora e emancipadora compensou de sobra e ultrapassou bastante os aspectos compulsórios envolvidos na sua expansão “tentacular”.
Mas será que tudo isso foi mesmo conseguido ao preço da ineficiência econômica? Onde o estado tentou se substituir globalmente ao mercado, não há dúvida. Não foi bem isso que ocorreu, porém, onde ele se limitou a prover aquilo que o mercado, por si só, nunca esteve em condições de realizar. Não consta, por exemplo, que a esplêndida dinâmica industrial do Japão tenha sido prejudicada pelo amplo controle estatal da economia; nem que o nosso BNDES – o maior banco de investimentos governamental do mundo – tenha sido estranho ou infenso à industrialização brasileira. Da infra-estrutura do transporte e da pesquisa aos desafios da educação básica, muitos são os domínios em que as carências da sociedade e os problemas de formação do capital simplesmente reclamam a ação do estado, inclusive para que o mercado possa crescer e funcionar. E a verdade é que as alternativas maniqueístas, apontando no estado o bem ou o mal absoluto na economia, são excessivamente simplistas. O aparelho industrial de direção bem estatizada da França é, em conjunto, bastante ágil e produtivo; mas o da Índia não é. Quer dizer, o decisivo são as modalidades do fenômeno (além do seu contexto sociopolítico e institucional), não sendo possível partir a priori para juízos positivos ou negativos, na base de uma variável única e genérica. Se é certo que uma economia que se deseje totalmente estatizada é uma receita segura de emperramento e ineficiência, a desestatização completa é, no mundo moderno, uma completa miragem – e nos países em desenvolvimento, o caminho da injustiça e da estagnação. O antiestatismo de Smith se justificava, porque seus alvos eram os Versalhes pré-desenvolvimentistas. Mas quem se atreveria a dizer que o estado econômico moderno é, na média do seu desempenho histórico, um ente versalhesco? De resto, quando se tratava de necessidades básicas de subsistência, o próprio Smith preconizava a intervenção previdenciária do estado. É uma pena que os nossos neoliberais fiquem, em matéria de perspicácia econômica e sentido humanitário, tão atrás de Adam Smith!
Quanto à “legitimação da inveja”, é preciso aprender a viver com ela. Conforme reparou Tocqueville, a emulação dos indivíduos em torno de status é, na sociedade democrática, algo inerente ao demônio do progresso. Mas é também um mal suportável, bem compensado pelas múltiplas e valiosas vantagens do progresso, especialmente no tocante ao incremento dos direitos e liberdades e à ampla extensão do número de seus beneficiários. A sociedade liberal democrática não é, nem se propõe ser, moralmente perfeita – ela é apenas institucionalmente mais humana. E a violência? Será que ela de fato é, no nosso mundo, função da presença do estado, como pretendem romanticamente Paul Johnson e os nouveux philosophes? Não estaria ligada, isso sim, à falta, ou insuficiência da legitimidade do estado? Não é este o problema crônico do antigo estado espanhol em certas regiões, ou do estado italiano perante certos grupos sociais; problema esse muitíssimo agravado pela influência – precisamente – de ideologias antiestado?
Pois o estado moderno – convém não esquecer – não é só uma superempresa, nem mesmo uma superclínica: é também, e antes de tudo, a lei do homem livre, uma instituição jurídica alicerçada num sentido coletivo de justiça e validade. Por isso é que o fundador do pensamento democrático, Rousseau, apesar de tremendamente individualista, exaltou o estado, incorrendo na abominação de anarquistas como Proudhon. O estado como ideal de justo convívio que Rousseau buscou na sua reinterpretação democrática da idéia de contrato social pode ser considerado um eco moderno da velha distinção platônica entre o poder tirânico, que é pura coerção, e o poder político, que é autoridade livremente consentida (Platão, Político, 276). O funcionamento político do estado de direito é poder político nesse nobre sentido platônico; sentido que se encontra em profunda harmonia com outra noção clássica: a de que há uma objetividade essencial na equação lei=justiça, na lei enquanto reflexo de uma ordem justa inscrita na própria natureza das coisas (Platão, Leis, 1.X, 890).
Nem se diga que esse valor ético só existe no plano do ideal. Em boa medida, ele habita a realidade das instituições. Por maior que ainda seja a distância entre seus princípios universalistas e as diferenças sociais de acesso à tripulação da máquina estatal e ao consumo de seus produtos materiais e psicológicos, somente o estado, em nossa época, parece manter o espaço normativo dentro do qual a liberdade vive da lei, e fora do qual todo arroubo libertário termina em licença predatória, pronta para o recurso à violência. Há suficiente terror nesse nosso fim de século para que se possa deixar sem resposta a leviandade dos que caluniam aquela parte do corpo social em que melhor se conseguiu subordinar a força ao direito e dar, ao direito, força. Poucos “monstros” sociais saberiam ser tão úteis ou tão virtuosos.

MERQUIOR, José Guilherme; O argumento liberal - 1985
*Publicado originalmente no Jornal do Brasil, em 18 de julho de 1981.

MUITOS ACREDITAM na bobagem segundo a qual, a partir dos anos 70/80 e, sobretudo, após 1989, o mundo se democratizou. Qual a prova que dão? Quase sempre a de que há mais eleições do que antes, na América Latina, Ásia, Europa Oriental. Como se democracia equivalesse a/ou dependesse de representantes eleitos.
Gente que faz carreira política raramente merece o respeito dos demais, e disso a maioria maduramente cínica sempre soube. Quem, além de ambição, tem talento estuda medicina, engenharia, "business" (embora essa "disciplina" se aprenda mesmo na prática), abre sua própria firma, negócio ou banco etc.; dedica-se, enfim, a atividades produtivas.
Que os políticos sejam em toda parte alvo de piadas advém de uma avaliação sóbria da realidade. A democracia recorre a essa casta apenas porque fazê-lo costuma, entre alternativas péssimas, ser a menos ruim. O Estado é inevitável? Talvez seja melhor, então, delegá-lo a medíocres que se contentem com um reflexo do poder acompanhado de gorjetinhas e títulos altissonantes. A alternativa é deixar espertalhões usarem sua posição para pilhar fortunas e/ou monopolizar o poder.
Por via das dúvidas, alternância no governo é mais importante do que eleições. Hugo Chávez foi eleito, mas o que conta é que ficará onde está até morrer (como Fidel) ou ser morto (como Saddam). Iasser Arafat, por exemplo, elegia-se quando e quantas vezes desejasse. A única forma que houve de levá-lo a soltar o osso foi confiá-lo aos cuidados estatizados da medicina francesa. Um dos pressupostos reais da democracia é que a população não só possa como também se livre periodicamente de líderes "providenciais".
O que se vê no mundo atual é um processo de "desdemocratização", de estrangulamento das oportunidades democráticas que se enraízam no começo da industrialização, ou seja, da modernização planetária. Mas que democracia é essa?
É a que importa, aquela cujo fundamento está na vida material, nas possibilidades de fartura criadas pela ciência aliada ao mercado, que é a democracia econômica. Pois, em última instância, liberdade é dinheiro no bolso. E, se não é necessário ser rico para se optar pela democracia, é, sim, necessário escolher, ou melhor, lutar por um modelo que, libertando talentos individuais, incentivando a competição (com regras: poucas, mas claras) de todos com todos, oferecendo chances de sucesso associadas aos riscos responsavelmente assumidos de fracasso, propicie a fartura num futuro antes próximo que distante.
Esse é o solo do qual a democracia pode nascer. Sempre haverá fracassados crônicos, perdedores irrecuperáveis. Mas são minoria (marxistas os chamam de "lúmpenproletariado") e jamais comprometem as liberdades dos outros. Em países saudáveis, como os Estados Unidos, eles se agrupam em "partidecos" marginais de esquerda ou direita e derrubam ocasionalmente um arranha-céu, mas não conquistarão nunca posições influentes.
Quando a grande massa é pobre, porém, seus membros se sentem tentados a vender um porvir de homens livres por um prato de lentilhas. Se vivem em países onde há eleições, vigaristas confiscarão, com sua anuência, os bens e o dinheiro alheio, abocanharão uma comissãozinha de 95% e, com o restante, comprarão direta ou indiretamente seus votos cativos.
Quem vende votos em troca de uma migalha imediata da pilhagem estatal já tem um pé na escravidão, essa, aliás, a condição normal da humanidade entre a aurora do neolítico e o surgimento do capitalismo industrial, que substituiu a força motriz dos músculos animais e dos humanos animalizados pela energia dos combustíveis fósseis.
Isso tudo foi demonstrado no século 20 pelas rebeliões contra o novo contrato social da modernidade. Que eram nazismo e comunismo se não tentativas violentas de restaurar o sistema escravocrata? Fossem só os candidatos a senhores de engenho ou capatazes que tivessem apostado naqueles movimentos, derrotá-los teria sido fácil. Sucede que escravos potenciais também sentiam falta das correntes.
A rebelião antimoderna foi derrotada tática, não estratégica e definitivamente. Os demagogos seguem convencendo invejosos e pobres (às vezes, só relativamente pobres, isto é, menos abastados que os mais afluentes) de que sua situação é culpa dos outros, dos bem-sucedidos que teriam roubado quanto, por direito, lhes pertence. Embalada num vale-refeição e traduzida como "justiça social", esta vigarice, que nunca foi de fato embora, está de volta.

ASCHER, Nelson. FSP 29/01/2007

O argumento liberal

O cerne do argumento liberal é a velha lição de Montesquieu: não basta decidir sobre a base social do poder – é igualmente importante determinar a forma de governo e garantir que o poder, mesmo legítimo em sua origem social, não se torne ilegítimo pelo eventual arbítrio do seu uso. Na raiz da posição liberal se encontra sempre uma dose inata de desconfiança ante o poder e sua inerente propensão à violência. Por isso, o primeiro princípio liberal é o constitucionalismo, isto é, o reconhecimento da constante necessidade de limitar o fenômeno do poder. O mundo liberal é uma ordem nomocrática – uma sociedade colocada sob o império da lei, onde todo poder possa ser experimentado como autoridade e não como violência.

Mas o constitucionalismo, condição necessária da ordem liberal, não chega a ser sua condição suficiente. Uma oligarquia liberal não é, hoje, um princípio de legitimidade, embora o tenha sido em tempos como a Inglaterra whig ou o Brasil da Primeira República. É que, nos nossos dias, não há legitimidade fora do ideal democrático, o que supõe a universalidade da cidadania, dos direitos políticos, e não apenas – como na república de tipo whig – a dos direitos civis. Não é só a segurança do indivíduo que se consagra; é também o seu direito de participação política (para não falar de certos direitos sociais). Até nos socialismos de estado, o ideal democrático nunca é negado, é meramente mediatizado pela preocupação – errônea e fatal – de superar as “liberdades burguesas”, supostamente falsas, por meio de um nivelamento democrático dirigido pelo partido-estado. Por conseguinte, para a vigência de uma ordem liberal moderna faz-se mister a conjunção de constitucionalismo e democratização da cidadania.

Por trás dessa universalização da cidadania, reponta uma tardia vitória de Aristóteles sobre Platão. Entre esses dois filósofos lavrou um dos dilemas políticos mais clássicos da Antiguidade: a alternativa entre o governo da sabedoria ou o governo da lei. Para Platão, os homens deviam ser governados pelos sábios; a república ideal é o reino dos filósofos. Para Aristóteles, essa nobre aspiração repousa num erro, o erro de julgar que a diferença de qualidade entre os homens possua uma extensão e constância capazes de justificar a entrega permanente do poder aos melhores dentre eles. A sabedoria, ao ver do Estagirita, não é um atributo distribuído de forma tão nítida ou tão rígida nas coletividades humanas; e porque não o é, não é razoável preferir o governo dos sábios, da casta filosófica, ao império da lei, que já prefigura a moderna preocupação liberal com a necessidade de limitar o poder. Assim Aristóteles, sem ser democrata, ao refutar o elitismo filosófico de Platão, delineou um dos principais postulados liberais de inspiração, em última análise, democrática.

Porém Aristóteles, tanto quanto Platão, ainda estava bem longe da moral basilar do liberalismo: o individualismo moderno, produto da complexa interação de processos históricos posteriores ao mundo clássico, a começar, naturalmente, pelo cristianismo e o capitalismo. E o individualismo moderno pode ser concebido como a admissão, no nível ético-político, do eclipse, ou colapso, daquele summum bonum em que a moral clássica (e clássico-cristã) via o objeto e a meta do bem viver. Pois o substrato ético da ordem liberal moderna seria a dispersão do bem comum – a tendência ao empirismo em moral, cuja encarnação mais característica viria a ser o utilitarismo.

A doutrina liberal conheceu pelo menos três fases principais. Locke e Montesquieu são, por assim dizer, mais ancestrais que fundadores, porque sua teorização precede o advento da revolução industrial e da Revolução Francesa, e o liberalismo cresceu como ideologia profundamente marcada por ambas. O que Locke e Montesquieu legaram ao pensamento liberal foi precisamente aquele postulado: o imperativo da limitação do poder. Locke o argüiu do ângulo da legitimidade, que desde então passou a repousar no consentimento individual (majority rule, minority rights); e Montesquieu perseguiu o mesmo alvo por meio da análise da mecânica dos poderes. Mas o primeiro ato da ópera liberal, após essa imprescindível ouverture, é o que se estende de Benjamin Constant (1767-1830) a Herbert Spencer (1820-1903).

De Constant a Spencer, floresce o paleoliberalismo. Seu maior mérito foi ter acrescentado à teoria da limitação do poder um conceito decisivamente ampliado de liberdade. À liberdade clássica, de participação pública no poder, somava-se o pleno reconhecimento da liberdade moderna, ou livre exercício privado de agires e fazeres conforme a inclinação de cada um. Em suma: à defesa da liberdade política, baseada na autonomia do indivíduo, cumpria aditar a proteção da liberdade civil, alicerçada na liceidade de suas ações. A inserção dessa perspectiva no tema da limitação do poder é de uma clareza cristalina. Do fato de que o poder legítimo procede de todos, argumentava Constant, não se segue que ele possa se estender a tudo. Logo, é preciso limitar o poder. A Spencer caberá (num grau inferior de sofisticação teórica) descrever a evolução política como o triunfo progressivo desse princípio. Ele viu a história da Europa avançada como a vitória da limitação do poder na esfera religiosa (liberdade de confissão) e, num segundo passo, na esfera econômica (laissez-faire).

Em compensação, esse tipo de liberalismo se mostraria singularmente cego ante a dimensão do estado. Nem Constant nem Spencer souberam ver o que viu Tocqueville: que o crescimento da liberdade civil foi acompanhado, e na realidade pressupôs, uma tremenda expansão da regulamentação da sociedade pela lei, isto é, pelo estado enquanto foco emissor de direito. O robustecimento da sociedade civil não ocorreu contra o estado, e sim sob a sua égide. De modo que, aí pela volta do século, o exorcismo do estado, refrão da política spenceriana, já era sobretudo um arcaísmo sociológico. O evolucionismo acertara em cheio ao pintar o progresso como superação do militarismo pelo industrialismo (do que Constant chamara “espírito de conquista” pelo “espírito de comércio”), porque nem mesmo a persistência do fenômeno bélico (na guerra franco-prussiana, nos conflitos balcânicos e, finalmente, na “grande guerra dos homens brancos”, a catástrofe de 1914-18) desmentia, no âmbito europeu, a obsolescência do imperialismo de cunho clássico e dos valores marciais da cultura. Mas o erro do paleoliberalismo estava em confundir essa tendência com um ilusório perecimento do estado.

Bem antes que a ideologia paleoliberal declinasse, uma outra fase da história do liberalismo começou: a fase social-liberal. O centro da nova perspectiva seria a distinção entre liberdade social e liberdade associal, devida ao inglês L. T. Hobhouse, primeiro lente de sociologia na universidade fabiana, a London School of Economics. A liberdade social, baseada na autodisciplina, é algo a ser desfrutado por todos os membros da sociedade; e consiste “na liberdade de escolher linhas de ação que não envolvem dano a outrem”. Há exatamente cem anos, o filósofo neoidealista oxoniano T. H. Green redefiniu a liberdade como algo valioso apenas na medida em que seja meio para um fim – o bem comum.

Essa restauração da idéia de bem comum tinha endereço nitidamente antiutilitarista. E seu sabor potencialmente antiindividualista não deixava de brigar com a posição daqueles que, como Constant ou, sobretudo, John Stuart Mill, se haviam preocupado com padrões de excelência moral e intelectual, sem, no entanto, abandonar a ótica individualista (tanto Constant quanto Mill tinham perfilhado a ética humanista de Wilhelm von Humboldt, o ideal de uma Bildung ao mesmo tempo moralizadora e emancipatória).

Mas o desvio decisivo em relação à prática política estava na ultrapassagem dos dogmas antiestatistas dos paleoliberais. Green sustentava que a coerção estatal não é o único obstáculo à liberdade – barreiras econômicas e sociais também o são, o que torna legítimo, para removê-las, o recurso à ação do estado. De certo modo, Mill preludiara esse social-liberalismo ao aceitar a legitimidade da intervenção previdenciária do estado (que, aliás, nunca fora recusada por clássicos como Adam Smith ou Bentham); mas Mill permanecera contrário à administração permanente do bem-estar coletivo pelo estado, e fiel à concepção minimalista deste último. Os sociais-liberais do fim do século, como Green e Hobhouse, ou os economistas alemães da Verein für Sozialpolitik, como o influente Gustav Schmoller, ficariam bem mais perto de um “liberalismo de estado”. Liberalismo de estado que, no caso desses sociais-liberais ingleses, prefigura o ânimo igualitário do credo “liberal” no sentido norte-americano dos nossos dias.

A rigor, a época social-liberal pode ser colocada entre Mill e os liberals rooseveltianos – ou melhor, entre Mill e Keynes, já que este foi seu grande economista, o diagnosticador e terapeuta das insuficiências do laissez-faire. De resto, a meia distância entre Mill e Keynes, o pensamento social-liberal se veria reforçado pela emergência de uma importante dissociação: o divórcio de liberalismo e otimismo. De Constant a Spencer, o liberalismo vivera encharcado de otimismo histórico, persuadido de que a desimpedida ação dos indivíduos levava sempre à colaboração e ao progresso harmônico do gênero humano. Não é que faltassem, propriamente, pessimistas. Ninguém menos que Mill foi um insigne arauto dos receios causados pela continuação descontrolada do crescimento econômico; e antes de Mill, Tocqueville concluíra que a conjunção da igualdade com a liberdade nada tinha de fatal. Mas geralmente o tom do liberalismo, estimulado pelo magnífico surto de prosperidade do meio do século, era bem otimista.

Dela se separariam, porém, os grandes liberais atuantes ao tempo da Grande Depressão, Lord Acton ou Benedetto Croce. Repudiando a visão rósea do liberalismo clássico, eles reconheceram que a “história da liberdade” (expressão de Acton) é inseparável do conflito. O Kulturpessimismus finissecular deixou sua marca na tradição liberal. Ora, essa nova desconfiança ante a história era basicamente propícia ao dirigismo socioeconômico. Se a mão invisível da Providência não mais assegurava por si só a harmonia entre os homens, então alguma medida de intervencionismo estatal se impunha – do contrário, a própria liberdade estaria em perigo. Esse corolário ainda não é visível num liberal gladstoniano como Acton; mas já o é em Croce, que emergirá da Segunda Guerra Mundial como adversário do liberalismo econômico.

Do predomínio da ideologia social-liberal na era keynesiana (1930-1973) resultou a entronização política daquilo que Raymond Aron chama de “síntese democrático-liberal”: o complexo de direitos civis, políticos e sociais acatados pelas democracias industriais avançadas, e que combina várias liberdades, nos dois sentidos básicos de participação e não-impedimento. Nascida de uma dialética fecunda entre o liberalismo clássico e a crítica socialista, a síntese democrático-liberal não se define por uma noção de liberdade, mas sim por um permanente diálogo social, no qual os grupos interlocutores jogam com diferentes idéias da liberdade ou das liberdades. [1] Preciosa síntese sociopolítica, ainda tranqüilamente insuperada, no mundo contemporâneo, em sua capacidade de assegurar direitos e liberdades. Quem duvida disso, e especialmente que lhe julgue superior a “construção do socialismo” nas ideocracias grotescamente intituladas “democracias populares”, deveria prestar atenção às reivindicações do Sindicato Solidariedade, e reconhecer que as conquistas dos trabalhadores poloneses na Carta de Gdansk representam liberdades corriqueiramente usufruídas no Ocidente – exceto onde regimes autoritários tenham violado os princípios liberal-democráticos.

Essa menção é bastante para refutar o que Norberto Bobbio tão bem denunciou como falácia genética na argumentação antiliberal do marxismo. Os marxistas acusam o liberalismo de não ver que sua cara liberdade não passa de um privilégio de classe, conquistado pela burguesia na época de sua rebelião contra a sociedade feudal. Porém, admitir essa sua origem de classe absolutamente não nos obriga a pensar que as liberdades “burguesas” não tenham, hoje, um valor e alcance universais. A gênese de uma instituição social é uma coisa; sua função e sentido presentes, bem outra. Por isso é que os trabalhadores poloneses lutam pelo que eram, ainda ontem, liberdades civis e políticas defendidas por burguesias à procura de emancipação.

Qual seria a terceira fase da ideologia liberal? Nesses últimos anos, a voga do antikeynesianismo e a viragem direitista na política anglo-saxônica deram novo lustre ao neoliberalismo. Seu maior profeta, o austro-inglês F. A. Hayek, propõe um verdadeiro desmantelamento do social-liberalismo, um retorno em regra ao estado mínimo e à convicção de que o progresso deriva automaticamente de uma soma não-planejada de iniciativas individuais. Quietismo governamental no plano econômico e simples legalismo no plano político-social. Pois a lei, para Hayek, se caracteriza pela sua neutra generalidade, equivalente à ausência de coerção social no sentido de uma opressão de classe. No entanto, observa Aron, muitas vezes a generalidade da lei não elimina seu aspecto eventualmente impositivo, do ponto de vista de dados grupos sociais, para os quais, em certas circunstâncias, a norma legal pode ser um poder ilegítimo. Afinal, as leis, por mais gerais que se entendam, exprimem com freqüência interesses particulares.

Uma coisa é certa: a utopia liberal-conservadora de um puro e simples reino da legalidade dificilmente atenderá aos impulsos democratizantes das sociedades industriais de modelo liberal – e satisfará menos ainda às exigências sociais dos países, como o Brasil, onde a “síntese democrático-liberal” permanece incompleta. O neoliberalismo só confia no jogo do mercado. Mas nós sabemos que o mercado, conquanto seja instrumento indubitavelmente necessário da criação de riqueza e do desenvolvimento econômico intensivo, nem por isso constitui uma condição suficiente da liberdade moderna, porque não é capaz de gerar, por si só, toda uma série de requisitos e oportunidades para o exercício mais pleno e mais significativo da individualidade de muitos. Se suprimir o mercado é ferir de morte o substrato material das liberdades modernas, deixar tudo entregue ao seu império é restringir significativamente o livre gozo dessas mesmas liberdades a minorias – e a minorias compostas de privilegiados pelo berço, e não só pelo mérito.

O neoliberalismo é, portanto, essencialmente, a reprise do paleoliberalismo; e como verificamos as deficiências deste último em matéria de visão histórica e consciência social, parece inevitável preferir, ao retrocesso neoliberal, uma retomada criadora do social-liberalismo.

Cada uma das grandes ideologias políticas contemporâneas – conservadorismo, liberalismo, socialismo – se encontra hoje afetada de não pequeno grau de desmoralização. Por isso Leszek Kolakowski foi particularmente sagaz ao extrair de cada uma delas o seu núcleo de razão e sabedoria. Em Como ser conservador, liberal e socialista, ele adverte que os conservadores estão certos ao sustentar que nem todos os males humanos têm causas sociais, sendo, pois, elimináveis por simples atos de engenharia social; que os liberais têm razão em pretender que o propósito fundamental do estado deve ser a segurança do cidadão, e que o sistema social não deve ser refratário à iniciativa individual; e que, finalmente, a recusa, pelos socialistas, do pessimismo antropológico dos conservadores, de modo a justificar a realização de reformas sociais, onde e quando necessárias, também é perfeitamente válida.

Gostaria de partir desse lúcido ecletismo de Kolakowski para concluir com uma importante distinção entre o conservadorismo e o liberalismo. Fundamentalmente, essas duas ideologias diferem porque, para o conservador, tanto a autoridade estabelecida quanto o statu quo social tendem a ser sagrados, ao passo que para o verdadeiro liberal nunca o são. Assim como o fundo da ética liberal é o utilitarismo, o fundo de sua epistemologia política é o empirismo, a disposição a submeter a autoridade e a ordem ao teste da experiência, sem sacralizá-las a priori.[2]

Mas há uma outra diferença, atinente às respectivas variedades de pessimismo. Conforme relembra Kolakowski, a visão conservadora obedece a um (até certo ponto) justificado pessimismo antropológico, que evita a ilusão de encarar a política, e as mudanças sociais por ela suscitáveis, como panacéia. A política, ou a revolução, nunca pode resolver tudo, porque o problema humano não é apenas “social” (é nesse sentido, é claro, que Freud foi um conservador). Porém, conforme vimos no início deste ensaio, na raiz da ótica liberal, existe um outro “pessimismo”: a idéia, prudente e realista, de que, quando no poder, todos os homens são, em princípio, suscetíveis de abusar dele – e daí a absoluta necessidade de controlar os governantes, limitando-lhes os poderes. Ora, esse axioma, a que James Mill deu uma formulação epigramática, ao escrever que todos os governantes deveriam, até segunda ordem, ser considerados uns patifes, não encerra, como a crença conservadora, um pessimismo propriamente quanto ao homem, e sim quanto à psicologia do poder.

Talvez por esse motivo, o liberalismo é, das nossas três grandes ideologias políticas, a única a levar profundamente a sério o ideal democrático no sentido rigoroso da palavra, de governo do povo. Os socialismos de estado se querem democráticos por serem igualitários, mas ninguém se atreveria a dizer que pratiquem a democracia como forma de governo – exatamente aquilo que a democracia, antes de tudo, significa. Por conseguinte, é puro confusionismo afirmar que a democracia pode ser “liberal” ou “popular”. Enquanto democracia liberal é realmente democracia, variando apenas no grau de seu teor democrático, a popular, na prática, não o é. O argumento liberal não precisa fugir à realidade; mas o antiliberalismo socialista só consegue se estribar num problemático ideal, promessa continuamente refeita e adiada de um paraíso da liberdade.

Resta escrever uma palavra sobre a sorte dessa democracia sans phrase que é a liberal. François Borricaud, em recente e oportuna análise, [3] distinguiu, nas duas paixões democráticas – as paixões de Rousseau: liberdade e igualdade – duas variantes históricas. A liberdade conhece uma versão liberal e uma versão libertária; a igualdade, por sua vez, uma versão meritocrática e outra igualitária, no sentido de niveladora. O que aconteceu, na história da mentalidade ocidental, foi que, por volta de 1950 ou 60, predominavam a variante liberal da liberdade e a versão meritocrática da igualdade. Mas de lá para cá, e ao sabor do gauchisme eclodido em 1968, tendem a prevalecer a versão libertária da liberdade e a variante igualitária da igualdade.

Infelizmente, se essa segunda configuração ideológica viesse a triunfar em definitivo, é possível que o resultado pusesse em risco os próprios valiosos ideais que a inspiraram: a liberdade e a igualdade. Pois o horizonte natural a que tende o liberalismo à outrance é a anarquia, e esta costuma levar a reações despóticas (as situações anárquicas acabam sempre dando razão a Hobbes); e os requisitos operacionais do igualitarismo nivelador induzem a um controle global, um centralismo, de conseqüências, ainda que não de intenções, inescapavelmente liberticidas. Tal é o maior desafio que o moderno liberalismo tem e terá de enfrentar. Do comunismo, a ordem liberal só precisa temer a força, não o poder, tão desgastado, de persuasão. E, todavia, em nossas sociedades cada vez mais permissivas e reivindicatórias, ela não está completamente a salvo da perversão interna de seu próprio ânimo: o velho, nobre espírito de liberdade e igualdade.

[1] Ver Raymond Aron, Estudos Políticos (trad. de Sergio Bath; Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1980), especialmente p. 221-51, e minha introdução (pessimamente traduzida do francês por autor desconhecido) ao mesmo volume, seção V.

[2] Sobre essa conexão liberalismo/empirismo, ver Celso Lafer, Ensaios sobre a Liberdade (S. Paulo: Perspectiva, 1980), cap. 3, seção 4.

[3] Le Bricolage Idéologique (Paris: P. U. F. , 1980).


MERQUIOR, José Guilherme; O argumento liberal.


Brasil é o maior país pentecostal

O Brasil é hoje o maior país pentecostal do mundo. Levantamento de um instituto americano indica que o país reúne 24 milhões de seguidores de igrejas como a Universal do Reino de Deus, a Assembléia de Deus e a Renascer em Cristo.
Os dados constam de relatório do World Christian Database, base de dados elaborada pelo Seminário de Teologia Gordon-Conwell, um dos quatro maiores dos EUA, sem ligação com nenhuma vertente cristã.
O levantamento é feito no mundo inteiro a partir de consultas às igrejas cristãs checadas com trabalho de pesquisa de campo, um processo caro.
Os dados de 2006 indicam que os pentecostais brasileiros superam por larga margem os 5,8 milhões de pentecostais dos EUA, onde essa vertente do protestantismo surgiu no começo do século 20 em reação à presumida falta de fervor evangélico entre os metodistas.
No Brasil, a grande maioria dos evangélicos é pentecostal. Eles acreditam nos dons do Espírito Santo, no exorcismo e em curas espirituais.
Os pentescostais brasileiros formam hoje um grupo equivalente, por exemplo, à população muçulmana do Iraque, segundo os dados do "World Factbook" da CIA, a agência norte-americana de inteligência.
Apesar do grande crescimento que experimentou nas últimas décadas, o grupo pentecostal no Brasil ainda é muito inferior à maioria católica. Especialistas ouvidos pela Folha estimam, a partir do Censo de 2000, que existam 138 milhões de católicos no país hoje. O Brasil continua sendo o maior país católico do mundo.

Uma outra pesquisa, feita pela fundação americana Pew Forum, que estuda a influência da religião na sociedade, mostra que 62% dos fiéis brasileiros não nasceram pentecostais. Foram convertidos - 45% deles a partir do catolicismo.
O estudo da Pew Forum, divulgado no final do ano passado, chama-se "Espírito e Poder - análise dos pentecostais de 10 países". A entidade foi a dez países (EUA, Brasil, Chile, Guatemala, Quênia, Nigéria, África do Sul, Índia, Filipinas e Coréia do Sul) para saber como crêem e o que defendem os pentecostais em cada um desses lugares.
A pesquisa mostra, por exemplo, que 73% dos pentecostais brasileiros acham que os líderes políticos devem ter fortes convicções religiosas e que 65% deles acreditam que grupos religiosos devem expressar suas convicções políticas. Ao todo, 83% dos pentecostais brasileiros acham que o país vive um declínio moral.
Entre a população como um todo, esses números caem, para os dois primeiro índices, a 57%. Para moral, vai a 79%.
Nos EUA, 87% dos pentecostais acham que seus líderes políticos devem comungar suas fortes convicções religiosas e 79% declararam que grupos religiosos devem ter influência política. Todos os números que têm alguma relação com uma agenda política são maiores que os dados brasileiros. Com uma exceção: o declínio moral, que é visto como grave problema por 62% dos fiéis dos EUA.

"Nos EUA, o pentecostalismo teve uma ligação muito forte com os movimentos negros. No Brasil, restou a batalha moral, porque o Estado sempre foi mais próximo dos católicos", diz Luiz Felipe Pondé, professor de teologia da PUC-SP.
Para ter idéia do peso da moral na agenda pentecostal, a bancada de pastores na Câmara dos Deputados no Brasil caiu pela metade na eleição passada. Foi para 30 deputados devido ao envolvimento de pastores parlamentares em escândalos.
A bandeira moral erguida pelos pentecostais brasileiros também está adaptada ao conjunto da população.
Entre os pentecostais dos países pesquisados pela Pew, o Brasil é o segundo que mais tolera o divórcio: 37% dizem reprovar a separação de casais contra 15% do total da sociedade em geral. Nas Filipinas, o número sobe para 84% entre os pentecostais e para 70% no geral. Em compensação, o Brasil está entre os que mais reprovam o aborto: 91% dos pentecostais contra 79% ao todo. Nos EUA, esses dados caem para 64% e 45%, respectivamente.
"O interessante da pesquisa é que mostra que a religião não é a única fonte de valores para as pessoas", afirma o sociólogo e professor titular aposentado da USP Reginaldo Prandi.
Apenas em um item abre-se um abismo entre os pentecostais e às outras pessoas: o fervor religioso. Entre os entrevistados pela Pew Forum, 86% dos pentecostais dizem que vão à igreja ao menos uma vez por semana. Na população como um todo, o dado cai para 38%. Quando o assunto é leitura da Bíblia, 51% dos pentecostais dizem ler o livro sagrado todo dia, contra 16% das demais pessoas.

LEANDRO BEGUOCI - DA REPORTAGEM LOCAL


Para estudiosos, reação católica não deu certo

No final dos anos 90, a Renovação Carismática Católica, que tem como maior expoente o padre-cantor Marcelo Rossi, era tida entre alguns setores da Igreja Católica como uma solução para a perda de fiéis para os pentecostais. A pesquisa da Pew Forum mostrou que, ao menos até agora, a estratégia não deu resultado.
Segundo a pesquisa, 34% da população brasileira se diz carismática, o que equivale a cerca de 62 milhões de pessoas. O problema é que os hábitos dessas pessoas não diferem muito dos outros cristãos - o que abre caminho para futura conversão.
Paul Freston, professor da pós-graduação em ciências sociais na UFSCAR (Universidade Federal de São Carlos) e autor de livros e artigos sobre pentecostais e carismáticos, afirma que, tal como a categoria "católico não-praticante", vem surgindo o termo "católico-carismático não-praticante".
"Muitos católicos passaram a se identificar com os carismáticos e isso deve estar ligado à ascensão dos padres cantores", afirma Freston.
A renovação carismática é o lado católico do pentecostalismo e, tal como os protestantes, também valoriza os dons concedidos pelo Espírito Santo, a oração intensa e a prece em línguas.
"É claro para nós que os carismáticos são importantes para a igreja, mas também é claro que eles valorizam primeiro a renovação pessoal e depois a evangelização de outras pessoas", disse o padre Luiz Alves de Lima, professor do Centro Universitário Salesiano e assessor para a catequese da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).
"Um dos fatores que podem explicar o fato de tantas pessoas se dizerem carismáticas é a catequese. Percebemos que muitos catequistas hoje são carismáticos, e acabam influenciando crianças e jovens", afirma o padre Alvez de Lima.

LEANDRO BEGUOCI - DA REPORTAGEM LOCAL


Estevam e Sonia Hernandes terão hoje primeira audiência nos EUA

Estevam e Sonia Hernandes, fundadores e líderes da Igreja Apostólica Renascer em Cristo, devem comparecer hoje ao tribunal federal da Flórida para a primeira audiência do processo a que respondem pelas acusações de contrabando de dinheiro e depoimento falso à polícia.
Prevista para quarta-feira passada, a sessão inicial foi suspensa a pedido da procuradoria, que não havia conseguido o indiciamento do casal no júri popular. Nos EUA, um grupo de 25 jurados decide se o acusado é passível ou não de responder a uma ação criminal. No Brasil, o procedimento seria equivalente ao juiz aceitar ou não denúncia do Ministério Público.
A audiência de hoje deve ser apenas protocolar. O juiz encarregado dos processos do período (na semana passada era Patrick A. White) deve definir o calendário processual e informar os réus do indiciamento.
O casal foi preso no último dia 9 com US$ 56.467 mil supostamente não declarados à alfândega. Ficaram cerca de duas semanas detidos.
Sob liberdade condicional e vigiada, o casal não apareceu no tribunal semana passada. Eles usam um chip no tornozelo e são monitorados eletronicamente por agentes federais americanos. O casal está em sua mansão avaliada em US$ 1 milhão em Boca Ratón, Miami.

VINÍCIUS QUEIROZ GALVÃO - ENVIADO ESPECIAL A MIAMI

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2901200708.htm


Saturday, January 27, 2007

[...] É preciso lembrar que rir, chorar, sorrir, não são atos aprendidos ao longo da educação, são inatos, mas modulados de acordo com a educação. Heigerfeld fez uma observação sobre uma jovem surda-muda de nascença que ria, chorava e sorria. Atualmente, estudos demonstram que o feto começa a sorrir no ventre da mãe. Talvez porque não saiba o que o espera depois...
Mas isso nos permite entender a nossa realidade, nossa diversidade e singularidade.

MORIN, Edgar. Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro.

Friday, January 26, 2007


Da democracia entre os antigos e os modernos
*

*Publicado originalmente no jornal O Estado de São Paulo, em 25 de janeiro de 1981

A célebre conferência de Benjamin Constant, “Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos” (1819), guia até hoje nosso entendimento da diferença entre a liberdade clássica – a liberdade pública e política, do cidadão – e a moderna liberdade, individual e privada, do homem. Enquanto os antigos concebiam a liberdade como virtude política, orientada para a participação igualitária no poder, os modernos viriam a compreendê-la como faculdade “burguesa”, identificada com o livre gozo de uma esfera privada de comportamento. Acaso é possível traçar uma distinção semelhante com respeito à idéia de democracia?
Democracia, para os gregos, era o governo de muitos. Assim a definiram tanto Heródoto quanto Aristóteles – tanto a história quanto a filosofia. O critério central a reter é este: o princípio de igualdade política, o elemento propriamente político da cidadania de base igualitária (igualitária, bem entendido, ao nível dos homens livres, que, no entanto, representavam a maioria da população na Atenas clássica). Fora desse exercício da liberdade política (da liberdade antiga descrita por Constant) não havia, para o espírito helênico, regime democrático. Democracia queria dizer necessariamente governo pelo povo, não simplesmente para o povo, ou em seu nome. Os vários tiranos que as cidades gregas conheceram lideraram regimes com freqüência populares e até populistas – mas nem por isso nenhum espírito grego jamais os considerou governantes democráticos. Seria preciso esperar por certos “democratas” do século XX, como o inglês E. H. Carr ou o canadense C. B. Macpherson, para que o conceito de democracia viesse a ser empregado como sinônimo de “governo para o povo”. Aos olhos do filho da pólis, isso não passaria de uma aberração.
Governo pelo povo significava, por sua vez, deliberação na ecclesia ou assembléia, em condições de livre expressão (parrhesia) como direito igualitariamente distribuído (isegoria). O mundo antigo conhecia assembléias na Mesopotâmia, no reino hitita e na Fenícia, porém o governo pela assembléia se desenvolveu como uma especialidade greco-romana (e romana, só no âmbito do senado). A democracia direta de Atenas se caracterizava pela concentração na assembléia do demos de todas as decisões e nomeações importantes, sem que o estado ateniense possuísse um executivo à parte digno desse nome, e sem legislativo, judiciário, burocracia ou força armada profissionais.
Por outro lado, para a mente pós-clássica, a agenda da assembléia democrática tinha um caráter curiosamente “abstrato”. Nas assembléias dos reinos medievais, o imposto era de longe o tema principal das deliberações – e seria exatamente o que, já no início dos tempos modernos, ensejaria a redefinição em sentido virtualmente democrático da idéia de representação política (“no taxation without representation”). Mas nas assembléias da Antigüidade clássica, fiscalidade e representação não desempenhavam nenhum papel ostensivo.
Naturalmente, a vida política das cidades-estado não transcorria num vácuo econômico. Ao contrário: atribui-se às guerras do império talássico de Atenas, fortemente condicionadas por rivalidades comerciais, a própria consolidação do regime democrático, no século V a.C. Segundo o maior historiador econômico da Grécia clássica, M. I. Finley, a conservação do império ateniense exigiu a montagem de uma frota operada por plebeus, que “cobraram” o preço dessa colaboração em termos de maior participação política. Até porque, sem dispor de uma classe empresarial importante, o império se caracterizava menos pela exploração “capitalista” das colônias do que pela amplitude de sua política distributivista, que punha trigo e terra ao alcance da bolsa popular.
Acima de tudo, a cidade-estado era um espaço social bem modesto. Atenas era uma metrópole, mas certamente nada tinha de megalópole: seu território não ultrapassava o atual grão-ducado do Luxemburgo. Nessa área citadina liliputiana, nota Finley, a ágora parecia um campus universitário, sem nada em comum com o enorme âmbito político dos estados modernos. A democracia direta era um rito de “grupo primário”, como dizem os sociólogos: de grupos face a face, à semelhança dos habitantes de um bairro ou de uma aldeia, onde todos se conhecem e partilham dos mesmos costumes. E mesmo assim, só em Atenas, capital de um império subtraída, durante quase dois séculos, às guerras civis de fundo social que foram o flagelo crônico das antigas sociedades mediterrâneas, ela prosperou.
A conclusão é evidente. A única verdadeira democracia antiga, a ateniense, foi uma instituição peculiaríssima. De modo genérico, o universo da sociedade tradicional, durante milênios a única formação social humana, não praticou o governo do povo. Certas minúsculas sociedades tradicionais, como as tribos ainda na era paleolítica, desconhecem a centralização do poder. Outras, como várias sociedades rurais africanas, onde a terra é abundante em relação à baixa produtividade da técnica agrícola, e as relações entre os homens não são determinadas pelo controle do solo, conhecem o governo central, mas não uma estrutura de classes. Poderíamos chamar essas sociedades sem estado ou sem classes de hipocráticas, não, é claro, porque tenham algo a ver com o patrono da medicina, mas simplesmente porque elas apresentam uma taxa bem menor de expressão política do poder social do que as senhorias, reinos e repúblicas antigos, medievais ou modernos. Todavia, nenhuma dessas sociedades sem estado ou sem classes desenvolveu os postulados igualitários individualistas da democracia grega. A “hipocracia” não é a democracia; nem a tribo nem o clã são demos.
O primeiro traço das democracias modernas é a majestosa presença do Estado. Executivo, Parlamento e Judiciário, burocracia, polícia e forças armadas são tão indispensáveis ao regime democrático dos nossos dias quanto o sufrágio universal, os direitos humanos, os partidos políticos e a livre imprensa. Por isso, alguns observadores, animados de anseios libertários, acham que o peso desse arcabouço institucional equivale a uma quase completa negação do princípio democrático, no sentido grego de igualdade política ativa. A desmedida concentração de poder no estado moderno lhes parece a antítese do governo pelo povo. O idioma democrático, verdadeiro “esperanto moral do sistema dos estados nacionais” (J. Dunn), não passaria de oca retórica, encobrindo uma realidade essencialmente não democrática. Seja como for, não há dúvida de que a democracia, no estilo ateniense, é algo que prima pela ausência em nosso tipo de sociedade. John Stuart Mill confiava em que a imprensa e as comunicações modernas criassem uma ágora em ampla escala, um foro nacional de participação popular decisória. Mas na época das múltiplas burocracias tentaculares e da economia planificada a miragem do grande liberal faz sorrir. O Leviatã democrático pede nosso voto, mas não nos dá nem um pouco a sensação de ser governado por nós, membros de um “público fantasma”.
Convém, portanto, reconhecer a falência, entre nós modernos, do princípio democrático em sentido literal, alicerçado na liberdade clássica, na liberdade como participação livre e igualitária na conduta do estado. Porém se nos voltarmos para o outro conceito – o moderno – de liberdade, para a atuação desimpedida dos indivíduos, em áreas de sua livre escolha, ao gosto de cada um – aí o quadro se torna bem menos desalentador. Pois as liberdades individuais e privadas somente se multiplicaram e se estenderam com a expansão da divisão de trabalho e da mobilidade social – dois fenômenos nitidamente modernos, posteriores ao ocaso da sociedade tradicional, com sua economia subdesenvolvida e suas rígidas hierarquias. Ora, a precondição geral desse novo dinamismo na economia e dessa maior plasticidade na estrutura social – a progressiva libertação das massas da penúria e da opressão – ocorreu, nos sistemas políticos liberais ou semiliberais, quase sempre graças a movimentos político-sociais de inspiração democrática, isto é, aspirantes ao ampliamento da base social da liberdade de participação política, pelo menos ao nível do voto e da representação político-partidária. Tais movimentos, primeiro predominantemente burgueses e em seguida obreiros, constituíram a força motriz na transformação das oligarquias liberais em repúblicas liberal-democráticas. Se a política do desenvolvimento e da previdência social obviamente não repousa no governo pelo povo, pelo menos é inegável que, historicamente falando, ela se singulariza como governo do povo. Em conseqüência, o debate, aguçado pela recessão, sobre a prioridade desses pólos: desenvolvimento e bem-estar, já se situa em grande parte no interior dessa orientação democrática. A prova é que, no cotejo com as sociedades hierárquico-tradicionais, ou já modernas mas oligárquicas, esse debate aparece logo como uma simples divergência metodológica, nunca como autêntica discrepância quanto aos fins da ordem social. Nesse sentido, a retórica democrática não é apenas um pálido esperanto – é a língua viva das sociedades em que a desigualdade persiste, mas há muito deixou de ser legitimável.
É importante notar que todo esse ânimo igualitário visa profundamente à liberdade e não à igualdade. Em outras palavras, o igualamento é meio – o fim é a libertação. Salário, casa, escola são conquistas ou aspirações de massas essencialmente hedonístico-individualistas, e não espartanas, ascéticas e coletivistas. Sem dúvida, seu hedonismo pode ser e é manipulado; seu individualismo ainda é geralmente grosseiro e incipiente – mas como seria errôneo negá-los! Isso se verifica de forma mais que convincente no próprio modo do homem comum sofrer o mecanismo social a que pertence. Com efeito, a sociedade moderna, prometendo a igualdade, tem por esteio um aparelho produtivo regido por toda uma série de hierarquias técnicas; e o mesmo sistema social, acenando a cada um com a livre expressão da sua personalidade, requer, no entanto, antes de mais nada para o bom funcionamento daquele aparelho produtivo, graus de homogeneidade cultural muito maiores que os de outrora. Raymond Aron rebatizou esses paradoxos: o primeiro seria a dialética da igualdade e da hierarquia; o segundo, a dialética da personalidade e da socialização. Mas o certo é que, em ambos os casos, o que aflige o homem moderno é o choque entre suas aspirações libertárias e o peso da máquina social. O individualista que há nele desejaria escapar aos ditames da racionalidade técnico-econômica, dar livre curso à expressão, virtualmente herética e heterônoma, de sua personalidade; mas sempre se trata de uma busca de diferenciação – nunca, de um anelo igualitário de identidade. Não é de admirar que os clássicos entre os moralistas modernos hajam sido tremendos individualistas: Bentham e Kierkegaard, Nietzsche e Tolstói, todos, a rigor, paladinos do anarquismo ético.
O próprio gesto inaugural da moderna filosofia democrática, a teoria do contrato social de Rousseau, denota essa motivação superindividualista. Rousseau põe toda a sua eloqüência a serviço de um neoclassicismo nostálgico, uma nobre saudade da liberdade cívica da república antiga; e como sabemos, não tem senão desprezo pela ansiedade hedonista do homem moderno. No entanto, toda a sua construção de uma perfeita legitimidade democrática deriva do desejo de encontrar na civilização o melhor substitutivo possível para o individualíssimo homem natural. A meta do igualitarismo político do contrato social é um libertarismo radical, precursor direto do cristianismo anárquico de Tolstói.
Ao criticar a filosofia política de Hegel, Marx chamou a democracia de “mistério resolvido de todas as constituições”. Na democracia, explicava ele, a ordem política aparece aos homens como puro produto de sua vontade, sem nenhum véu mítico e sem nenhuma sacralização do poder. Algo dessa sensação de transparência libertadora motivou a luta por direitos políticos de camadas sociais discriminadas, cuja “procura da felicidade” estava fortemente condicionada à remoção de obstáculos político-culturais defendidos pela autoridade do privilégio. No seu devido tempo, até mesmo em contextos iliberais, essa autoridade se esgarçou tanto, que só restou à reação o recurso consciente à força bruta. “Gegen Demokraten, nur die Soldaten”, na frase imortal de um “junker” empedernido, adversário de Bismarck - “contra os democratas, somente os soldados”.
Assim, se é certo que nossas modernas repúblicas liberais não são democráticas no sentido estrito da palavra, não é menos verdade que sua história foi e ainda é animada por movimentos democráticos cuja realidade ou eficácia não se pode negar. Tampouco fica em dúvida o caráter liberal dessas nossas quase-democracias. Se a democracia liberal como produto histórico é, no claro conceito de John Plamenatz (Democracia e Ilusão, 1973), um complexo conjunto de direitos, obrigações e oportunidades, profundamente ligado à laboriosa sociedade industrial instruída, afeita a uma grande variedade de ocupações e estilos de vida, então a essência da democracia contemporânea consiste na combinação, nem sempre harmônica, do ideal clássico da liberdade cidadã com o princípio moderno da liberdade individual, plástica e multiforme, que engloba a primeira e lhe confere, em nossa época, sua plena significação humana.
Resumindo: a democracia moderna é bem pouco democrática se a medirmos pelo metro literal da liberdade antiga; mas é bem mais democrática, mesmo no sentido grego, se julgada pelo padrão da liberdade moderna. Contra ela, nenhum elitismo consegue justificação. Nem mesmo a meritocracia, única elite compatível, em seu princípio, com a mobilidade social, porque a natureza compartimentada da economia e da técnica modernas exclui a emergência de meritocratas generalistas, que pudessem reivindicar racionalmente a totalidade das posições de cúpula. A autoridade profissional não saberia justificar sua apropriação da autoridade política. E nas demais elites, o próprio mérito é discutível. Quando, por exemplo, certo radicalismo humanista, sem se dar conta de quanto imita com isso velhos preconceitos conservadores, erige a elite intelectual em vanguarda da sociedade, com a egrégia incumbência de salvar as massas da sua alienação, a precariedade dos seus títulos vem imediatamente à tona. Swift dizia que se quisermos fazer uma idéia do conceito em que Deus tem a opulência, basta ver a quem ele habitualmente a concede. Pois bem: se quisermos fazer uma idéia do conceito em que os deuses têm o status intelectual e acadêmico, basta ver a quem eles freqüentemente o conferem, no reino das chamadas humanidades. Qualquer tolo e muitos irresponsáveis podem ir bem longe nessa rota hierárquica. Mas ninguém persuadirá um espírito crítico de que a direção da sociedade lhes caiba por direito superior à escolha falível da gente comum.
Porque a liberdade moderna é compósita e dinâmica, feita de direitos, obrigações e oportunidades em constante mudança, no seu conteúdo senão em sua forma, a democratização do liberalismo permanece em pauta. Dramaticamente, onde a sociedade consagra objetivamente situações globais de privilégio; mais topicamente, em repúblicas menos desiguais, o projeto democrático estipula a única face legítima do liberalismo contemporâneo: a posição social-liberal, cujo cerne é o desiderato da igualdade de oportunidades. Não era em nome de outra coisa que Bentham, o pai do utilitarismo individualista, preconizava a ação do estado para a erradicação da indigência.
É que, abaixo de certo nível de satisfação básica, o exercício concreto da liberdade se torna demasiado insubstancial. Acima, porém, desse nível, conforme definido pela consciência histórica das necessidades humanas, toda tentativa de administração da procura e do consumo ganha coloração antilibertária. Pensando nos ressentimentos da pequena burguesia “déclassée”, Engels fustigou o “socialismo dos imbecis”. Aqueles que insistem em jogar suas preocupações igualitárias contra a ordem liberal-democrática pertencem a uma categoria menos caricata, mas certamente nem um pouco menos patética: o socialismo dos cegos, incapaz de enxergar na democracia o resultado, incompleto mas bem concreto, da longa e acidentada história da liberdade.

MERQUIOR, José Guilherme; As Idéias e as Formas. http://jgmerquior.motime.com


Saturday, January 20, 2007


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Morreu o inventor do bolo instantâneo! Dr. Oetker! Com 90 anos.
Na semana passada morreu o inventor do Miojo. Com 96 anos! Os instantâneos estão morrendo de velhice! Tenho que inventar alguma coisa instantânea. Vou inventar o acarajé instantâneo!

José Simão, FSP 18 de janeiro 2007

BERLIM - Morreu hoje aos 90 anos em Hamburgo o "Dr. Oetker": o empresário Rudolf August Oetker faleceu numa clínica no norte da Alemanha. O anúncio foi feito pelo porta-voz da empresa Dr. Oetker, com sede em Bielefeld, no norte do país.

16 de janeiro de 2007 http://www.oetker.fi/

Tuesday, January 16, 2007

Monday, January 15, 2007

No fim de semana passado, São Paulo estava deserta.
Nos faróis, até a turma habitual de pedintes, saltimbancos e vendedores ambulantes era reduzida ao mínimo.
Na sexta à noite, mostrando a cidade a um turista europeu (meu conhecido), parei na esquina da Estados Unidos com a Nove de Julho. Uma moça, muito bonita e habilidosa, fez seus malabarismos só para nós. Dei-lhe alguns reais (merecidos) e lhe desejei feliz Ano Novo.
Meu hóspede fez um comentário que queria ser engraçado: "Poderíamos convidá-la para casa...".
Covardemente, reagi no estilo esperado (o do clube do Bolinha). Resmunguei "pois é...", num tom entre incerto e maroto.
Mais tarde, fui assistir a "Em Direção ao Sul", de Laurent Cantet, que estreava naquele dia. O filme (excelente) é inspirado em uma série de contos do haitiano Dany Laferrière ("Vers le Sud"). O pano de fundo é o Haiti dos anos 70: miséria e poder ilimitado da gangue de papa Doc.
Três mulheres brancas e maduras do hemisfério norte (duas americanas e uma canadense) passam suas férias num hotel na beira da praia; elas procuram o sol e, sobretudo, os garotos negros, que namoram e transam com elas e que elas pagam em dinheiro e presentes.
Numa cena do filme, as mulheres se perguntam por que não gostam tanto dos negros de seus países de origem. A pergunta vale para o turismo sexual em geral: por que ir tão longe? Afinal, nas cidades do primeiro mundo, há uma ampla escolha de amores à venda. A troca é mais barata no Haiti, no Brasil ou nas Filipinas, mas (considerando o custo da viagem) o argumento financeiro não se sustenta sozinho.
Os "tristes trópicos" de quem vive no terceiro mundo são a condição necessária para que existam os trópicos alegres do turista sexual. Mas a razão disso não é só econômica.
Explico. Na vida erótica, funciona uma espécie de proporção: para desejar sexualmente, é como se precisássemos, ao menos por um momento, despojar o outro de sua dignidade subjetiva, considerá-lo apenas como corpo. É por isso que, para alguns, é impossível desejar e amar o mesmo outro. É por isso que a maioria, na hora do sexo, não sussurra palavras de carinho, mas solta "injúrias" que rebaixam a parceira ou o parceiro, ou seja, que o transformam em carne entregue ao desejo. Nada de "meu anjo". Na cama, é "puta" e "cafajeste".
Nos lugares preferidos pelo turismo sexual, essa configuração banal da vida amorosa está, por assim dizer, realizada de antemão: o turista encontra sujeitos que já são reduzidos a seu corpo. Se não bastasse o passado colonial ou escravagista, a desigualdade brutal prepara os corpos tropicais para o festim do turista sexual. Laferrière, num outro livro ("La Chair du Maître", a carne do dono), escreve: "É simples: um pequeno grupo de pessoas possui, neste país, todo o dinheiro disponível.
Como se sabe, com o dinheiro dá para comprar tudo: os seres e as coisas". E os seres, nesse caso, podem se tornar objetos eróticos sem empecilhos: destituídos de cidadania, eles são, se não coisas, carne.
Por exemplo, Legba, o jovem negro que, no filme, é objeto de desejo das senhoras, pode ser uma espécie de felino que elas querem acariciar e mimar porque já foi transformado em bicho pela miséria social e política de seu país.
Com os negros do Norte, não é tão fácil. Certo, eles são descendentes de escravos e ainda assombram os sonhos sexuais das elites brancas do Norte, mas a diminuição da desigualdade e a conquista de direitos políticos efetivos os tornaram cidadãos. Para lidar com seus corpos, é necessário lidar também com suas pessoas.
Saindo do cinema, pensei no comentário de meu conhecido sobre a jovem malabarista de farol. Tanto faz que ele fosse europeu: o Brasil tem dois mundos suficientemente separados para que seja possível praticar turismo sexual sem sair do país. Pela força do passado e pela distribuição de riqueza que o preserva, somos divididos em gente e bichos, sujeitos e vira-latas que talvez seja possível levar para casa, oferecendo um biscoito.
Algo resiste ao fim de uma desigualdade que priva os desfavorecidos de cidadania e os reduz a seu corpo. E não são apenas dificuldades administrativas e econômicas. A desigualdade é também uma fonte, talvez envergonhada, de prazer erótico; ela alimenta, nas elites, a fantasia (apenas e mal reprimida) de estar, o tempo todo, num harém de corpos escravos.

CALLIGARIS, Contardo. Folha de São Paulo; 04 de janeiro 2007

Saturday, January 13, 2007

Joey: Ok Ross, you're gettin a divorce... you're angry, you're hurtin... can I tell you what the answer is?... STRIP JOINTS! Come on! You're single! Have some hormones!

Ross: But I don't want to be single... I just want to be married again.
[Rachel walks in wearing wedding dress]

Chandler: And I just want a million dollars!

Fala leitor
Angenor de Oliveira não tem dúvidas: “Um buraco desse tamanho na segunda semana de José Serra no governo e ao lado da Editora Abril no dia do fechamento da Veja, francamente, só pode ser coisa do PT.”

Cá pra nós, faz sentido!

Um desastre lava o outro
Do jeito que os governadores do Sudeste estão se dando bem, a lama química de MG que chegou ao RJ pode ser desviada para cratera em SP.

Próxima parada
Bush aguarda confirmação de descoberta de vida em Marte para enviar tropas para lá.

É pra dizer que sim?
Diante da questão colocada por Hugo Chávez – “Socialismo ou Morte!” – o pessoal de esquerda está pedindo tempo para pensar.

Gritaria inútil
O que tem de gente que nunca assistiu ao programa de Daniella Cicarelli na MTV aderindo ao boicote ao programa de Daniella Cicarelli na MTV dá bem uma idéia das conseqüências da briga da apresentadora com o You Tube.

Big entradas
É impressionante como, a cada edição do “Big Brother Brasil”, são maiores as entradas de Pedro Bial. Boninho calcula que o apresentador estará irremediavelmente careca no BBB 10.

Tamanho não é documento
Esse tal de “plano de aceleração do crescimento” do governo, francamente, parece aqueles spans tipo “aumente seu pênis” ou “melhore seu vigor sexual”.

Ô, raça!
Sem You Tube, brasileiro fica sem ter o que fazer no trabalho. Tem gente já pensando em pedir demissão.

Faz sentido
Cheiro que deixou Nova York sob alerta pode ser de alguma coisa nova que o Gerald Thomas está fumando. Antigamente era aquele Gauloise, hoje não sei mais.

Fede, não Fed
Antes que o mercado fique nervoso, é bom deixar claro que o mau cheiro que tomou as ruas de Nova York não tem nada a ver com a reunião do Fed.

Carinho

Daniella Cicarelli pode trocar MTV por NoMínimo: site só não tem dinheiro para lhe dar, mas não é disso que ela está precisando no momento. Francamente, estão batendo demais na menina! Nem na época do casamento com Ronaldinho ela apanhou tanto.

Tecnologia de ponta
A Apple está de olho no mercado brasileiro. Vem aí o iPhode. Não me perguntem pra que serve.

Santa ignorância
Oremos: queira Deus a prisão de pastores da Igreja Renascer em Miami não irrite o Islã.

Se todos fossem iguais a você
Nessas horas a gente entende porque as mulheres adoram o Chico Buarque. O ex-marido da Marieta se ofereceu para compor a música que Caetano Veloso nega ter feito para Luana Piovani. A pobrezinha ficou arrasada.

Especialista
O futebol carioca está em festa! Júnior Baiano vai disputar o Estadual pelo América. Promessa de belos gols contra.

Parceria
O carioca está mais tranqüilo: Lula prometeu a Sérgio Cabral mandar o Sol para o Rio de Janeiro.

Vida que segue
Um dia depois de sentir algo estranho no ar, a população de Manhattan voltou a cheirar o mesmo de sempre. Não é pouca coisa!

Fenômeno da natureza
Chávez faz mais estragos na Venezuela do que chuvas no Brasil. A bolsa de valores de lá está caindo mais que barreira em Friburgo (RJ). Essas coisas a oposição não vê. Ô, raça!

Deixa o homem descansar
Lula deu uma ordem ao pessoal que o acompanha nas férias no Guarujá: “Se o Sérgio Cabral ligar diga que não estou.” Todo dia o governador telefona pra pedir alguma coisa, caramba!

Confirmado
Ainda que não chegue em peso para o Carnaval, a Força Nacional de Segurança deve abrir o Desfile das Campeãs no sábado, 24 de fevereiro.

VASQUES, Tutty. NoMínimo. ig.com.br

Thursday, January 11, 2007

NELSON ASCHER

Consideraçõezinhas extemporâneas

OS JUDEUS húngaros (cerca de 8% da população do país até 1944, quando a maioria morreu de complicações respiratórias oficialmente investigadas, ano passado, em Teerã) eram, sobretudo, profissionais liberais, comerciantes e empresários, ou seja, como se dizia (e, em Brasília, se diz cada vez mais), parasitas que exploravam o povo. Quem quiser saber causas e detalhes pode ou consultar os livros de Randolph Braham, o "Eichmann em Jerusalém", de Hannah Arendt, assistir, caso tenha preguiça de ler, ao "Sunshine" (1999), de István Szabó, ou, o que é mais provável e comum, deliciar-se com versões on-line dos "Protocolos dos Sábios de Sião".
Meu avô paterno, só para dar um exemplo, torneiro mecânico de ofício e sargento no Exército dos Habsburgo durante a Primeira Guerra, abrira sua fábrica de latas em Békés, à beira do Körös, no sul do país. Após falir devido à Crise de 1929, mudou-se para Budapeste, onde montou uma fábrica maior, que foi confiscada pelo governo servil aos alemães e, não muito depois, pelo regime vassalo dos russos. O tema da coluna, todavia, não é minha família, mas dois irmãos húngaros, judeus abastados, que vieram parar no Brasil.
Ambos, meio como Indiana Jones rolando no último momento possível sob a porta prestes a se fechar da caverna, fugiram da Hungria, adolescentes, no início dos anos 40. Seus pais já estavam nos EUA preparando a chegada dos filhos que, em vez de, seguindo rumo ao Ocidente, embarcarem num transatlântico, optaram pela longa e difícil rota oriental e alcançaram, via Romênia, primeiro a Bulgária.
Aguardando ali a permissão para atravessar a URSS no Transiberiano, instalaram-se no hotel de Sófia no qual se hospedava então o alto-comando alemão que preparava a invasão da Iugoslávia. Religiosos que usavam solidéu, os dois sentiam-se constrangidos entre generais da Wehrmacht, até que um dia, no elevador, estes os convidaram para participar de seu campeonato de xadrez. Observando-lhes que, por pertencerem a uma raça inferior, sua presença talvez incomodasse os demais guerreiros teutônicos, ouviram a seguinte resposta: "Bobagem, isso é apenas obsessão do demente de Berlim".
Ignoro o resultado do torneio. A campanha iugoslava foi rápida, eficiente e cruel. Quanto aos dois irmãos, eles prosseguiram sua corrida contra a geografia, a geopolítica e o relógio da história, tomando enfim o trem nas vésperas da operação Barbarossa, momento a partir do qual cruzar a fronteira soviética passara a requerer uma escolta de Panzers. Aos EUA, os jovens chegaram no derradeiro navio de linha que zarpou do Japão antes do bombardeio de Pearl Harbour, incidente menor cujo significado os ianques, como sempre, exageraram e deturparam, usando-o não com o intuito de fortalecer o direito e as instituições internacionais (recorrendo, digamos, ao predecessor de Kofi Annan), mas para lançar uma expedição punitiva ilegal contra japoneses indefesos e agredir a Alemanha inocente.
O grosso dos judeus húngaros desapareceu em decorrência da tal insuficiência pulmonar ou foi abatido nas "marchas forçadas", pois os alemães, conforme eram, milímetro a milímetro, empurrados para casa pelo Exército Vermelho (com o apoio vital dos anglo-americanos, que os combatiam em outras frentes e lhes erodiam a resistência de aço, bombardeando centros industriais, administrativos e de comunicação, como Dresden), não pretendiam deixar para trás nenhum judeu vivo.
Era o inverno de 1944/45.
No entretempo, Hadj Amin al Husseini, "grão Mufti" de Jerusalém, inspirador supremo de Iasser Arafat e amigo pessoal do "demente de Berlim", o pai-fundador da "causa palestina", passava a guerra, refugiado no Terceiro Reich, trabalhando em prol do Segundo Califado, organizando uma divisão muçulmana da SS (a "Hândjar", que quer dizer "alfanje") recrutada na Bósnia e fazendo transmissões radiofônicas que, dirigidas às nações árabes, promoviam junto aos ouvintes do Oriente Médio as novas modas berlinenses. Bom, o "grão Mufti" pensava no futuro.
Com sua pele logo salva pelo Quai d'Orsay (o Ministério das Relações Exteriores da França que, malgrado todo o empenho, não conseguiu fazer o mesmo por seu cliente iraquiano recém-enforcado), ele se preparou para continuar em outro lugar, embora não por outros meios, a causa e a luta de seus patrões e protetores. Nada disso, porém, como pessoas bem-informadas e de boa vontade sabem, tem qualquer relação conosco nem com o mundo ou os dias atuais.

JOSÉ SIMÃO


BUEMBA! BUEMBA! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! Direto do País da Piada Pronta! Olha esta notícia: "Brasileiras são presas com drogas no Peru". Rarará!
[...] E a Cicarelli? A Bocarelli quer retirar o Youtube do ar. Mas não conseguiu: entrou pelo YouTube. Ou pelo chargista Miguel: entrou pelo tube!
Tudo por causa do vídeo da rapidinha que ela deu em Ibiza! Foi entubada na Espanha e quer tirar o YouTube do Brasil?
Mas todo mundo já viu esse vídeo!
Prefiro o vídeo do enforcamento do Saddam! Rarará!
E se a gente jogar o vídeo da Cicarelli no iPod vira iFode! Rarará! YouTube no Orkut dos outros é refresco! E diz que foi o namorado que entrou na Justiça! Mas é a prova de que ele transou com a Cicarelli.
Nenhum amigo vai dizer que é mentira! Ele que se deu bem: não teve nem o trabalho de sair contando pros amigos. O YouTube contou por ele! Rarará.
[...] Já imaginou transar com a Cicarelli e não contar pra ninguém?
E as internautas querem boicote.
A Bocarelli é garota propaganda da Hope? "Então isso quer dizer que hoje à noite eu saio sem calcinha." E aparece no YouTube. Rarará!

CONTARDO CALLIGARIS

Os sonhos dos adolescentes

NA FOLHA de domingo passado, uma reportagem de Antônio Gois e Luciana Constantino trouxe os dados de uma pesquisa do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais: em 2005, 16% dos adolescentes entre 15 e 17 anos de idade não freqüentaram a escola. Trata-se de 1,7 milhão de jovens. Alguns desistiram por falta de meios, de vaga ou de transporte escolar, outros adoeceram, mas, em sua maioria (40,4%), eles abandonaram os estudos por falta de interesse. Como disse uma entrevistada, "os professores eram muito chatos".
Os comentadores, na própria reportagem, acusam a pouca qualificação ou motivação de muitos professores e um sistema de avaliação que produz repetências. Concordo, mas talvez haja mais.
Ao longo de 30 anos de clínica, encontrei várias gerações de adolescentes (a maioria, mas não todos, de classe média) e, se tivesse que comparar os jovens de hoje com os de dez ou 20 anos atrás, resumiria assim: eles sonham pequeno.
É curioso, pois, pelo exemplo de pais, parentes e vizinhos, os jovens de hoje sabem que sua origem não fecha seu destino: sua vida não tem que acontecer necessariamente no lugar onde nasceram, sua profissão não tem que ser a continuação da de seus pais. Pelo acesso a uma proliferação extraordinária de ficções e informações, eles conhecem uma pluralidade inédita de vidas possíveis.
Apesar disso, em regra, os adolescentes e os pré-adolescentes de hoje têm devaneios sobre seu futuro muito parecidos com a vida da gente: eles sonham com um dia-a-dia que, para nós, adultos, não é sonho algum, mas o resultado (mais ou menos resignado) de compromissos e frustrações.
Um exemplo. Todos os jovens sabem que Greenpeace é uma ONG que pratica ações duras e aventurosas em defesa do meio ambiente. Alguns acham muito legal assistir, no noticiário, à intrépida abordagem de um baleeiro por um barco inflável de ativistas. Mas, entre eles, não encontro ninguém (nem de 12 ou 13 anos) que sonhe em ser militante do Greenpeace. Os mais entusiastas se propõem a estudar oceanografia ou veterinária, mas é para ser professor, funcionário ou profissional liberal. Eles são "razoáveis": seu sonho é um ajuste entre suas aspirações heróico-ecológicas e as "necessidades" concretas (segurança do emprego, plano de saúde e aposentadoria).
Alguém dirá: melhor lidar com adolescentes tranqüilos do que com rebeldes sem causa, não é? Pode ser, mas, seja qual for a qualidade dos professores, a escola desperta interesse quando carrega consigo uma promessa de futuro: estudem para ter uma vida mais próxima de seus sonhos.
Aparte: por isso, aliás, é bom que a escola não responda apenas à "dura realidade" do mercado de trabalho, mas também (talvez, sobretudo) aos devaneios de seus estudantes; sem isso, qual seria sua promessa? "Estude para se conformar"?
Conseqüência: a escola é sempre desinteressante para quem pára de sonhar.
Em princípio, os jovens interpretam o desejo (inconsciente) dos pais e herdam os sonhos reprimidos atrás das vidas (fracassadas ou bem-sucedidas, tanto faz) dos adultos. Aquela fala chata dos pais, que evocam as renúncias que foram necessárias para conseguir criar os filhos, aponta o caminho de aventuras menos sacrificadas. Há uma guitarra empoeirada no sótão do comerciante ou do profissional cujo filho quer ser roqueiro. O que mudou? Duas hipóteses.
É possível que, por sua própria presença maciça em nossas telas, as ficções tenham perdido sua função essencial e sejam contempladas não como um repertório arrebatador de vidas possíveis, mas como um caleidoscópio para alegrar os olhos, um simples entretenimento. Os heróis percorrem o mundo matando dragões, defendendo causas e encontrando amores solares, mas eles não nos inspiram: eles nos divertem, enquanto, comportadamente, aspiramos a um churrasco no domingo e a uma cerveja com os amigos.
É também possível (sem contradizer a hipótese anterior) que os adultos não saibam mais sonhar muito além de seu nariz. Ora, a capacidade de os adolescentes inventarem seu futuro depende dos sonhos aos quais nós renunciamos. Pode ser que, quando eles procuram, nas entrelinhas de nossas falas, as aspirações das quais desistimos, eles se deparem apenas com versões melhoradas da mesma vida acomodada que, mal ou bem, conseguimos arrumar. Cada época tem os adolescentes que merece.