Evandro Lins e Silva relatou a denúncia do Ministério Público que no dia 30 de dezembro de 1976, aproximadamente às 16 horas, na residência de Ângela Maria Fernandes Diniz, na Praia dos Ossos, em Cabo Frio, Estado do Rio de Janeiro, a vítima Ângela decidiu acabar definitivamente com a ligação amorosa com Raul Fernando do Amaral Street (Doca Street), mandando-o embora de forma irrevogável, ocasião em que discutiram acaloradamente.
Raul arrumou seus pertences, colocou-os no carro e afastou-se da casa, para retornar em seguida, sem nenhuma explicação. Tentou a reconciliação e, vendo-a frustrada, discutiram novamente, momento em que Ângela se afastou para o banheiro. Nessa oportunidade, Raul armou-se de uma arma automática “Bereta” e seguiu sua amásia, encontrando-a no corredor, abordando-a, ocasião em que desferiu vários tiros contra a face e o crânio de Ângela, culminando por matá-la.
O Tribunal do Júri de Cabo Frio somente veio reunir-se em 1980, para julgar Doca Street, ocasião em que Evandro Lins e Silva pronunciou memorável defesa, divulgada por todo o país, através dos meios de comunicação de massa que cobriram intensamente aquele julgamento.
O advogado de defesa disse: “Senhores jurados. Quiseram os fados, quis o destino, que a última defesa, o “canto do cisne” de um velho advogado criminal se desse nesta cidade, recanto inimitável e deslumbrante do Brasil e do mundo, onde, como no verso do poeta, “a mão da natureza esmerou-se enquanto tinha”.
E por uma extraordinária coincidência que só os mistérios insondáveis do destino podem explicar, há 52 anos, vindo das plagas do Norte, ao passar em frente a Cabo Frio, houve uma cerimônia simbólica no navio – o batismo daqueles que ainda não tinham ido ao Rio de Janeiro.
Em vez dos santos óleos, as águas do mar de Cabo Frio. Não sei se esse batismo que tanto me marcou e que conservo retido na memória, como um feliz evocação do passado, teve alguma oculta influência no desenvolvimento da minha carreira e da minha vida.
Guardo o sentimento, um tanto supersticioso de que foram muito bons os fluidos dessa crisma nas águas lustrais desta cidade sedutora.
Faço uma despedida e uma despedida é sempre melancólica. Abandono hoje a Tribuna em que ia fazer jubileu daqui a dois anos. É triste deixá-la.
O Júri sempre a minha escola, de onde me devia ter afastado, esta foi a minha escola, o meu fanal.
Tudo o que sei, aprendi no convívio dos cidadãos jurados, que me ensinaram a entender a explicação da lei não como uma forma tarifada da imposição de penas, mas como um instrumento de defesa da sociedade dentro de critérios eminentemente humanos, compreendendo os motivos e as razões profundas que, algumas vezes, levam as criaturas à prática de atos violentos ou desesperados, na defesa de seus afetos mais caros. Aprendi no Júri maciças lições de vida, presenciei gestos de solidariedade, vi decisões carregadas de sabedoria.
O Júri foi ponto de partida de uma longa atividade profissional.
Foi daqui, desta Tribuna, foi com o seu aval, que saí para uma incursão na vida política, em cargos eminentes. Não imaginava voltar, mas o meu fadário me trouxe novamente ao Tribunal do Júri.
Não arrefeceu o meu amor por esta Casa e por esta Tribuna, mas não é possível prosseguir mais.
É imprudente. Temo eu, receia minha família, que as coronárias não resistam por muito tempo aos debates tão desgastantes dos processos do Júri.
As lutas neste Tribunal são cheias de dificuldades, de imprevistos, de apreensões, de preocupações, sobretudo quando o advogado tem um verdadeiro sentimento de sua responsabilidade, quando tem a consciência de que dele depende a liberdade de um cidadão.
Mais pesada é essa responsabilidade quando se tem a convicção de que a causa é justa, de que não há razão para mandar o acusado para a prisão. Neste caso, como o Júri verá dentro em pouco, a condenação representaria apenas a satisfação de uma vindita.
Sim, seria iníquo e desnecessário mandar para o cárcere uma pessoa que pode ser útil à sua família e à vida social.
Cadeia não é solução, não recupera, não ressocializa, não regenera ninguém; avilta, degrada, corrompe.
Esse é o axioma que nem mais se precisa demonstrar e que todos hoje compreendem.
A segregação não ensina, nem é capaz de fazer com que a pessoa reaprenda a viver no meio social, dentro de sua coletividade; ao contrário, a reclusão é fonte de vícios, é geradora de revoltas, é um eficaz dissolvente do caráter.
A prisão adapta ao isolamento, jamais à vida em liberdade.
Senhores jurados, nestes processos, como o que hoje ides julgar, como em todos os casos submetidos à competência do Tribunal do Júri, se deve principiar pelo exame da personalidade dos protagonistas do fato, o que permite verificar a participação que a vítima sempre tem, maior ou menor, na eclosão da deflagração da tragédia.
O cidadão jurado percebe rapidamente quando o fato foi provocado pela vítima, e isso eu tive oportunidade de observar nestes 48 anos de profissão.
O jurado tem sempre uma justa percepção do quadro posto diante dos seus olhos e decide com aquele golpe de vista genial, de que falava o grande Magarinos Torres, juiz magnífico, amigo maior da instituição do Júri.
E cada caso concreto, os jurados sabem oferecer a solução adequada.
O Júri é uma justiça diferente da justiça togada, ele julga de consciência, não está adscrito a tarifas legais, a certos formalismos, não tem compromissos doutrinários.
O Júri julga de acordo com aquilo que considera justo, dentro de princípios de uma justiça imanente, dentro daquilo que na sua alma e consciência representa uma solução de verdade e de bom senso.
São bem diversos os critérios de julgamento da justiça profissional e da justiça dos jurados.
O juiz togado está jungido a regras legais para ele intransponíveis, por motivos técnicos e razões formais.
Há um limite que ele não pode ultrapassar, mesmo que a consciência lhe dite outra coisa.
Veja-se o brocardo latino, que ele é obrigado a obedecer: “Dura lex, sed lex”. Aí está a algema que manieta a liberdade de julgamento do juiz profissional.
Os jurados têm outra amplitude para decidir.
Se os critérios fossem idênticos, se o Júri julgasse da mesma forma que a justiça togada, não haveria necessidade de convocar 21 cidadãos, retirá-los de suas atividades, recrutá-los de seu trabalho, para que eles viessem fazer justiça a seus semelhantes, quando isso poderia ser feito pelo juiz togado, sozinho, como acontece em todos os processos.
O Júri é uma instituição democrática, que representa o povo dentro da justiça, julgando de consciência, com amplitude de visão, sem peias legais, julgando com o alto sentido finalístico de verificar se alguma pena deve ser aplicada ou se não o deve, se ela é útil ou se ela não é útil, se ela representa alguma vantagem para a sociedade ou se não existe essa vantagem.
Ao julgar as causas de sua competência, que são os crimes contra a vida, o Júri, necessariamente, há de querer conhecer, precisa conhecer, antes de tudo, as personagens envolvidas na tragédia.
Essas personagens devem ser trazidas, com detalhes, ao conhecimento dos jurados: a sua vida, os seus antecedentes, a sua origem, a sua formação, as suas atividades, para se poder formar um juízo, para se poder tomar uma decisão justa, para verificar no binômio acusado-vítima até que ponto a participação da vítima contribui, mais ou menos fortemente, para a deflagração da tragédia.
Esse moço é um passional, na conhecida classificação de Enrico Ferri, é um criminoso de ocasião, não é um delinquente habitual. O seu ato de violência é um gesto isolado em sua vida, produto de um desvario, num momento de desespero.
Vejamos, primeiro, quem é Raul Street.
Aí, Evandro Lins e Silva passou a dissertar sobre a personalidade do réu, a sua família, seus pais, sua formação, suas atividades e, enfim, a sua vida.
Na acusação particular funcionaram dois grandes criminalistas brasileiros: George Tavares e Evaristo Filho, que auxiliaram o acusador público.
A certa altura, o advogado Evandro Lins e Silva proclamou: “A acusação particular é luxo, porque há o Ministério Público, tão bem representado pelo digno dr. Promotor. Ele podia fazer a acusação sozinho. Não precisava de ajudantes. Pois bem, srs. Jurados, vieram mais três, vieram mais três!!! (Apartes sucessivos e sussurros no plenário).
Querem tomar o tempo da defesa (apartes insistentes). Os meus colegas tiveram a gentileza de me entregar esta sustentação, porque viam um dia diferente para mim, o último da minha carreira. Por isso, me proporcionaram...
“O Dr. Evaristo de Moraes Filho – Nós sabemos que não, esperamos que não...”
“Evandro Lins e Silva – Se v.exa. tivesse a desventura de cometer um crime, eu iria defendê-lo. Pode estar certo, é a única hipótese. Se v. exa. quiser me levar à Tribuna outra vez, faça isso... Então aí eu vou defender o colega, o filho do meu mestre Evaristo de Moraes.
“Evaristo de Moraes Filho – Romeiro Neto durante cinco anos disse isso, despediu-se do Júri, dizendo: “É o meu último Júri”... (risos).”
“Evandro Lins e Silva – Tenho a certeza de que não vai acontecer isso, porque eu tomei a minha pressão antes de vir para cá. Ainda tomei outras medidas necessários. Não confio mais nas coronárias... A minha idade não permite mais que eu tenha confiança...”
“Evaristo de Moraes Filho – O Júri está vendo que v. exa. está em plena forma.”
“Evandro Lins e Silva – Com a graça de Deus... (risos).”
“Evaristo de Moraes Filho – Olhe aí, conquistando a platéia”.
“Evandro Lins e Silva – Com a graça de Deus, com a graça de Deus, eu sou um velho advogado (risos)”.
“Evaristo de Moraes Filho – Enternecendo a todos, fazendo sorrir...”
“Evandro Lins e Silva – Eu não conquisto mais ninguém... Sou um velho... V.exa. sim, com o seu talento, seu brilho , seu corpo jovem conquistará a causa! (risos da platéia). Agora, não conquistará a causa! (risos da platéia). Porque a gente não muda processo, ninguém muda processo. Ninguém muda. Então é preciso cair dentro dos autos, e quando a gente cai dentro dos autos, a acusação que não tem razão, naufraga, soçobra.”
Suspensa a sessão por alguns minutos, retorna a defesa com o criminalista Evandro Lins e Silva: “Senhores jurados! Procurarei represar, neste tempo que me resta, os fundamentos da defesa, no seu sentido jurídico, do ponto de vista da instituição do Júri.
Não estou falando para juízes togados, estou falando para jurados. Vou pleitear do Júri uma solução humana, uma solução que me parece justa e acredito que os jurados concordem comigo, porque é a solução mais adequada, do ponto de vista familiar, social, humano.
A profissão do advogado é paradoxal: quanto mais fácil a causa, maior a sua responsabilidade. E esta causa, eu disse desde o começo, que a mim me parecia, à minha compreensão de velho advogado, que passou também pelo Ministério Público – eu fui procurador-geral da República - e que foi também juiz, no Supremo Tribunal Federal, sempre me pareceu de fácil sustentação perante o Júri.
Vamos procurar, senhores jurados, encontrar uma solução.
A lei obriga o Júri a responder a quesitos, que envolvem questões técnicas, mas o Júri não tem compromissos doutrinários. O Júri é finalístico e quer chegar a determinado resultado. Assim, proposta uma justa solução, o Júri pode dá-la, o Júri tem soberania, o Júri é soberano em suas decisões.
O Júri pode decidir contra a prova dos autos? Sim, pode. O Júri pode negar a autoria? Pode negar a autoria!
E se ele negar duas vezes, acabou-se, a decisão é definitiva, é soberana. Senhores jurados, temos que insistir no binômio acusado-vítima. O Júri já viu que este moço apaixonou-se, apaixonou-se perdidamente. E a paixão sempre é cega, não é boa conselheira. Quando a paixão se torna obsessiva, quando a pessoa se deixa marcar por ela, vem o ciúme a dominá-lo, ele vai se escravizando à paixão, vai se deixando subjugar pelo objeto amado.
E, então, toda a visão que ele tem dos valores da vida se deforma. Ele passa a viver em função daquela idéia fixa, que é a mulher amada. É claro que ele vai se descontrolando em tudo o que faz, minadas as suas resistências pela paixão doentia que o avassala.
Isso acontece, como diz neste livro magnífico um dos grandes juízes do Brasil, que se chama Edgard de Moura Bittencourt, livro sobre a vítima, Vitimologia, a Dupla Penal Delinquente-Vítima, quando um homem cai nas garras de uma mulher fatal.
A “mulher fatal”, esse é o exemplo dado para o homem se desesperar, para o homem ser levado, às vezes, à prática de atos em que ele não é idêntico a si mesmo, age contra a sua própria natureza.
Senhores jurados, a “mulher fatal”, encanta, seduz, domina, como foi o caso de Raul Fernando do Amaral Street.
Meu mestre Evaristo de Moraes, dizendo ser idêntica a opinião de Ferri, Corsi, Bonano, Florian, Melussi e Holtz, escreveu em Criminalidade Passional, à fl. 69: “Quando a boa índole do criminoso, o seu passado honesto, a qualidade moral e social dos motivos e a forma apenas violenta da execução do crime, seguida de manifestações de arrependimento ou de remorso, mostrarem que o mesmo crime – passional ou emotivo – foi um triste e doloroso episódio na vida normal do criminoso, não há razão para lhe ser aplicada alguma pena, ainda mesmo que não desonrosa. Toda repressão seria inútil e, como tal, iníqua.”
Depois de dissertar longamente sobre o estado de legítima defesa em que se encontrava o seu cliente, Evandro Lins e Silva começou a peroração: “Senhores jurados, eu me despeço desta Tribuna, e vou deixá-la com muita saudade, porque a minha vida está ligada ao Júri que eu, de agora em diante, para não ficar longe dela, virei assistir aos meus colegas Heleno, Evaristo, George, todos eles, dr. Fador, dr. Eden... Eu gostaria de assistir a Júris...mas não gosto, não.
Fico tão agoniado quando estou assistindo a um Júri, que tenho vontade de interferir, quero participar.
Isso torna impossível assistir tranqüilamente a um Júri, eu me angustio, quero intervir.
São quase 50 anos de convívio com o Júri.
Srs. Jurados, chego ao fim, tenho pudor das despedidas mais dramáticas, talvez outros beijassem a Tribuna para se retirar.
Era assim que se fazia antigamente, de modo teatral, e os advogados, como o antecessor de Evaristo de Moraes no Júri, o notável Alberto de Carvalho, quando o promotor agredia o réu, ele retirava a beca e a jogava sobre a cabeça do acusado, para que as injúrias não o atingissem e usava o latim habitual na época: “Reo res sacra est” – o réu é uma sagrada.
Estes gestos espetaculares ele repetia sempre.
Certa vez, Evaristo de Moraes defendia o próprio pai no Júri, e ele, Alberto de Carvalho, depois da defesa brilhantíssima de Evaristo, saiu da platéia, subiu à Tribuna e osculou, como diz o livro, beijou a testa do grande Evaristo.
Jurados, despeço-me do Júri e, para ventura minha, a despedida se dá neste lindo sítio do Brasil, neste lindo recanto do mundo, nesta cidade magnífica e deslumbrante, que é Cabo Frio.
Jurados, procurei cumprir o meu dever de velho advogado. De fato, foi um risco que assumi, contra a vontade da minha família, dos meus filhos, que aqui estão todos presentes.
Saio realmente desta Tribuna, despedindo-me dela e esperando que a emoção não me domine neste final.
Jurados, julgai-o. Eu confio na vossa consciência, eu confio na vossa justiça, eu sempre confiei no Tribunal do Júri do meu país, e hoje, o meu país, no Júri, está representado pelos jurados da cidade de Cabo Frio.
Absolvei-o, jurados, e tereis feito justiça! (Aplausos prolongados, o orador não contém as lágrimas e é cumprimentado por seus colegas.) O conselho de sentença aceitou a tese do excesso culposo no estado de legítima defesa e o juiz fixou a pena de dois anos de detenção ao réu, concedendo-lhe o direito ao “sursis”. A assistência aplaudiu a proclamação do resultado.
Posteriormente, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio anulou o julgamento, mandando Raul Fernando Street a novo Júri. Neste segundo julgamento, no qual não participou o advogado Evandro Lins e Silva, o réu foi condenado a cumprir pena de homicídio.