Da piada à piedade
07.04.2007 | Não sei pra que bandas vocês têm andado, mas onde passo as conversas sobre caos aéreo, milésimo gol, Preta Gil e Gianecchini lá pelas tantas mudam abruptamente de direção, convergindo sempre para o mesmo assunto: “E o rabino, hein, rapaz, que coisa!” Daí para frente segue-se um ritual que vai do sentimento de piedade que Henry Sobel inspira em todos nós, homens de bem, até gargalhadas impiedosas com as piadas que o ocorrido em Palm Beach desencadeou em série avassaladora. Todo mundo tem uma pra contar. Sabe aquela que associa roubo de gravatas aos crimes do colarinho branco? E aquela outra sobre entregar o rabinato depois de pego em flagrante?
Não tem jeito: sempre que uma desgraça ou infortúnio se abate sobre alguém importante, respeitável e exemplar, o brasileiro vive essa esquizofrenia de rir e de chorar compulsivamente com a tragédia humana inesperada. Pode ser só uma reação nervosa ou, talvez, não haja nada muito estranho em sofrer sem perder o bom humor. Tancredo Neves e Ayrton Senna, só para citar dois casos muito mais comoventes que o de Henry Sobel, mergulharam o Brasil num mar de lágrimas e anedotas sem precedentes. Ou não?
Daí a pensar que as piadas sobre Senna e Tancredo eram fruto de mentes desinformadas sobre grandes personagens da História, francamente, isso é coisa de gente que não sabe o que é humor. Piada não é coisa reservada a sujeitos de maus antecedentes ou a cretinos de toda ordem. Piada não é castigo, punição ou forra. As pessoas viram piada porque se prestam a isso. Graça não é invenção de humorista, cujo maior talento deve ser enxergar o engraçado para mostrar que nada é tão sério que mereça nossa tristeza mórbida.
Num país onde qualquer safado de gravata vira herói depois de morto, não é de se estranhar que os falsos moralistas estejam à solta para exigir mais respeito com Henry Sobel. Como se piada fosse desrespeito. Já disse que isso é coisa de gente que não sabe o que é humor, mas não é só isso. Ao promover a defesa do que não é atacado – a honra, o passado, a religiosidade e o humanismo do rabino –, a turma que anda por aí se fingindo indignada com o que dizem à boca pequena sobre o efeito colateral dos remédios contra insônia advoga a criação de um tipo de casta imune a brincadeiras.
Se eu não posso fazer piada com quem lutou contra a ditadura nos anos 70, não devo brincar, por exemplo, com o presidente Lula, só para citar um caso muito mais célebre de militância política do que o companheiro Sobel. Se eu não posso fazer piada com alguém que provavelmente esteja agindo sob efeito de remédios tarja preta, cacilda!, vou perder também o Suplicy. Se eu não posso fazer piada com judeus, nem o Gerald Thomas vou poder mais ridicularizar, caramba! Vai chegar o dia em que só vão me restar as louras. Sabe a última da Hebe Camargo?
Tenho lido coisas estarrecedoras a respeito da forma como devemos nos comportar sobre essa história das gravatas em Palm Beach. O ator José de Abreu jura que não encabeçou, como deu nos jornais, mas subscreveu o manifesto que classifica o ocorrido com Henry Sobel como a prova definitiva de que “todos somos humanos”. Falta ainda explicar que diabos quis dizer nessa entrevista ao site ‘Ego’: “Sem discutir o mérito da questão, se ele roubou ou foram remédios que levaram ao ato, não interessa! O importante é o que ele já fez pelo Brasil, inclusive em função do comunismo no país." Como dizia Shakespeare, ter sido ou não ter sido, eis a questão!
Outra que deu seu testemunho, Vera Fischer foi comovente: “Deslizes podem acontecer com qualquer pessoa”. Palavra de especialista. No caso dela, talvez por ser loura e nada ter feito contra a ditadura, quando acontece algo assim todo mundo pode brincar à vontade. Henry Sobel também é louro e, apesar do corte chanel, nem com seu penteado aceitam-se brincadeiras. Por muito menos, aliás, arruma-se briga com Deus e o mundo. Dia desses achei que poderia ter alguma graça dizer que “Maluf teria tomado uma overdose do remédio de Henry Sobel…” Pra quê? O leitor Almir Ammari percebeu o seguinte nas minhas intenções:
“Tudo bem que o SR.MALUF tem problemas, mas justamente por ser de
origem árabe você o escolheu nesta hora contra um judeu? Lamentável. Reflita melhor antes de qualquer comentário.
OBS: Não sou parente do SR. MALUF e nem o conheço.”
Leitor, vocês estão carecas de saber disso, é assim mesmo: cada um entende de um jeito e vamos em frente. Os que entendem a piada do jeito que se pretende contar produzem outras, igualmente desprovidas de preconceitos. Que mal pode haver nessa aqui, que me foi enviada por Edilson Moura Pinto?
“Henry Sobel é o candidato ideal para presidente do Brasil em 2010. Já provou, inclusive, que não sabe roubar.”
Outro leitor, Esteban Vianna, me ajudou a tirar da cabeça as minhocas do preconceito que movem uns e outros a pensar. O texto abaixo é dele e explica perfeitamente por que tenho feito e vou continuar fazendo humor com o caso Henry Sobel:
“Para além da religião monoteísta, do humanismo, do monte de filósofos, artistas e cientistas, acho que a principal contribuição dos judeus para a humanidade foi o humor – implacável, auto-depreciativo, irônico e inteligente. O humor é parte indissolúvel da identidade judaica.”
Talvez não tenha nada a ver, mas me vem à cabeça a célebre resposta de Seinfeld a um padre no confessionário. O humorista foi à igreja para se queixar que um membro daquela congregação – péssimo contador de piadas – tinha se convertido ao judaísmo só para poder contar, sem culpas, piadas de judeus. O padre, intrigado, perguntou-lhe: “E isso o ofende como judeu, meu filho?”.
“Não, isso me ofende como humorista.”
Tutty Vasques; no mínimo. ig.com.br