Sunday, May 27, 2007
Thursday, May 24, 2007
O avanço da plantação de cana-de-açúcar em São Paulo promove uma concentração da produção nas mãos de usinas e grandes fornecedores, eliminando pequenos produtores.
Pedro Ramos, professor e pesquisador da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), diz que só 25% da cana moída pelas usinas é proveniente de fornecedores independentes. Os outros 75% são matéria-prima das usinas.
Com a expansão da produção de álcool, foram agregados novos produtores autônomos, mas cresceram também as áreas das usinas. Quem perdeu espaço foram os pequenos.
Há dez anos, 27,6% dos fornecedores de cana às usinas produziam até 4.000 toneladas. Na safra 2005/6, esse percentual recuou para 18%. Já os fornecedores com volume superior a 10 mil toneladas subiram de 53,2% para 64,9%, mostra a Orplana (reúne os plantadores do centro-sul).
O alto custo das terras, provocado pela própria expansão do plantio da cana, faz com que as usinas e grandes fornecedores prefiram arrendar terras em vez de comprá-las. Esse sistema poderá trazer grande concentração fundiária no futuro, diz o professor da Unicamp.
O arrendamento é remunerador, mas não deixa de ser um incentivo ao produtor para abandonar a propriedade. Quando o contrato não for mais favorável, esse produtor pode ter perdido a identidade com a terra, o que vai facilitar a venda da propriedade às usinas. Braz Albertini, da Fetaesp, que agrega os trabalhadores, diz que, "se a cana dá dinheiro, o pequeno produtor deve plantá-la ou arrendar parte da terra para seu plantio, mas não deve nunca sair de lá para não perder essa identidade com o campo". (MZ)
A expansão da cana no centro-sul está trazendo para São Paulo trabalhadores de regiões cada vez mais distantes. Antes proveniente de Minas Gerais e da Bahia, o novo migrante cortador de cana agora vem também do Maranhão e do Piauí.
Maria Aparecida de Moraes Silva, da Universidade Estadual Paulista, foi a esses dois Estados para pesquisar sobre esses novos trabalhadores. Uma das suas descobertas é que eles são vítimas do próprio setor sucroalcooleiro. Com a expansão da cana no centro-sul e a valorização das terras, a pecuária dessa região está indo para áreas do Maranhão.
A formação de novos pastos ocorre em áreas de babaçu, planta que dá sustento às famílias da região. Sem essa cultura regional, os trabalhadores são obrigados a vir para São Paulo para cortar cana. No Piauí, outra região alvo da pesquisa, os pequenos produtores são expulsos pelo cultivo da soja, produto que também foi em busca de áreas de menor preço devido à valorização no centro-sul.
A pesquisadora diz que a presença de cortadores de cana dessas regiões em SP é recente. Em 2000, o Maranhão mandou apenas uma centena de cortadores ao Estado. Nesta safra, apenas da pequena Timbiras virão 7.000 trabalhadores.
Eles são arrebanhados pelo "gato", pessoa responsável pela seleção e até o custeio da vinda a São Paulo. O "gato" é imprescindível nesse trabalho e faz a ponte entre o trabalhador e as empresas. No Maranhão, ele é chamado de "agente de viagem para Ribeirão Preto". (MZ)
"Para ser cortador de cana, tem de ter braço, porque, se não tiver, morre, ou de fome ou no canavial, de tanto trabalhar." A afirmação é de José Lúcio Oliveira, 33, que veio de Barra do Santo Antônio (Alagoas) neste ano para estrear no corte de cana na região de Ribeirão Preto.
Oliveira e os amigos Carlos João de Lima e Oziel Batista Silva acordam às 4h. Os três ocupam uma casa de dois cômodos em Pontal, com um banheiro sem iluminação e mobiliada apenas com um beliche, duas camas de solteiro, uma geladeira, um fogão, um aparelho de DVD e uma TV de 14 polegadas. Pagam R$ 120 de aluguel.
A primeira atividade do grupo é preparar a marmita que será levada para o canavial. Geralmente, o cardápio do grupo é arroz, feijão, macarrão e um cozido de carne. Às 5h, a turma já está no ponto de ônibus, onde se junta a 45 homens e mulheres e embarca em direção ao canavial.
Vestidos com calça comprida, jaleco de manga comprida, com camisa comprida por baixo, gorro para proteger o pescoço, chapéu ou boné, caneleiras para evitar picadas de cobras e cortes das escapadas do facão, botas, luvas e óculos, eles passam mais de seis horas sob o sol. Como ganha mais quem corta mais, os mais fortes e mais experientes no uso do facão saem ganhando.
Os homens chegam a cortar de 100 m a 120 m de cana por dia e ganham, em média, R$ 800 por mês. Na última quinta, Oliveira disse que sentiu dores nas costas e só conseguiu cortar 60 metros.
O grupo faz três paradas para comer o que levou na marmita: uma por volta das 7h15, outra às 10h e a última às 13h -a denominação bóia-fria vem do fato de que nas duas últimas refeições, o alimento está frio, apesar de algumas usinas fornecerem marmitas térmicas.
Às 16h, voltam para a casa, cansados, sujos e famintos, mas ainda não é hora de descansar. Enquanto Lima coloca as botas e luvas em um canto da casa e se prepara para lavar as roupas usadas no dia de trabalho, Oliveira, ainda usando o boné que o protegeu do sol no canavial, começa a preparar o jantar da turma e Silva entra no pequeno banheiro sem iluminação para o banho frio.
Entre os afazeres, discutem o dia de trabalho, reclamam do cansaço e das dores no punho devido aos golpes seguidos do facão. Lima, do tanque de lavar roupa, conta que uma cobra quase o picou no canavial. O cozinheiro Oliveira prepara arroz, salsicha cozida, feijão e bifes. Antes, guarda um pouco para o almoço do dia seguinte.
Antes de comer, os trabalhadores saem em busca de diversão: se reúnem com outros cortadores para uma partida de futebol em campinho improvisado -a passadinha pelo bar para tomar uma cachaça, rotina para muitos bóias-frias, não é adotada pela turma de Oliveira. Depois do futebol, o trio volta para a casa, janta e vai dormir lá pelas 21h.
JOEL SILVA - REPÓRTER FOTOGRÁFICO DA FOLHA RIBEIRÃO
Entidade aponta fim da terceirização e ganhos de produtividade como avanços
Associação das indústrias afirma também que ainda não ficou provado que causa de mortes no campo tenha sido o excesso de trabalho
A Unica (União da Indústria de Cana-de-Açúcar), entidade que reúne as indústrias do setor, diz que as empresas estão imprimindo várias mudanças que beneficiam os cortadores de cana. Uma das principais, segundo o diretor-técnico da entidade, Antonio de Pádua Rodrigues, foi a adoção do fim da terceirização, medida que já atinge a maioria das empresas.
Atualmente, muitos trabalhadores chegam ao fim de carreira sem direito à aposentadoria. Com o fim da terceirização, os trabalhadores do setor passam a ser contratados pelas usinas. Além de assistência médica, devem ter, inclusive, acompanhamento das usinas tanto na ida como na volta para os seus locais de origem.
O diretor-técnico destaca que a Unica fez acordos com associações de produtores para dar maior transparência à produção, além de melhorar a situação de transporte. Pelos cálculos dele, os cortadores de cana no Estado de São Paulo devem estar por volta de 170 mil.
Quanto ao esforço físico, suposta causa das mortes de trabalhadores na colheita e no plantio, Pádua diz que não há nenhum estudo com comprovação científica sobre isso. Sobre a produtividade dos trabalhadores, o diretor-técnico diz que ela vem crescendo devido a mudanças no sistema de colheita. Com a queima da cana, a produtividade é bem maior e, apesar dos picos de produção de alguns trabalhadores, a média de produção do setor é de 8 toneladas por dia, o que garante um salário médio de R$ 800 por mês.
O piso de pagamento aos trabalhadores é o correspondente a 6 toneladas, o que dá uma remuneração de R$ 415 por mês. Pádua afirma que, incluídos os benefícios indiretos, como férias e folgas, a remuneração dos trabalhadores chega a R$ 5,00 por tonelada.
O diretor-técnico da Unica destaca que estudos importantes, como do Banco Mundial e do Instituto de Economia Agrícola, órgão da secretaria paulista de Agricultura, ressaltam os avanços sociais no setor, como a alta do número de carteiras assinadas. Em 1982, 18% dos trabalhadores não tinham carteira assinada. Na safra 2005/6, esse percentual caiu para 6%, destaca o diretor da Unica.
Quanto à concentração da produção, Pádua diz que esse será um caminho natural. As novas características de produção vão dar cada vez menos espaço para os pequenos produtores, ao menos que se reúnam em grupo. O processo de mecanização vai acelerar esse processo de concentração, diz ele.
MAURO ZAFALON
Pressionado a produzir mais, trabalhador atua cerca de 12 anos, como na época da escravidão
Conclusão é de pesquisadora da Unesp; usineiros dizem que estão mudando sistema de contratação e que vão melhorar condições
O novo ciclo da cana-de-açúcar está impondo uma rotina aos cortadores de cana que, para alguns estudiosos, equipara sua vida útil de trabalho à dos escravos. É o lado perverso de um setor que, além de gerar novos empregos e ser um dos principais responsáveis pela movimentação interna da economia, deve exportar US$ 7 bilhões neste ano.
Ao menos 19 mortes já ocorreram nos canaviais de São Paulo desde meados de 2004, supostamente por excesso de trabalho. Preocupados com as condições de trabalho e com a repercussão das mortes, as usinas estão mudando o sistema de contratação desses trabalhadores, antes terceirizados.
A pesquisadora Maria Aparecida de Moraes Silva, professora livre docente da Unesp (Universidade Estadual Paulista), diz que a busca por maior produtividade obriga os cortadores de cana a colher até 15 toneladas por dia. Esse esforço físico encurta o ciclo de trabalho na atividade. "Nas atuais condições, passaram a ter uma vida útil de trabalho inferior à do período da escravidão", diz.
Nas décadas de 1980 e 1990, o tempo em que o trabalhador do setor ficava na atividade era de 15 anos. A partir de 2000, "já deve estar por volta de 12 anos", diz Moraes Silva. Devido à ação repetitiva e ao esforço físico, "ele começa a ter problemas seriíssimos de coluna, nos pés, câimbras e tendinite", afirma.
Para o historiador Jacob Gorender, o ciclo de vida útil dos escravos na agricultura era de 10 a 12 anos até 1850, antes da proibição do tráfico de escravos da África. Depois dessa data, os proprietários passaram a cuidar melhor dos escravos, e a vida útil subiu para 15 a 20 anos.
Moraes Silva, que desenvolve pesquisa com o apoio do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) sobre os migrantes cortadores de cana, acaba de voltar do Maranhão e do Piauí, novos pólos de fornecimento de mão-de-obra para São Paulo.
Uma das constatações da professora é que a maior exigência de força física no trabalho está forçando a vinda cada vez maior de jovens.
Aparecida de Jesus Pino Camargo, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Piracicaba (SP), diz que a maioria dos cortadores de cana está na faixa de 25 a 40 anos, mas que há cada vez mais jovens na atividade, com até 18 anos.
Para a pesquisadora, o trabalhador anda de 8 a 9 km por dia, sempre submetido a um grande esforço físico, o que causa sérios problemas à saúde. "Esse trabalho tem provocado uma dilapidação -esse é o termo, não encontro outro- dos trabalhadores", afirma ela.
Moraes Silva, porém, afirma que a situação começa a melhorar. Com pressão do Ministério Público, as usinas estão fazendo exames admissionais e adotaram várias medidas de proteção aos trabalhadores, diz.
MAURO ZAFALON - DA REDAÇÃO - Folha de São Paulo
Monday, May 21, 2007
ESPECIAL PARA A FOLHA
Isto é, Everett põe em questão um princípio do pensamento filosófico até a modernidade, a saber, a universalidade do homem. Suas teorias ressuscitam pressupostos abandonados por muitos lingüistas e se opõem a uma corrente revolucionária na lingüística, o gerativismo de Chomsky.
A lingüística chomskiana é desenvolvimento de uma das mais importantes formulações teóricas do século 20, que foi o estruturalismo.
Seu pai foi o antropólogo Claude Lévi-Strauss, que, no campo da ciência da cultura, recusou a idéia de universalidade humana, princípio de toda a filosofia ocidental clássica, reafirmado por Descartes, por Kant e por todos os iluministas.
O estruturalismo rompe com o pensamento filosófico clássico e da modernidade, com o evolucionismo social e com a perspectiva historicista nas ciências do homem, afirmando existirem "os homens", e não o "Homem Universal".
Essa filosofia empolgou muitos espíritos desde meados do século 20, quando o humanismo sartriano entrava em seu ocaso.
O gerativismo de Noam Chomsky desvia-se dos pressupostos originais do estruturalismo ao afirmar a exigência da universalidade da gramática.
Sistema fechado
Com efeito, a lingüística estrutural, em seu desenvolvimento, havia posto de parte tal idéia, insistindo no caráter de sistema autônomo e fechado em si de cada língua. Chomsky, em, pleno século 20, marca um retorno aos objetivos da gramática geral francesa do século 17.
Em 1660, Lancelot e Arnauld publicam a "Gramática de Port Royal", a primeira tentativa compreensiva de apresentar uma teoria da gramática, com vista a incorporar as propriedades universais da linguagem humana. Chomsky apresentou, de fato, uma versão moderna e mais explícita da gramática de Port Royal.
Assim, retoma o velho projeto iluminista de estruturar uma gramática universal. Em "Lingüística Cartesiana", sua idéia central é de que os traços gerais da estrutura gramatical são comuns a todas as línguas e refletem certas propriedades fundamentais da mente.
O que as recentes pesquisas de Everett vêm fazer é mostrar que a cultura pirahã constrange a gramática dessa língua, apresentando problemas para a noção de uma gramática universal.
Tal constrangimento explica algumas características bem surpreendentes da gramática e cultura dos pirahãs.
Segundo a Sociedade Internacional de Lingüística, elas seriam a ausência de ficção e de mitos de origem, o sistema de parentesco mais rudimentar já documentado, a ausência de números e de qualquer conceito de contagem, a ausência de termos referentes a cores, a ausência de qualquer encaixamento gramatical, a ausência de "tempos relativos", o fato de serem monolíngües os pirahãs após mais de 200 anos de contato relativamente constante com brasileiros e com falantes da língua kawahiva, da família lingüística tupi-guarani, a ausência de qualquer memória individual ou coletiva que remonte a mais de duas gerações passadas, a ausência de desenhos e de outras artes plásticas -sendo a cultura material dos pirahãs uma das mais elementares já documentadas-, a ausência de qualquer termo de quantificação: por exemplo, "todos", "cada", "a maioria", "alguns" etc.
A língua pirahã desafia, segundo Everett, a aplicação simplista da teoria de Chomsky, o que dá novo alento às teorias estruturalistas, já com pouco prestígio nos melhores meios intelectuais.
Boas e Sapir
Com suas teorias sobre o pirahã, Everett se situa, assim, dentro das tradições da lingüística descritiva americana de Franz Boas, Edward Sapir, por um lado, e a tradição filosófica do pragmatismo americano representado por Peirce, James e Dewey.
Seus pressupostos, contudo, não são originais: muitos missionários gramáticos do passado, principalmente os da China da dinastia Ming, chegaram a pôr em dúvida a universalidade das categorias que Aristóteles elaborou por meio de uma análise lógica da língua grega.
Por outro lado, a inexistência de números acima de quatro, no tupi, já é conhecida pelos seus gramáticos desde o século 16.
A polêmica em torno de uma gramática universal está longe de acabar. Os pouquíssimos conhecedores não-indígenas da língua pirahã tornam difícil um debate em igualdade de condições em torno da questão suscitada por Everett.
Afirmar a justeza de suas idéias seria corroborar as palavras de Lévi-Strauss, para quem não estaríamos "em contato com um povo de cultura primitiva, mas com um povo de cultura paralela (...), uma outra humanidade, com uma outra ética, outra moral, outra visão de mundo".
EDUARDO DE ALMEIDA NAVARRO é professor de tupi e literatura colonial brasileira na USP. É autor de, entre outras obras, "Método Moderno de Tupi Antigo" (ed. Global)
Às vésperas da visita do papa Bento 16 ao país, pesquisa Datafolha revela que 97% dos brasileiros crêem em Deus. Outros 2% têm dúvidas, e 1% não acredita. Para 86% da população, Maria deu à luz Jesus, mesmo sendo virgem. Já 93% dizem crer que ele ressuscitou após morrer na cruz. O índice dos que acreditam na vida após a morte é de 60%. Segundo o levantamento, 64% se dizem católicos.
Folha de São Paulo, 6 de maio
Sunday, May 20, 2007
Te seqüestrei
Vou te reter pra sempre
Na minha idéia
No teu lugar, talvez
Fique alguma tonta
Uma dublê
Uma mulher alheia
Na minha idéia
Vives plenamente
És a pessoa
Com todas as canções
Os momentos bons e as horas más
Que a memória coa
Nas horas à toa
Às vezes ando a cismar
Serei eu mesmo esse cantor confuso
Que te rodeia
Ou estarei feliz
Sendo eternamente o que já fui
Dentro da tua idéia?
Chico Buarque - Para Todos
10. Toda blogagem se dará em paz e exercitará a liberdade de expressão inerente a qualquer democracia. A blogagem estará a salvo de perseguição política, religiosa ou doutrinária de qualquer caráter. O blogueiro será livre para dizer o que lhe venha à telha, desde que, obviamente, não cometa com a linguagem crimes de calúnia ou plágio.
9. Todo blogueiro terá o direito de passar um dia sem blogar e não receber mensagens alarmistas, preocupadas ou encheção de saco. Os blogueiros serão poupados de receber emails com gritaria ou esbravejação em letras maiúsculas e, no caso de recebê-los, serão livres para exercitarem o direito de ignorá-los ou apagá-los.
8. Todas as blogueiras terão direito de blogar em próprio nome, em pseudônimo ou em heterônimo como lhes apraza, de forma exclusiva ou simultânea. Assim como todos os outros direitos nomeados aqui preferencialmente no feminino, este também se aplica, evidentemente, aos homens que possam, saibam ou ousem exercitá-lo.
7. Sendo publicitário, funcionário público, palhaço, vendedor de seguro, jogador de futebol, aeromoça, professor universitário, paquita, lixeiro ou desempregado nas horas vagas, o blogueiro tem direito de não ser importunado, agredido, chantageado ou ofendido por sua escolha ou necessidade profissional fora das horas de blogagem.
6. Todas as blogueiras terão direito de livre associação em quaisquer grupos, incluindo-se aí grupos com objetivos e programas contraditórios. Entender-se-á a blogagem sobretudo como um direito à coexistência bizarra, insólita e feliz de diferenças na internet. Na blogosfera haverá paz de se retribuir as visitas ao blogs de cada um na devida temporalidade baiana que deve reger as coisas, sem pressa, sem culpa e sem cobrança. Ao visitar o blog alheio o blogueiro também temperará o natural desejo da recíproca com semelhante tranqüilidade.
5. Toda blogueira estará livre de qualquer responsabilidade sobre afirmações feitas por outras pessoas em seu blog. Nenhuma blogueira poderá ser interpelada, processada ou censurada por ofensas ditas por outrem em seu blog. Caso alguma pessoa se sinta ofendida por algum comentário e reclame, a blogueira terá amplo tempo para decidir qual a atitude correta de anfitriã que exercita seus direitos de cidadã numa democracia onde àqueles correspondem, é claro, deveres também.
4. A todo blogueiro será garantido o direito de promover votações, concursos, citações, retrospectivas, autolinkagem ou reciclagem sem ser acusado de estar ficando sem assunto.
3. Todo blog terá liberdade absoluta de linkar, deslinkar e relinkar como lhe preze, entendendo-se que a linkagem é ato livre, unilateral e jamais significa, por si só, um endosso de conteúdo do site linkado. Todo blogueiro terá paz para ir linkando aqueles que o linkam ou não, na medida em que ele vá viciando-se em blogs.
2. Todo blogueiro terá o direito de exercitar periodicamente o direito de dizer abobrinhas sobre assuntos que não entende, de tal forma que os blogs de futebol serão apoiados quando resolvam falar de música e os blogs de economia contarão com a compreensão geral quando decidam falar sobre a composição do vinho. Mais bobagem que certas revistas semanais blog nenhum conseguirá dizer.
1. Todo blogueiro terá o direito de propor decálogos incompletos – eneálogos, na verdade – e solicitar ser completado, corrigido ou auxiliado pela caixa de comentários. Esqueci de alguma coisa? Sejam bem-vindos.
http://www.idelberavelar.comSunday, May 13, 2007
Marcadores: Hannah Arendt
Saturday, May 12, 2007
Something in the way she moves
Attracts me like no other lover
Something in the way she woos me
I don't want to leave her now
You know I believe and how
Somewhere in her smile she knows
That I don't need no other lover
Something in her style that shows me
Don't want to leave her now
You know I believe and how
You're asking me will my love grow
I don't know, I don't know
You stick around now it may show
I don't know, I don't know
Something in the way she knows
And all I have to do is think of her
Something in the things she shows me
Don't want to leave her now
You know I believe and how
George Harrison; The Beatles - Abbey Road
Monday, May 07, 2007
Salman Rushdie; Shalimar, o equilibrista.
Se a vingança não tivesse uma finalidade fundamental, não seria tão gostosa. Comer, dormir e amar também são muito gostosos. A natureza nos premia sempre que fazemos algo que nos preserva e nos melhora: nos dá prazer.
A sabedoria popular, que nem sempre é sábia, neste caso corrobora e sofistica: vingança é um prato que se come frio.
O budismo diz que aprendemos muito mais com nossos inimigos do que com nossos amigos. Koellreutter (para quem não conhece: vale a pena uma visita google) agradecia aos seus inimigos intelectuais, que o fizeram pensar profundamente em respostas a dar-lhes. Imagino seu prazer quando encontrava boas respostas: vingança.
Luxemburgo mandou um recado a Pedro e Tiuí: aproveitem o bicampeonato do Santos, vocês também o construíram. Tapa em luva de pelica ou a outra face: profundamente civilizatório. Pelo que sabemos, para unir e motivar o time, Luxa não incitou o ódio contra os dois, apenas sentimentos positivos a partir do que os jogadores construíram anteriormente na campanha. Alguns jogadores choraram. E, depois, comeram a bola. Jesus e Ghandi aprovariam. Mas imagino o quanto o ódio pelas deserções de Pedro e Tiuí inspirou Luxemburgo a bolar o tal vídeo motivador. A gente sabe que Luxemburgo pode ser tudo, sobretudo inteligente, mas nem um pouco bonzinho. Agora, imagino Luxemburgo esfregando as mãos e pensando na burrice dos dois e na “esperteza” do empresário deles. Essa vingança deverá lhe dar tanto prazer quanto a de ganhar um campeonato paulista.
Outra corroboração ao tema – esta, mistura de vingança e amor – é o tesão gerado pela raiva de cônjuges que precisam de vingança, tesão que possibilita o adultério e que cessa uma vez saciada a raiva (não quando saciado o tesão, que nem existia de fato, pois que não dá início a um novo relacionamento, não era essa a sua função): o prazer acaba – recebe-se o prêmio – quando a raiva é saciada. Ou seja, raiva dá tesão, para se vingar. Tudo muito darwiniano. E o destinatário da vingança, se inteligente, se souber aproveitar a dor, aprenderá algo. Aprender também dá prazer.
Jesus quis nos poupar de sermos objetos de vingança quando ensinou (na verdade, reciclou, dizem eruditos) o amor ao próximo como a si mesmo. Por outro lado, promoveu uma forma sofisticada de vingança, talvez a mais terrível: dar a outra face. Ghandi corroborou. É uma pena que os resultados da técnica proposta por Jesus e Ghandi sejam tão demorados.
Hermelino Mantovani; www.hermelinodepressaoefama.blogspot.com/
Não esqueço meus passeios, em tardes de verão dos anos 60, pelas ruas do Queens, do Brooklyn ou do Bronx: sentados em cadeiras de plástico ou nos degraus que levam à porta dos edifícios, com uma cerveja gelada ou um sorvete na mão, lá estavam os representantes ou os restos de fantasias de uma vida melhor, mais livre, mais rica e mais feliz. Da Ásia, da África, da América Central ou do Sul, da Europa, seus pais, avós, bisavós ou seus ascendentes longínquos tinham fugido a miséria, a opressão, a perseguição ou simplesmente o tédio e seguido um sonho de glória, paz, liberdade, bem-estar e riqueza. Para outros, descendentes de escravos, no lugar do sonho, devia estar o pesadelo do rapto, do cativeiro e do transporte forçado (com a obrigação de inventar novos sonhos, do zero).
Essas fantasias (frustradas ou realizadas) assim como os pesadelos de quem foi trazido à força são, antes de mais nada, histórias que raramente são contadas. Talvez esta seja uma condição necessária da América, um preço implicitamente cobrado na entrada: um esquecimento da vida antes da viagem, do trajeto, da ruptura e também dos sonhos (bons ou ruins, conscientes e inconscientes) que decidiram ou acompanharam a viagem.
O barulho de fundo da metrópole americana, aquele murmúrio indefinível que você escuta sempre, quando abre a janela, mesmo de madrugada, não é o dos carros que ainda circulam, da atividade da cidade "que nunca dorme"; talvez seja o burburinho de milhões de histórias engasgadas, que tentam se dizer e não conseguem.
[...] Há uma estranha proximidade entre o trabalho do terapeuta e o do escritor (talvez fosse melhor dizer escriba), que tem a incumbência de escutar, talvez decriptar (ou, por que não, inventar) as histórias que os outros são impedidos de contar.
Um dia, ainda escreverei um ensaio intitulado O Terapeuta Americano - imitando o empreendimento de Ralph Waldo Emerson quando escreveu The American Scholar para mostrar a especificidade da condição do intelectual americano (nos Ensaios, Martin Claret).
A idéia central será, sem dúvida, que, nas Américas, não há acesso verdadeiro à subjetividade sem abrir as malas de quem veio, ou seja, sem reconstruir a vida pregressa e a história dos sonhos, da tragédia ou da agonia da emigração (a do sujeito ou a de seus ascendentes que emigraram).
Contardo Calligaris - Verdes Trigos
Os talibobos
Júlio Ludemir - www.no.com.br
“Osama nas alturas”, declamou o poeta Chacal, para delírio de uma platéia repleta de jovens, em torno dos 20 anos. O trocadilho, seguido de uma saudação a Alá, não era de brincadeira: o terrorista Osama bin Laden, principal suspeito do atentado que chocou o mundo, tinha ali uma manifestação genuína de simpatia e apoio. A estranha cena aconteceu no Rio de Janeiro, numa sessão do evento cultural CEP 20.000, na noite da quinta-feira, 27. E as palmas e gritos do público, formado principalmente de estudantes universitários, mostravam que o barbudo saudita, normalmente emoldurado pelo cartaz de procura-se, para algumas tribos cariocas é candidato a guru.
Enquanto o mundo assistia chocado às cenas repetidas até a exaustão na televisão, um grupo de estudantes de Ciências Sociais da Uerj comemorava cada um dos replays como se fosse o Brasil fazendo gol em Copa do Mundo. No dia seguinte, funcionários da PUC correram para apagar a pixação “BIN LADEN” que apareceu em uma das paredes da universidade. Na sexta-feira, 28, o poeta Fausto Fawcett levantou a platéia do Programa do Galinheiro, comandado pelo músico paraibano Totonho na rádio comunitária da Fundição Progresso, com uma música que tinha o seguinte refrão: “É Talibom, É Taliboa.”
Os excluídos, que já serviram de mote para discursos demagógicos, agora são usados numa estranha mistura de poesia com terror. “Para nós, o terrorista bin Laden e o profeta Gentileza, que também já foi tema de um dos CEPs 20.000, são dois lados de uma mesma moeda”, disse a no.. Essa moeda, segundo ele, seria a dos excluídos, que já estariam cansados de ficar de fora do banquete da globalização. “Em princípio, todo mundo fica chocado quando pensa no número de vítimas do atentado. Mas do ponto de vista de uma sociedade como a indígena, seria igualmente chocante o fato de passarmos indiferentes por crianças famintas pedindo esmolas, achando que é normal, a vida é assim mesmo.” Mas não é só isso. Chacal tenta ver o atentado atribuído a bin Laden como uma poética manifestação de uma cultura que a sensibilidade ocidental jamais entenderá. “Apenas os árabes, que acreditam em guerras santas e se dispõem a morrer por elas.”
Para Chacal, o público do CEP 20.000 está interessado nesse tipo de manifestação porque está aberto a aceitar o outro. “A rapaziada vem aqui não porque gosta de mim ou para ver grandes estrelas cultuadas pela mídia”, avalia. “As pessoas vêm aqui para se ver no palco, que sempre vai estar aberto para aceitar o outro, por mais irracional e absurdo que ele seja.” Não foi à toa que um dos personagens mais identificados e cultuados por esse público foi Joe, que, até morrer no início deste ano, só tinha dois lugares para manifestar a sua loucura: o CEP e o Pinel. “Era uma outra postura, a da loucura mesmo. O mesmo rótulo que as pessoas estão carimbando nas façanhas do bin Laden.”
Um dos artistas que amadureceram dentro do universo enfumaçado do CEP 20.000 foi o misto de poeta, músico e cineasta Dado Amaral, hoje com 32 anos. E ele também estava presente no evento dedicado a bin Laden, do qual participou improvisando uma fala que tinha como objetivo mostrar os aspectos intrigantes do líder árabe. “Bin Laden é o antídoto que se tornou veneno”, filosofa. Uma das razões para acreditar nessa idéia está no fato de o terror árabe ter sido financiado pelo capital americano durante a Guerra Fria. Para Amaral, bin Laden também inverteu a lógica da internet, que foi criada como uma arma de defesa pela CIA e se tornou uma eficiente arma de guerra contra os seus inventores, “pois todo o ataque foi matematicamente executado por intermédio dos recursos da grande rede”.
Como um bom filho do CEP 20.000, Dado Amaral se diz cansado de tentar entender a lógica que conduziu o vôo cego dos aviões que derrubaram os símbolos do poder absoluto dos Estados Unidos. “A razão não explica bin Laden”, diz. “Trata-se de um outro campo. O campo da fé cega.” Ele não nega a sua admiração pelo feito de bin Laden. “A imagem das torres gêmeas caindo é arte pura.” Mais do que isso. “Do ponto de vista estético, ela teve a capacidade, que hoje se imaginava esgotada, de chocar as pessoas. Com sua irracionalidade, bin Laden realizou o que todos sempre sonhamos, que foi mostrar que a ordem pode ser ameaçada, que a revolução ainda está no campo do possível.”
O primitivismo do líder árabe também é analisado com simpatia pelo escritor paraibano Bráulio Tavares, que vê bin Laden como uma espécie de Antônio Conselheiro do Oriente Médio. “Quem é sertanejo e anda montado em cima de um burrico, naturalmente vai se identificar com bin Laden”, afirma Tavares. Ele tem certeza de que seus conterrâneos devem estar vendo o terrorista como um herói romântico da estirpe de um Lampião. Ele ressalva que é incondicionalmente a favor da paz.
Para Chacal o mundo pós-queda das torres gêmeas mostra que o que se convencionou chamar de liberdades democráticas não passa de um mito, que a mídia está sempre manipulando. “Que liberdade é essa?”, pergunta o poeta. “A de escolher se queremos um Big Mc ou um Mini Mc?” E manda também seu torpedo contra as torres gêmeas: “Elas representam a repetição, que traz implícita a exclusão do outro”, filosofa, fazendo uma referência a um ensaio do pensador francês Jean Baudrillard que leu recentemente. “E o outro, cansado de ser massacrado, encontrou no gesto kamikasi dos fundamentalistas islâmicos uma maneira de ser ouvido.”
As tribos pró-bin Laden aparecem nos mais inusitados locais. Na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), professora Roberta Martins chegou a dar aulas vestida com um shador árabe. Ela diz que foi uma maneira de chamar a atenção dos seus alunos para as transformações por que o mundo estaria passando. Carioca de 30 anos, ela aceitou o convite das amigas do curso de Ciências Sociais da UERJ para comemorar a façanha terrorista em um bar em frente à universidade. “Não cheguei a ficar como elas, que davam gritinhos de êêêêê toda vez que a imagem do World Trade Center caindo era repetida na televisão”, revela. “Mas confesso que fiquei eufórica por ver a empáfia dos Estados Unidos caindo junto com as torres.”
Durante dias, o seu grupo trocou excitados emails, encaminhando as mensagens que chegavam com as mais diversas versões sobre a tragédia, do boato de que a CNN teria simulado imagens dos muçulmanos comemorando a derrota norte-americana a piadas sobre o covarde sumiço do presidente George Bush no dia do atentado. Freqüentadoras assíduas das rodas de samba da cidade, Roberta e suas amigas de faculdade ainda hoje acham que “é qualquer coisa ver o Pentágono derrubado”.
“É tão bom ver os estragos provocados na auto-imagem dos americanos que não dá nem para sentir pena com a chamada dimensão humana do que aconteceu no dia 11.” Mas essa estranha sensação de felicidade parece estar, com o tempo, transformando-se numa espécie de ressaca. “Agora estou vendo que ele não é um palestino e que a sua luta não é tão justa assim”, admite ela.
Saturday, May 05, 2007
O ônibus que levava os atores e músicos para Srinagar não conseguiu chegar à garagem por causa das multidões que se reuniam nas ruas da cidade sob os olhos nervosos do Exército e da polícia. Os bhand tiveram de descer, carregar seus próprios adereços e ir andando. Já havia mais de quatrocentas mil pessoas enchendo as ruas. Abdullah Noman perguntou ao motorista do ônibus o que estava acontecendo. "É um enterro", ele respondeu. "Vieram chorar a morte da nossa Caxemira".
A cortina subiu para mostrar a história do bom rei Zain-ul-abidin e Abdullah entrou no palco com uma espada em riste em uma mão e uma lança na outra, apertando forte as armas, ignorando as pontadas de dor que atravessavam suas mãos. Estava dando o exemplo pela última vez na vida, dando um recado para sua trupe entediada e rebelde. Se eu conseguir me colocar acima da minha dor, talvez consiga me colocar acima da indiferença deles. Mas o auditório estava três quartos vazio e os poucos turistas sentados ali não estavam ouvindo de verdade, porque através das paredes do teatro vinham os sons abafados do começo do levante, da multidão de um milhão de pessoas marchando pelas ruas levando tochas acesas acima das cabeças e gritando "Azadi!" O sardar Harbans Singh estava sentado no meio da sétima fila toda vazia, junto com seu filho Yuvraj, um rapaz excepcionalmente bonito cujas tendências à modernização eram alardeadas pelo rosto barbeado e ausência de turbante sikh.
Com a sensação de um homem que mergulha de um alto pináculo para a morte, Abdullah Noman fixou em seu camarada o olhar mais feroz, mais brilhante e lançou-se à peça com toda a força que lhe restava. Durante a hora seguinte, no silêncio da tumba do auditório, os bhand de Pachigam contaram uma história que ninguém queria ouvir. Diversos membros da platéia se levantaram durante a apresentação. No intervalo, Yuvraj, o filho do sardar Harbans Singh – um homem de negócios que, apesar da situação política cada vez pior, estava exportando com sucesso as caixas de papier mâché, as mesas de madeira entalhada, os tapetes numdah e os xales bordados da Caxemira para o resto da Índia e também para compradores ocidentais, que apoiava os bhand "como um ato de ridículo otimismo, considerando que a região está a ponto de enlouquecer" -, alertou Abdullah Noman que as coisas podiam escapar ao controle na rua e os manifestantes poderiam até invadir o teatro. "Você está segurando uma espada e uma lança", Yuvraj Singh lembrou a Abdullah. "Se eles entrarem aqui, quer um conselho? Esqueça da peça. Jogue esses objetos de cena no chão e saia correndo." Ele próprio teria de perder o segundo ato, desculpou-se. "A situação, entende?", explicou, vagamente. "A pessoa tem os seus deveres pessoais a cumprir."
No vácuo do teatro vazio, Abdullah Noman viu sua trupe de jovens desinteressados fazer a performance de suas jovens vidas, como se repentinamente tivessem entendido um segredo que ninguém havia lhes explicado antes. As fortes pulsações da manifestação ressoavam em torno deles, o brado dos manifestantes era como um coro gritando condenação, a ameaça da multidão cada vez maior estalando em torno dos lugares vazios como uma carga elétrica. Mesmo assim, os bhand de Pachigam continuaram com a apresentação, dançando, cantando, fazendo palhaçadas, contando sua antiga história de tolerância e esperança. A certo ponto, Abdullah Noman sucumbiu à ilusão de que suas vozes, seus instrumentos, tinham ficado inaudíveis, que, embora estivessem declamando seus versos, cantando suas canções e tocando sua música com um paixão que não demonstravam havia muito tempo, reinava um completo silêncio no teatro, uns poucos espectadores sentados, mudos, assistindo a uma apresentação muda, enquanto lá fora na rua o barulho era imenso e ficava maior a cada instante, um segundo grupo de ruídos agora se sobrepondo ao primeiro, os ruídos dos transportes de tropas, jipes e tanques, de botas marchando juntas, de armas carregadas se aprontando e, por fim, os tiros de revólver, de rifle e de automáticas. Os slogans se transformaram em gritos, as batidas de tambor em trovão, a marcha transformou-se em estampido e, quando o auditório começou a tremer, a história do rei Zain-ul-abidin atingiu silenciosamente o seu final feliz, os atores deram-se as mãos e agradeceram, mas mesmo o sardar Harbans Singh, única pessoa que restava na platéia, aplaudindo com a maior força que podia naquela situação, batia palmas sem fazer nenhum som.
Salman Rushdie; Shalimar, o Equilibrista.
Wednesday, May 02, 2007
No Afeganistão, os talebans estão de volta
Nem todos os integrantes das milícias estão ideologicamente motivados; alguns lutam apenas para vingar a morte de familiares
Françoise Chipaux - Le Monde - Enviada especial a Cabul
Hoje presentes e aparentando grande força em todo o sul do Afeganistão, os talebans realizaram nos últimos cinco anos um retorno progressivo a este país. Este ressurgimento deve muito à incúria do governo afegão, aos erros da comunidade internacional e também à ajuda que o movimento dos "estudantes em teologia" recebe do Paquistão e da Al Qaeda.
No sul do país, essencialmente povoado por pachtunes, os talebans - que constituem eles mesmos um partido pachtune - são considerados como menos corruptos e mais eficientes do que os oficiais nomeados pelas autoridades oriundas das eleições que se seguiram à intervenção militar americana, no outono de 2001.
Além disso, num Estado onde a estrutura tribal permanece forte, as alianças concluídas pelo presidente Hamid Karzai - ele mesmo um pachtune - ou principalmente, no terreno, pelo seu irmão Ahmad Wali, irritaram um grande número de dirigentes tribais, os quais, atualmente, colaboram com os talebans.
A comunidade internacional, que, em 2001, havia prometido mundos e fundos e um futuro maravilhoso aos afegãos, mostrou-se incapaz de manter suas promessas, entre outras nas áreas pachtunes, onde, ao contrário, a guerra nunca esteve tão intensa. Além do mais, as forças estrangeiras da coalizão, inicialmente dirigidas pelos Estados Unidos e agora pela Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), multiplicaram os erros de comportamento em relação a uma população extremamente conservadora, empurrando inúmeros jovens nos braços dos talebans.
Por fim, os chefes do antigo regime encontraram no Paquistão vizinho um refúgio propício para a reorganização do seu movimento. A Al Qaeda, que havia transformado o Afeganistão no seu santuário durante o regime dos talebans, contribuiu, tanto financeiramente como pelos seus conselhos técnicos e estratégicos, para o renascimento de um movimento mais radical ainda do que era em 2001. Nas zonas tribais paquistanesas que ficam na fronteira com o Afeganistão, os jovens talebans estiveram em contato com combatentes aguerridos da Al Qaeda, que nelas se refugiaram.
A nova geração dos talebans é muito mais extremista e bem mais sensível às sereias da "jihad" (guerra santa islâmica) internacional. "Ela foi formada nas 'madrasas' [escolas corânicas] fundamentalistas que se multiplicaram no Paquistão ao longo da fronteira afegã", afirma, em Cabul, o analista político Wahid Modjda. "Nós estamos constatando atualmente uma aproximação muito clara entre os talebans e a Al Qaeda; o que está gerando, em conseqüência, uma quantidade cada vez maior de ações copiadas do 'modelo' iraquiano".
Um exemplo característico dessa tendência são os atentados suicidas; anteriormente inexistentes no Afeganistão, eles não param de se multiplicar. Dos 27 que foram registrados durante o ano de 2005, eles passaram para 139 em 2006; enquanto mais de 45 já foram perpetrados neste ano.
Os talebans vêm multiplicando também os atentados por meio de artefatos explosivos improvisados, os quais eles colocam geralmente nas estradas utilizadas pelos comboios das forças locais ou estrangeiras, recorrendo a técnicas mais elaboradas. "Os sistemas de disparo são acionados mecanicamente e, com isso, não podem ser interrompidos por meio de interferências eletrônicas", afirma um especialista.
Além de tudo, eles também adaptaram a sua maneira de combater. Os talebans passaram a operar por grupos muito móveis, que perseguem as forças de segurança. Segundo especialistas, eles receberam armas da maior potência, principalmente canhões antiaéreos que eles instalaram sobre camionetes. Por fim, a Al Qaeda estaria pedindo atualmente aos chefes talebans que conservaram a direção das operações militares para recrutarem jovens que se disponham a combater diretamente sob as suas ordens.
Vários dos seus centros de treinamento estão situados na fronteira entre o Paquistão e o Afeganistão. Um desses campos, que fica à proximidade de Barmal, na província afegã de Paktika, que faz fronteira com a zona tribal paquistanesa do Waziristão do Sul, estaria sendo dirigido por Abu Yahia Al-Libi, também conhecido como Mohammad Hassan, um dos foragidos da prisão da base americana de Bagram, em julho de 2005.
Um outro campo, dirigido por Abu Leith Al-Libi, estaria instalado na densa floresta de Shawal, na zona tribal do Waziristão do Norte, perto das províncias afegãs de Khost e de Paktia. Esses "campos", dotados de estruturas leves que podem ser dissimuladas ou desaparecer fácil e rapidamente, acolhem aprendizes de guerrilheiro talebans. Por exemplo, num vídeo que data do final de 2006, é possível ver o mulá (chefe espiritual islâmico) Dadullah, um líder militar dos talebans, "visitar um dos centros dos mudjahidines da Al Qaeda, Al-Djihad, no Afeganistão", conforme está explicado no próprio documento.
Entretanto, no terreno, a imensa maioria dos combatentes é composta por jovens afegãos que aderiram ao movimento ora por convicção ideológica, ora por carência total de oportunidades econômicas, ora ainda para vingar um membro da sua família. "Um pachtune lava o sangue com o sangue, e milhares de talebans foram mortos em 2001, afirma Wahid Modjda. "Com isso, é muito grande o número de famílias que querem se vingar".
O próprio mulá Naeem-ur-Rahman Hashimi, que se dedica ao treinamento dos comandos suicidas, admite que nem todos eles estão ideologicamente motivados. "Atualmente, não são mais apenas os talebans que se fazem explodir com cargas explosivas. Há também pessoas ordinárias que fazem isso porque o seu pai ou os seus irmãos estão na prisão, ou porque eles mesmos dela saíram com a sua vida acabada, e tiveram a sua dignidade vilipendiada; e que eles sabem que, caso conduzirem uma operação suicida, eles irão para o paraíso", diz.
Mais de cinco anos após a queda do seu Emirado islâmico, os talebans representam uma força impossível de evitar, que conseguiu demonstrar que, apesar da sua superioridade tecnológica e militar, as tropas estrangeiras não reúnem todas as condições necessárias, ao contrário do que a população tanto esperava em 2001, para garantir a segurança e a paz.
Tradução: Jean-Yves de Neufville