As escolinhas de cultura
De um lado, gente que quer aprender; de outro, gente que quer ensinar. Entre eles, um dinheiro que não havia na forma que se apresenta hoje e o conhecimento escorregando das universidades e dos salões domésticos em direção às escolinhas de cultura.
O fenômeno é visível há poucos anos: escolas ou “casas do saber”, conforme o nome imortalizado por uma bem sucedida rede de instituições culturais de ensino (duas em São Paulo, uma no Rio), multiplicam-se como cogumelos após a chuva. Umas com especialização em artes (Viver Arte), outras em debates culturais variados (Contraponto, Escola São Paulo), outras genéricas (Casa do Saber).
São todas iniciativas que aproveitam uma forte demanda do mercado por conhecimento superior, conforme atesta o enorme crescimento da busca por cursos de pós-graduação em humanidades na condição de “alunos especiais” ou “alunos ouvintes” -portanto sem obrigações formais em relação a titulação. Estima-se que esta demanda cresceu cinco vezes mais do que a demanda por cursos regulares de pós-graduação nas universidades públicas. Acompanhando essa tendência, a nova modalidade de “casas de cultura”, onde são ofertados cursos livres sobre inúmeras áreas do conhecimento, é o verdadeiro MBA das ciências humanas.
Nas áreas técnicas (medicina, engenharia, meio ambiente, economia, administração etc.) as fundações universitárias não só desenvolvem programas de MBAs como “pós-MBAs”. Um curso desse tipo na Fundação Instituto de Administração, da USP (FIA-USP) custa cerca de R$ 3 mil.
O professor Jacques Marcovitch, por exemplo, ex-reitor da USP e professor da Faculdade de Economia e Administração (FEA), onde ministra o curso de relações internacionais, oferece um curso de “Pioneirismo Empresarial e Empreendedorismo Sustentável” nesse valor. Quem não é aluno regular da FEA precisa desembolsar, se quiser ouvi-lo; quem é aluno, aprende com ele de graça na sala de aula.
Atualmente existem 4,4 milhões de alunos matriculados em cursos de ensino superior em todo o Brasil. Desses, 3 milhões (72%) estão na rede privada. Estima-se que em 2010 serão 5,7 milhões de alunos, de modo que os tentáculos da privatização, inclusive indireta, via MBAs, continuarão a avançar sobre a rede pública.
As 20 maiores instituições de ensino privado do Brasil faturaram, em 2003, R$ 4,8 bilhões, sendo que só a Universidade Paulista (Unip) faturou R$ 676 milhões, e a Estácio de Sá, R$ 482 milhões. É um mercado milionário, e entende-se que outros produtos e formas de aquisição de conhecimentos sejam constantemente ofertados, ampliando os ganhos do sistema de ensino privado ou público-privatizado via MBAs.
Os alunos desses cursos técnicos, assim como as empresas para as quais trabalham, estão convictos de que o que vale mesmo na competição moderna é o “capital intelectual” de cada um. Vêem a sua própria formação como “investimento”, não como consumo. São, num certo sentido, os capitalistas de si próprios1, na procura incessante de formas de enriquecer o patrimônio cultural que adquira expressão “salarial”.
O que destoa nesse mercado são os cursos não diretamente referidos ao mundo dos negócios e formas de ganhar dinheiro que as pessoas acreditam decorrer do conhecimento. Assim, cursos de artes plásticas, ciências sociais, cinema, filosofia, história, música, psicologia, temas contemporâneos, e até mesmo astronomia, são ofertados como cursos livres ou palestras, e o seu caráter diletante é evidente. Ninguém espera, através deles, “enriquecer” -a não ser metaforicamente.
Por definição, o diletantismo está situado do lado de fora da atividade produtiva, sendo por isso mesmo uma modalidade de cultura cujo consumo se associa aos momentos de ócio ou à vida das classes ociosas. Afinal de contas, para que serve o saber que não se expressa como força produtiva? Aparentemente serve para adornar ou ilustrar aqueles cujas rendas não dependem do que sabem e, portanto, não dependem da inovação frenética que o capitalismo impõe ao saber produtivo, parecendo mais ligado às formas tradicionais de cultura. O nosso modernismo nasceu nesse tipo de ambiente diletante, nos salões da família Prado -insubordinando-se depois e ganhando o espaço público.
Pessoas de elite sempre contrataram intelectuais para apresentações musicais, palestras e cursos entre amigos, ministrados nas próprias casas, escritórios e ateliês. Tratava-se do mesmo modelo da velha aula de violão ou piano “em domicílio”, mostrando como o dinheiro permite se apropriar da cultura em doses superiores àquela que é ofertada de modo público.
Mas o que se passa nas “casas do saber” não é, em ponto grande, o mesmo que se passava nos salões burgueses. Sua simples existência denuncia uma mudança nas áreas de humanidades, cuja crise é patente em todo o mundo, conforme se constata mesmo nas universidades norte-americanas: nos anos 1970, as editoras universitárias vendiam, em média, 1.250 exemplares por título de humanidades publicado; hoje vendem apenas 275 exemplares. O número de títulos se multiplicou, mas a relevância do que se publica despencou.
O livro de humanidades beira à inutilidade, exceto para os professores que, ao publicá-los, tornam-se mais competitivos ao engordarem o próprio curriculum vitae. Mais e mais os cursos de ciências humanas se devotam à reprodução dos seus próprios quadros: alunos de hoje serão professores de amanhã, fechando-se todos no círculo restrito do saber administrado pelas burocracias universitárias.
Lindsay Waters, editor da Harvard University Press, relaciona a decadência das humanidades com o fim do movimento de contracultura nos anos 1970. Depois dessa data as ciências humanas se tornaram bem comportadas, acompanhando o declínio da própria figura do intelectual público -aquele que fala ao público sobre as questões que atingem a vida coletiva-, que foi engolido pelo mercado. Assim, a famosa “Conferência de Araraquara”, de Jean-Paul Sartre, nada mais é do que parte da mitologia da vida intelectual brasileira.
Se nos anos 1970 o fascínio das humanidades estava na sua dimensão crítica e na insubordinação do pensamento, no que consiste este fascínio atual, quando a crítica ao status quo é cada vez mais uma exceção e o exercício da reflexão se torna atomizado e descolado de qualquer pratica social contestadora?
Além da falência do intelectual público e da prática social que lhe dava sustentação, além da noção moderna de “capital intelectual” que faz do trabalhador uma unidade de negócios, e do seu consumo cultural uma modalidade de “investimento”, é preciso considerar, no novo modo de aquisição cultural, a evolução da própria vida diletante.
A multiplicação das “casas do saber”, a par com a multiplicação dos MBAs, se deve à impermeabilidade crescente das universidades ao diletantismo do aprendizado. Elas abrigam curadores de arte, fashionistas, filósofos, professores universitários em geral, artistas plásticos -pessoas que se especializaram, mas cuja audiência vai além do seu público igualmente especializado e que estão dispostos a contar o que se passa “por trás” da vida cotidiana.
O “segredo” da filosofia, das artes plásticas, da antropologia, é o que atrai o leigo. Muitas vezes os mestres são professores aposentados que, no entanto, se encontram em pleno vigor produtivo. Todos se lançam nesses novos “espaços culturais” e descobrem um novo e fascinante universo, que cresce dia a dia sem depender da burocracia universitária.
Só a impermeabilidade e o extravasamento da vida universitária explicam que um curso de introdução à antropologia -ou outro mais especializado, sobre Franz Boas– possam encontrar interessados no mercado. Só o público não-especializado, livre das modas acadêmicas, pode encontrar em Franz Boas matéria de reflexão como “novidade”.
Por outro lado, o novo “intelectual público” tornou-se aquele que sabe o que o comum dos mortais não sabe -já não sendo necessário que o seu discurso esteja centrado nas esferas da vida pública. Nesse sentido preciso, ele também se tornou um diletante.
“Especialistas” em qualquer coisa de interesse estão em alta simplesmente porque trazem a público os conteúdos culturais seqüestrados dos campos acessíveis da cultura. Por paradoxal que seja, numa espécie de da cultura de massa “exclusiva”, há sempre com quem aprender, com a vantagem de que o novo consumidor pode compor o seu próprio repertório “zapeando” a oferta cultural.
Seguramente há um segmento do mercado cujo objetivo é parecer culto. Talvez, nele, Franz Boas ainda tenha um valor maior do que na antropologia que já não o cultua (a moda agora é Philippe Descola, o antropólogo que se pôs a filosofar na selva, entre os Achuar da Venezuela).
É claro que a cultura que assim se apresenta pode ser ironizada pelo seu lado “chique”, ou pela atração que eventualmente exerce sobre mocinhas casadoiras & solitários em geral. Ou, ainda, pelo saber “inútil” e pretensioso, imortalizado no monólogo do teatrólogo Pedro Bloch (“As Mãos de Eurídice”, 1950), ironizando a personagem que, um dia, foi flagrada numa festa, entre um uísque e outro, explicando o “azul de Portinari” para... o próprio Portinari! Mas este é um ponto de vista parcial. De fato, a cultura se fracionou e especializou, desenvolvendo-se em nichos e se apresentando como uma coleção de cacos sem nexos evidentes entre si.
O que os cursos extra-universitários de humanidades oferecem é justamente uma coleção de nexos que se escondem por trás do modo desestruturado como a cultura se apresenta.
Um só exemplo é suficiente: a “Revista Civilização Brasileira”, surgida em 1965 e desaparecida em 1968, pretendia mostrar um país cindido em duas culturas, resultante do golpe militar de 1964. Ao apresentar o pensamento democrático “em bloco” favorecia uma intelecção orgânica do mundo, o que se desfez nas décadas seguintes. Hoje as revistas de cultura são segmentadas e ultra-especializadas, dificultando a compreensão mais ampla da realidade, ou como se articulam os diversos segmentos do saber. Em resumo, é mais fácil se especializar em cinema do que compreender o seu significado moderno articulado com outros campos do fazer cultural.
“Produto de sociedades despedaçadas, o intelectual é sua testemunha porque interiorizou seu despedaçamento”, dizia Sartre, mas é nos cursos das “casas do saber” que ele busca reconstruir totalidades às quais a vida cotidiana é refratária; nelas a sua especialidade busca responder a uma curiosidade livre e errática, ávida por encontrar nexos entre a vida e o saber.
Mas há instituições de todo tipo. Como o espaço Contraponto, do pintor Sergio Fingermann, onde os cursos, palestras e eventos lembram um “revival” das velhas discussões que, outrora, animaram a cultura paulistana em torno da Faculdade de Filosofia da USP, sediada na rua Maria Antonia, cuja marca era a abordagem holística da cultura, especialmente relacionando-a com a política. É inegável que no Contraponto se discute coisas relevantes para o desenvolvimento da cultura mesmo em áreas especializadas, mas ele só pode existir porque o “modelo público Maria Antonia” ruiu.
A novidade é que esse tipo de atividade institucionalizou-se e passou a ser administrada pelo capital e, por outro lado, o cardápio se ampliou. Assim, parece que a expulsão dos diletantes das universidades e a ampliação do mercado de consumo desse tipo de cultura constituem a base objetiva de sustentação das “casas do saber”. Por outro lado, elas também são devedoras da própria representação moderna da cultura como “patchwork”, disposta como cacos ou fragmentos de totalidades que já não parecem fazer sentido para quem não está imerso cotidianamente no discurso estruturado do saber universitário.
Carlos Alberto Dória - É sociólogo, doutorando em sociologia no IFCH-Unicamp e autor de "Ensaios Enveredados", "Bordado da Fama" e "Os Federais da Cultura", entre outros livros.