FOI LANÇADO no final da semana passada o Movimento Cívico pelo Direito dos Brasileiros, liderado pela Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional São Paulo e com a participação de diversas entidades e lideranças da sociedade civil e chamado de "Cansei". Foi inicialmente motivado pela indignação em relação ao acidente aéreo em Congonhas e tomou forma de um protesto contra alguns aspectos do caos atual: balas perdidas, impostos, empresários corruptores.
O movimento, segundo seus organizadores, é "em prol da cidadania" e sem "cunho político". Um movimento "em prol da cidadania" pode ser até apartidário, mas é sempre um movimento político. A começar pelos aspectos que escolhe. Não se diz, por exemplo, "cansei de ver cidadãs e cidadãos morrendo de fome nas ruas do meu país". Indignação é um sentimento fundamental para tornar viva a crítica a todo tipo de injustiça. Mas é preciso ir além do mero sentimento e enfrentar o duro fato de quem critica também colabora para manter a injustiça, também é parte do próprio problema.
Mais que isso, falar em cidadania junto com "civismo" não tem nada de neutro. Inclui um conjunto de valores muito determinado. Em entrevista ao jornal "O Estado de S. Paulo", o empresário Alencar Burti, presidente da Associação Comercial de São Paulo e um dos idealizadores do movimento, declarou: "Há um desencanto, uma tristeza grande, e quando isso prevalece sempre pode surgir um aventureiro para levar o país a um destino muito ruim, sem rumo". E explicitou o "rumo" em termos do tempo em que era jovem, em um bairro da cidade de São Paulo: "Era um tempo em que não se prescindia da honra. Aquele que assumia uma conduta incompatível a nossa rua excluía prontamente. Temos que recuperar esses valores, do contrato de honra, o tempo saudável do olho no olho que caiu em desuso". Lidar com o caos atual não é fácil.
E agir politicamente contra essa situação é urgente. Mas fazer isso com recurso a um conjunto de valores que explicitamente exclui condutas consideradas incompatíveis com a "nossa rua" não colabora para a promoção da cidadania. Reagir ao caos exige aprofundar a democracia. Exige mais e mais respeito e reconhecimento a todas as formas de vida. Não é com valores e civismo que se vai conseguir isso. Uma volta a valores tradicionais, a uma "ordem" que teria sido perdida só vai substituir o caos pela repressão e pela coerção contra quem não compartilha dessa maneira de viver e de pensar. Quanto maior o caos, maior tem de ser a tolerância e a lucidez das reações para superá-lo.
MARCOS NOBRE escreve às terças-feiras nesta coluna. Folha - Opinião