Sunday, September 30, 2007
Saturday, September 29, 2007
Thursday, September 27, 2007
Em 1992, tendo sido dada pelo pai em casamento a um parente que habitava no Canadá, Hirsi Ali passou -a caminho desse país- pela Holanda, onde pediu e obteve asilo político, aprendeu holandês, estudou ciência política na Universidade de Leyden e participou ativamente, por um tempo determinado, da política holandesa.
Em 2002, Hirsi Ali renunciou ao islã e se declarou atéia. Tendo, a partir de então, publicado inúmeros artigos, proferido conferências e participado de debates em que fez sérias críticas ao islã, e mesmo ao profeta Maomé e ao Alcorão, ela foi diversas vezes ameaçada de morte.
Hirsi Ali escreveu também o roteiro do filme "Submissão", sobre mulheres muçulmanas, de Theo Van Gogh, assassinado em Amsterdã por um radical islamista que, no peito da vítima, pregou com uma faca um bilhete em que dizia, entre outras coisas: "Hirsi Ali, você será despedaçada pelo Islã". Ela hoje mora nos Estados Unidos.
Em artigo que acabou provocando uma grande polêmica, inicialmente na internet e, em seguida, em vários jornais dos Estados Unidos e da Europa, o historiador e professor em Oxford Timothy Garton Ash descreve Hirsi Ali nas seguintes palavras, ao mesmo tempo irônicas e paternalistas: "Tendo sido na juventude, sob a influência de um professor inspirado, tentada pelo fundamentalismo islâmico, Ayaan Hirsi Ali é agora uma corajosa, franca e levemente simplória fundamentalista do Iluminismo".
A formulação de Ash implica que ela tenha simplesmente trocado de fundamentalismos e, no limite, que o islamismo equivale ao Iluminismo: convicção multiculturalista que reaparece adiante, quando ele afirma que, se o iluminista quiser convencer o islamista argumentando que a sua fé se baseia na razão, o islamista poderá responder que a dele se baseia na verdade: e ei-los empatados.
A tese de Ash é insustentável. Para comprová-lo, considere-se o ponto de vista a partir do qual ele está a descrever esse impasse. Necessariamente, trata-se de um ponto de vista exterior ao de qualquer um dos dois antagonistas; é um ponto de vista que, sendo sobre os antagonistas, nem se identifica com nenhum deles em particular, nem deixa de compreender cada um deles isoladamente e ambos em conjunto. Ora, esse é precisamente o ponto de vista do Iluminismo: o ponto de partida do pensamento moderno.
Montaigne, por exemplo, quando, na Renascença, compara favoravelmente os índios antropófagos brasileiros com os cristãos europeus, diz que podemos chamar os canibais de "bárbaros" "tendo em vista as regras da razão, mas não tendo em vista a nós mesmos, que os superamos em toda espécie de barbárie".
Em outras palavras, ele fala de um ponto de vista que é não só exterior ao da cultura dos índios, mas exterior também ao da cultura cristã em que fora criado: por isso ele é capaz de criticar essa cultura. E esse ponto de vista é, segundo Montaigne, o das "regras da razão", ou, simplesmente, o da razão.
Descartes apenas radicaliza esse ponto de vista, ao observar que "aqueles que têm sentimentos muito contrários aos nossos nem por isso são bárbaros ou selvagens, mas que muitos usam, tanto ou mais que nós, da razão [...] e um mesmo homem, com seu mesmo espírito, sendo nutrido desde a infância entre franceses ou alemães, torna-se diferente do que seria, se tivesse sempre vivido entre chineses ou canibais".
Descartes está aqui, nada mais, nada menos, relativizando as diferentes culturas, a partir de um ponto de vista que não pertence a nenhuma cultura particular, mas que pode ser aberto por e para qualquer ser humano pertencente a qualquer uma delas: o ponto de vista da razão, do Iluminismo, da modernidade.
O reconhecimento universal desse ponto de vista, que é logicamente exterior, anterior e superior a qualquer cultura ou religião particular, é a condição da coexistência pacífica de todos, num mundo cada vez menor. É por isso que Ash está errado, ao colocá-lo no mesmo nível que o ponto de vista de uma religião particular, tal como o islamismo.
http://antoniocicero.blogspot.com
Duas pesquisas americanas chegaram, separadamente, à conclusão de que os homens de hoje são mais felizes que as mulheres.
Segundo as pesquisas, dos anos 70 para cá os sexos trocaram de lugar na escala de felicidade: se naquela época elas eram um pouco mais felizes do que eles, atualmente são eles que levam vantagem.
Um estudo realizado pelo economista Alan Krueger, da Universidade de Princeton, perguntou aos pesquisados o que sentiam durante cada atividade que praticavam durante o dia.
Homens e mulheres deram respostas parecidas sobre o que gostavam de fazer (como sair com os amigos) e do que não gostavam (como pagar contas).
Entretanto, o estudo observou diferenças nas reações a diversas atividades.
Entre as mais curiosas, eles notaram que homens sentem aparentemente bastante prazer em passar tempo com seus pais, enquanto mulheres consideram esta atividade apenas um pouco menos prazerosa que lavar roupa.
Outra conclusão foi de que, dos anos 60 até os dias de hoje, os homens foram reduzindo gradualmente as atividades que consideravam desagradáveis.
Atualmente eles trabalham menos e relaxam mais, disseram os cientistas, ao passo que a presença das mulheres no mercado de trabalho foi crescendo.
Nos anos 70, a mulher gastava 23 horas semanais com atividades consideradas desagradáveis - 40 minutos a mais que o homem.
Hoje, se as mulheres continuam gastando o mesmo tempo em atividades de que não gostam, o tempo que os homens perdem caiu para 21,5 horas - o que aumentou para 90 minutos a diferença entre um sexo e outro.
"As mulheres atualmente têm uma lista muito mais longa de obrigações. E elas não conseguem fazer tudo, portanto muitas delas acabam se sentindo um pouco frustradas", avalia Krueger.
O casal de economistas Betsey Stevenson e Justin Wolfers, da Universidade da Pensilvânia, chegaram a uma conclusão semelhante em uma pesquisa que perguntava aos entrevistados o quão satisfeitos eles estavam com suas vidas.
Em 1976, 16% dos homens estavam satisfeitos com suas vidas; em 2007, a porcentagem subiu para 25%. Já a porcentagem de mulheres felizes se manteve igual: 22%.
Na opinião de Stevenson, a mulher de hoje provavelmente se sente menos feliz do que o homem porque, há três décadas, tinha ambições muito menores.
Segundo ela, uma estudante de Administração que encontrou recentemente resumiu o sentimento da mulher moderna.
A estudante contou que a meta de vida de sua mãe se resumia a ter um jardim bonito, uma casa organizada e crianças educadas, que tivessem sucesso nos estudos.
"Eu também quero todas estas coisas, mas também quero uma grande carreira e ter impacto em um mundo mais abrangente", disse a estudante.
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Sunday, September 23, 2007
Aquiles, o herói grego, e a Tartaruga decidem apostar uma corrida de 100m. Como Aquiles é 10 vezes mais rápido que a tartaruga, esta recebe a vantagem de começar a corrida 80m na frente da linha de largada.
No intervalo de tempo em que Aquiles percorre os 80m que o separam da Tartaruga, esta percorre 8m e continua na frente de Aquiles. No intervalo de tempo em que ele percorre mais 8m, a tartaruga já anda mais 0,8m... Dessa forma, não importa quanto tempo se passe, Aquiles nunca alcançará a Tartaruga.
A solução clássica para esse paradoxo envolve a utilização do conceito de limite e convergência de séries numéricas. O paradoxo surge ao supor intuitivamente que a soma de infinitos intervalos de tempo é infinita, de tal forma que seria necessário passar um tempo infinito para Aquiles alcançar a tartaruga. No entanto, os infinitos intervalos de tempo descritos no paradoxo formam uma progressão geométrica e sua soma converge para um valor finito, em que Aquiles encontra a tartaruga.
Coágulos de perda de tempo, adiamento, atraso e espera, ou seja, minúsculas metástases de caos se interpõem entre — irrelevante qual dos dois corre na frente — a tartaruga e Aquiles (o débito na conta; no trânsito, a demora; um ácido no estômago; frente ao correio, a fila; o mofo no tecido; nos músculos, a inércia; cupins na biblioteca; sob o tapete, o lixo; um óxido no ferro; nas pálpebras, o sono) e, como que aderindo, à guisa de entropia, ao âmago dos nervos, embotam mais um pouco o ritmo do arraigado relógio biológico.
Nelson Ascher - Algo de sol. Ed. 34, 1996 / Diagramação em prosa: Leituras
Saturday, September 22, 2007
Por pura experiência, sem fundamento científico, o doutor Juvenal Urbino sabia que a maioria das doenças mortais tinha um cheiro próprio, e nenhum tão específico quanto o da velhice. Ele o sentia nos cadáveres abertos em canal na mesa de dissecação, reconhecia-o mesmo nos pacientes que melhor disfarçavam a idade, e no suor da sua própria roupa e na respiração inerme de sua mulher adormecida. Não fosse ele o que era em essência, um cristão à moda antiga, talvez tivesse ficado de acordo com Jeremiah de Saint-Amour em que a velhice era um estado indecente que devia ser detido a tempo. O único consolo, mesmo para quem, como ele, tinha sido um homem bom de cama, era a extinção lenta e piedosa no apetite venéreo: a paz sexual. Aos oitenta e um anos tinha bastante lucidez para perceber que estava preso a este mundo por uns fiapos tênues que podiam se romper sem dor com uma simples mudança de posição durante o sono, e se fazia o possível para preservá-los era pelo terror de não encontrar Deus na escuridão da morte.
Gabriel García Márquez - O Amor nos Tempos do Cólera - tradução de Antonio Callado
Thursday, September 20, 2007
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/perfilmunic/cultura200
http://www.cronopios.com.br
http://www2.uol.com.br/revistadecinema/edicao74/index.shtml
Na semana passada, em entrevista a Folha de São Paulo, a atriz Fernanda Montenegro elogiou bastante Newell, afirmando que trata-se de um "homem com uma visão de vida pungente". Sobre o livro a dama do cinema nacional disse: “O cólera é uma doença, como o amor é uma doença e, dentro daquela cultura, eles confundem a doença do amor com a doença do cólera”.
http://www.cinemacafri.com/noticias.jsp?id=1121
Isso não nos restituirá o passado, objetar-se-á a Epicuro, nem o que perdemos... Sem dúvida, mas quem pode fazê-lo? A gratidão não anula o luto, consuma-o: "É necessário curar os infortúnios com a lembrança reconhecida do que perdemos, e pelo saber de que não é possível tornar não-consumado o que aconteceu". Pode haver formulação mais bela do trabalho de luto? Trata-se de aceitar o que é, portanto, também o que não é mais, e de amá-lo como tal, em sua verdade, em sua eternidade: trata-se de passar da dor atroz da perda à doçura da lembrança, do luto a consumar ao luto consumado ("a lembrança reconhecida do que perdemos"), da amputação à aceitação, do sofrimento à alegria, do amor dilacerado ao amor apaziguado. "Doce é a lembrança do amigo desaparecido", dizia Epicuro - a gratidão é essa própria doçura, quando se torna alegre. No entanto, o sofrimento é mais forte primeiro: "Que terrível ele ter morrido!" Como poderíamos aceitar? Por isso o luto é necessário, por isso é difícil, por isso é doloroso. Mas a alegria retorna, apesar dos pesares: "Que bom ele ter vivido!" Trabalho do luto: trabalho da gratidão.
André Comte-Sponville - A Gratidão - Pequeno Tratado das Grandes Virtudes.
Marcadores: Comte-Sponville
André Comte-Sponville - A Misericórdia - Pequeno Tratado das Grandes Virtudes.
Marcadores: Comte-Sponville
[...] O reconhecimento é um conhecimento (ao passo que a esperança nada mais é que uma imaginação); é por aí que [a gratidão] alcança a verdade, que é eterna e a habita. Gratidão: desfrutar eternidade.
André Comte-Sponville - A Gratidão - Pequeno Tratado das Grandes Virtudes.
Marcadores: Comte-Sponville
http://www.tarot.com
Tuesday, September 18, 2007
De Madri, Lula volta a perturbar a geografia, com a repetição, agora enriquecida, do aviso de que vai "dizer ao amigo Bush [...] não vamos admitir que a crise [dos Estados Unidos] atravesse o Atlântico e venha nos perturbar". É melhor não dizer. Se ela atravessar o Atlântico, não nos perturba. Vai bater na Europa.
Jânio de Freitas. Folha de São Paulo.
Monday, September 17, 2007
Coisa bem diferente teria sido a vida para ambos se tivessem sabido a tempo que era mais fácil contornar as grandes catástrofes matrimoniais do que as misérias minúsculas de cada dia. Mas se alguma coisa haviam aprendido juntos era que a sabedoria nos chega quando já não serve para nada.
Gabriel García Márquez - O Amor nos Tempos do Cólera. Tradução de Antonio Callado.
Sunday, September 16, 2007
Gabriel García Márquez - O Amor nos Tempos do Cólera. Tradução de Antonio Callado.
Friday, September 14, 2007
Xerazade sabia disso. Sabia que os casamentos baseados nos prazeres da cama são sempre decapitados pela manhã, terminam em separação, pois os prazeres do sexo se esgotam rapidamente, terminam na morte, como no filme O império dos sentidos. Por isso, quando o sexo já estava morto na cama, e o amor não mais se podia dizer através dele, ela o ressuscitava pela magia da palavra: começava uma longa conversa, conversa sem fim, que deveria durar mil e uma noites. 0 sultão se calava e escutava as suas palavras como se fossem música. A música dos sons ou da palavra - é a sexualidade sob a forma da eternidade: é o amor que ressuscita sempre, depois de morrer. Há os carinhos que se fazem com o corpo e há os carinhos que se fazem com as palavras. E contrariamente ao que pensam os amantes inexperientes, fazer carinho com as palavras não é ficar repetindo o tempo todo: "Eu te amo, eu te amo". Barthes advertia: "Passada a primeira confissão, `eu te amo' não quer dizer mais nada". É na conversa que o nosso verdadeiro corpo se mostra, não em sua nudez anatômica, mas em sua nudez poética. Recordo a sabedoria de Adélia Prado: "Erótica é a alma".
Rubem Alves
[...] abro esta conferência sobre a exatidão na literatura invocando o nome de Maat, a deusa da balança. Tanto mais que Balança é meu signo zodiacal.
Antes de mais nada, procurarei definir o tema. Para mim, exatidão quer dizer principalmente três coisas:
1) um projeto de obra bem definido e calculado;
2) a evocação de imagens visuais nítidas, incisivas, memoráveis; temos em italiano um adjetivo que não existe em inglês, "icastico", [...]
3) uma linguagem que seja a mais precisa possível como léxico e em sua capacidade de traduzir as nuanças do pensamento e da imaginação.
Por que me vem a necessidade de defender valores que a muitos parecerão simplesmente óbvios? Creio que meu primeiro impulso decorra de uma hipersensibilidade ou alergia pessoal: a linguagem me parece sempre usada de modo aproximativo, casual, descuidado, e isso me causa intolerável repúdio. Que não vejam nessa reação minha um sinal de intolerância para com o próximo: sinto um repúdio ainda maior quando me ouço a mim mesmo. Por isso procuro falar o mínimo possível, e se prefiro escrever é que, escrevendo, posso emendar cada frase tantas vezes ache necessário para chegar, não digo a me sentir satisfeito com minhas palavras, mas pelo menos a eliminar as razões de insatisfação de que possa me dar conta.
A literatura - quero dizer, aquela que responde a essas exigências - é a Terra Prometida em que a linguagem se torna aquilo que na verdade deveria ser.
Italo Calvino - Exatidão - Seis Propostas Para o Próximo Milênio.
Encontrou o cadáver coberto com uma manta no catre de campanha onde sempre dormira, perto de um tamborete com a vasilha que havia servido para vaporizar o veneno. No chão, amarrado pela pata ao catre, estava o corpo estendido de um grande dinamarquês preto de peito nevado, e junto a ele estavam as muletas. O quarto sufocante e salpicado de cores, que servia ao mesmo tempo de alcova e laboratório, mal começava a se iluminar com o resplendor do amanhecer na janela aberta, mas era luz bastante para proclamar de pronto a autoridade da morte. As outras janelas, assim como todas as frestas do aposento, estavam amordaçadas com trapos ou seladas com papelão preto, o que aumentava sua densidade opressiva. Havia uma mesa grande atulhada de frascos e vidros bojudos sem rótulo, e duas vasilhas de estanho descascado sob um foco de luz ordinário coberto de papel vermelho. A terceira vasilha, a do líquido fixador, era a que estava junto do cadáver. Havia revistas e jornais velhos em todos os cantos, pilhas de negativos em placas de vidro, móveis quebrados, mas tudo estava preservado da poeira por mãos diligentes. Embora o ar da janela houvesse purificado o ambiente, ainda persistia para quem soubesse identificá-lo o rescaldo morno dos amores sem ventura das amêndoas amargas. O doutor Juvenal Urbino havia pensado mais de uma vez, sem ânimo premonitório, que aquele não era um lugar propício para se morrer na graça de Deus. Mas com o tempo acabou por supor que sua desordem obedecia talvez a uma determinação cifrada da Divina Providência.
Gabriel García Márquez - O Amor nos Tempos do Cólera. Tradução de Antonio Callado.
Agora é que são elas é uma narrativa longa de Paulo Leminski, um romance, que parte de outro texto: Morfologia do Conto, de Vladimir Propp. Propp (1895-1970) lançou a primeira edição de seus estudos em 1928, em Leningrado. Era integrante de um grupo de estudiosos que ficaram conhecidos como os Formalistas Russos, companheiro de viagem, entre outros, de Jakobson. Um dos maiores méritos dessa geração de formalistas foi o de buscar métodos de exploração científica para os estudos da linguagem, entre eles, os estudos literários. A Morfologia do Conto nasce de uma analogia que Propp faz com os avanços para a época da botânica. Era possível a um estudioso entender perfeitamente as partes que constituem uma planta.
O trabalho de isolar as partes, de descrevê-las, de analisar as relações entre elas já tinha sido feito. A morfologia, o estudo das formas, na botânica, inspirou Propp a buscar o mesmo nas narrativas folclóricas, nos contos maravilhosos. Na sua época, os estudiosos de literatura centravam suas análises predominantemente nas questões de origem, de história. Mas Propp alerta que não se pode partir para a origem antes de se entender o objeto a ser investigado. Era preciso primeiro entender o que era o conto para depois ir analisar como se comportou através dos tempos. Assim, Propp parte de uma análise de um grupo de cem contos populares de origens diversas e descobre que todos eles se estruturam da mesma forma. Todos eles, segundo demonstra em seu livro, seguem uma mesma seqüência de ações a serem preenchidas pelos personagens. A essas ações ele dá o nome de Funções das Personagens. E descobre também que são em número fixo: 31. Sua análise é descritiva. As funções são retiradas da observação das narrativas, como se Propp descobrisse que há, na verdade, uma única narrativa que é atualizada por diferentes personagens em diferentes situações, criadas por anônimos, ao longo do tempo, pela tradição folclórica de diferentes nações. É quase como uma narrativa que se narra sozinha. O trabalho de Propp, bem como de todos os formalistas, foi sufocado pela Revolução Russa. Seu estudo só reapareceu trinta anos depois, numa tradução inglesa, influenciando, a partir de então, toda uma geração de estudiosos, notadamente, os semiólogos franceses. Haroldo de Campos resgatou um ponto de entendimento do Macunaíma de Mário de Andrade a partir do cotejo com as Funções das Personagens, no livro que chamou de Morfologia do Macunaíma. Haroldo mostra que há na estrutura da estória uma lógica fabular das narrativas folclóricas. A seqüência de ações comprova isso. Mostra a consciência de Mário de Andrade, que também estudou os contos populares, dessa lógica narrativa. E o curioso é que Macunaíma foi publicado no mesmo ano em que Propp publicou sua Morfologia. Ambos, sem saber, estavam estudando a mesma coisa, mas um publicou teoria e o outro, ficção. Um no Brasil, outro na Rússia. Impossível não lembrar do verso de Maiakovski, "em algum lugar, parece que no Brasil/existe um homem feliz". O Brasil nesse seu verso de contemporâneo de Propp é lá no fim do mundo, quase um lugar impossível. Esse Morfologia do Conto sobre o qual já se debruçaram gente como Claude Lévi-Strauss, Roland Barthes e Haroldo de Campos, todos no campo da análise teórica e ensaística, serviu para Leminski elaborar o diálogo criativo de Agora é que são elas. A narrativa abstrata de Propp, formulada a partir de narrativas concretas, é "reconcretizada" no romance de Leminski. O livro se divide em 31 capítulos. Leminski está propondo "leiam dois livros ao mesmo tempo, Agora é que são elas e Morfologia do Conto". Foi o que eu fiz.
Fui ver em que medida o livro de Leminski se aproxima e se distancia do livro-guia de Propp. Li a cada função e cada capítulo correspondente. A primeira constatação é a de que o livro de Leminski não apenas se refere ao trabalho de Propp, mas é construído em aberto diálogo estrutural com as Funções das Personagens. As funções são a base da seqüência do Agora é que são elas, contudo, a irrefutabilidade da sua seqüência é o que está na raiz do conflito que o livro aborda. Assim, há funções que se realizam plenamente nos capítulos, há outras que em que as ações dos capítulos invertem, mostram a impossibilidade de realização ou até mesmo ironizam a função. E há momentos em que não consegui fazer uma ponte entre a função e o capítulo. O que não invalida em nada o evidente diálogo entre os dois textos. Pelo contrário, essa ausência por um lado é prevista por Propp, que alertava para o fato de que algumas funções poderiam não estar presentes em alguns contos, mas que a seqüência seria sempre preservada. No Agora é que são elas a narrativa recupera as pontes entre as funções e os capítulos a todo momento, e o fluxo segue até o final. Por outro lado, a ausência tem um papel na narrativa do Leminski. A estrutura alterada faz parte do tema da sua obra. O livro conta a história de um personagem. É narrado em primeira pessoa. O personagem conta a sua história que se divide entre três narrativas: uma festa, seu relacionamento com Propp e sua filha e seus encontros com uma menininha que conheceu na festa. Nessas três narrativas ele está envolvido com três personagens femininas chamadas Norma. Norma Propp é a filha de Propp, sua namorada. Norma também é a cantora, estrela da festa. E Norma ainda é uma garotinha que sabe tudo de astronomia e conta para ele várias histórias imaginárias sobre os seres dos planetas e estrelas. Propp é o analista do personagem. Há várias consultas, sessões de análise com Propp em que o personagem está em busca da sabedoria. O drama do personagem, além de tudo o que acontece com ele, é o de buscar a sua autoconsciência, queria saber se poderia ser do dono do seu destino ou se estava fadado a cumprir as funções predeterminadas por Propp. Poderia agir por si mesmo ou cada ação sua era no fundo, por mais diferente que pudesse ser, uma das tantas máscaras da função que ele fatalmente acabaria desempenhando. Submete-se à análise do Propp. A analogia com um psicanalista, com Freud, é só a superfície. O óbvio me veio à tona: ora, o que faz Propp? Analisa personagens! Analisa suas ações. Assim, o personagem vai se analisar com Propp para se entender. Ele não é um personagem com um drama. Ele é o personagem com um drama. É o personagem que encena a categoria personagem. É o herói, como é tratado pelo Propp real no Morfologia do Conto, deitado no divã do analista de heróis, o Propp da ficção. Seu drama todo é com as normas, se deve segui-las ou não. Se deve cumprir as funções da narrativa ou não. Daí os seus impasses com três Normas. Daí também os desvios da norma, as alterações dos capítulos em relação às funções. No final, a desintegração de todas as normas se dá nas ações das três personagens Norma. A cantora Norma se perde do herói que a buscava pela festa, isso depois de ela morrer e ressuscitar. A menina Norma toca fogo na casa e acaba com a festa. E Norma Propp, de dezessete anos, fica grávida. Seu relacionamento sexual com o herói não tinha penetração. O herói pensava que ela era virgem. O filho é na verdade de um amante com quem ela foge, o que acaba fazendo seu pai, Propp, se suicidar. O Propp real fez um estudo. Suas leis da narrativa não têm o caráter normativo. São como leis científicas que se extraem dos fenômenos. Não se estende a todas as narrativas, só aos contos folclóricos. Mas acabou sendo uma espécie de pai da narrativa, e é assim que é tratado no livro de Leminski. Além disso, os contos populares evidenciam um mundo estático, que se repete. Um mundo organizado. Um mundo de normas. Propp, o personagem, não resistiu ao golpe de ver sua filha, Norma, romper com todas as normas. A narrativa estruturada repousava sobre um mundo que permitia tal estruturação. O herói, ao ver Propp morto, coloca suas impressões digitais na arma que o suicida usou. Ele passa a assumir que matou o pai da narrativa. Ele agora é livre para contar o que quiser do jeito que quiser. Da impossibilidade da narrativa convencional faz-se uma nova narrativa, baseada no livre-arbítrio, e, portanto, na invenção. É isso que Agora é que são elas vai buscar lá na Morfologia do Conto: o fim da narrativa tradicional. E, a partir disso, reivindicar uma narrativa como a vida, em permanente mudança, uma narrativa contemporânea. Viva como a frase de Leminski. Com a agilidade quase de vídeo-clipe de suas seqüências. Com a sexualidade dos nossos dias. Com a simultaneidade de narrar três estórias numa só. Com a consciência de se saber narrativa, quase uma história-ensaio, totalmente intertextual. Universal, pois vai lá na raiz de todas as estórias. E comunicativa, capaz de ser lida como uma novela de amor.
http://www.ricardosilvestrin.com.br/
Sunday, September 09, 2007
Misericórdia
A misericórdia, no sentido em que tomo a palavra, é a virtude do perdão - ou antes, e melhor, sua verdade.
O que é, de fato, perdoar? Se entendermos, como certa tradição nos convida a fazer, que é apagar a falta, considerá-la nula e não acontecida, é um poder que não temos, ou uma tolice que é melhor evitar. O passado é irrevogável e toda verdade é eterna: mesmo Deus, notava Descartes, não pode fazer com que o que foi feito não o tenha sido. Nós também não podemos, e para com o impossível ninguém tem obrigação. Quanto a esquecer a falta, além de que, muitas vezes, isso seria faltar com a fidelidade às vítimas (devemos esquecer os crimes do nazismo? devemos esquecer Auschwitz e Ouradour?), seria também uma tolice, quase sempre, e por conseguinte seria faltar com a prudência. Certo amigo seu o traiu: seria inteligente você manter a confiança nele? Certo comerciante o roubou: é imoral trocá-lo? Seria zombar das palavras pretender que sim e ostentar uma virtude bem cega ou bem tola. Caute, dizia Spinoza, cuidado, e não era pecar contra a misericórdia. Seus biógrafos contam também que, tendo sido apunhalado por um fanático, ele conservou a vida inteira seu gibão furado, para não esquecer aquele acontecimento nem, sem dúvida, aquela lição. Isso não quer dizer que ele não tivesse perdoado (veremos que o perdão, em certo sentido, faz parte da exigência da doutrina), mas simplesmente que perdoar não é esquecer. Então, é o quê? É cessar de odiar, e é essa de fato a definição da misericórdia: ela é a virtude que triunfa sobre o ressentimento, sobre o ódio justificado (pelo que vai além da justiça), o rancor, o desejo de vingança ou de punição. A virtude que perdoa, pois, não suprimindo a falta ou a ofensa, o que não é possível, mas cessando de, como se diz, ter raiva de quem nos ofendeu ou prejudicou. Não é a clemência, que só renuncia a punir (podemos odiar sem punir, assim como punir sem odiar), nem a compaixão, que só simpatiza no sofrimento (podemos ser culpados sem sofrer, assim como sofrer sem ser culpados), nem enfim a absolvição, entendida como o poder - que só poderia ser sobrenatural - de anular os pecados ou as faltas. Virtude singular e limitada, pois, todavia bastante difícil e bastante louvável para ser uma virtude. Cometemos faltas demais, uns e outros, somos miseráveis demais, fracos demais, vis demais, para que ela não seja necessária.
André Comte-Sponville - A Misericórdia - Pequeno Tratado das Grandes Virtudes.
Marcadores: Comte-Sponville
Saturday, September 08, 2007
É curioso como, numa narrativa tão vasta, não haja nenhum personagem completo salvo o narrador, Maximilien Aue. Todas as dezenas de figuras que povoam este impressionante romance, incluindo as mais importantes, são projeções do protagonista.
É como se elas não andassem com as próprias pernas. Sua fala se mostra encapsulada nos longos parágrafos do romance como frisos na ampla e soturna arquitetura composta pelas reminiscências de Aue.
Mesmo Aue é um personagem problemático. Alguns críticos assinalam a caracterização algo excessiva do oficial da SS que logra escapar do cerco dos aliados e, sob nova identidade, torna-se industriário na França. Ele é homossexual, nutre uma paixão incestuosa pela irmã, é um refinado intelectual capaz de confabular em grego antigo no campo de batalha e é perseguido pelo assassinato da mãe e do padrasto.
Ele afirma que "nas horas perdidas, escrever é igual a outra ocupação qualquer". Nada mais falso. Como um inventariante furioso, compelido a catalogar as infinitas facetas da guerra, até as mais horríveis, Aue escreve para descobrir a verdade, a qual, conforme ele também ressalta, é tão indispensável à vida quanto "o ar, a comida, a bebida e a excreção".
Como um Estado que se diz racional, pergunta-se ele, pode tornar-se um assassino sanguinário? Como pessoas comuns podem ter matado, às vezes com sadismo, homens, mulheres e crianças? Como ele, Aue, pode ter presenciado tudo isso com vexaminoso prazer?
Significativamente, Aue -mais um observador do que um perpetrador do inferno- quase não age. Essa atitude contrasta com as ações que ele toma, aí sim, em suas incursões homossexuais. É como se o prazer de agir (para a satisfação do desejo) combinasse com o horror do olhar (pelo espreitamento do interdito).
As Benevolentes do título referem-se às deusas gregas Eumênides, instância amena das Erínias, as vingadoras dos crimes. As Erínias nasceram quando Cronos decepou o pênis do pai Céu. Dos salpicos de sangue caídos sobre a Terra, brotaram essas deusas punidoras, enquanto, do esperma que respingou no Mar, surgiu Afrodite. O amor e a expiação surgem ao mesmo tempo, tanto no mito quanto para Aue.
Sua culpa não é a de quem agiu, mas a de quem, como observador, extraiu prazer na visão daquilo que deveria, antes, causar vergonha. Não é à toa que ele cita uma passagem de "A República", em que Leôncio, lutando em vão para não contemplar o espetáculo dos cadáveres em Pireu, sucumbe e diz: "Desisto, malditos olhos, deleitem-se com esse belo espetáculo".
É esse horrendo "belo espetáculo" que Aue descortina ao leitor, que, por sua vez, também corre o risco de se perder ao olhar, ao pegar-se caminhando despreocupado dentro da mente sedutora do carrasco.
Autor: Jonathan Littell
Tradução: André Telles
Editora: Objetiva/Alfaguara
Quanto: R$ 79,90 (912 págs.)
Avaliação: ótimo
Jonathan Littell comenta as influências para escrever "As Benevolentes" e explica por que optou por um personagem não-realista
Nascido em Nova York e criado na França, o escritor estudou na Universidade Yale (EUA) antes de se dedicar a ações humanitárias. O próximo passo foi um mergulho em pesquisas de campo que o levaram a locais como Ucrânia, Stalingrado (atual Volgogrado) e Polônia. Também se dedicou à literatura sobre o assunto, dando preferência à abordagem dos novos historiadores. (MS)
FOLHA - Max Aue, o personagem do seu livro, é um oficial nazista intelectual, complexo e ambíguo. Muito diferente do personagem retratado por Hannah Arendt em "Eichmann em Jerusalém", que era apenas um burocrata medíocre...
LITTELL - É verdade que são completamente diferentes. Eichmann não poderia falar sobre as coisas que se passaram da mesma maneira que Max. Tipos como Eichmann ou Rudolf Hess são capazes apenas de produzir um discurso absolutamente vazio. Queria um narrador que se desse conta da realidade estando no interior dos fatos. É por isso que optei por um narrador que não fosse realista. Isso me permitiu ter alguém ao mesmo tempo dentro do sistema e que fosse capaz de observá-lo friamente, explicá-lo. Um nazista que fale assim é uma invenção puramente literária.
FOLHA - Como o sr. recebeu as críticas ao seu livro por parte de personalidades como Claude Lanzmann [diretor do documentário "Shoah"]?
LITTELL - Lanzmann acusou o livro de irrealismo. Se estão criticando o livro ou não, isso não faz diferença para mim. Na época do lançamento também não me importei. Jamais participei diretamente dessas discussões. Os franceses adoram um polêmica. Nesse aspecto eu não sou francês, só gosto de me dedicar às questões sérias [Littell obteve a nacionalidade francesa em 2007, depois de ter o pedido negado duas vezes].
FOLHA - A sua pretensão inicial era escrever um "tour de force", um livro de 900 páginas?
LITTELL - Quem falou em "tour de force" foi você... Não, só me dei conta do tamanho que o livro teria quando já estava escrevendo. Não imaginava que ficaria com esse porte.
FOLHA - E como o sr. vê o enorme sucesso do seu livro na França, de crítica e público?
LITTELL - Não tenho a menor idéia (risos). Não esperava, foi uma surpresa.
FOLHA - O sr. participou durante muitos anos de ações humanitárias. Isso ajudou para a criação do livro?
LITTELL - Participar das ações humanitárias não ajudou, mas sim o fato de trabalhar em situações de guerra, encontrar as pessoas nos locais. Conheci os carrascos. Isso me deu uma experiência muita direta com pessoas como as que eu descrevo no meu livro.
FOLHA - O Holocausto e o período nazista eram tratados com muita dificuldade na Europa. O seu livro poderia ter sido escrito há 15, 20 anos? Teria tido a mesma repercussão?
LITTELL - Na Alemanha já se fala há muito tempo abertamente sobre os temas difíceis. Mas há questões específicas que ainda incomodam. Hoje, os grandes assuntos que irritam estão, por exemplo, no filme "A Queda! As Últimas Horas de Hitler", de Oliver Hirschbiegel, que causou um grande escândalo. O grande tema que os alemães até agora não abordaram francamente é a questão de seu próprio sentimento de vitimização. Eles também sofreram muito, principalmente os alemães do leste, que foram massacrados pelos soviéticos que invadiam o país. É um assunto muito difícil de abordar, quem tentou foi desestimulado. Mas é um problema real, é como uma ferida que não se cura. Agora existe mais espaço para o debate, como prova o filme "A Queda!" ou o caso do escritor Günter Grass. Acho que o meu livro se insere nesse processo de discussão.
FOLHA - Quais foram suas principais fontes para o livro? O historiador Raul Hilberg parece ter sido essencial. E autores como Joachim Fest [autor de "No Bunker de Hitler"]?
LITTELL - Hilberg foi uma grande referência, claro. Mas principalmente a nova geração de historiadores alemães, a que começou a publicar a partir do começo dos anos 90. Pessoas como Götz Aly. Nos EUA, Christopher Browning, que é o equivalente americano dessa geração. Das gerações mais antigas, nunca gostei muito do ponto de vista de Joachim Fest, mas Martin Broszat, por exemplo, acho muito importante.
LITTELL - O fato em si dele ter sido recrutado não tem nada de especial. O dado de que ele nunca falou disso é que é perturbador. Escondeu isso por 50 anos e nesse tempo criou polêmicas sobre o assunto. Se não fosse por isso, seria apenas um assunto pessoal. O papa Bento 16 também pertenceu à Luftwaffe (força aérea alemã). Ele desertou no final da guerra, mas quando participou das forças nazistas tinha exatamente a mesma idade de Grass, 16 anos.
DA REPORTAGEM LOCAL - Folha Ilustrada
WELLS, H. G. The War of The Worlds
- Dona Maria, a porta!
Dona Maria não ouviu. Para sair da minha cadeira preciso colocar a máquina de escrever que fica no meu colo sobre uma mesinha, pegar minha muleta, levantar da cadeira - "Dona Maria, a porta!" -, atravessar a sala lentamente para não derrubar nenhuma pilha empoeirada de livros...
- Dona Maria, abaixa esse rádio!
Era um homem que se apresentou como inspetor Macieira, "como o conhaque". Mandei-o entrar. Ele mancava. Era ruim da outra perna, o que devia ter me advertido de alguma coisa. Pedi para ele sentar, mas ele preferiu esperar que eu sentasse primeiro. Disse:
- O senhor é Stephen Eliot!
Respondi que bem, hm, ahn, mas ele continuou, dizendo que era meu leitor constante e admirador. Uma mentira, já que eu só usara aquele pseudônimo no último livro. Disse que tinha grande prazer em me conhecer.
- Então sente - disse eu, como se só meus admiradores pudessem sentar, na minha casa.
- Desculpe a indiscrição... - começou ele, apontando para a minha perna.
- Não quero falar disso.
- Desculpe. É que eu também perdi um pé, mas fiz uma prótese e hoje me movimento normalmente. O senhor não...
- Dona Maria, abaixa esse rádio!
O grito o assustou e ele, prudentemente, aproveitou a interrupção para mudar de assunto. Era um homem da minha idade, pequeno, magro, bem vestido e tinha os olhos saltados, como se o colarinho apertado os tivesse empurrado para fora das órbitas.
- Como disse - continuou -, sou seu leitor atento.
- Pensei que ninguém lesse meus livros - disse eu, mentindo também. Sabia que eles vendiam razoavelmente bem, e regularmente, nas bancas. Vivia deles. Perguntei de qual ele gostara mais. Ele hesitou, depois respondeu:
- Do último.
- Fúria assassina? - perguntei, para testá-lo.
- Ritual Macabro.
O filho da puta me lia mesmo. Ele continuou:
- Aliás, é sobre esse livro que quero conversar com o senhor. Me deram seu endereço na editora.
- Pois não.
- Antes de mais nada, gostaria de perguntar... De onde o senhor tira suas idéias?
Pensei em sacudir a cabeça, para que ele ouvisse a quinquilharia solta. Respondi que tirava minhas idéias da minha cabeça. Ele fez "Hmm", como se a resposta o desagradasse. Talvez esperasse que eu dissesse que tinha um fornecedor. Um contrabandista de idéias. De confiança. Idéias legítimas. Se quiser eu lhe apresento.
- A figura do Grego, é pura imaginação?
Hesitei. Era? Era.
- É.
- Não é baseado em ninguém? Alguém que o senhor conheceu? Alguém de quem o senhor ouviu falar?
- Não.
- Tem certeza?
- Por quê?
- Porque, senhor Eliot, existem algumas, como direi, coincidências engraçadas. Perdão, engraçadas, não. Trágicas, na verdade.
- Que coincidências?
- O senhor não leu no jornal sobre a morte daquela mulher, no Jardim Paraíso?
Mês passado?
- Não leio jornais.
- Ela foi esfaqueada várias vezes. A cama ficou ensopada de sangue. Ainda não sabemos quem é o assassino. Ou a assassina. Ou os assassinos.
- E daí?
Olhei, ostensivamente, para a máquina de escrever, onde eu deixara Conrad, no meio de uma linha, introduzindo a sua mão bronzeada pelo sol e o sal de muitos mares na blusa de Linda, seus dedos buscando o bico daquele seio que durante toda a tarde o desafiara através do tecido fino da blusa e que agora ia ver o que era bom. Eu preciso trabalhar, inspetor!
- Tem uma coisa que a imprensa não deu porque os repórteres não ficaram sabendo. O assassino - ou a assassina, ou os assassinos - usou o sangue da vítima para escrever coisas na parede. Coisas... em grego, sr. Eliot.
Ele ficou me olhando, esperando uma reação. Esperou em vão. Continuou:
- O assassino agiu exatamente como o assassino do seu livro. O Grego.
- E eu com isso?
- Bem, eu...
- Não me responsabilizo pelo que os meus leitores fazem!
- Não era um leitor imitando o livro.
- Por que não?
- Porque o livro saiu depois do crime.
Agora era a minha vez de perguntar se ele tinha certeza. Tinha.
- Na editora, muitas pessoas lêem o livro antes dele ser publicado - insisti. - Pode ter sido um revisor. Os revisores são capazes de tudo. (...)
Ele sorriu tristemente. Eu o estava decepcionando. Abri os braços.
- Então é uma coincidência.
- Claro que é uma coincidência. Mas o senhor...
- Não me chame de senhor - disse eu. Era uma advertência.
- Você há de convir que eu precisava investigar esta coincidência. Nós, da polícia, desconfiamos das coincidências.
- Nós, os escritores, não podemos viver sem elas.
- O fato de nós dois não termos um pé, por exemplo...
- Não quero falar disso.
VERÍSSIMO, L. F.; O Jardim do Diabo.
Numa cidadezinha polonesa, um corpo é pescado de um rio, com sinais de uma morte sórdida: mãos ao redor do pescoço, atadas a uma forca. A polícia identifica Dariusz Janiszewski, o dono de uma pequena agência de publicidade, que não tinha dívidas ou inimigos. A descrição detalhada deste homicídio, no romance policial "Amok" (o arrebatamento, em português), terminou em um posfácio inesperado: a prisão do autor, Krystian Bala, condenado ontem a 25 anos pelo crime que inspirou a obra.
A principal peça da acusação é o romance policial, publicado em 2003, três anos após o assassinato. O investigador Jacek Wroblewski garante que a narrativa tem informações minuciosas, conhecidas apenas pela polícia -ou pelo assassino. Wroblewski reabriu o inquérito em 2005, quando leu "Amok" por sugestão de uma fonte anônima. As investigações revelaram detalhes que ligam Bala ao homicídio.
Joaquim Nogueira, ex-delegado e autor de "Informações sobre a Vítima" (Cia das Letras, 2001), disse à Folha que acha perfeitamente verossímil que alguém use elementos de um crime que cometeu ao escrever uma obra literária, mas nunca deparou com um caso semelhante no trabalho.
Não poderia Bala, como conta, ter montado o quebra-cabeça do assassinato a partir de notícias dos jornais e imaginado as partes que faltavam? "É óbvio que ele diria isso", comenta Nogueira. Mas pondera: "O processo criativo é um caldo de cultura que envolve muitas experiências, leituras, notícias, filmes". Impossível saber.
O fato -e todo o resto é literatura- é que Krystian Bala, 34, foi condenado em primeira instância pela morte de Janiszewski. A polícia reuniu contra ele uma série de indícios, considerados pela defesa meramente circunstanciais.
Pouco após o assassinato, o escritor vendeu um celular do mesmo modelo usado pela vítima. O aparelho, que estaria com o empresário no dia do crime, jamais foi encontrado.
Bala estava mergulhando no sul da Ásia quando a polícia recebeu e-mails "suspeitos" originados em cibercafés do continente. As mensagens, enviadas após a exibição do caso em um programa de TV semelhante ao brasileiro "Linha Direta", falavam em "crime perfeito".
As habilidades de exímio mergulhador também foram usadas contra Bala. Para a polícia, as longas pausas feitas antes de cada resposta quando ele se submeteu a um detector de mentiras seriam uma técnica de respiração aprendida com o mergulho, usada para mascarar os sinais físicos da mentira.
Segundo o depoimento da ex-mulher, o escritor tinha uma personalidade "obsessiva" e controlava suas amizades mesmo após a separação. Ela conhecia a vítima, o que levantou a hipótese de um crime passional.
O tribunal considerou os indícios insuficientes para provar que o próprio Bala tenha cometido o homicídio, mas julgou haver provas bastantes para a condenação por autoria intelectual. A família disse que ele vai recorrer. Qualquer que seja o resultado da apelação, o enigma literário persistirá.
CLARA FAGUNDES - COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Wednesday, September 05, 2007
Cientistas da computação da Escola de Engenharia e Ciências Aplicadas de Harvard, em parceria com pesquisadores da Holanda, estão usando uma aplicação de compartilhamento de vídeo para explorar uma nova geração de modelo para comércio eletrônico seguro e legal que usa a largura de banda da internet como moeda de troca, divulgou o EurekAlert.
A aplicação, disponível para download gratuito aqui, é um aperfeiçoamento do Tribler, programa originalmente criado por cientistas da universidades de Tecnologia de Delft e Vrije, de Amsterdã, para estudar a troca de arquivos de vídeo, e considerado um modelo de flexibilidade, velocidade e confiabilidade pelos pesquisadores do novo P2P.
"Sistemas peer-to-peer de sucesso se apóiam em regras definidas para promover uma troca justa de recursos entre seus usuários. Além disso, eles são sistemas econômicos e computacionais poderosos e eficientes", avaliou David Parkes, mestre em Ciências Naturais de Harvard. "Apesar disso, peer-to-peer tem sido considerado algo ruim por sua associação freqüente com download ilegal de software e música", lamentou.
"A próxima geração de sistemas peer-to-peer oferecerá um mercado ideal não só para conteúdo, como também para largura de banda em geral", garantiu o diretor técnico do Tribler, Johan Pouwelse.
A idéia dos pesquisadores é tornar possível um modelo de comércio eletrônico que conecte os usuários em um mercado global independente, sem controle de empresas, redes ou bancos. Ainda segundo o EurekAlert, eles vêem a largura de banda como a primeira "moeda" real da Internet. "Por exemplo, quanto mais o usuário fizer uploads (ou seja, ganhar) e maior qualidade tiver sua contribuição, mais chances de downloads (isto é, gastar) ele terá, assim como em maiores taxas de velocidade", comparou o estudo.
Além disso, os pesquisadores apostam no grande potencial de uma combinação entre a tecnologia das redes sociais com os sistemas peer-to-peer, trabalhando para desenvolver uma regulação apropriada nesse novo ambiente descentralizado, no qual os próprios usuários criariam e validariam seus próprios mecanismos de defesa contra possíveis roubos de dados ou ataques.
O estudo completo pode ser lido, em inglês, aqui.
Sunday, September 02, 2007
Falhar. Falhar de novo. Falhar melhor.
Samuel Beckett, citado por Gerald Thomas, citado por Walmir Santos em resenha para Queen Liar na Ilustrada.
http://geraldthomas.blog.uol.com.br/
Saturday, September 01, 2007
Produtores entregam a chave para desvendar os mistérios da ilha: a viagem no tempo
A 4ª temporada de Lost já começou. Fora da TV, mas começou. Foi em julho, na Comic Con, a maior feira de cultura pop dos EUA. Lá, os produtores da série, Carlton Cuse e Damon Lindelof, deram uma palestra e, no finalzinho, apresentaram um vídeo no telão. Um vídeo que, para muitos fãs, entrega o grande segredo da trama. Trata-se de um daqueles “filmes de orientação da Iniciativa Dharma”, também com o misterioso cientista oriental dando instruções. Com a palavra, o próprio: “Olá. Sou o Dr. Edgar Halowax, e este é o filme de orientação para a estação 6 da Iniciativa Dharma. As propriedades únicas desta ilha criaram um tipo de efeito Casimir que nos permite...”
Corta, como se faltasse um pedaço do filme. Mas não tem problema. O efeito Casimir é uma teoria formulada em 1948 pelo físico holandês Hendrik Casimir e aprimorada ao longo de décadas por vários cientistas, entre eles Stephen Hawking. O que ele permite? Viajar no tempo. Vamos por partes. O efeito Casimir lida com uma das proposições mais surreais da física quântica: a de que o espaço vazio não é exatamente vazio. Ele é permeado por uma coisa chamada energia do vácuo – uma força que está distribuída igualmente em cada milímetro do Universo. Inclusive dentro do nosso corpo. Como a intensidade dessa força é a mesma em todos os cantos, não dá para perceber que ela existe. Mas que ela está em todo lugar, está. É como se vivêssemos no fundo de um mar que, em vez de moléculas de água, seria formado por partículas da tal energia do vácuo.
Efeito Casimir
Bom, o efeito Casimir acontece quando você usa equipamentos de laboratório para furar esse mar de energia. Não é preciso muito: pegue uma boa dose de força eletromagnética, duas placas de metal, uma de frente para a outra, e voilà: o eletromagnetismo “suga” a energia do vácuo no meio das placas. Entenda isso como cavar um buraco no nada. E o nada entre as placas se torna o lugar mais vazio do Universo.
Agora vamos à viagem no tempo propriamente dita. Segundo Stephen Hawking e outros cientistas, isso de furar o vazio significa abrir aquilo que os astrofísicos chamam de buraco de minhoca – um rasgo no espaço e no tempo. Em outras palavras, um portal para viajar ao passado e ao futuro.
O único problema é que, com a tecnologia disponível hoje, o espaço entre as duas placas de metal precisa ser menor que a espessura de um átomo para que o efeito Casimir aconteça no meio delas. Aí, mesmo que realmente haja um portal do tempo lá dentro, ele não tem muita utilidade. Os físicos só enxergam um jeito para engrossar o portal: injetar uma quantidade quase infinita de energia lá dentro. Onde conseguir tudo isso? Na misteriosa ilha de Lost, claro.
Olha só: quando o filme de orientação volta, o Dr. Halowax reaparece no laboratório segurando um coelho nos braços. Um coelho que tem o número 15 pintado no pêlo. E diz: “O campo que vocês vão estudar é perigoso. Mas vamos demonstrar nossos elaborados meios de segurança...” De repente acontece um acidente na cena: outro coelho surge do nada numa prateleira, também com o número 15 pintado. É o mesmo coelho em dois lugares ao mesmo tempo! O cientista se afasta e o povo do laboratório entra em pânico:
Dr. Halowax: Não deixe um chegar perto do outro! Para quando você ajustou o intervalo?
Assistente: Negativo 20.
Dr. Halowax: Por quanto tempo?
Assistente: Nove minutos, mas nós ainda estamos aprendendo a...
Dr. Halowax: Por que vocês ainda estão filmando?
Fim do filme. O que aconteceu? A interpretação da SUPER é a seguinte: o Dr. Halowax iria mostrar o coelho viajando no tempo. Mas a equipe errou nos ajustes: mandou o bicho voltar 9 minutos ao passado. Tempo demais, e ele apareceu antes do que deveria. Os dois coelhos são o mesmo indivíduo. Só que um é o do presente e outro acabou de vir de 9 minutos no futuro. As viagens no tempo, então, são a chave dos mistérios da ilha? Esse vídeo é uma bela pista de que sim. Mas existem outras. Desmond, por exemplo, parece ter entrado em um buraco de minhoca, pois realmente voltou para 1996 durante algumas horas. Outra: Locke e o misteriosíssimo Jacob parecem ser a mesma pessoa – do mesmo jeito que os dois coelhos de Halowax são o mesmo coelho. E isso abre para uma hipótese aterradora: Locke pode ter voltado no tempo uns 100 anos, começando, ele mesmo, toda a saga da ilha de Lost. Como os dois Lockes parecem ter a mesma idade? Bom, sabemos que tem gente na ilha que simplesmente não envelhece... Essa e outras peças do quebra-cabeça temporal da série estão no boxe ao longo desta matéria. Hora de montá-las.
Os produtores Cuse e Lindelof podem ajudar. Eles já deixaram escapar algo importante sobre o fator tempo ao responder uma pergunta de fã no site da revista Entertainment Weekly. A questão era sobre dois esqueletos que os heróis encontram na 1ª temporada. Cuse diz: “A resposta tem a ver com a natureza do tempo na ilha”. E Lindelof emenda: “Quando tudo estiver dito e resolvido na série, as pessoas vão olhar para esses esqueletos e dizer: ´Aí está a prova de que eles [os roteiristas] sempre souberam que a história nos levaria a isso”. “Isso” o quê? Agora você já tem elementos para imaginar. Namastê.
http://super.abril.com.br/super2/revista/materia_revista_248592.shtml
Escolho, se preferirem, os dois escalões extremos da história. Na arte hierática, a dualidade salta à vista; a parte de beleza eterna só se manifesta com a permissão e dentro dos cânones da religião a que o artista pertence. A dualidade se evidencia igualmente na obra mais frívola de um artista refinado pertencente a uma dessas épocas que qualificamos com excessiva vaidade de civilizadas: a porção eterna de beleza estará ao mesmo tempo velada e expressa, senão pela moda, ao menos pelo temperamento particular do autor. A dualidade da arte é uma conseqüência fatal da dualidade do homem. Considerem, se isso lhes apraz, a parte eternamente subsistente como a alma da arte, e o elemento variável como seu corpo. É por isso que Stendhal, espírito impertinente, irritante, até mesmo repugnante, mas cujas impertinências necessariamente provocam a meditação, se aproximou mais da verdade do que muitos outros ao afirmar que o belo não é senão a promessa da felicidade. Sem dúvida, tal definição excede o seu objetivo; ela submete de forma excessiva o belo ao ideal indefinidamente variável da felicidade; despoja com muita desenvoltura o belo de seu caráter aristocrático, mas tem o grande mérito de afastar-se decididamente do erro dos acadêmicos.
BAUDELAIRE, Charles - O belo, a moda e a felicidade; in: Sobre a Modernidade: o pintor da vida moderna. Organizado por Teixeira Coelho - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996
Se falo de amor [a propósito do dandismo], é porque o amor é a ocupação dos ociosos.
BAUDELAIRE, Charles - O dândi; in: Sobre a Modernidade: o pintor da vida moderna. Organizado por Teixeira Coelho - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996