FOLHA - O que te motivou a fazer esse livro?
FERREIRA GULLAR - Eu não costumo planejar as coisas, vêm inesperadamente. Depois que eu adoto a idéia, eu sou sistemático, e aí é outra coisa, mas eu nunca planejei fazer esse livro. Surgiu do fato de que, escrevendo eventualmente colaborações daqui e dali, enfim, voltam as questões da arte concreta e neoconcreta. As pessoas me perguntavam coisas, e coisas que eu lia e não correspondiam à realidade. Eu que fui o autor do manifesto, o autor da teoria do não-objeto, modéstia à parte, tive uma participação decisiva na criação desse movimento, mas chegou um momento em que eu me afastei.
Então, ele seguiu em frente, e aí tomaram conta dele [risos]. Grande parte do que fiz não publiquei, como os livros-poema. Idéias que ficaram no manifesto foram sendo postas de lado e se criou uma teoria e uma interpretação do movimento que eu acho que não corresponde exatamente à verdade. Então, eu digo: é necessário botar as coisas nos seus devidos lugares, até para as pessoas compreenderem que é um movimento importante da arte brasileira. Há a contribuição da Lygia [Clark], do Hélio [Oiticica], do Amilcar [de Castro], do Weissmann, enfim, do grupo todo, e é muito importante.
FOLHA - Você mostra a cisão entre os grupos paulista e carioca na poesia e nas artes entre os concretos e os neoconcretos?
GULLAR - São coisas diferentes. A arte concreta e a poesia concreta são, de fato, preponderantemente paulistas. Houve contribuição do grupo do Rio no começo e, sobretudo, quando se refere à poesia, a gente começou mais ou menos junto e tal, mas depois houve a ruptura em condição de discordâncias teóricas, que eram, na verdade, expressão de uma tendência que preponderava mesmo no grupo de São Paulo. Já preponderava entre os pintores com o Waldemar Cordeiro.
A gente aqui no Rio achava ele racional demais, muito excludente das outras complexidades. Depois, com os poetas, quer dizer, com a tese de uma poesia que era feita segundo um plano piloto, coisas com as quais nós não concordávamos.
Era muito mais teoria do que prática. A poesia será feita segundo fórmulas matemáticas... Aí não é possível fazer. Eu considero charlatanismo dizer uma coisa que não pode ser feita. O movimento neoconcreto não nasceu como uma resposta ao concretismo de São Paulo. Essa cultura nasceu em meados de 57, o movimento neoconcreto só nasce em 59, quase dois anos depois.
FOLHA - Você considera que o primeiro marco da sua obra é "Luta Corporal", em 1954? E, na época, qual era a sua relação com poetas de gerações anteriores, como João Cabral, Drummond, Murilo Mendes, Manuel Bandeira?
GULLAR - Quando eu comecei a fazer poesia em São Luís do Maranhão, tinha 17, 18 anos, nem conhecia esses poetas. Não conhecia ninguém. Eu costumo dizer que São Luís era Macondo, lá ainda se fazia poesia parnasiana. Quando eu tomei conhecimento da poesia moderna, foi uma coisa estranha, surpreendente. Em seguida, eu procurei ler sobre aquilo, entender, aderir a essa visão nova e de maneira mais radical do que os próprios poetas da época. E daí "Luta Corporal" ter se tornado mesmo tão exclusivo, que terminou com a desintegração da linguagem, porque não aceitaria qualquer princípio a priori para fazer poesia. Qualquer norma agora, nada eu aceitaria. Esse fato me levou a desintegrar tudo.
Quando eu descobri esses poetas, quer dizer, Drummond, Murilo Mendes, eles contribuíram para me revelar, evidentemente, uma outra visão do que era a poesia. Uma poesia mais ligada ao mundo cotidiano, às constâncias atuais, à realidade material do mundo. Lia todos os dias esses poetas, Bandeira, Murilo, Drummond, lia, relia. Depois, comecei a descobrir os outros poetas do mundo, Rilke, foi uma revelação quando eu conheci a poesia dele, aí depois Rimbaud, Mallarmé.
FOLHA - Você defende a idéia de que a poesia neoconcreta tem uma nova sintaxe, mas não um novo verso...
GULLAR - Veja bem, o Augusto de Campos e o Haroldo de Campos tinham publicado um artigo em que eles diziam que se tratava de buscar um novo verso para a poesia. Aí eu falei para eles: não se trata de um novo verso, se trata de uma nova sintaxe, porque o verso já era. A sintaxe foi desintegrada, tem de ser buscada uma nova sintaxe. O que o grupo de São Paulo fez? Eles criaram, de fato, uma nova sintaxe, que foi a idéia do poema visual, o poema cuja construção não é a sintática, a sintaxe vocabular, a sintaxe da língua, mas o que eles dizem: as relações de proximidade e semelhança entre as palavras. Então, é uma outra forma de construir o poema. Isso é uma coisa nova, eles que fizeram.
FOLHA - Por que sua poesia partiu para o tridimensional? Seus poemas estão em exposições de artes...
GULLAR - Pois é, comecei a fazer o livro-poema. Como eu posso construir um poema que obrigue o leitor a ler palavra por palavra e que no final resulte em uma estrutura visual? Procurei criar um livro que obrigasse o leitor a ler palavra por palavra. Esse fato foi decisivo no neoconcreto. O que distingue a poesia concreta? A participação do espectador na obra de arte. E nasceu do livro-poema, mas eu não inventei nada.
FOLHA - No livro, você diz que seu poema "Fruta" influenciou a série dos "Bichos", da Lygia Clark?
GULLAR - O "Fruta" já é um objeto, ele não é mais um livro. A maneira como ele abre é como se você estivesse assim abrindo uma flor, você tira uma pétala, abre outra pétala, abre outra e aí no fundo está a palavra "fruta" [Gullar pega um "Bicho" e mostra as semelhanças do movimento da escultura]. A Lygia estava desintegrando a pintura e tirando do plano o elemento tridimensional. Estava fazendo os "Casulos", que inchavam a tela, que criavam uma terceira dimensão. Ela partiu para criar uma coisa no espaço, que não é uma escultura, na verdade, é uma coisa que nasce da pintura.
FOLHA - E você diz que seu "Poema Enterrado" influenciou projetos de Hélio Oiticica.
GULLAR - Sim. Depois que eu fiz "Fruta", que já era um objeto, eu pensei: bom, vou fazer objeto a partir de agora. Não vou fazer mais nem livros nem coisas parecidas com livros. Depois, vamos fazer algo com a participação corporal. Agora, não é só a mão que vai participar, agora é o corpo inteiro. E como será? Eu tenho de entrar no poema. Eu imaginei entrar no poema e aí bolei o "Poema Enterrado", que é uma sala no fundo do chão, em que o cara desce por uma escada, abre a porta e entra no poema e lá tem os cubos. Tem lá um cubo vermelho, você levanta, depois tem um cubo verde, você levanta e depois tem um cubo menor que você pega do chão e lê a palavra: "rejuvenesça".
Então, eu publiquei o projeto desse "Poema Enterrado" no Suplemento Literário do "Jornal do Brasil". Aí o Hélio Oiticica leu e me ligou. Falou: "Cara, achei genial, vamos construir. Meu pai está construindo uma casa nova aqui na Gávea Pequena e eu vou dizer a ele para a gente construir o "Poema Enterrado" no quintal". O pai depois se rendeu e construiu o "Poema Enterrado". Quando nós fomos ver, no dia da inauguração do poema, tinha chovido na véspera, o poema estava inundado [risos].
O "Poema Enterrado", do final de 59, teve influência sobre o trabalho do Hélio. Anos depois, os projetos "Cães de Caça", que o Hélio fez, são labirintos que a pessoa percorre, quer dizer, tem essa participação corporal, é uma coisa que foi antecipada pelo "Poema Enterrado". Não estou querendo dizer que eu sou o genial criador da arte neoconcreta. Nós éramos um grupo e havia uma permuta permanente de idéias.
FOLHA - Você fala no livro que Lygia Clark e Hélio Oiticica enveredaram por um campo sensorial.
GULLAR - Essas experiências-limite foram desenvolvidas pela arte neoconcreta e levadas às últimas conseqüências. Quando a própria Lygia, depois dos "Bichos", começa a fazer experiências com a fita de Moebius no "Caminhando", começa a cortar coisas e a experiência seria ficar cortando infinitamente aquelas formas. Ela própria disse que isso não era mais arte. Depois, ela própria transformou aquilo em terapia, os objetos relacionais. Quando o Hélio faz, por exemplo, os "Parangolés", ele não está mais no terreno da experiência formal, de alguma coisa que eu construo. É uma pessoa qualquer que bota um pano nas costas, tem a ver com uma porta-bandeira de Carnaval.
FOLHA - Você está desencantado com o atual estado da arte e da crítica?
GULLAR - Sim, claro. Porque não tem sentido o cara fazer um tipo de suposta arte que não tem artesanato, não tem técnica, não tem princípio, não tem norma, não tem objetivo nenhum. A gente sabe que não pode ser ensinada para ninguém. O que eles vão deixar para a outra geração? O quê? Como se vê mosca em microscópio? É uma pretensão descabida. Até Bach teve que aprender música para poder compor.
É publicada uma série de bobagens, e a crítica participa disso. Fica aí escrevendo coisas que não tem pé nem cabeça. O que você vai escrever? O cara bota larva de mosca... O que a crítica vai dizer? Essas larvas são boas, são belas larvas? Então, não há crítica para isso. Então, o crítico está sendo expulso e não percebe. Então ele fica escrevendo bobagens, sociologias, especulações filosóficas em torno da larva da mosca. Ah, o que há?