Para entender o Fernando Pessoa, podemos pensar numa tela de Picasso. O mesmo rosto que olha para frente, olha também de perfil.
São duas perspectivas, dois pontos de vista, contidos na mesma face, como se dissessem (entre outras coisas): somos, ao mesmo tempo, mais de uma coisa e estas coisas que somos acabam por se sobrepor, acontecem "ao mesmo tempo".
Esta percepção do tempo (e do espaço), representadas desde nosso ponto (humano) de vista é radicalmente moderna. Só a partir da idade moderna o homem se vê como algo dentro do universo digno de representar (desenhá-la, escrevê-la, esculpi-la) a realidade a partir do seu próprio ponto de vista; este ponto de vista onde passado, presente e futuro, naturalmente, se misturam, porque só ao homem é dado ter memória (que revê) e imaginação (que prevê).
Poucos artistas encontraram meios tão completos e complexos para experienciar a modernidade quanto o poeta português Fernando Pessoa. A heteronimia de Pessoa, que o dividiu, pelo menos, em quatro (ele mesmo, Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis), nada mais é que a mesma intuição de Picasso e suas perspectivas re-duplicadas.
Há, no entanto, e ao mesmo tempo, em Fernando Pessoa, uma percepção muito aguda da sobreposição de concepções do mundo na idade moderna. Enquanto Ricardo Reis exercita versos clássicos, Álvaro de Campos abusa do verso livre, da prosa poética e tudo para representar o ritmo frenético de seu tempo, de seu aqui e agora de "máquinas universais", "novas Revelações metálicas e dinâmicas de Deus!".
Ao mesmo tempo ainda, ele mesmo, Pessoa, retorna ao mito fundador de Portugal e, na vida particular é místico, Rosa e Cruz.
Para um mundo múltiplo, múltiplos eus-poéticos.
Neste conjunto, Alberto Caeiro é aquele mais radicalmente moderno (o mestre, dizem dele os outros heterônimos) e ao mesmo tempo, homem ancestral, pré-moderno, pagão.
Por que Caeiro seria o mestre? Porque em sua visão "naturalista" do mundo, atenta tão somente às aparências, ignorante, por princípio, da essência das coisas, o "guardador de rebanhos" sem rebanhos, aquele que sente que sua "alma" é que é "como um pastor", este é aquele que, como um cientista, acredita que no mundo não há mistério, só segredos - que estão por trás das aparências e que para torná-los visíveis falta tão somente observá-los. Que diga isso desprezando qualquer atitude de investigação
Os meus pensamentos são contentes,
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.
não significa que ele não esteja afirmando que não há nada a ser revelado, que o mundo é tão somente o que vemos, que não há transcendência, não há mais metafísicas do que "comer chocolates".
Ao mesmo tempo, uma outra vez mais, o que se denota no Caeiro é o profundo desamparo que o Pessoa ele mesmo, em seus versos, revela sentir, e que o Álvaro de Campos busca negar em sua escrita eufórica, mas que vai levar o Pessoa, em pessoa, à morte prematura em conseqüência da cirrose hepática.
Pela percepção tão aguda da impermanência humana sobre a Terra, Pessoa e sua multiplicidade de caráter é ao mesmo tempo aquele que celebra a riqueza da modernidade que elegeu o homem como centro de suas preocupações, conduzindo-o assim à idéia de liberdade e revela o aspecto trágico desta mesma experiência: a solidão cósmica de um ser que não mais se enxerga parte do infinito.