Sunday, August 31, 2008

Vicissitudes da Democracia

Platão - A República (562 c-e - 563 a-b)

- Que bem propõe a democracia?

- A liberdade. Num Estado governado democraticamente, é a liberdade que verás proclamada como seu maior bem; por isso em tal Estado só pode viver quem for liberal por temperamento.

- Com efeito, é o que se ouve com muita freqüência.

De fato, é o que te queria dizer. Não é talvez o desejo insaciável desse bem, em troca do qual tudo o mais é abandonado, que determina também a deformação dessa forma de governo, preparando o caminho para a tirania?

- De que modo?

- Penso que quando um Estado constituído democraticamente, com sede de liberdade, está em poder de maus governantes, e tão inebriado dessa liberdade que a usufrui além da medida, se os que o governam não forem extremamente complacentes, permitindo a mais absoluta liberdade, o povo os tratará como réus, punindo-os como traidores e oligarcas.

- É exatamente assim.

- E aqueles cidadãos que obedecem às autoridades constituídas são ultrajados, tratados como homens sem qualquer valor, que se entregaram voluntariamente à escravidão; por outro lado, os magistrados que parecem iguais aos cidadãos, e os cidadãos que se assemelham aos magistrados, tanto nas coisas privadas como nas públicas, são louvados e recebem honrarias. Não é inevitável, assim, que num Estado como esse reine acima de tudo o espírito da liberdade?

- Como não?!

- E mais ainda, meu amigo: que ele se insinue na intimidade das famílias, e que finalmente a anarquia atinja os próprios animais?

- Em que sentido?

Por exemplo: o pai se habitua a tratar os filhos como iguais, e a temê-los, o mesmo ocorrendo com os filhos em relação aos pais, de modo que os primeiros passam a não respeitar ou temer os próprios genitores, justamente por serem livres. Os metecos* se tornam iguais aos cidadãos, e estes aos metecos, o mesmo se podendo dizer com relação aos estrangeiros.

- É exatamente o que acontece.

- Sim e mais ainda: num Estado semelhante o professor teme e adula seus alunos, que não dão importância ao mestre, como aos educadores; em poucas palavras, os jovens se igualam aos velhos, tanto no que dizem como no que fazem. Por sua vez, os velhos são condescendentes com relação aos jovens - com sua vivacidade e alegria - imitando-os para não parecerem intolerantes e despóticos.

* estrangeiro que possuía permissão para residir na antiga Atenas

Norberto Bobbio - A Teoria das Formas de Governo - Capítulo II - PLATÃO

Saturday, August 30, 2008

meu criado mudo repleto de livros:

A Física dos Anjos - uma visão científica e filosófica dos seres celestiais - Matthew Fox e Rupert Sheldrake

A Onda Que Se Ergueu do Mar - Ruy Castro

Huxley e Deus - Ensaios - edição Jacqueline Hazard Bridgeman

Pai Nosso - Rudolf Steiner

A Teoria das Formas de Governo - Norberto Bobbio

RUY CASTRO

Em junho último, um morador da cidade de Darwin, na Austrália, percebeu um corpo estranho em seu vaso sanitário. Levantou-se às pressas e deu com uma cobra - uma píton de cabeça negra -, de 1,8 metro, saindo dele. Segurando as calças pelos suspensórios, foi acudido por um vizinho, que o acalmou garantindo que a píton não era venenosa. O cidadão mora num 10º andar, seu banheiro não tem janelas, e a cobra só pode ter subido pelo encanamento.

Na Itália, o primeiro-ministro Silvio Berlusconi está gravando um CD de canções de amor. Já o imaginava cantando "Parlame di Amore", "Mariù", "Champagne", "Io Che Non Vivo Senza Te", "Nel Blu Dipinto di Blu" e outros clássicos à beira da piscina quando fui informado de que as canções serão de sua lavra.

Nesta segunda-feira, durante um vôo Budapeste-Dublin, um vazamento de sopa de cogumelo sobre um passageiro da empresa aérea irlandesa Ryanair provocou uma reação alérgica tão forte no dito cujo que obrigou o avião a um pouso de emergência em Frankfurt, para que ele fosse socorrido. A sopa, pingando de um compartimento sobre a cabeça do homem, desencadeou um inchaço instantâneo em seu pescoço, impedindo-o de respirar.

E, na terça-feira, uma criança de um ano e meio caiu, não se sabe como, de uma janela do terceiro andar de um prédio no bairro de Boa Viagem, no Recife. Mas não morreu, porque a fralda descartável que ela usava ficou enroscada num pedaço de ferro pontiagudo em cima de um muro, impedindo que fosse ao chão.

O que essas notícias têm em comum? Não faço idéia. Mas há ocasiões em que o mundo fica parecido, respectivamente, com uma revista da praça Tiradentes, um programa de calouros do Silvio Santos, uma chanchada da Atlântida e um desenho animado do Údi-Údi.

Há 46 anos, 30/08 foi uma quinta-feira

Quinta-feira: este dia é dedicado a Thor, o deus do trovão, dono de um martelo mágico que lhe confere poder e vitalidade. É símbolo da riqueza. Esse martelo mágico era chamado de Mjolnir, que significa, "que lança raios de luz". O Mjolnir tinha uma enorme cabeça e um cabo curto. Thor nunca errava o alvo e o martelo sempre retornava às suas mãos. Ele usava luvas de ferro mágicas para segurar o cabo do martelo branco e um cinturão que dobrava sua força. Thor é um deus de cabelos vermelhos e barba, representando a força da natureza (trovão). Ele é o filho de Odin, o deus supremo de Asgard, e de Jord a deusa dos seres humanos. Thor adorava disputas de poder e era o principal campeão dos deuses contra seus inimigos, os gigantes de gelo. Os fazendeiros apreciavam sua honestidade simplória e repugnância contra o mal e veneravam Thor em vez de Odin. Os animais de Thor eram o carneiro, o bode e a águia. Os anglo-saxões deram o nome de Thor ao quinto dia da semana, Thursday ou seja "Thor's day" (quinta-feira, em inglês). Quem nasce nesse dia recebe a ajuda de Thor para conquistar a prosperidade material.

Horóscopo Viking (???) - http://www1.uol.com.br/bemzen/index.html

Friday, August 29, 2008




Crack, cachaça e maconha mascaram esforço e dor


O primeiro fumava maconha na colheita da cana porque "ficava com o corpo mais leve. Dava vontade de trabalhar". O segundo escondia cachaça em sua mochila. "Quanto mais eu bebia, mais tinha energia. Eu me sentia forte."

O terceiro "ia embora" com maconha ou crack, subproduto barato da cocaína ainda mais destrutivo e capaz de criar dependência. "Quando usava, ninguém me segurava. Cortei 21 toneladas em um dia."

Na Casa do Caminho, um centro de recuperação de dependentes químicos em Barrinha, na maioria trabalhadores do cultivo da cana, eles tentam voltar à tona.

O primeiro trocou a maconha pelo crack. "Na roça, vinha a sensação de ser perseguido, eu ficava com medo, via revólver, dava vontade de atirar em mim mesmo. Não trabalhava. Comecei a perder o serviço."

O segundo foi do fermentado de cana-de-açúcar para o crack. Se fumava a droga, misturada com fumo, faltava ao trabalho. "No crack, o fim é o cemitério, uma cadeira de rodas ou a cadeia." O terceiro "ficava louco e continuava trabalhando. Viajava no serviço. Gritava e zoava a cabeça dos meninos. Cantava reggae". Seu plano para quando sair: cortar cana.

Não se conhecem estatísticas de consumo de drogas ilícitas nos canaviais ou o índice específico de internação de cortadores. O fato novo é a disseminação no interior de São Paulo de clínicas de recuperação de trabalhadores da cana. Contam-se ao menos dez.

Os depoimentos dos lavradores associam o consumo de drogas à impressão inicial de superação dos limites físicos. Na largada, elas parecem ajudar. Depois, debilitam.

A Casa do Caminho abriga 40 internos. Seu presidente, Arnaldo Garcia, afirma que as fontes de financiamento são diversas. As usinas contribuem com açúcar e lenha.

Thursday, August 28, 2008



Operário-padrão


Valdecir da Silva Reis, o graveto que consome seus dias deitado na cama a ver TV, já foi um campeão. Não tinha para ninguém. Na lavoura, batia recorde em cima de recorde.

Em 20 de março de 2006, colheu 21 toneladas. Em 17 de maio, 28. Oito dias depois, rasgou 560 metros lineares de plantação, cortando cinco linhas de cana para receber por uma - é o critério legal. A rigor, derrubou 2,8 km lineares.

O contracheque da empresa Meia Lua imprime a marca da jornada: 52,47 toneladas. Quase uma tonelada por quilo de gente - ele pesava 56 kg. Hoje diz ter 49 kg. Parece menos.

O cortador que arrancava suspiros dos colegas incrédulos definha na casa onde vive de favor em Engenheiro Coelho.

Na roça, não sentia dores. Em 2006, a coluna "travou" e ele não retornou ao canavial. Aos 35 anos, sonha com o dia de voltar ao trabalho em que se tornou o herói dos amigos.

Por maior que seja a vontade, ele desconfia de que não empunhará o facão novamente. Os exames diagnosticaram problemas na coluna lombar, hérnia de esôfago e desequilíbrios nos indicadores de urina.

Valdecir se queixa de dores de cabeça, na barriga, no peito (não fez avaliação cardíaca), no saco escrotal, no ombro direito, nos braços, joelhos e pernas; de falta de força para levantar uma garrafa d'água; de cansaço após caminhar 800 metros; de ouvir mal por um ouvido.

O lado esquerdo do tórax é mais desenvolvido; com o braço esquerdo ele atirava a cana na leira, o corredor aberto na terra onde fica a cana colhida.

Segunda divisão

Ainda que o farrapo humano que fala baixinho e sem fôlego sobre seu infortúnio fosse criação de um magistral ator stanislavskiano, ultra-realista, nem assim seria possível bolar uma história com princípio, meio e fim como a dele - os repórteres escarafuncharam o caso com base em fartura de documentos e depoimentos.

Valdecir começou a cortar cana aos 13 anos. Empresas premiavam seus feitos com bicicleta e aparelho de som.

Após "travar" em 2006, obteve auxílio-doença da Previdência. Na perícia de 5 de maio passado, no entanto, foi considerado apto para o trabalho. Sua renda é zero.

Mora com uma filha de casamento anterior e a mulher, Helena. Ela ganha R$ 30 por faxina. Faz duas por semana.

O trabalho para o qual o INSS não identifica "problema grave" para Valdecir exercer "não se pode comparar ao de um escriturário", diz um executivo de usina. Anunciam-se vagas para escriturário com 30 a 40 horas de carga semanal. Em período idêntico, o cortador de cana em SP trabalha, no papel, 44 horas, em seis dias.

De escriturários e cortadores se exigem 35 anos de serviço para se aposentar. A maioria desses, contudo, é safrista: trabalha oito meses por ano na atividade. Não soma 12 meses de contribuição.

O desempenho de alguns é tão exuberante que os célebres campeões cubanos das campanhas de corte de cana aqui pegariam segunda divisão. Em 1965, Fidel Castro condecorou cinco deles, de marcas de 14 a 19,7 toneladas. Na Meia Lua, ex-empregadora de Valdecir, um cortador bateu 35 toneladas em 20 de junho. Os repórteres tentaram falar com a empresa, mas não encontraram seus endereço e telefone.

Os campeões, como são chamados na lavoura os de melhor performance, costumam ser magros e fortes. Valdecir tem 1,65 m de altura.

Samuel Gomes, 38, é um dos recordistas de Guariba. Mede 1,85 m. Barack Obama, 1,86 m. O peso do senador americano é estimado em 77 kg a 82 kg. Samuel, que tem 68 kg, conta ter cortado neste ano 27 toneladas em um dia na usina São Carlos.

Com tanta exigência física, há nove homens (92%) por mulher na lavoura canavieira do Brasil. Em nove culturas relevantes, os trabalhadores de menor média etária são os da cana, 35,5 anos - dados compilados pelos pesquisadores Rodolfo Hoffmann (Unicamp) e Fabíola C.R. Oliveira (USP).

Rotina

Ônibus das empresas apanham os cortadores em casa entre 5h e 6h. No campo, a jornada inicia às 7h. Muitos "almoçam" antes de começar a colheita. Há direito a intervalos de dez minutos, de manhã e à tarde. Pelas 10h ou 11h, reserva-se uma hora para almoço - poucos cumprem todo o tempo. O serviço termina às 15h ou 16h, mas há excessos. Os trabalhadores chegam às suas casas entre as 17h e as 19h. Dormem pelas 20h, 21h, para acordar entre as 3h30 e as 4h30.

Pesquisa de análise ergonômica em fase de conclusão, financiada pela Fapesp e coordenada pelos pesquisadores Rodolfo Vilela e Erivelton de Laat, descreve os movimentos dos cortadores.

Um deles, que colheu 11,5 toneladas, deu em um dia 3.792 golpes com o facão e fez 3.994 flexões de coluna. O facão pesa 600 gramas. Golpeia-se a cana no pé, onde se concentra a sacarose. O cortador destro abraça o feixe de cerca de dez canas com o braço esquerdo (ou, vara por vara, com a mão), curva-se e golpeia com o braço direito. Com o esquerdo, atira a cana na leira, de onde a máquina carregadeira a leva.

Em um grupo, a freqüência cardíaca média em repouso era de 57,4 batimentos por minuto. No trabalho, de 112, variação exagerada, conforme os pesquisadores (a diferença deveria se limitar a 35).

A atividade dos lavradores é comparada à de maratonistas, com repetição fatigante de movimentos. Maria Zeferina Baldaia, campeã da Maratona de São Paulo em 2008, foi cortadora de cana no interior. "Uma coisa tem muito a ver com a outra", confirma.

Sindicatos de empregados pedem a redução da carga semanal para 40 horas, com dois dias de descanso. Cristina Gonzaga, pesquisadora da Fundacentro, fundação de pesquisas do Ministério do Trabalho, defende 30 horas, com cinco jornadas de seis horas por semana.

As empresas rejeitam as reivindicações.

É essa vida que Valdecir fantasia retomar. Ele se esconde em casa. "As pessoas vêem a gente na rua e falam que é vagabundo. Não vêem o que a gente tem por dentro, o que a gente sente."

Tuesday, August 26, 2008



Filhos da cesta básica


Maria Vanilda Sabino diz que a filha Vitória tem uma boneca. A menina de quatro anos, porém, não sabe onde ela está.

Maria mora com o marido nos fundos de uma casa. Cortador de cana, com carteira assinada por usina, Antônio é analfabeto como a mulher.

Com o casal dormem três filhas no quarto. Na cozinha, diante do fogão, dois filhos. Não há geladeira. O terceiro cômodo é um banheiro. Os três rebentos maiores estão no Nordeste - são oito no total.

A alagoana Maria chegou a Serrana no ano passado. O peso de duas meninas caiu para o nível de desnutrição. Engordaram graças a leite e cesta básica doados pela prefeitura. Em junho, como sempre, Maria recebeu R$ 112 do Bolsa Família.

Em mês recente, Antônio ganhou R$ 487 líquidos. Só de aluguel se foram R$ 140. Sua renda é a única do lar.

Artigo inédito dos economistas Francisco Alves (UFSCar) e Marcelo Paixão (UFRJ) analisou 71 municípios paulistas que tinham mais de 40% de superfície total ocupada com cana na década de 1990.

Concluiu que nessas cidades a renda é maior, porém apenas sete alcançavam em 2000 IDH (Índice de Desenvolvimento Humano, que contempla também saúde e educação) maior que a média do Estado. Só 13 superavam o IDH médio de suas microrregiões. E em 43 a desigualdade ultrapassava a das microrregiões.

Também com base em dados do IBGE de 2000, os professores da USP Alceu Salles Camargo Júnior e Rudinei Toneto Júnior chegaram a constatações opostas.

Pesquisa da dupla sustenta que os municípios com pelo menos 28,8% de cana-de-açúcar plantada, no conjunto da área da lavoura (não da superfície total), têm IDH maior que os sem esse perfil agrícola.

Em sentido contrário, estudo do presidente do Ipea, Marcio Pochmann, afirma que 81% das famílias dos trabalhadores do setor sucroalcooleiro de SP (agricultura e indústria) tiveram em 2005 rendimento de até dois mínimos.

"É o público do Bolsa Família, de renda equivalente", diz Pochmann.


Sertão

Sunday, August 24, 2008


http://sorrisodemedusa.wordpress.com/



A morte cansada


Com produção em alta e salários em queda, excesso de trabalho ronda canaviais

Se dinheiro chama dinheiro, como dizem, então pobreza chama pobreza - e tragédia agoura tragédia. Procurada em Guariba para conversar sobre o marido, morto após passar mal no canavial em 2005, Maildes de Araújo se põe a falar do morto de duas semanas antes: o cunhado, também cortador de cana.

José Pindobeira Santos tinha 65 anos. Colheu cana até o ano retrasado. "Ele reclamava da barriga, de cólicas", diz a filha Ivanir, faxineira. Voltava da lavoura com dor na virilha. Nunca se tratou ou foi tratado.

Pindobeira morreu de obstrução intestinal e broncoaspiração. Não se sabe até que ponto a lida na roça baqueou sua saúde. Nos anos 1960 já cortava cana nos arredores de Guariba.

Seu concunhado Antonio Ribeiro Lopes, o marido da baiana Maildes, veio ao mundo em julho de 1950, três dias antes do fracasso supremo do futebol pátrio, a final da Copa. Migrou de Berilo (MG), município da paupérrima região do Vale do Jequitinhonha.

Em acidentes registrados - a subnotificação é considerável -, o facão rasgou-lhe perna e joelho. Dores no ombro direito o afastaram da roça. Penava com dor de cabeça. O empenho no trabalho desencadeava cãibras na barriga, nas pernas e nos braços. Sofria da doença de Chagas, mas não o licenciaram.

Era funcionário da usina Moreno. Sucumbiu no campo e o levaram para o hospital. Causa da morte: "cardiopatia chagásica descompensada".

Lopes integra a relação de duas dezenas de canavieiros mortos no interior paulista de 2004 a 2007, o caçula com 20 anos. A lista foi elaborada pela Pastoral do Migrante - há mais mortes, não contabilizadas.

Dela não constam acidentes de trabalho - em 2005, de cada mil trabalhadores no cultivo da cana, 48 sofreram acidente ocupacional, registraram as pesquisadoras da USP Márcia Azanha Ferraz Dias de Moraes e Andrea R. Ferro.

Naquele ano, segundo o Ministério do Trabalho, morreram de acidentes 84 pessoas no setor sucroalcooleiro, incluindo lavoura e indústria (3,1% das mortes por acidentes de trabalho no Brasil). O Ministério Público do Trabalho investiga a razão dos óbitos e sua associação com o caráter exaustivo do corte manual.

Relatório de 2006 da Secretaria de Inspeção do Ministério do Trabalho enumera dezenas de irregularidades em empresas nas quais trabalhavam os lavradores que morreram.

Uma é o não-cumprimento do descanso de uma hora para o almoço. Os cortadores comem em dez, 20 minutos, para logo empunhar de novo o facão. Eles ganham por produção. Nenhum laudo atesta que a atividade foi decisiva para os óbitos. Seria difícil: dos oito esquadrinhados pelo ministério, só em dois houve necropsia.

O texto da Secretaria de Inspeção afirma: "As causas de mal súbito, parada cardiorrespiratória e AVC [acidente vascular cerebral], descritas nas certidões de óbito, não são elementos de convicção que justifiquem a morte natural, como alegam as empresas".

Há indícios sobre por que morrem os canavieiros.

Em 1985, os cortadores do Estado produziam em média 5 toneladas diárias de cana. Em 2008, são 9,3 toneladas, 86% a mais. Há 23 anos, um lavrador recebia R$ 6,55 por tonelada e R$ 32,70 por jornada. Em 2007, 1.000 kg valeram R$ 3,29. A remuneração por dia, R$ 28,90 (menos 12%).

A produtividade disparou e o salário caiu. Com a mecanização acelerada do corte e a expansão do desemprego, ficam os mais eficientes. O homem compete com a colheitadeira.

Os números de 1985 e 2007 são do Instituto de Economia Agrícola. Atualizados para reais de agosto de 2007, encontram-se em artigo dos pesquisadores Rodolfo Hoffmann (Unicamp) e Fabíola C.R. de Oliveira (USP).

"Penoso" e "desumano"

José Mário Gomes morreu em 2005 aos 44 anos. Era empregado da usina Santa Helena, do grupo Cosan, líder da produção de cana no planeta. "O óbito ocorreu nos períodos de maior produtividade, com picos alternados", informa o Ministério do Trabalho.

Valdecy de Lima trabalhava na usina Moreno, como Antonio Ribeiro Lopes. Em 7 de julho de 2005, desabou na roça. Morreu aos 38 anos, de acidente vascular cerebral. Em 17 de junho, decepara 16,5 toneladas.

A Moreno alega que as mortes de Antonio e Valdecy "não ocorreram em decorrência do esforço do trabalho". A Cosan diz que as causas do óbito de José Mário "ainda estão sendo investigadas pelos órgãos competentes. A empresa prestou todos os atendimentos necessários e colocou seu departamento de serviço social à disposição da família do colaborador. A Cosan cumpre rigorosamente a legislação trabalhista".

O Ministério Público do Trabalho relaciona as mortes à rotina "penosa" e "desumana" e prepara ação contra o pagamento por produção, quando o grosso da remuneração depende do desempenho. É preciso acumular em oito meses, a duração da safra, o suficiente para 12 - a maioria é dispensada na entressafra.

Usineiros e segmento expressivo dos trabalhadores desejam manter o sistema.

O afinco para cortar mais e mais provoca situações como uma acontecida em 2007. Sob o sol, em dia de temperatura máxima de 37ºC à sombra, nove trabalhadores foram hospitalizados após se sentirem mal em uma fazenda de Ibirarema.

Reclamavam de cãibras e vomitavam. Algumas usinas fornecem no campo bebidas reidratantes para a mão-de-obra suportar o desgaste.

Em áreas de corte manual, os canaviais costumam ser queimados antes da colheita. O fogo queima a palha da cana, e restam apenas as varas, o que facilita o trabalho. Quando o facão golpeia as varas com fuligem, o pó se espalha, entra pelo nariz e gruda na pele. A plantação recebe agrotóxicos. O lavrador não costuma receber máscara.

Em tese de doutorado na Unesp, a bióloga Rosa Bosso constatou que o nível de HPAs, substâncias cancerígenas, expelidos na urina de quatro dezenas de trabalhadores era nove vezes maior na safra do que na entressafra.

Em temporada sem colheita, Antonio Lopes sobreviveu como carregador de sacas de açúcar. Maildes o conheceu na lavoura da cana, onde o namoro engatou. Ainda hoje a viúva se orgulha: "Ele não era de enjeitar serviço".



O submundo da cana

Pontualmente às 4h42, a canavieira Ilma Francisca de Souza parte para o trabalho com sua marmita fornida de arroz coberto por uma lingüiça cortadinha. Em outro bairro de Serrana, ainda antes de o sol nascer, Rosimira Lopes sai para o canavial levando arroz com um só acompanhamento: feijão.

Durante o dia, elas vão dar conta da comida, que já terá esfriado. A despeito do notável progresso que ergue usinas de etanol com tecnologia assombrosa, o Brasil segue sem servir refeições quentes aos lavradores da cana-de-açúcar.

A bóia continua fria.

Durante dois meses, a Folha investigou as condições de vida e trabalho dos cortadores de cana no Estado que detém 60% da produção do país que é o principal produtor do planeta.

Gente como Ilma e Rosimira.

Em uma das etapas de apuração da reportagem, por 15 dias percorreram-se 3.810 quilômetros de carro, o equivalente a nove trajetos São Paulo-Rio de Janeiro.

Pela primeira vez em cinco séculos, desde que as mudas pioneiras foram trazidas pelos portugueses, em 2008 ao menos metade da cana de São Paulo não será colhida por mãos, mas por máquinas. É o que anunciam os usineiros.

Como na virada do século 16 para o 17, quando o país era o líder do fabrico de açúcar, a cana oferece imensas oportunidades ao Brasil, em torno do álcool combustível do qual ela é matéria-prima. O etanol pode se transformar em commodity, com cotação no mercado internacional. As usinas geram energia elétrica.

A riqueza do setor sucroalcooleiro, que movimentará neste ano R$ 40 bilhões, não atingiu os lavradores. Em 1985, um cortador em São Paulo ganhava em média R$ 32,70 por dia (valor atualizado). Em 2007, recebeu R$ 28,90. A remuneração caiu, mas as exigências no trabalho aumentaram. Em 1985, o trabalhador cortava 5 toneladas diárias de cana. Na safra atual, 9,3.
Em 19 cidades do interior - na capital foi ouvido um representante dos empresários - , os repórteres procuraram entender por que, entre nove culturas agrícolas, a da cana reúne os trabalhadores mais jovens.

Exige alto esforço físico uma atividade em que é preciso dar 3.792 golpes com o facão e fazer 3.994 flexões de coluna para colher 11,5 toneladas no dia. Nos últimos anos, mortes de canavieiros foram associadas ao excesso de trabalho.

Conta-se a seguir o caso de um bóia-fria que morreu semanas após colher 16,5 toneladas. Não há paralelo em qualquer região com tamanho rendimento.

Na estrada, flagraram-se ônibus deteriorados, ausência de equipamentos de segurança no campo, moradias sem higiene e pagamento de salário inferior ao mínimo.

Conheceram-se comunidades de canavieiros que dependem do Bolsa Família, migrantes que tentam a sorte e lavradores que querem se livrar do crack e de outras drogas.
Descobriram-se documentos que comprovam a existência de fraudes no peso da cana, lesando os lavradores.

Escravidão

No auge e na decadência do ciclo da cana-de-açúcar, os escravos cuidaram da lavoura e puseram os engenhos para funcionar. A arrancada do etanol brasileiro foi dada por lavradores na maioria negros.

Assim como os escravos sumiram de certa historiografia, os cortadores são uma espécie invisível nas publicações do setor. Exibem-se usinas high-tech, mas oculta-se a mão-de-obra da roça.
Impressiona na viagem ao mundo e ao submundo da cana a semelhança de símbolos da lavoura atual com a era pré-Abolição. O fiscal das usinas é chamado de feitor.

Acumulam-se denúncias de trabalho escravo. É um erro supor que as acusações de degradação passem longe do Estado mais rico do país e se limitem ao "Brasil profundo". Uma delas é narrada adiante. Em São Paulo, localiza-se Ribeirão Preto, centro canavieiro tratado como a nossa "Califórnia".

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem minimizado os relatos sobre trabalho penoso nos canaviais. No ano passado, ele disse que os usineiros "estão virando heróis nacionais e mundiais porque todo mundo está de olho no álcool".

O medo de retaliações é grande entre os canavieiros. Nenhum nome foi mudado nos textos, mas algumas pessoas, a pedido, são identificadas apenas pelo prenome ou nem isso. As entrevistas foram gravadas com consentimento.

São muitos esses anti-heróis: segundo os usineiros, há 335 mil cortadores de cana no Brasil, incluindo os 135 mil de São Paulo. No Estado, prevê-se a extinção do corte manual para 2015, junto com as queimadas que facilitam a colheita.

Ilma e Rosimira compõem uma espécie em extinção. Por meio milênio, os cortadores, escravos ou assalariados, viveram tempos difíceis. Nos próximos anos, não será diferente: com baixa qualificação, eles terão de procurar outros meios de sobrevivência.

Não há sindicato que não constate queda nas contratações.

O canavial não está tão longe quanto parece: ao encher o tanque com 49 litros de álcool, consome-se uma tonelada de cana; quando se adoça com açúcar o café da manhã, milhares de brasileiros já estão na lavoura de facão na mão.

Mário Magalhães / Joel Silva - Enviados Especiais ao interior de SP

Thursday, August 21, 2008



No País da Piada Pronta

Wednesday, August 20, 2008

Metralhadora Giratória

Durante a passagem de som para sua apresentação no festival Mada, em Natal, na sexta-feira, Lobão não largou da guitarra e orientou, com gestos, o novo guitarrista Lineu de Paula, sempre pedindo a ele mais intensidade na execução de músicas já naturalmente densas, como Universo Paralelo, Tão Menina e Sozinha Minha. Foi com essa mesma intensidade que o cantor, hoje morando em São Paulo, desancou o Rio de Janeiro em entrevista ao Jornal do Brasil.

Por que você se mudou para São Paulo?

Cara, eu adoro o carioca da Zona Norte, mas o da Zona Sul já estou de saco cheio. Fui criado em Ipanema, ia ao píer nos anos 70, conheço meu pessoal. Eu não tenho assunto com ninguém do Rio, nem gosto desse modelo do cara bombado, com a orelha parecendo uma couve-flor. No Rio você vê advogados falando igual a idiotas, dizendo "merreca" em vez de falar em dinheiro. Que credibilidade um sujeito desses tem? O carioca da Zona Sul, hoje em dia, é um cara que não paga para ir em show. Não paga nem meia, quer ser vip, entrar naquelas listas. Vai ao show, fica aporrinhando o saco e depois ainda vai ao camarim beber meu uísque.

O João Gilberto, que gravou sua música ‘Me chama’, vai tocar no Rio...

Na verdade ele assassinou a música, né? Cortou até o "nem sempre se vê lágrimas no escuro", porque não entendeu. Tem que dessacralizar esse cara e essa coisa da bossa nova, que não passa de uma punheta que se toca de pau mole. Não tem ninguém que o João Gilberto tenha chamado mais para ir na casa dele do que eu. E eu nunca fui.

Mas você não gosta de bossa nova?

Bossa nova é uma língua morta, assim como essas bandas de choro e samba que existem hoje, que ficam tocando naquele lugar sujo que é a Lapa. Tem que parar com essa coisa de ficar lambendo o saco de universotário marxista branquelo, essa coisa loser manos, petista, que virou maioria no Brasil. Porque o Brasil é o país da culpa católica, um país em que se valorizam as pessoas feias.

Na sua opinião, o que precisa mudar no Rio para você voltar?

A gente precisa de um candidato que tenha coragem de falar que tem que acabar com as favelas. Nisso até Carlos Lacerda tinha razão. O que seria da Lagoa Rodrigo de Freitas se ainda tivéssemos a Praia do Pinto e a Catacumba lá? Tem que deslocar esse pessoal pra algum lugar, proibir até rico de fazer casa em encosta, porque dá uma chuva e cai tudo.

E o Gilberto Gil? O que você achou da saída dele do ministério?

O Gil, cara... isso vem, para mim, antes de ele ser ministro. Ele é falso, vem com aquele discursinho de "a rebimboca da parafuseta" e não fala coisa com coisa. E ficam as pessoas falando "Nossa, você viu como ele é culto, como fala bem?". O Gil não fala nada, enrola todo mundo. O Caetano é que é legal. A gente já brigou muito mas ele vai lá, fala, se defende.

Você já tentou ver sua carreira, sua obra, em progresso?

Já, porque muitas vezes fui chamado de maluco por coisas que, depois, viram que eu estava certo. Como quando deixei as gravadoras e afirmei que elas iriam acabar em menos de 10 anos. E olha aí o que está acontecendo. Fora essa luta pela numeração (dos CDs), que encarei praticamente sozinho. Com exceção de Frejat, Beth Carvalho e Ivan Lins, foram todos cagões.

Quem são eles?

O Gil foi um deles. Tenho a lista toda desses caras em casa. Se um dia fizer minha autobiografia vou colocar. É importante lembrar que nunca briguei com as gravadoras, briguei com esse esquema viciado que está aí. Tanto que fui para a Sony BMG fazer o Acústico MTV.

Ricardo Schott - 19 de julho de 2008 : 01h00m / http://jbonline.terra.com.br/



Segundo Caetano Veloso podemos creditar a Caymmi, por exemplo: a combinação reveladora de sutilezas impressionistas com rudeza, tal como se ouve nas “canções praieiras”. A previsão da bossa nova no casamento do coloquialismo natural com a sofisticação composicional, como perceptível nos sambas-canções dos anos 40 e 50. A mescla de canto operístico com intimidade.
"A contribuição para a criação do autor-cantor (que em língua espanhola e italiana se chama de “cantautor”): Caymmi é o único que conheço que foi, ao mesmo tempo, o Gershwin e o Bing Crosby (ou Al Johlson), uma prefiguração do que seríamos os autores-cantores dos anos 60 em diante, Gilberto Gil, Bob Dylan, João Bosco… Há o caso dos bluesmen, como Robert Johnson, ou dos trovadores franceses, como George Brassens. Mas, sem entrar no mérito da qualidade artística intrínseca de nenhum deles, Caymmi foi algo que eles não foram: um autor como Cole Porter ou Ary Barroso, abrangente, variegado. E foi o que nem Barroso nem Porter puderam ser: o melhor intérprete de suas próprias canções, sobretudo quando sozinho com seu violão. E aquela voz de Caymmi, aquela voz de caverna (que seus três filhos herdaram), voz de caverna marítima, como aquela que, ecoando o ronco das ondas, soa como um rugido de leão, na costa da ilha de Fernando de Noronha, Gruta Azul. A voz de Caymmi é uma Gruta Azul com cantos napolitanos de barqueiros dentro, barqueiros que pensam que enganam os turistas. Caymmi era uma rocha e um anjo. Demasiado material, demasiado espiritual. Caymmi é um núcleo do Brasil. Caymmi será o Mundo. Quem disse melhor sobre suas canções foi Arnaldo Antunes: Não parece coisa feita por gente."

Caetano Veloso - Obra em Progresso

Thursday, August 14, 2008

Os romancistas ingleses, mais do que outros, cultivaram o romance de high life, e os franceses, que - como Custine - quiseram escrever especialmente romances de amor, tiveram o cuidado, de início e muito judiciosamente, de dotar suas personagens de fortunas bastante consideráveis para pagarem sem hesitação todas as fantasias; em seguida, dispersaram-nas de qualquer profissão. Esses seres não têm outra ocupação senão cultivar a idéia do belo em suas próprias pessoas, satisfazer suas paixões, sentir e pensar. Possuem, a seu bel-prazer e em larga medida, tempo e dinheiro, sem os quais a fantasia, reduzida ao estado de devaneio passageiro, dificilmente pode ser traduzida em ação. Infelizmente é bem verdade que, sem o tempo e o dinheiro, o amor não pode ser mais do que uma orgia de plebeu ou o cumprimento de um dever conjugal. Em vez da fantasia ardente ou sonhadora, torna-se uma repugnante utilidade.
Se falo de amor [a propósito do dandismo], é porque o amor é a ocupação dos ociosos.

BAUDELAIRE, Charles - O dândi; in: Sobre a Modernidade: o pintor da vida moderna. Organizado por Teixeira Coelho - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996

Sunday, August 10, 2008

Saturday, August 09, 2008

Páginas à revelia da semana:

A Transfiguração do Lugar-Comum - Arthur C. Danto

Clement Greenberg e o Debate Crítico - Greenberg e Outros

"Sons, assombrações, penumbra" - Fran Papaterra

Chico Buarque / Reportagem Biográfica - Humberto Werneck

Os Donos da Voz - Márcia Tosta Dias

Wednesday, August 06, 2008



Miles Davis - Kind of Blue



Elis & Tom 1974



Céu e Mar / Na Batucada da Vida

Monday, August 04, 2008

Time is too slow for those who wait,
too swift for those who fear,
too long for those who grieve,
too short for those who rejoice.
But for those who love, time is not.

Henry Van Dyke (?)

Sunday, August 03, 2008

"Não precisa entender, é uma brincadeira"

Do lado de fora, no último domingo (dia de entrada franca), a fila se estende até metade da marquise do Ibirapuera. Lá dentro, cem pessoas por vez conseguem ver, embasbacadas ou não, as obras de Marcel Duchamp (1887-1968) reunidas no MAM de São Paulo. Se boa parte das mais de 23 mil pessoas que já visitaram a mostra, desde a abertura há duas semanas, podem ter passado reto pela primeira sala, com a cronologia da vida do artista, seu urinol branco ainda é capaz de frear os passos. "Achar que um mictório é uma obra de arte só deve fazer sentido na cabeça dele", opina a produtora de eventos Bete Fonseca, 39. Ela e o filho Gabriel, 6, passaram alguns minutos em volta da obra - ele bem mais entretido do que ela, é verdade. "Não esperava ver isso num museu, mas quis trazer meu filhote para treinar o olhar", diz Fonseca. Não foram poucos os que seguiram o exemplo. Crianças correndo de um lado para outro e até carrinhos de bebê disputavam o espaço do museu. "Se alguém ajuda a abrir meus olhos, consigo ver de maneira diferente", diz o químico Alfredo Alder, 56, que consultava os monitores do museu sobre cada obra lá dentro - ele parou para fotografar várias delas. "A gente anda tão cego pelo mundo, mas não precisa entender, é uma brincadeira." "É aquela gozação de escola, é o sonho de todo mundo entrar num museu e fazer um bigodinho na Monalisa", diz o vendedor Sérgio Dias, 25, sobre L.H.O.O.Q., em que Duchamp rabisca sobre um pôster da obra-prima de Da Vinci, peça central de seu questionamento à aura do objeto de arte. "Ele era um cara muito safado, dá para ver pelas obras que ele fez", diz a estudante Alessandra Liebscher, 19, sem esconder a frustração. "Depois dele, os artistas ficaram mais preguiçosos, basicamente." Dias e Liebscher concordam que tudo que viram ali tem lá sua validade histórica, mas queriam algo mais "sério". "Hoje jogam um balde de tinta na parede e falam que é arte, qualquer criancinha desenha e faz uma exposição", resmunga Dias. "Hoje é normal, nada surpreende", arremata Liebscher. Para os mais íntimos de Duchamp, não passa de uma chance de ver de perto o que causou tanto escândalo no século passado. "Na época, as pessoas ficaram assustadas", diz o estudante Danilo Benitez, 24. "Mas isso tudo já virou ícone dessa fase transgressora."

Silas Martí - Da reportagem local

Ainda o Urinol de Duchamp - Feitiço do Tempo

Gerald Thomas não cogita a possibilidade do fracasso das vanguardas. Só a vitória dos caretas.

Retrospectiva de Duchamp é algo muitíssimo absurdo

Está em cartaz no Museu de Arte Moderna, em São Paulo, uma retrospectiva de Marcel Duchamp. A simples idéia de uma retrospectiva para Duchamp teria sido, no mínimo, algo impensável ou risível quando ele rompeu com tudo, com a caretice de tudo, com o chamado "bonitismo" da arte no início do século 20. Foi aí que começou o nosso "desastre". Duchamp, Freud e alguns outros são os culpados pelos nossos fracassos. Mas explico: são os nossos grandes heróis. Quem destrói para construir é aquele que consegue transformar o mundo num abrir e fechar de olhos e deixar todo mundo de pé, plantado em seu próprio mijo, sem ter o que dizer. Não à toa o urinol de Duchamp foi um dos primeiros ready-mades, um combate contra a arte artesanal, a pintura e a escultura tradicionais. Retrospectiva de Duchamp é muitíssimo absurda, ainda por cima réplicas dos ready-mades. Haroldo de Campos foi mais longe, já que era um Duchamp também, Du Champos! Construiu palavras de concreto e cruzou a onomatopéia de Joyce com o dadaísta francês. A arte de vanguarda berra em uníssono sempre a mesma coisa: nosso pacto é o futuro, passado é excremento! Retrospectiva, portanto, não nos traz nem lágrima de cristal japonês. E por quê? Porque, quando Duchamp cancelou sua parceria com Tristan (sem Isolda) Tzara, deixou Paris e nova-iorquinizou-se, o movimento em si de deixar o velho pelo novo já tinha um significado. Falo de 1911 ou algo assim. "Achar" objetos na rua e juntá-los era um humor que os americanos não tinham. Só vieram a ter nos anos 60 com Andy Warhol. Então, certo dia, Duchamp cancelou sua exposição na Pace Gallery, em Manhattan, e falou: "Retirem todos os quadros, apareço aí mais tarde com objetos novos". E somou ao já famoso Nu Descendo a Escada (um dos mais escandalosamente lindos tributos à pintura em movimento) seu maior e mais conhecido quadro-não-quadro, "o pai e a mãe" disso que chamamos hoje de instalação/manifesto: A Roda de Bicicleta. Essa roda foi assim: nesse mesmo dia em que cancelava sua exposição na Pace, Duchamp andava pelo Bowery, perto da Houston Street. De um lado da rua tinha uma roda de bicicleta jogada fora. Do outro, um desses bancos de madeira de bar! Ele GRAMPEOU, tacou a roda em cima do banco e levou o treco para a Pace! Esse foi o maior revolucionário de todos os tempos, em qualquer contexto, em qualquer arte (sem ele não teríamos John Cage na música nem Merce Cunningham na dança etc.). É um saco ter que descrever Duchamp! A melhor maneira e a mais triste de representar uma retrospectiva foi desenhada por Saul Steinberg. O cartum é assim: um coelho olhando para o oeste está sentado em cima de uma tartaruga que caminha lentamente para o leste. Duchamp foi um dos primeiros enormes iconoclastas. Com humor. Quebrou o vidro? Deixa lá, quebrado. O acaso é ótimo!

Rasteira maior

O movimento dadaísta (não os surrealistas caretas e marqueteiros!), o iconoclástico, o desconstrutivista, o atonal, o dodecafônico, o serialista, o abstrato, o abstrato-expressionista, o minimalista, enfim, tudo isso visa a uma só coisa: colocar a arte debaixo da lente do microscópio, autopsiá-la; dissecar se as verdades e mentiras dos séculos anteriores de música e pintura e iluminismo e renascentismo, anos e anos de arrotismo de tantos e tantos Rembrandts, Velázquez, Beethovens, Wagners e outros porcos e Hegels e Kants e os tantos Goethes, ver se eles faziam realmente sentido na era pós-Freud, na era pós-industrializada. A arte desse vanguardista foi a maior de todas as rasteiras. E no que deu? Estamos na mesma. Aliás, estamos mais caretas. Estamos numa era pré-Duchamp, porque hoje o olhamos como se ele estivesse no nosso passado, e toda essa porcaria pseudo-inovadora (salvo alguns, óbvio, como Kiefer, Beuys, Tunga, Warhol, Damien Hirst e outros poucos) ainda está naquela de "pensar a arte" séria, serialista. Voltamos ao quadrinho ou quadrão, ao muralista Siqueiros, ou ao medíocre Portinari, ou ao idiota do Henry Moore, ou às instalações auto-indulgentes. E o povo, ignorante como sempre, se concentra ali na estátua dos retirantes no Ibirapuera, a metros, meio quilômetro da retrospectiva de Duchamp, sem nem sequer saber o que foi tudo aquilo, se o ovo de Colombo ficou em pé ou não, ou se havia ovo de fato. A Arte está MORTA, sim (moribunda, pelo menos). E faz anos que fazemos teatrinho de representação infantil em torno de seu funeral para não perdermos emprego. Não passamos é de canastrões de última categoria, com a azeitona na ponta do esôfago, segura ali por algum Nexium, Plexium, Sexium ou antiácido. Afinal, antigamente as pessoas tomavam ácido. Hoje, só tomam antiácido.

Folha de São Paulo

Ainda o contexto



Joshua Bell toca no saguão do metrô de Washington
- Bell utilizou um Stradivarius estimado em mais de US$3.000.000,00 -